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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.2 São Paulo dez. 2003

 

TRADUÇÃO

 

A sentença nietzschiana "Deus está morto"

 

The epoch of the image of the world

 

Martin Heidegger; tradução de Marco CasanovaI

I Departamento de Filosofia UERJ

 

 


 

 

O seguinte esclarecimento procura indicar o ponto a partir do qual, talvez, possa vir a ser colocada um dia a pergunta pela essência do niilismo. O esclarecimento provém de um pensamento que começa pela primeira vez a ganhar nitidez quanto à posição fundamental de Nietzsche no interior da história da metafísica ocidental. O aceno evidencia um estágio da metafísica ocidental que é supostamente o seu estágio final, uma vez que outras possibilidades não se fazem mais visíveis. A metafísica é de certa maneira despojada de sua própria possibilidade essencial por Nietzsche. À metafísica não resta, em meio à inversão empreendida por Nietzsche, senão a conversão em sua inessência. O supra-sensível transforma-se em um produto sem subsistência do sensível. Este renega porém a própria essência com essa degradação de seu contraposto. A destituição do supra-sensível afasta também o meramente sensível, e, com isso, a diferença entre ambos. A destituição do supra-sensível desemboca em um nem-nem em relação à distinção entre sensível (aÆsqhtog) e supra-sensível (nohton). A destituição termina no sem-sentido. Ela permanece, contudo, a pressuposição impensada e insuperável das tentativas cegas de escapar do sem-sentido através de uma simples dotação de sentido.

A metafísica é pensada a seguir por toda parte como a verdade do ente enquanto tal na totalidade, não como a doutrina de um pensador. Este tem respectivamente a sua posição filosófica fundamental no interior da metafísica. A metafísica pode ser por isso denominada junto com o seu nome. Segunda a essência aqui pensada da metafísica, isso não diz contudo, de modo algum, que a respectiva metafísica seja a realização e a propriedade do pensador enquanto uma pessoa no âmbito público da criação cultural. Em toda e qualquer fase da metafísica torna-se visível, a cada vez, um pedaço do caminho que o destino do ser conquista para si em rompantes epocais da verdade sobre o ente. Nietzsche mesmo interpreta metafisicamente o curso da história ocidental; e o interpreta enquanto o surgimento e o desdobramento do niilismo. O acompanhamento atento da metafísica nietzschiana transforma-se em uma meditação acerca da conjuntura e do lugar do homem atual, que ainda permanecem diminutamente experimentado em relação à sua verdade. Toda meditação desse tipo lança-se, porém, caso não se mantenha apenas um relatório que se repete de modo vazio, para além do que fornece o horizonte de vigência da meditação. O lançar-se para além não é, sem mais, um sobrepujar ou quiçá um exceder, nem tampouco como que um superar. O fato de meditarmos sobre a metafísica nietzschiana não significa que consideramos agora, ao lado de sua ética e de sua teoria do conhecimento e de sua estética, também e antes de tudo, a metafísica, mas sim que tentamos levar Nietzsche a sério enquanto pensador. Para Nietzsche, entretanto, pensar também diz: representar o ente enquanto o ente. Todo pensamento metafísico é onto-logia ou não é absolutamente nada.

Para a meditação aqui intentada, trata-se de preparar um passo simples do pensamento: um passo que não salta imediatamente aos olhos. No que concerne a esse pensamento preparatório, tudo gira em torno da iluminação do espaço no interior do qual o Ser mesmo poderia se ligar ao homem segundo sua essência de um modo novo e primevo. Ser preparatório é a essência desse pensamento.

Este pensamento essencialmente preparatório - por isso por toda parte e em todos os sentidos apenas preparatório - segue sem saltar imediatamente aos olhos. Todo esforço conjunto de pensamento é, aqui, por mais desajeitado e tateante que possa se mostrar, um auxílio essencial. O esforço conjunto de pensamento transforma-se na sementeira discreta e impassível de ratificação através de validade e utilidade: uma sementeira de semeadores que talvez nunca cheguem a ver a haste e o fruto, nem tampouco conheçam uma colheita. Eles servem à sementeira e antes ainda à sua preparação.

Antes da semeadeira apresenta-se o movimento do arar. Vale tornar cultivável o campo que precisou permanecer desconhecido através do predomínio inacessível da terra da metafísica. Vale entrever primeiramente esse campo e então encontrá-lo e edificá-lo. Vale empreender um primeiro curso em direção a esse campo. Há muitos caminhos do campo ainda desconhecidos. Para todo pensador, porém, entrega-se a cada vez apenas um caminho: o seu. Sobre os rastos deste caminho, ele sempre precisa se movimentar uma vez mais, para por fim detê-lo enquanto o seu, que contudo nunca lhe pertence, e para dizer o que é experienciável por sobre esse caminho uno.

Talvez o título Ser e tempo seja o sinal de um tal caminho. De acordo com o entrelaçamento essencial da metafísica com as ciências, que dela diretamente descendem, requerido e sempre novamente buscado pela própria metafísica, o pensamento preparatório também precisa se movimentar por vezes em meio ao círculo das ciências porque estas sempre se arrogam ainda o direito de afirmar em múltiplas configurações a forma fundamental do saber e do que é passível de ser sabido: seja essencialmente, seja através do modo de sua validade e efetivação. Quanto mais inequivocamente as ciências se dispõem para a sua essência técnica predeterminada e para a cunhagem desta essência, tanto mais decididamente se esclarece a pergunta pela possibilidade do saber arrogado no interior da técnica: por seu modo de ser, por seus limites e por seu direito.

Ao pensamento preparatório e ao seu empreendimento pertence uma educação no pensamento em meio às ciências. O mais difícil é encontrar através daí a forma adequada, de maneira que esta educação no pensamento não caia sob as garras de uma indistinção ante a pesquisa e a erudição. Essa intenção permanece então, antes de tudo, em perigo, se o pensamento precisar ao mesmo tempo e constantemente encontrar primeiramente sua estadia própria. Pensar em meio às ciências significa: passar ao largo delas, sem desprezá-las.

Não sabemos que possibilidades o destino da história ocidental reservou para o nosso povo e para o ocidente. A configuração e a disposição mais externa dessas possibilidades também não é o inicialmente necessário. Importante é apenas que os aprendizes no pensamento aprendam em conjunto e, ao mesmo tempo aprendendo à sua maneira, permaneçam no caminho e estejam aí no tempo certo.

O esclarecimento que se segue mantém-se, em seu intuito e segundo a sua amplitude, no interior do âmbito de uma experiência, a partir da qual Ser e tempo é pensado. O pensamento é ininterruptamente tocado pelo acontecimento uno de que o ente é pensado desde o início da história do pensamento ocidental em função do Ser, de que a verdade do Ser permanece contudo impensada e enquanto experiência possível não apenas negada ao pensamento: ele é ininterruptamente tocado pelo acontecimento uno de que o próprio pensamento ocidental, e isso sob a configuração da metafísica, como que sem saber encobre o acontecimento dessa negação; mesmo que como sem saber.

O pensamento preparatório mantém-se por isso necessariamente no âmbito da meditação histórica. A história não é para este pensamento a seqüência das eras, mas uma proximidade única do mesmo, que sob maneiras incalculáveis do destino e a partir de uma imediatidade alternante toca o pensamento.

Agora vale a meditação acerca da metafísica nietzschiana. Seu pensamento se vê sob o signo do niilismo. Este é o nome para um movimento histórico reconhecido por Nietzsche, que já transpassava preponderantemente o século passado e determina o nosso século. A interpretação desse movimento é sintetizada por Nietzsche através da curta sentença: "Deus está morto".

Poder-se-ia supor que a sentença "Deus está morto" expressa uma opinião do ateísta Nietzsche e é portanto apenas uma tomada de posição pessoal; uma tomada de posição por isso mesmo unilateral e, assim também, facilmente refutável através da indicação de que hoje, por toda parte, muitos homens procuram as casas de Deus e de que subsistem às aflições a partir de uma confiança em Deus determinada de modo cristão. Mas a pergunta persiste, se a dita sentença nietzschiana é apenas a visão extravagante de um pensador sobre o qual encontra-se à disposição a afirmação correta de que ele por fim enlouqueceu. A pergunta permanece, se Nietzsche não expõe aqui antes a sentença que já é sempre dita inexpressamente no interior da história metafisicamente determinada do ocidente. Antes de qualquer tomada de posição apressada precisamos procurar primeiramente pensar a sentença "Deus está morto" tal como é visada. Nesse sentido, fazemos bem em afastar todas as opiniões precipitadas que se impõem junto a essa terrível sentença.

