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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.1 São Paulo jun. 1999

 

RESENHA

 

 

Davy Bogomoletz

 

 

Lins, Maria Ivone Accioly & Luz, Rogerio 1999: D. W. Winnicott - Experiência Clinica & Experiência Estética. Coletânea de Artigos, Rio de Janeiro, Revinter Editora. ISBN 85-7309-269-6

Depois da "Escola de Viena", com suas tradições e sua obediência cega ao líder Freud, a "Escola Britânica" de Psicanálise tornou-se cega seguidora das suas duas grandes damas - Melanie Klein e Anna Freud. A International Psychoanalytical Association tornou-se famosa pela perseverança e pela tenacidade - duas características que a fizeram conter a criatividade e a originalidade de seus membros, canalizando suas energias para a tenaz reiteração das inovações propostas por sua líder máxima - M.Klein.

Com Fairbairn, Bion, Erickson, Balint, Bowlby e Winnicott, algumas brechas surgiram na armadura que a psicanálise vestia até então. A armadura, porém, ainda não foi desmontada.

Prova disso é a primeira parte deste belo livro, a parte escrita pela psicanalista Ivone Lins. Para quem está familiarizado com as grandes questões teóricas e técnicas da psicanálise nos últimos 30 anos, fica evidente o quanto os escritos de Ivone Lins funcionam, na verdade, não como uma pura afirmação de sua escolha pela teoria-técnica winnicottiana, mas como um golpe - por vezes tímido, por vezes contidamente enfurecido - nas arcaicas e arcaizantes estruturas psicanalíticas da "velha escola".

Os artigos de Lins constituem aulas de História da Psicanálise Aplicada, especialmente no Brasil - neste Brasil tão vastamente assolado tanto pelas doenças mentais quanto pelas doenças dos que se pretendem profissionais da doença mental.

Do começo ao fim da longa e fértil série de seus trabalhos, saltam aos olhos os esforços de Lins por sacudir as bandagens e os ungüentos que amortalhavam o fazer psicanalítico - principalmente dentro de instituições públicas, sempre mais sujeitas ao controle de pessoas "altamente gabaritadas", ou seja, daquelas pessoas que ang<%-6>ariaram cada vez mais poder institucional por melhor conservarem as tradições, isto é, as velhas idéias de sempre.

Ivone briga tanto contra as teorias tradicionais quanto contra as tradições da técnica clínica. Seus artigos são, todos eles, escritos em dois tempos: no primeiro, ela descreve o que a psicanálise "oficial" pensa (e age) sobre algo. No segundo momento, ela mostra como a psicanálise baseada na revolução winnicottiana (expressão minha, não dela) encontra uma fértil saída para o beco sem saída em que a psicanálise tradicional (e sua velha desafeta, na verdade aliada, a psiquiatria igualmente tradicional) se enfiou (e para o qual arrastou seus pacientes).

O ponto alto do trabalho apresentado por Ivone é sua guerra contra a "impossibilidade" de trabalhar com populações de baixa renda, apregoada pela psicanálise tradicional. Ela mostra, relato após relato, o quanto é possível fazer, num contexto em que os tradicionalistas (psiquiatras e psicanalistas) rendem-se a um aparente "trágico", um "trágico" ficticiamente calcado em considerações teóricas, mas na verdade alimentado pela rigidez, pela defesa e pela insensibilidade.

No capitulo 7, Lins escreve algo que tomo como um resumo de todo o seu trabalho aqui publicado: "As consultas com Rosália ilustram a diferença entre um trabalho clínico que se apóia na relação transferencial - entendida em seu sentido mais restritivo - e na interpretação, pontos centrais das práticas ortodoxas, e um trabalho em que o essencial é a adaptação do enquadre às necessidades do paciente.

Nas consultas, o idioma transferencial se transforma em modelo da experiência mais primitiva, que lembra a situação do bebê sob os cuidados maternos. Um espaço, um tempo e um terapeuta são oferecidos ao paciente, que os utiliza como elementos necessários à realização de um tipo de experiência terapêutica: refiro-me à experiência de si mesmo ou experiência do self, como a denomina Winnicott. Khan assinala a dificuldade que sente o analista em falar sobre esse tipo de experiência, e provar a autenticidade de suas afirmações. A experiência de si mesmo, na sua totalidade, não é passível de comunicação verbal, uma vez que nela os processos psíquicos mais importantes são os primários. Por isso, a interpretação do conteúdo do jogo só tem valor, no método das Consultas, enquanto trabalho complementar. No final do processo, o terapeuta poderá integrar a experiência do jogo em um discurso compartilhado: tem lugar, então, a construção".

Achei preciosa essa formulação técnica: "Um espaço, um tempo e um terapeuta são oferecidos ao paciente", e sua conseqüência - a essência do "espirito" winnicottiano: "que os utiliza como elementos necessários à realização de uma experiência terapêutica". Note-se que, nesta frase, o "sujeito" (para além das discussões a respeito promovidas por Rogerio Luz, na segunda parte do livro) é o paciente, não o terapeuta.