As reflexões seguintes buscam esclarecer a sentença nietzschiana segundo alguns aspectos essenciais. Ainda uma vez acentua-se: a sentença nietzschiana denomina o destino de dois mil anos de história ocidental. Nós mesmos não temos o direito de achar, despreparados como todos juntos estamos, que alteraremos esse destino através da apresentação de um texto sobre a sentença nietzschiana "Deus está morto" ou mesmo que aprenderemos apenas a conhecê-lo suficientemente. Não obstante, é necessário agora uma coisa: que acolhamos a partir da meditação um ensinamento e aprendamos, sobre o caminho do ensinamento, a meditar.

Todo esclarecimento não precisa retirar, certamente, a própria coisa apenas do texto; ele também tem de entregar algo desapercebidamente a este a partir de sua coisa, sem prevalecer sobre ele. Esse suplemento é o que o leigo, de acordo com o que toma como sendo o conteúdo do texto, constantemente apreende como uma inserção de sentido por parte da interpretação e, com o direito que se arroga, censura como arbitrário. Um esclarecimento correto nunca compreende de qualquer modo o texto melhor do que o autor o compreendeu, mas sim diversamente. O único ponto a ser considerado é que esse outro precisa ser de uma tal textura que ele toque no mesmo, sobre o qual o texto esclarecido reflete.

Nietzsche expressou a sentença "Deus está morto" pela primeira vez no terceiro livro do escrito A gaia ciência, publicado em 1882. Com esse escrito começa o caminho de Nietzsche em direção à conformação de sua posição metafísica fundamental. Entre esse escrito e a labuta vã em torno da configuração da obra central planejada encontra-se a publicação de Assim falou Zaratustra. A obra central planejada nunca foi levada a termo. Provisoriamente, ela deveria ter o título "A vontade de poder" e o subtítulo "Tentativa de uma transvaloração de todos os valores".

O estranho pensamento da morte de um deus e do perecimento dos deuses já era familiar ao jovem Nietzsche. Em uma anotação do tempo de elaboração de seu primeiro texto, O nascimento da tragédia,Nietzsche escreve (1870): "Eu acredito na sentença originariamente germânica: todos os deuses precisam morrer". O jovem Hegel nomeia, no fim do ensaio "Crença e saber" (1802), o "sentimento, sobre o qual repousa a religião da idade moderna - o sentimento: Deus mesmo está morto...". A sentença hegeliana pensa diversamente da sentença nietzschiana. Não obstante, subsiste entre elas uma conexão essencial, que se esconde na essência de toda metafísica. A sentença que Pascal toma a Plutarco, "Le grand Pan est mort" (Pensées, 695), pertence, mesmo que por razões contrapostas, ao mesmo âmbito.

Escutemos primeiramente o teor completo do aforismo número 125 do escrito A gaia ciência. O aforismo é intitulado: "O homem desvairado" e nos diz:

O Homem Desvairado. - Vós não ouvistes falar daquele homem desvairado que em plena manhã luminosa acendeu um candeeiro, correu até a praça e gritou ininterruptamente: "Estou procurando por Deus! Estou procurando por Deus!" - À medida que lá se encontravam muitos dos que não acreditavam em Deus, ele provocou uma grande gargalhada. Será que ele se perdeu? - dizia um. Ou será que ele está se mantendo escondido? Será que ele tem medo de nós? Ele foi de navio? Passear? - assim eles gritavam e riam em confusão. O homem desvairado saltou para o meio deles e atravessou-os com seu olhar. "Para onde foi Deus?, ele falou, gostaria de vos dizer! Nós o matamos - vós e eu! Nós todos somos assassinos! Mas como fizemos isto? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagarmos todo o horizonte? O que fizemos ao arrebentarmos as correntes que prendiam esta terra ao seu sol? Para onde ela se move agora? Para onde nos movemos? Afastados de todo sol? Não caímos continuamente? E para trás, para os lados, para frente, para todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como que através de um nada infinito? Não nos envolve o sopro do espaço vazio? Não está mais frio? Não advém sempre novamente a noite e mais noite? Não precisamos acender os candeeiros pela manhã? Ainda não escutamos nada do barulho dos coveiros que estão enterrando Deus? Ainda não sentimos o cheiro da putrefação de Deus? - também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos! Como nos consolamos, os assassinos dentre todos os assassinos? O mais sagrado e poderoso que o mundo até aqui possuía sangrou sob nossas facas - quem é capaz de limpar este sangue de nós? Com que água poderíamos nos purificar? Que festejos de expiação, que jogos sagrados não precisamos inventar? A grandeza deste ato não é grande demais para nós? Nós mesmos não precisamos nos tornar deuses para que venhamos apenas a parecer dignos deste ato? Nunca houve um ato mais grandioso - e quem quer que venha a nascer depois de nós pertence por causa deste ato a uma história mais elevada do que toda história até aqui!" O homem desvairado silenciou neste momento e olhou novamente para os seus ouvintes: também eles se encontravam em silêncio e olhavam com estranhamento para ele. Finalmente, ele lançou seu candeeiro ao chão, de modo que este se partiu e apagou. "Eu cheguei cedo demais, disse ele então, eu ainda não estou em sintonia com o tempo. Este acontecimento extraordinário ainda está a caminho e perambulando - ele ainda não penetrou nos ouvidos dos homens. O raio e a tempestade precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, atos precisam de tempo, mesmo depois de terem sido praticados, para serem vistos e ouvidos. Este ato está para os homens mais distante do que o mais distante dos astros: e, porém, eles o praticaram!" - Conta-se ainda que o homem desvairado adentrou no mesmo dia várias igrejas e entoou aí o seu Requiem aeternam deo. Acompanhado até a porta e questionado energicamente, ele retrucava sem parar apenas o seguinte: "O que são ainda afinal estas igrejas, se não túmulos e mausoléus de Deus"".

Quatro anos depois (1886), Nietzsche acrescentou um quinto livro, intitulado "nós os destemidos", aos quatro livros de A gaia ciência. Por sobre o primeiro fragmento desse quinto livro está escrito: "O que se passou com nossa serenidade". O fragmento começa: "O grande e novo acontecimento - o fato de `Deus estar morto', de a crença no Deus cristão ter perdido a sua fidedignidade - já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa".

A partir dessa asserção fica claro que a sentença nietzschiana acerca da morte de Deus tem em vista o Deus cristão. Mas não é menos certo e a priori digno de consideração o fato de o nome Deus e o nome Deus cristão serem utilizados no pensamento de Nietzsche para designar o mundo supra-sensível em geral. Deus é o nome para o âmbito das idéias e do ideal. Este âmbito supra-senível vige desde Platão, dito ainda mais precisamente, desde a interpretação grega tardia e cristã da filosofia platônica, enquanto o mundo verdadeiro e o propriamente real. Em contraposição a este, o mundo sensível é apenas o mundo do aquém, o mundo transitório e por isso mesmo aparente, irreal. O mundo do aquém é o vale das lamentações em contraposição à montanha da eterna bem-aventurança no além. Se denominarmos, como ainda acontece em Kant, o mundo sensível o mundo físico em sentido amplo, então o mundo supra-sensível é o mundo metafísico.

A sentença "Deus está morto" significa: o mundo supra-sensível está sem força de atuação. Ele não fomenta mais vida alguma. A metafísica, isso significa para Nietzsche a filosofia ocidental entendida como Platonismo, está no fim. Nietzsche compreende a sua própria filosofia enquanto o contramovimento ante a metafísica: para ele, ante o platonismo.

Enquanto um mero contramovimento, ele permanece porém necessariamente, preso, como todo "anti-", à essência disso contra o que se volta. Enquanto a mera emborcação da metafísica, o contramovimento nietzschiano em relação a esta última não é senão um irremediável enredamento na metafísica; e isso de tal modo que ele se aparta de sua essência e enquanto metafísica nunca consegue pensar sua própria essência. Desta feita, permanece velado para a metafísica e através dela o que nela e enquanto ela mesma propriamente acontece.

Se Deus está morto enquanto o fundamento supra-sensível e enquanto a meta de todo real, se o mundo supra-sensível das idéias perdeu sua força imperativa e antes de tudo sua força evocadora e construtora, então não resta mais nada, junto a que o homem possa se manter e em direção a que ele possa se direcionar. Por isso encontra-se na passagem lida a pergunta: "Não erramos como que através de um nada infinito?". A sentença "Deus está morto" encerra em si mesma a constatação de que esse nada se expande. Nada significa aqui: ausência de um mundo supra-sensível, imperativo. O niilismo, "o mais sinistro de todos os hóspedes", encontra-se à porta.

A tentativa de esclarecer a sentença nietzschiana "Deus está morto" é equivalente à tarefa de interpretar o que Nietzsche entende por niilismo, e assim de indicar como o próprio Nietzsche se coloca ante o niilismo. Como este nome é, contudo, freqüentemente utilizado apenas como slogan e palavra de efeito, muitas vezes também como reprimenda judicativa, é necessário saber o que ele significa. Qualquer um que faça referência à sua crença cristã e a uma convicção metafísica qualquer já não está, portanto, fora do niilismo. Em contrapartida, porém, qualquer um que pense sobre o nada e sobre sua essência também não é já um niilista.

Este nome é normalmente utilizado em um tom. Tudo se dá, aqui, como se a mera designação niilista, sem que cheguemos a pensar algo sobre esta palavra, já fosse suficiente para fornecer uma demonstração de que uma meditação acerca do nada já conduz a uma queda no nada e não significa senão o estabelecimento da ditadura do nada.

Acima de tudo ter-se-á de se perguntar se o nome niilismo, pensado rigorosamente no sentido da filosofia de Nietzsche, só tem uma significação niilista, isto é, negativa; uma significação que nos impele para o nada vão. Antes mesmo do esclarecimento exato acerca do que o próprio Nietzsche diz sobre o niilismo, em meio à utilização vaga e arbitrária da expressão niilismo, é portanto necessário conquistar um ponto de visada correto, a partir do qual tenhamos pela primeira vez o direito de perguntar pelo niilismo.

O niilismo é um movimento histórico, não um ponto de vista e uma doutrina qualquer defendidos por alguém. O niilismo movimenta a história segundo o modo de um procedimento fundamental, quase absolutamente desconhecido no destino dos povos ocidentais. O niilismo também não é, com isso, apenas um fenômeno histórico entre outros, não é apenas uma corrente intelectual, que também se dá ao lado de outras correntes, ao lado do cristianismo, do humanismo e do iluminismo, em meio à história ocidental.

Pensado em sua essência, o niilismo é muito mais o movimento fundamental da história do ocidente. Ele traz à tona um curso profundo tal, que o seu desdobramento só pode ter ainda por conseqüências catástrofes mundiais. O niilismo é o movimento histórico mundial dos povos da terra que se estendem em meio ao âmbito de poder da modernidade. Por isso ele não é somente um fenômeno do tempo presente, também não somente o produto do século dezenove, no qual em verdade uma visada mais incisiva para o niilismo vem-a-ser desperta e no qual o nome niilismo se torna usual. O niilismo tampouco é apenas o produto de nações singulares, cujos pensadores e escritores falam propriamente de niilismo. Aqueles que se arrogam livres dele impelem, talvez, o seu desenvolvimento da maneira mais fundamental. Pertence ao caráter sinistro desse sinistro hóspede a impossibilidade de nomear a sua própria proveniência.

O niilismo também não domina pela primeira vez lá onde o Deus cristão é negado, o cristianismo combatido ou, quiçá ainda, um ateísmo ordinário é pregado de maneira livre pensante. Conquanto olhamos exclusivamente para essas descrenças que se destacam do cristianismo e para as suas formas de manifestações, a visada permanece presa à fachada extrínseca e carente do niilismo. O discurso do homem desvairado diz justamente, que a sentença "Deus está morto" não possui nada em comum com a mera opinião presente à nossa volta e eloqüente daqueles que "não acreditam em Deus". O niilismo enquanto destinação ainda não se fez absolutamente vigente para os assim meramente descrentes.

Enquanto apreendemos a sentença "Deus está morto" apenas como fórmula da descrença, toma-mo-la teológico-apologeticamente e renunciamos ao que está em questão para Nietzsche: a meditação que pensa sobre o que já aconteceu com a verdade do mundo supra-sensível e com sua relação com a essência do homem.

O niilismo no sentido nietzschiano também não se confunde, com isso, de maneira alguma com o estado representado de forma meramente negativa, de que não se pode mais acreditar no Deus cristão da revelação bíblica, uma vez que Nietzsche não compreende afinal sob o cristianismo a vida cristã, que uma vez e por pouco tempo subsistiu antes da redação dos evangelhos e das missões propagandistas de Paulo. O cristianismo é para Nietzsche o fenômeno histórico, político-mundial da igreja e de suas requisições de poder no interior da configuração do homem ocidental e de sua cultura moderna. Cristianismo nesse sentido e cristianidade da crença própria ao novo testamento não são o mesmo. Também um vida não-cristã pode afirmar o cristianismo e utilizá-lo enquanto fator de poder, assim como, inversamente, uma vida cristã não carece necessariamente do cristianismo. Por isso, uma discussão com o cristianismo não implica absoluta e incondicionalmente um combate do cristianismo, tampouco uma crítica da teologia implica já uma crítica da crença, cuja interpretação a teologia deveria ser. Enquanto não prestamos atenção a essas diferenciações essenciais, continuamos nos movimentamos em meio aos baixios do embate entre visões de mundo.

No seio da sentença "Deus está morto" encontra-se o nome Deus essencialmente pensado como correlato do mundo supra-sensível dos ideais, que encerram a meta subsistente para além da vida terrena e vigente para esta vida - uma meta que a determina assim desde o alto e, portanto, de certa maneira desde fora. Se a crença autêntica e determinada de maneira eclesiástica em Deus desvaneceu-se, porém, agora; se em específico a doutrina da crença, a teologia, em seu papel de auxiliadora de um esclarecimento normativo acerca do ente na totalidade, é cerceada e alijada, então ainda não se quebra com isso, de maneira alguma, o esquema fundamental, de acordo com o qual a inserção de uma meta que alcança o cerne do supra-sensível domina a vida sensivelmente terrena.

No lugar da autoridade desvanecida de Deus e do âmbito doutrinário da igreja entra em cena a autoridade da voz da consciência, impõe-se a autoridade da razão. Contra esta última levanta-se o instinto social. A fuga do mundo em direção ao supra-sensível é substituída pelo progresso histórico. A meta no além metamorfoseia-se na felicidade terrena dos muitos. Os serviços do culto à religião é dissolvido através do entusiasmo pela criação de uma cultura ou pela extensão da civilização. O elemento criador, outrora o próprio ao Deus bíblico, transforma-se em caráter distintivo do agir humano. Sua atividade criadora é derradeiramente transposta para o seio dos negócios.

O que quer que venha a querer se colocar no lugar do mundo supra-sensível desta forma não passa de uma variação da interpretação de mundo eclesiástico-cristã e teológica, que assumiu seu esquema ordinário, sua ordenação hierárquica do ente, a partir do mundo helênico-judaico, cujo esquema fundamental foi instaurado no começo da metafísica ocidental por Platão.

O âmbito para a essência e o acontecimento do niilismo é a metafísica mesma - sempre suposto que não temos em vista, com este nome, uma doutrina ou quiçá apenas uma disciplina especial da filosofia, mas pensamos sim na esquematização fundamental do ente na totalidade, conquanto este é diferenciado em um mundo sensível e em um mundo supra-sensível e aquele é sustentado e determinado por este. A metafísica é o espaço histórico no interior do qual se torna destino o fato de o mundo supra-sensível, as idéias, Deus, a lei moral, a autoridade da razão, o progresso, a felicidade da maioria, a cultura, a civilização perderem o seu poder edificador e transformarem-se em nada. Nós denominamos essa degradação da essência do supra-sensível a sua degenerescência. A descrença, no sentido do declínio da doutrina da crença cristã, não é com isso jamais a essência e o fundamento, mas incessantemente apenas uma conseqüência do niilismo; pois seria possível que o cristianismo mesmo não representasse senão uma conseqüência e uma conformação do niilismo.