A meu ver, é essa entrega do poder ao paciente que tipifica o trabalho proposto por Winnicott. Mesmo quando ele provoca o paciente, ao lhe propor rabiscos que este deverá continuar, não se trata de uma ação seguida de reação: é uma ação seguida por outra ação. Pois não é o moi consciente do terapeuta que age, mas o seu je, do qual ele não é sujeito. O mesmo se poderia dizer do paciente, mas é o je do paciente que está doente, que precisa expressar-se, fazer-se ver (como explica mais tarde Rogerio Luz, ao falar do olhar da mãe que engendra no filho a condição de sujeito). E quando ele se faz ver, é ele o sujeito da situação, não aquele que o vê.

O que Lins promove é, inevitavelmente, o "uso do objeto" por parte do paciente. Ela se coloca de tal maneira, enquanto terapeuta, que o paciente quase nunca tem qualquer dificuldade em "usá-la", no sentido winnicottiano da palavra. Claro, esta é uma forma de queimar etapas, pois teoricamente o uso do objeto ocorre só depois da indiferenciação, do repúdio e da conquista do concern. Mas a beleza na proposta técnica de Winnicott, e no trabalho de Lins, está aí: por que obedecer às regras do jogo baseado na teoria, se é possível ir direto ao assunto? A quem importa, afinal, a situação terapêutica: ao paciente, ou às "otoridades" institucionais que vigiam de cima a aplicação "correta" de uma teoria? E quando acontece de o paciente ter dificuldade em usar o terapeuta, como no caso de Devanildo, o rapaz que devaneava em vez de sonhar, essa dificuldade é a própria expressão da doença - portanto ainda assim o trabalho terapêutico está sendo feito.

Quanto alguém não sabe brincar, cabe ao terapeuta ensinar-lhe, dizia Winnicott, e "ensinar-lhe", aqui, não significa ministrar conteúdos cognitivos, mas criar um espaço e um tempo de relaxamento, de bem-estar não deliberado, um espaço e um tempo livres de teorias e de técnicas (psicanalíticas ou sociais) superegóicas. Nesse lugar (espaço-tempo) tão especial, tão sofisticado, que só pode ser criado se nada for feito de modo superegóico, deliberado, surge espontaneamente esse tal "sujeito" do paciente, porque, ao que tudo leva a crer, esse "sujeito" esta sempre lá, "doido" para aparecer, mesmo que não se trate (como diz o filósofo Luz) de uma "entidade personológica" ou de outra instância qualquer, mas de um processo que tem como característica essencial o simples e inexplicável desejo de processar-se... Isso, prova Lins de modo comovente, qualquer tipo de população pode aproveitar, pois essa é a essência do ser, anterior a um fazer (por exemplo, o tipo de comunicação que a psicanálise tornou "padrão"), que envolveria, agora sim, "técnicas" e "teorias" - psicanalíticas ou não.

Estendi-me um tanto sobre o trabalho de Ivone Lins porque o seu heroísmo (sim, heroísmo, essa qualidade de importar-se com a vida alheia para muito além do próprio conforto e das próprias preocupações) precisa e merece todo o barulho necessário para chamar a atenção do distinto público sobre ele.

Sobre o trabalho de Rogerio Luz me é bem mais difícil escrever, porque se trata de um produto do pensamento filosófico e epistemológico contemporâneo, com o qual estou menos familiarizado. No entanto, vencida a dificuldade de ler seus textos, com sua linguagem sofisticada, complexa, densa, em que os termos técnicos de filosofia, epistemologia, estética e teoria da arte sucedem-se em avalanche, como na linguagem do botequim sucedem-se os palavrões, o que me fica,, de novos entendimentos sobre questões tanto da psicanálise quanto da cultura, é precioso.

Luz defendeu na Bélgica a tese de doutoramento "Espaço Potencial e Experiência Fílmica", o que mostra aprofundamento na proposta teórica de Winnicott, e uma aplicação incomum dessa teoria a um dos campos mais estudados da civilização ocidental contemporânea.

E é com vigor e consistência que ele percorre, re-arando-os, os campos tão cultivados do saber atual, munido dessa nova ferramenta "louca", a teoria do espaço transicional, que não deixa em pé um único pé plantado pelo velho esquema cartesiano da "representação" e da dualidade. Com esse arado chamado paradoxo, Luz revolve a terra epistemológica, dela arrancando as velhas plantações - as obsoletas proposições e as ultrapassadas conclusões (nem Morin foge à crítica aos seus termos, que "não escapam ao quadro da representação") - e nos presenteia com um plantio novo, com flores e frutos deliciosos (muito próximos no sabor, ainda que não na linguagem, aos célebres caquis de Rubem Alves - "Para que serve uma teologia que não tenha o gosto de caquis?...").