A partir daí também reconhecemos, então, o derradeiro descaminho, ao qual se permanece exposto em meio a uma apreensão e a um suposto combate do niilismo. Porque não se experimenta o niilismo enquanto um movimento histórico vigente já há muito, cujo fundamento essencial repousa na metafísica mesma, recai-se na busca perniciosa por sustentar manifestações, que não são senão conseqüências do niilismo, como sendo ele mesmo, ou por apresentar as conseqüências e os efeitos como as causas do niilismo. Em meio à acomodação irrefletida junto a esse modo de representar está-se há décadas acostumado a introduzir o domínio da técnica ou a rebelião das massas como as causas da conjuntura histórica do tempo e a dissecar incansavelmente a situação espiritual do tempo segundo tais pontos de vista. Mas toda e qualquer análise ainda muito avalizada e engenhosa do homem e de sua posição no interior do ente permanece irrefletida e produz apenas a aparência de uma meditação, conquanto deixa de pensar no lugar da essência do homem e de experimentar esse lugar em meio à verdade do ser.

Conquanto assumimos somente as manifestações do niilismo como sendo este mesmo, a tomada de posição em relação ao niilismo permanece superficial. Ela também não altera nada, se se incute de uma certa paixão defensiva a partir de um desconforto ante a conjuntura mundial ou a partir de um desespero meio confesso ou a partir de uma indignação moral ou ainda a partir de uma superioridade auto-justificadora do crente.

Em contraposição a isso, vale primeiramente levar a termo uma meditação. Perguntamos por isso ao próprio Nietzsche o que entende pelo termo niilismo e deixamos inicialmente em aberto se Nietzsche já toca e pode tocar com esse entendimento a essência do niilismo.

Nietzsche coloca a pergunta "O que é o niilismo?" em uma anotação do ano de 1887. Ele responde aí: "O fato de os valores mais elevados se desvalorizarem".

Essa resposta é sublinhada e dotada de um aditamento esclarecedor: "Falta a meta; falta a resposta ao por quê?".

Segundo essa anotação, Nietzsche compreende o niilismo como um evento histórico. Ele interpreta esse evento enquanto a desvalorização dos valores mais elevados até aqui. Deus, o mundo supra-sensível enquanto o mundo verdadeiramente essente e determinante de tudo, os ideais e as idéias, as metas e os fundamentos que determinam e suportam todo ente e a vida humana em especial, tudo isso é aqui representado no sentido dos valores mais elevados. Segundo a opinião ainda hoje corrente, compreende-se sob esses valores o verdadeiro, o bem e o belo: o verdadeiro, isto é, o efetivamente ente; o bem, isso é, isto de que tudo por toda parte depende; o belo, isto é, a ordem e a unidade do ente na totalidade. Os valores mais elevados desvalorizam-se contudo justamente através do fato de ter surgido a intelecção de que o mundo ideal nunca é passível de realização no interior do mundo real. A imperatividade dos valores supremos cai em falso. A pergunta levanta-se: para que esses valores supremos, se eles não são capazes de assegurar ao mesmo tempo a defesa, os caminhos e os meios de uma realização das metas colocadas por eles?

Se quiséssemos agora porém entender apenas textualmente a determinação nietzschiana da essência do niilismo, de que ele é o tornar-se sem valor dos valores supremos, resultaria então daí aquela concepção da essência do niilismo que, entrementes, fez-se corrente e cujo caráter corrente já é apoiado pela designação niilismo: a concepção de que a desvalorização dos valores supremos significa evidentemente a decadência. Por si mesmo, o niilismo não é para Nietzsche absolutamente apenas uma manifestação de decadência. Enquanto procedimento fundamental da história ocidental, o niilismo é imediatamente e antes de tudo o princípio normativo dessa história. Por isso, também em suas considerações sobre o niilismo, o decisivo não está tanto para Nietzsche na descrição do decurso do evento da desvalorização dos valores supremos e na contabilização final oriunda daí do declínio do ocidente. Ao contrário, Nietzsche pensa o niilismo enquanto a "lógica interna" da história ocidental.

Nietzsche reconhece aí que, para o mundo, o mundo mesmo permanece com a desvalorização dos valores supremos até aqui e que o mundo que se tornou desprovido de valor impele antes de mais nada inexoravelmente a uma nova avaliação. A nova avaliação transmuta-se em relação aos valores até aqui em uma "transvaloração de todos os valores", depois que os valores supremos até aqui perdem a sua vitalidade. O não ante os valores até aqui advém do sim a uma nova avaliação. À medida que, de acordo com a opinião nietzschiana, não há neste sim nenhuma mediação e nenhuma equiparação com os valores até aqui, o não incondicionado neste sim pertence à nova avaliação. Para assegurar a incondicionalidade deste novo sim ante um retrocesso em direção aos valores até aqui; e isso significa, para fundamentar a nova avaliação enquanto o contramovimento, Nietzsche também continua designando a nova avaliação de niilismo - em verdade aquele niilismo através do qual a desvalorização se plenifica em uma nova avaliação que se apresenta solitariamente como normativa. Essa fase normativa do niilismo é denominada por Nietzsche o niilismo "plenificado": o niilismo clássico. Nietzsche compreende sob o termo niilismo a desvalorização dos valores supremos até aqui. Mas Nietzsche coloca-se ao mesmo tempo afirmativamente ante o niilismo no sentido de uma "transvaloração de todos os valores". O nome niilismo permanece com isso plurissignificativo, e, visto em seus extremos, de início sempre ambíguo, uma vez que designa por um lado a mera desvalorização dos valores supremos até aqui, mas tem em vista ao mesmo tempo, por outro, o contramovimento incondicional à desvalorização. Ambíguo nesse sentido é também justamente o que Nietzsche introduz como a forma primeva do niilismo: o pessimismo. Segundo Schopenhauer, o pessimismo é a crença em que no pior dos mundos a vida não vale a pena ser vivida e afirmada. De acordo com essa doutrina, a vida, e isso significa ao mesmo tempo o ente enquanto tal na totalidade, tem de ser negada. Para Nietzsche, esse é o "pessimismo da fraqueza". Ele vê por toda parte apenas o sombrio, encontra para todas as coisas uma razão para o fracasso e se arroga saber como tudo se dará no sentido de um malogro geral. O pessimismo da força e enquanto força, em contrapartida, não se deixa lograr por nada, considera o perigo, não quer nenhum mascaramento e nenhuma maquiagem. Ele transpassa com o olhar o fatídico do mero estar à espera do retorno do que se deu até aqui. Ele penetra analiticamente os fenômenos e exige a consciência quanto às condições e às forças que apesar de tudo asseguram um assenhoramento da conjuntura histórica.

Uma meditação mais essencial poderia mostrar como, no que Nietzsche denomina o "pessimismo da força", plenifica-se a rebelião do homem moderno em meio ao domínio incondicional da subjetividade no interior da subjetividade do ente. Através do pessimismo em sua forma dúbia manifestam-se extremos. Os extremos sustêm enquanto tal a preponderância. Assim surge o estado do aguçamento incondicional em um ou-ou. Um "estado intermediário" faz-se vigente, uma vez que se torna evidente que, por um lado, a concretização dos valores supremos até aqui não se cumpriu. O mundo parece desprovido de valor. Por outro lado, o olhar perscrutador é direcionado para a fonte da nova avaliação através dessa tomada de consciência, sem que o mundo já reconquiste através daí seu valor.

Com certeza, algo diverso ainda pode ser tentado em vista do abalo do domínio dos valores até aqui. Se em verdade Deus, no sentido do Deus cristão, desapareceu de seu lugar no mundo supra-sensível, então sempre resta ainda o lugar mesmo, mesmo que enquanto o lugar esvaziado. O âmbito locativo esvaziado do supra-sensível pode ser retido. O lugar vazio requer mesmo uma nova ocupação e a substituição do Deus desaparecido daí por um outro. Novos ideais são erigidos. Isso acontece segundo a representação nietzschiana (V.d.P. A.1021.a.d.A.1887) através das doutrinas de produção de uma felicidade mundial e através do socialismo, do mesmo modo que através da música wagneriana; isto é, onde quer que o "cristianismo dogmático" "esteja liquidado". Nietzsche diz, quanto a isso: "O niilismo não plenificado, suas formas: vivemos no centro delas. A tentativa de escapar do niilismo sem transvalorar os valores até aqui provoca o contrário e intensifica o problema".

Nós podemos apreender o pensamento nietzschiano do niilismo não-plenificado mais nítida e incisivamente à medida que dizemos: o niilismo não-plenificado substitui em verdade os valores até aqui por outros valores, mas ele sempre os coloca ainda na antiga posição, que é como que preservada enquanto o âmbito ideal do supra-sensível. O niilismo plenificado, porém, precisa ainda colocar de lado até a própria posição dos valores, o supra-sensível enquanto âmbito, e, de acordo com isso, estabelecer diversamente os valores e os transvalorar.

Daí fica claro: ao niilismo plenificado, acabado e com isso clássico, pertence em verdade à "transvaloração de todos os valores até aqui", mas a transvaloração não substitui simplesmente os velhos valores por novos. A transvaloração transforma-se em inversão do modo de valoração. A avaliação carece de um novo princípio: ela carece disto, desde onde ela provém e no que ela se sustém. A avaliação carece de um outro âmbito. O princípio não pode ser mais o mundo supra-sensível que perdeu sua vitalidade. Por isso, o niilismo que aponta para a assim compreendida transvaloração busca o maximamente vital. O niilismo transforma-se assim, ele mesmo, em "ideal da vida superabundante" (V.d.P. A. 14. A.d. A. 1887).Nesse novo valor supremo esconde-se uma outra apreciação da vida, isto é, disso sobre o que repousa a essência determinante de todo vivente. Desta feita, é preciso ainda perguntar o que Nietzsche entende por vida.

O aceno para os diversos níveis e formas do niilismo mostra que, segundo a interpretação de Nietzsche, o niilismo é por toda parte uma história, na qual se trata dos valores, da instauração dos valores, da desvalorização dos valores, da transvaloração dos valores, do novo estabelecimento dos valores e, por fim e efetivamente, da instauração diversamente avaliadora do princípio de toda avaliação. As metas supremas, os fundamentos e os princípios do ente, os ideiase o supra-sensível, Deus e os deuses - tudo isso é a priori concebido como valor. Nós só apreenderemos portanto suficientemente o conceito nietzschiano de niilismo quando soubermos o que Nietzsche entende por valor. Somente a partir daí compreenderemos a sentença "Deus está morto", tal como ela é pensada. Uma elucidação bastante clara do que Nietzsche pensa sob a palavra valor é a chave para o entendimento de sua metafísica.

No século dezenove o discurso acerca de valores tornou-se corrente e o pensamento valorativo, usual. Mas somente em conseqüência de uma difusão dos escritos de Nietzsche o discurso acerca de valores tornou-se popular. Fala-se em valores vitais, em valores culturais, em valores eternos, em hierarquia de valores, em valores espirituais, que se crê, por exemplo, encontrar na antiguidade. Em meio à ocupação douta com a filosofia e à formação do neokantianismo, chega-se à filosofia dos valores. Constroem-se sistemas de valor e perseguem-se as gradações dos valores no seio da ética. Até mesmo na teologia cristã determina-se Deus, o summum ens qua summum bonum, enquanto o valor supremo. Considera-se a ciência livre de valores e lançam-se as avaliações para o lado das visões de mundo. O valor e o valorativo transformam-se em substitutivo positivístico para o metafísico. À freqüência dos discursos acerca de valores corresponde a indeterminação do conceito. Este, por seu lado, corresponde à obscuridade da proveniência essencial do valor a partir do ser. Pois, uma vez que o valor freqüentemente nomeado de uma tal maneira não é um nada, ele precisa ter evidentemente sua essência no ser.

O que entende Nietzsche por valor? Onde está fundada a essência do valor? Por que a metafísica nietzschiana é uma metafísica dos valores?

Nietzsche diz em uma anotação (1887/88) o que entende por valor (V.d.P. A. 715): "O ponto de vista do `valor' é o ponto de vista das condições de conservação-elevação em vista de conformações complexas de duração relativa no interior do devir".

A essência do valor repousa no fato de ser um ponto de vista. O valor visa um algo tal que é apreendido no olhar. Valor significa o ponto de visada de um ver que direciona o olhar para algo ou, como dizemos, que conta com algo e aí precisa contar com um outro. O valor encontra-se em ligação interna com um tanto, com um quantum e um número. Valores estão com isso (V.d.P. A. 710. A.d. A. 1888) ligados a uma "escala numérica e de medidas". A pergunta permanece ainda, sobre o que se funda por seu lado a escala da elevação e da diminuição.

Através da caracterização do valor enquanto um ponto de vista vem à tona o uno e essencial para o conceito de valor nietzschiano: enquanto ponto de vista, o valor é sempre e a cada vez estabelecido por um ver e para este. Este ver é do tipo que vê, conquanto viu; que viu, conquanto re-presentou para si o visto enquanto um tal e assim o pôs. Somente através desse pôr representacional o ponto necessário para o direcionamento do olhar até algo e assim dirigente para o curso da visão desse ver transforma-se em ponto de visada: ou seja, nisso que está em jogo no ver e em toda ação dirigida pela visão. Valores não são, portanto, antes, algo em si, de modo que pudessem então ser tomados ocasionalmente enquanto pontos de vista.

O valor é um valor, conquanto vale. Ele vale à medida que é estabelecido enquanto o que está em jogo. Ele é assim posto por um direcionamento e uma fixação do olhar em algo, com o que precisa se contar. O ponto de visada, o aspecto, o âmbito de visão tem em mente aqui a visualização e a visão em um sentido determinado pelos gregos, mas transpassado pela mudança da idéia de eidoV em perceptio. O ver é uma tal representação, que desde Leibniz é apreendida expressamente sob o traço fundamental da aspiração (appetitus). Todo ente é um produtor de representações, conquanto o nisus1 pertence ao ser do ente, o ímpeto para a entrada em cena, que leva algo à aparição (ao fenômeno) e assim determina seu advento. A essência dessa forma "nisônica" de todo ente toma assim e estabelece para si um ponto de visada. Este dá o aspecto, que vale seguir. O ponto de visada é o valor.

Com os valores enquanto pontos de vista estabelecem-se, segundo Nietzsche, "condições de conservação-elevação ". Já através dessa maneira de escrever, na qual, entre a conservação e a elevação, o "e" é deixado de lado e substituído por um hífen, Nietzsche quer deixar claro que os valores, enquanto pontos de vista, são essenciais e por isso sempre, ao mesmo tempo, condições de conservação e elevação. Onde valores são estabelecidos, os dois tipos de condicionamento sempre precisam ser apreendidos conjuntamente pelo olhar, de modo que permaneçam uniformemente ligados um ao outro. Por quê? Evidentemente, apenas em função do fato de o ente mesmo que representa e aspira ser em sua essência de tal maneira que ele carece desse ponto de visada dúbio. Em relação a que os valores enquanto pontos de vista são condições, se eles precisam condicionar tanto a conservação quanto a elevação?

Conservação e elevação caracterizam os traços fundamentais da vida em si coesa. À essência da vida pertence o querer crescer, a elevação. Toda e qualquer conservação da vida encontra-se a serviço de sua elevação. Toda vida que se restringe somente à mera conservação já está em declínio. O asseguramento do espaço vital, por exemplo, nunca é uma meta para o vivente, mas apenas um meio para a elevação da vida. Inversamente, a vida elevada propicia uma vez mais o crescimento da antiga necessidade por expansão espacial. A elevação não é, contudo, em parte alguma possível se uma subsistência já não estiver mantida enquanto as segurada, e, assim, primeiramente enquanto capaz de elevação. O vivente é, com isso, uma "conformação complexa da vida": isto é, uma conformação associada aos dois traços fundamentais, à conservação e à elevação. O ver é sempre e a cada vez uma visualização vital, que vige através de todo vivente. À medida que estabelece o ponto de visada para o vivente, a vida se mostra em sua essência como instauradora de valores (comparar V. d. P. A. 556. A. d. A. 1885/86).

As "conformações complexas da vida" carecem necessariamente de condições de conservação e de manutenção, de modo que, em verdade, o constantemente mantido só se mantém para vir-a-ser algo inconstante em meio à elevação. A duração dessas conformações complexas da vida repousa sobre a relação alternante entre elevação e conservação. Ela é por isso uma duração relacional. Ela permanece uma "duração relativa" ao vivente, e isso significa à vida.

Segundo a afirmação de Nietzsche, o valor é o "ponto de vista das condições de conservação-elevação em vista de conformações complexas de duração relativa no interior do devir". A mera palavra indeterminada "devir" não significa, aqui e em geral na linguagem conceitual da metafísica nietzschiana, um fluir qualquer de todas as coisas, a simples mudança de estados; também não um desenvolvimento qualquer e um desdobramento indeterminado. "Devir" visa a passagem de algo para algo, aquele movimento e mobilidade que Leibniz denomina na Monadologia (§ 11) as mudanças naturais, que transpassam dominantemente o ens qua ens, isto é, o ens percipiens et appetens. Nietzsche pensa essa vigência enquanto o traço fundamental de todo real, ou seja, do ente em sentido amplo. Ele compreende o que determina o ente em sua essência como "vontade de poder".