Luz desmancha a trama (ou melhor, tramóia) dos velhos (pré)conceitos epistemológicos, ignorantes do princípio do paradoxo, para os quais, em sua míope dualidade, as coisas são ou isto ou aquilo, ou representações de fantasias inconscientes, ou objetos "reais" da física ou da cultura, dualidade essa que serve apenas, como ele diz à página 226, para "reafirmar a radical contingência do homem voltado para a morte (a falta ou a falha que abre para uma ontologia da finitude)".

Um outro pensamento de Luz - no final da ultima página do livro -, porque o achei precioso a ponto de não dispensar sua citação: "Winnicott disse certa vez a seu público, antes de iniciar uma palestra: 'Seja lá o que for que vocês consigam de mim, terão que escolher a partir do caos'. Lance retórico de conferencista? Lúcida autocrítica? Creio que a frase aponta noutra direção: somos compelidos à escolha, e esta tem origem no que não tem forma, e se exerce sobre o indeterminado. Winnicott faz do caos, daquilo que não tem forma (formless), de uma força ou energia ainda não configurada, uma noção central para articular processos singulares de subjetivação e a tradição e criação no elemento coletivo da cultura. Quem sabe poderíamos fazer um uso rigoroso, porque poético, daquela "escolha a partir do caos" em nossa maneira de ser e pensar?"

Muito me agradaria, mas não é este o momento, discutir ponto por ponto muitas das formulações de Luz. Não resisto, porém, a um comentário sobre este ponto especifico. Luz acaricia, aqui, aparentemente sem saber, um dos meus tesouros culturais favoritos: o Tao, com seu parente próximo, o zen-budismo. Há muito tempo penso que, para entender realmente Winnicott, nada melhor que um passeio pelas noções de vazio, não-pensamento e espontaneidade do Zen e do Tao. Nunca descobri se Winnicott conhecia ou não a filosofia oriental. Talvez haja uma pista para isto no fato de que ele costumava freqüentar o Grupo de Bloomsbury, famoso por sua abrangência e sua abertura intelectual. Mas não sei. Fica-me apenas a curiosidade, e o gosto por essa estranha aproximação.

Uma outra frase, pinçada randomicamente (há incontáveis outras como essa), mostra o alvo para o qual Luz arrasta, com vigor, as setas do nosso olhar: "Penso que não só a experiência fílmica mas a experiência dos objetos estéticos em geral ganha, com a teoria dos fenômenos transicionais de Winnicott, o seu verdadeiro lugar - um lugar central - na teoria do inconsciente." ("...e da cultura", acrescento eu, embora não tenha sido chamado).

A análise a que Luz submete os problemas da arte, do cinema, e principalmente disso que dá vontade de chamar de "epistemologia do espectador" é deliciosa, mas haja dentes para mastigá-la. Daqui, pisco-lhe o olho e lhe pergunto, provocando um trabalho ou um debate que um dia talvez aconteça: O que teria Winnicott pensado da obra de Chagall?

Trata-se de um livro que interessará - por necessidade - aos jovens terapeutas que acabam de sair das fraldas de sua formação/supervisão, se quiserem seguir os caminhos de Winnicott, esse sábio pós-moderno anterior à pós-modernidade. Interessará tanto por seus aspectos clínicos, pela coragem de ousar que lhes será ministrada em doses maciças por Ivone, quanto pela coragem de pensar que lhes outorgará Rogerio Luz com igual generosidade. Aos jovens terapeutas, o que em geral lhes sobra em retórica lhes falta em convicção profunda, e é isso que este livro lhes poderá fornecer a mancheias. E o livro interessará igualmente aos winnicottianos veteranos, primeiro por se verem confirmados em seus sofrimentos de pioneiros pelas narrativas de Lins, e depois por se verem complementados, em seus conhecimentos, pelas formulações de Luz. Porque nós, "velhos" winnicottianos, nos acostumamos - como Freud nos primeiros tempos - a nos vermos em minoria esmagada diante da maioria esmagadora, e nem sempre tivemos mestres capazes de nos iluminar as obscuras veredas pelas quais transitamos. Claro - intuição não se ensina. Mas intuição se confirma, e com isso se fortalece a crença de que a próxima intuição também funcionará, um pouco como ocorre com as mães de vários filhos, que vêem decrescer sua ansiedade inicial à medida em que suas experiências se mostram mais bem-sucedidas do que elas temiam.

E o livro interessará também a esse grande exército de estetas, artistas, intelectuais do cinema, da literatura, da arte, da comunicação social em geral, que o lerão do fim para o começo - iniciando com as análises de Luz, e depois prosseguindo, talvez por mera curiosidade, para as histórias clínicas de Lins, em que as questões existenciais do homem são discutidas com mais detalhe e mais exemplos.