Se Nietzsche conclui a caracterização da essência do valor com a palavra devir, então esta palavra conclusiva fornece a indicação do âmbito fundamental ao qual pertencem, em geral e sozinhos, os valores e as avaliações. "O devir" é para Nietzsche "a vontade de poder". A "vontade de poder" é assim o traço fundamental da "vida" - palavra que Nietzsche também utiliza freqüentemente em sua significação ampla, segundo a qual ela é equiparada no interior da metafísica (comparar Hegel) com o "devir". Vontade de poder, devir, vida e Ser no sentido mais amplo significam na linguagem nietzschiana o mesmo (V.d.P. A. 582. A.d. A. 1885/86 e A. 689. A.d. A. 1888). No interior do devir configura-se a vida, isto é, o vivente, em relação aos respectivos centros da vontade de poder. Estes centros são, portanto, conformações de domínio. Nietzsche compreende a arte, o Estado, a religião, a ciência, a sociedade enquanto tais conformações de domínio. Por isso ele também pode dizer: "`Valor' é essencialmente o ponto de vista para o acréscimo ou a diminuição desses centros dominantes" (em verdade em vista de seu caráter de domínio).

Conquanto Nietzsche compreende, na delimitação mencionada da essência do valor, este último enquanto condição referente ao ponto de vista da conservação e elevação da vida, mas vê a vida fundada no devir enquanto vontade de poder, a vontade de poder desvela-se enquanto o que estabelece aquele ponto de vista. A vontade de poder é o que, enquanto o nisus no esse do ens e a partir de seu "princípio interno" (Leibniz), avalia segundo valores. A vontade de poder é o fundamento para a necessidade da instauração-de-valores e a origem da possibilidade da avaliação. Por isso Nietzsche diz (V.d.P. A. 14. A. d. A. 1887): "Os valores e sua alteração estão em relação com o crescimento de poder de quem avalia".

Aqui fica claro: os valores são as condições de si mesmos estabelecidas pela própria vontade de poder. Somente onde a vontade de poder vem à tona enquanto o traço fundamental de todo real; ou seja, somente onde ela se torna verdadeira, e, de acordo com isso, é apreendida enquanto a realidade de tudo o que é real, mostra-se a proveniência dos valores, e isso através de que todas as avaliações permanecem suportadas e dirigidas. O princípio de instauração dos valores foi agora reconhecido. A instauração de valores será futuramente "principial", isto é, executável a partir do ser enquanto o fundamento do ente.

A vontade de poder enquanto esse princípio reconhecido e desejado é com isso, ao mesmo tempo, o princípio de uma nova instauração de valores. Esta instauração é nova porque é empreendida pela primeira vez com a clareza da consciência a partir do saber acerca de seu princípio. A instauração de valores é nova porque se assegura de seu princípio e fixa concomitantemente esse asseguramento enquanto o valor estabelecido a partir de seu princípio. Enquanto o princípio da nova instauração de valores e em relação aos valores até aqui, porém, a vontade de poder é o princípio da transvaloração de todos os valores até aqui. Como os valores supremos até aqui dominavam de qualquer modo o sensível a partir da altura do supra-sensível, mas a estrutura dessa dominação é a metafísica, executa-se com o estabelecimento do novo princípio da transvaloração de todos os valores a inversão de toda metafísica. Nietzsche toma esta inversão pela superação da metafísica. Por si mesma, toda e qualquer inversão desse gênero permanece apenas o auto-enredamento no mesmo que se tornou indistinto.

Conquanto Nietzsche compreende porém, agora, o niilismo enquanto a normatividade no interior da história da desvalorização dos valores supremos até aqui, mas a desvalorização aponta no sentido de uma transvaloração de todos os valores, o niilismo repousa segundo a interpretação nietzschiana no domínio e no desmoronamento dos valores e, com isso, na possibilidade da instauração de valores em geral. Esta mesma funda-se na vontade de poder. Por isso o conceito nietzschiano de niilismo e a sentença "Deus está morto" só se deixam pensar suficientemente a partir da essência da vontade de poder. Nós empreenderemos, portanto, o último passo na elucidação daquela sentença, quando esclarecermos o que Nietzsche pensa com o título "A vontade de poder" cunhado por ele.

Este nome, "vontade de poder", é tomado como tão óbvio que não se compreende como alguém pode se dar ao trabalho de esclarecer expressamente a junção desses termos. Pois qualquer um pode experimentar a qualquer hora junto a si mesmo o significado da vontade. Querer é um aspirar por algo. Qualquer um conhece hoje, por experiência cotidiana, o significado do poder enquanto o exercício do poder e da violência. Vontade "de" poder é, por conseguinte, a aspiração por chegar ao poder.

O título "vontade de poder" pressupõe, segundo essa opinião, dois dados diversos e os insere em uma ligação ulterior: a vontade por um lado e o poder por outro. Se perguntarmos finalmente, para não parafrasearmos apenas o dito, mas também já ao mesmo tempo esclarecê-lo, pelo fundamento da vontade de poder, então resulta daí que ele, evidentemente, provém, enquanto uma aspiração pelo que ainda não possui, de uma sensação de falta. Aspiração, exercício de domínio, sentimento de falta são modos de representação e estados (faculdades anímicas) que apreendemos em meio ao conhecimento psicológico. Por isso o esclarecimento da essência da vontade de poder pertence à psicologia.

O apresentado agora mesmo sobre a vontade de poder e a sua cogniscibilidade parece em verdade evidente, mas passa em todos os aspectos ao largo do que Nietzsche pensa e do modo como ele pensa a expressão "vontade de poder". O título "vontade de poder" denomina uma expressão fundamental da filosofia definitiva de Nietzsche. Esta pode ser, portanto, designada a metafísica da vontade de poder. O que significa vontade de poder no sentido nietzschiano, nós nunca compreenderemos através de uma representação popular qualquer sobre o querer e o poder, mas tão-somente no caminho de uma meditação sobre o pensamento metafísico, isto é, ao mesmo tempo sobre toda a história da metafísica ocidental.

O seguinte esclarecimento acerca da essência da vontade de poder pensa a partir desses contextos. Ele também precisa, entretanto, apesar de se manter junto às próprias exposições nietzschianas, apreender esta última de maneira mais nítida do que o próprio Nietzsche estava em condições de dizer imediatamente. Importante é aquilo que nos aproxima de sua essência. No que antecede e no que segue está sendo pensado a partir da essência da metafísica, não a partir de uma de suas fases.

Nietzsche menciona pela primeira vez na segunda parte de Assim falou Zaratustra, que apareceu um ano após o escrito A gaia ciência, a "vontade de poder" no contexto a partir do qual ela precisa ser compreendida: "Onde encontrei o vivente, aí encontrei vontade de poder; e mesmo na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor".

Querer é um querer-ser-senhor. A vontade assim compreendida também está presente ainda na vontade do servo. Não conquanto o servo poderia aspirar escapar do papel de serviçal para ele mesmo se tornar senhor. O serviçal enquanto serviçal, o servo enquanto servo sempre quer ter muito mais algo sob si, que ele comanda em seu serviço e do qual ele se serve. Assim, ele ainda é enquanto serviçal um senhor. Também o ser-serviçal é um querer-ser-senhor.

A vontade não se confunde com o desejo ou com a mera aspiração por algo, mas querer é em si o comando (comparar Assim falou Zaratustra I e II; posteriormente V.d.P. A. 688. A. d. A. 1888). O comando tem sua essência no fato de o senhor comandante estar em meio a uma disposição claramente consciente das possibilidades da atuação ativa. O que é comandado no comando é o empreendimento dessa disposição. No comando, o comandante (não em um primeiro momento o empreendedor) obedece a essa disposição e a esse poder dispor, obedecendo com isso a si mesmo. Desta forma, o comandante está colocado acima de si mesmo, à medida que ousa ainda a si mesmo. Comandar, o que certamente permanece como tendo de ser diferenciado do mero dar ordens aos outros, é auto-superação e mais difícil do que obedecer. Vontade é o conter-se no interior do proposto. Apenas aquele que não pode obedecer a si mesmo precisa ser expressamente comandado. O que a vontade quer, ela não aspira primordialmente enquanto algo que ainda não tem. O que a vontade quer, ela já tem. Pois a vontade quer o seu querer. Seu querer é o seu querido. A vontade quer a si mesma. Ela ultrapassa a si mesma. Dessa maneira, a vontade quer enquanto a vontade para além de si mesma e precisa trazer-se assim simultaneamente para trás de si e sob si. Por isso Nietzsche pode afirmar (V.d.P. A. 675. A. d. A. 1887/8): "Querer em geral é tanto um querer-vir-a-ser-mais-forte quanto um querer-crescer...". Mais forte significa aqui "mais poder"; e isso diz: apenas poder. Pois a essência do poder repousa no ser-senhor sobre os estágios de poder a cada vez alcançados. Poder só é então poder conquanto ele permanece elevação-de-poder e comanda para si mesmo o "mais poder". Já o mero manter-se no interior da elevação do poder, já a mera permanência sobre um estágio de poder é o começo da queda do poder. À essência do poder pertence o suplantar dominadoramente a si mesmo. Esse suplantar dominador pertence e provém do próprio poder, uma vez que ele é comando, e, enquanto comando, autoriza a si mesmo a suplantar dominadoramente o respectivo estágio de poder. Assim, o poder está em verdade constantemente a caminho de si mesmo, mas não enquanto uma vontade por si simplesmente dada em um lugar qualquer que, no sentido de uma aspiração, busca chegar ao poder. O poder também não autoriza a si mesmo apenas a suplantar dominadoramente o respectivo estágio de poder em virtude do próximo estágio, mas unicamente para se apoderar de si mesmo na incondicionalidade de sua essência. Querer é segundo essa determinação essencial tão pouco uma aspiração, que toda aspiração permanece muito mais enquanto uma forma prévia ou tardia do querer.

No título "vontade de poder", a palavra poder denomina apenas a essência do modo como a vontade quer a si mesma, conquanto ela é o comando. Enquanto um comando a vontade se reúne consigo mesma: isto é, com o que é querido por ela. Esse reunir-se é o vir-a-ser poder do poder. Há tão pouco uma vontade por si quanto um poder por si. Vontade e poder não são com isso coligados um ao outro pela primeira vez na vontade de poder, mas a vontade enquanto vontade de vontade é vontade de poder no sentido de uma autorização para o poder. O poder tem, contudo, a sua essência no fato de se encontrar em relação com a vontade enquanto a vontade que se estabelece no querer. A vontade de poder é a essência do poder. Ela indica a essência incondicional da vontade, que quer a si mesma enquanto mera vontade.

A vontade de poder também não pode por isso ser contraposta a algo diverso, por exemplo a uma "vontade de nada"; pois também essa vontade é ainda vontade de vontade, de modo que Nietzsche pode dizer (Para uma genealogia da moral, terceira seção A. 1. A. d. A. 1887): "a vontade prefere querer o nada a não querer".

O "nada querer" não significa de modo algum querer a mera ausência de tudo o que é real. Ao contrário, ele visa sim justamente querer o que é real, mas este sempre e em toda parte como um nada, e, a partir deste querer, a nadificação. Em um tal querer o poder sempre prossegue assegurando para si a possibilidade de comando e o poder-ser-senhor.

A essência da vontade de poder é, enquanto a essência da vontade, o traço fundamental de tudo o que é real. Nietzsche diz (V.d.P. A. 693. A. d. A. 1888): a vontade de poder é "a essência mais intrínseca do ser". "O ser" visa aqui, segundo os padrões lingüísticos da metafísica: o ente na totalidade. A essência da vontade de poder e a vontade de poder mesma, enquanto o caráter fundamental do ente, não se deixam portanto fixar através de uma observação psicológica, mas a psicologia mesma só recebe inversamente sua essência, e isso significa a normatividade e a cognoscibilidade de seu objeto através da vontade de poder. Nietzsche não compreende com isso a vontade de poder psicologicamente, mas determina inversamente a psicologia de uma maneira nova enquanto "morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de poder" (Para além do bem e do mal, A. 23). A morfologia é a ontologia do on, cuja morjh, transmutada em conjunto com a mudança do eidoV para perceptio, manifesta-se no appetitus da perceptio enquanto a vontade de poder. O fato de a metafísica, que desde a antiguidade pensa o ente enquanto o upokeimenon, sub-iectum, em vista de seu ser, transformar-se em uma psicologia assim determinada, só testemunha enquanto uma manifestação paralela o acontecimento essencial, que consiste em uma mudança no caráter ôntico do ente. A ousia (entidade) do subiectum transforma-se em subjetividade da autoconsciência, que agora traz à luz sua essência enquanto vontade de vontade. A vontade enquanto vontade de poder é o comando para o mais-poder. Para que a vontade possa ultrapassar o respectivo estágio em meio ao suplantamento dominador de si mesma, esse estágio precisa ser anteriormente atingido, assegurado e fixado. O asseguramento do respectivo estágio de poder é a condição necessária para a sobrelevação do poder. Mas essa condição não é o bastante para que a vontade possa querer a si mesma, isto é, para que um querer-ser-mais-forte, uma elevação do poder tenha lugar. A vontade precisa inserir o olhar em um campo de visão e então abri-lo, para que se mostrem desde aí antes de tudo possibilidades, que indiquem a via para uma elevação do poder. A vontade precisa assim instaurar uma condição do querer-para-além-de-si-mesma. A vontade de poder precisa sobretudo instaurar: condições da conservação e da elevação do poder. À vontade pertence a instauração dessas condições em si correspondentes.

"Querer em geral é tanto um querer-vir-a-ser-mais-forte quanto um querer-crescer - e para tanto querer também os meios" (V.d.P. A. 675. A.d. A. 1887/88).

Os meios essenciais são as condições de si mesma instauradas pela própria vontade de poder. A estas condições Nietzsche dá o nome de valores. Ele diz (XIII, A. 395. A. d. A. 1884): "Em toda vontade há um avaliar". Avaliar significa: perfazer e fixar o valor. A vontade de poder avalia, conquanto perfaz as condições de elevação e torna fixas as condições de conservação. Segundo a sua essência, a vontade de poder é a vontade instauradora de valores. Os valores são as condições de conservação-elevação no interior do ser do ente. A vontade de poder é, logo que se manifesta expressamente em sua essência pura, ela mesma o fundamento e o âmbito de instauração dos valores. A vontade de poder não possui o seu fundamento em um sentimento de falta, mas ela mesma é o fundamento de uma vida superabundante. Vida significa aqui a vontade de vontade. "Vivente": isso já significa `avaliar'" (a.a.O.).

Conquanto a vontade quer o suplantar dominador de si mesma, ela não se aquieta junto a nenhuma riqueza da vida. Ela vem ao poder em meio à superabundância - e, em verdade, em meio à superabundância de sua própria vontade. Assim, enquanto a mesma, ela retorna constantemente a si enquanto a mesma. O modo como o ente na totalidade, cuja essência é vontade de poder, existe, sua existência, é "o eterno retorno do mesmo". As duas expressões fundamentais da metafísica nietzschiana, "vontade de poder" e "eterno retorno do mesmo", determinam o ente em seu ser segundo os aspectos que permanecem dirigentes desde a antiguidade, o ens qua ens no sentido de essentia e de existentia.

A relação essencial a ser assim pensada entre a "vontade de poder" e o "eterno retorno do mesmo" ainda não se deixa com isso apresentar aqui imediatamente, uma vez que a metafísica nem considerou nem tampouco sondou a diferenciação entre essentia e existentia.

Se a metafísica pensa o ente em seu ser enquanto vontade de poder, ela pensa necessariamente o ente enquanto instaurador de valores. Ela pensa tudo no horizonte dos valores, da vigência dos valores, da desvalorização e da transvaloração. A metafísica da modernidade começa, portanto, e tem sua essência no fato de buscar o indubitável incondicionado, o certo, a certeza. Vale, nas palavras de Descartes, estabelecer algo firme e permanente, firmum et mansurum quid stabilire. Esse constante é enquanto objeto suficiente para a essência desde a antiguidade vigente do ente enquanto o incessantemente presente, que já se apresenta dado antecipadamente por toda parte (upokeimenon, subiectum). Também Descartes pergunta como Aristóteles pelo upokeimenon. Conquanto Descartes procura esse subiectum por sobre o caminho previamente indicado pela metafísica, ele encontra, pensando a verdade enquanto certeza, o ego cogito enquanto o constantemente presente. Assim, o ego sum transforma-se em subiectum, isto é, o sujeito transforma-se em autoconsciência. A subjetividade do sujeito determina-se a partir da certeza desta consciência.

A vontade de poder justifica, à medida que instaura a conservação, ou seja, o asseguramento de si mesma enquanto um valor necessário, ao mesmo tempo a necessidade do asseguramento em todo ente, que enquanto um ente essencialmente representacional é sempre também um ente que toma-por-verdadeiro. O asseguramento do tomar-por-verdadeiro chama-se certeza. Assim, segundo o juízo nietzschiano, a certeza enquanto princípio da metafísica moderna só chega a ser verdadeiramente fundada no seio da vontade de poder; suposto claramente que a verdade seja um valor necessário e a certeza, a configuração moderna da verdade. Isso deixa claro até que ponto a metafísica moderna encontra o seu acabamento em meio à doutrina nietzschiana da vontade de poder enquanto a "essência" de tudo o que é real.

Por isso Nietzsche pode dizer: "A questão dos valores é mais fundamental do que a questão da certeza: esta última só alcança a sua gravidade sob a pressuposição de que a questão dos valores foi respondida" (V.d.P. A. 588. A. d. A. 1887/88).

A questão valorativa precisa, porém, se a vontade de poder chega alguma vez a ser reconhecida enquanto o princípio de instauração dos valores, inicialmente considerar qual é o valor supremo de acordo com o princípio. Conquanto a essência do valor expressa-se através do fato de ser a condição de conservação-elevação estabelecida no seio da vontade de poder, a perspectiva abriu-se para uma caracterização da estrutura valorativa normativa.

A conservação do estágio de poder da vontade a cada vez alcançado consiste em que a vontade se cerca com a ambiência disso a que ela pode a qualquer momento e confiavelmente remontar para sustentar a partir daí sua segurança. Essa ambiência delimita a subsistência, imediatamente disponível para a vontade, da presença (ousia segundo a significação cotidiana desta palavra junto aos gregos). Esse subsistente só se torna, contudo, algo constante, isto é, algo que se encontra incessantemente à disposição, conquanto é trazido a uma instância através de um posicionamento. Este posicionamento tem o modo de ser da produção re-presentacional. O que é de tal maneira subsistente é o que permanece. Nietzsche denomina este subsistente, fiel à essência do ser vigente na história da metafísica (ser = presença duradoura), "o ente". Ele denomina freqüentemente o subsistente, uma vez mais fiel ao modo de expressão do pensamento ocidental, "o Ser". Desde o começo do pensamento metafísico o ente vige enquanto o verdadeiro e enquanto a verdade, por mais que o sentido de "ente" e "verdadeiro" se transmute multiplamente em meio a esse pensamento. Apesar de todas as inversões e transvalorações da metafísica, Nietzsche permanece no interior da via irrefletida de suas tradições ao denominar simplesmente o ser ou o ente, ou a verdade o que é fixado na vontade de poder para a sua conservação. De acordo com isso, a verdade é uma condição estabelecida na essência da vontade de poder: a condição da conservação do poder. Enquanto uma tal condição, a verdade é um valor. Porque a vontade só pode, entretanto, querer a partir de uma disposição sobre algo subsistente, a verdade é o valor necessário para a vontade de poder a partir de sua essência. O nome verdade não significa agora nem o desvelamento do ente, nem a adequação de um conhecimento com o objeto, nem a certeza enquanto remissão e asseguramento inteligentes do representado. Verdade é, agora, e isso em meio a uma proveniência histórico-essencial a partir dos modos denominados sua essência, o asseguramento propiciador da constância da subsitência da âmbiência, a partir da qual a vontade de poder quer a si mesma.

Em vista do asseguramento do estágio de poder a cada vez alcançado, a verdade é um valor necessário. Mas ela não é suficiente para alcançar um estágio de poder; pois o subsistente, tomado por si, nunca chega a dar o que a vontade carece mais do que tudo para ir além de si mesma - e isso significa para inserir-se pela primeira vez nas possibilidades do comando. Estas só se dão através de uma visada prévia que atravessa com o olhar e que pertence à essência da vontade de poder; pois, enquanto a vontade de mais-poder, a vontade de poder encontra-se em si disposta perspectivisticamente em relação a possibilidades. A abertura e a colocação de tais possibilidades é aquela condição da essência da vontade de poder que predomina, enquanto a condição pre-cedente em sentido literal, sobre a condição nomeada inicialmente. Por isso diz Nietzsche (V.d.P. A. 853. A. d. A. 1887/88): "Mas a verdade não vige enquanto a medida valorativa suprema, e ainda menos enquanto o poder supremo".

A criação de possibilidades da vontade, a partir das quais a vontade de poder se liberta pela primeira vez para si mesma, é para Nietzsche a essência da arte. De acordo com esse conceito metafísico, Nietzsche não pensa a arte apenas nem tampouco preferencialmente em função do âmbito estético dos artistas. A arte é a essência de todo querer, que abre perspectivas e as controla: "A obra de arte, onde ela se manifesta sem o artista, por exemplo enquanto corpo, enquanto organização (corpo de oficiais prussianos, ordem de Jesuítas). Conquanto o artista é apenas um estágio prévio. O mundo enquanto uma obra de arte que gera a si mesma" (V.d.P. A. 796. A. d. A. 1885/86).

A essência da arte concebida a partir da vontade de poder consiste em que a arte estimula primordialmente a vontade de poder para si mesma e a instiga a querer para além de si mesma. Porque Nietzsche também denomina freqüentemente a vontade de poder a realidade do real, em uma ressonância cada vez mais silenciada com o zwh e a jusiV dos antigos pensadores gregos, como vida, ele pode dizer que a arte é "o grande estimulante da vida" (V.d.P. A. 851. A. d. A. 1888).

A arte é a condição estabelecida na essência da vontade de poder, para que ela, enquanto a vontade que é, se alce até o seio do poder e possa alçar-se até ele. Porque ela condiciona de uma tal maneira, a arte é um valor. Enquanto aquela condição que antecede na hierarquia do condicionamento o asseguramento da subsistência e assim precede a todo condicionamento, ela é o valor que abre antes de mais nada toda elevação alcançada. A arte é o valor supremo. Em relação ao valor "verdade", ela é o valor mais elevado. Cada um evoca a cada vez de um modo diverso o outro. Ambos os valores determinam, em sua relação valorativa, a essência una da vontade de poder em si instauradora de valores. Essa é a realidade do real ou, tomando a palavra mais amplamente do que Nietzsche costuma habitualmente fazê-lo: o ser do ente. Se a metafísica tem de dizer o ente em vista de seu ser e se ela denomina com isso, segundo seu modo de ser, o fundamento do ente, então o princípio fundamental da metafísica da vontade de poder precisa dar expressão ao fundamento. Ele precisa dizer que valores são estabelecidos de acordo com a essência e em que hierarquia valorativa eles são estabelecidos no interior da essência da vontade de poder instauradora de valores enquanto a "essência" do ente. O princípio recebe a seguinte formulação: "A arte tem mais valor do que a verdade" (V.d.P. A. 853. A. d. A. 1887/88).

O princípio fundamental da metafísica da vontade de poder é um princípio valorativo.

A partir do princípio valorativo supremo torna-se claro que a instauração de valores enquanto tal é dual. Nela é sempre e a cada vez estabelecido, quer expressamente ou não, um valor necessário e um suficiente. Os dois, porém, a partir da ligação predominante de ambos em relação um com o outro. Essa dualidade da instauração de valores corresponde ao seu princípio. Isso, desde onde a instauração de valores enquanto tal é suportada e conduzida, é a vontade de poder. A partir da unidade de sua essência, ela requer e se estende até as condições de elevação e conservação de si mesma. A visualização da essência dual da instauração de valores traz expressamente o pensamento para diante da pergunta pela unidade essencial da vontade de poder. À medida que ela é a "essência" do ente enquanto tal e que dizer isso equivale sem dúvida a dizer o verdadeiro para a metafísica, nós perguntamos, quando levamos o pensamento até a unidade essencial da vontade de poder, pela verdade desse verdadeiro. Nós atingimos através daí o ponto mais elevado dessa e de toda e qualquer metafísica. Mas o que significa aqui o ponto mais elevado? Nós explicitaremos o visado junto à essência da vontade de poder e permaneceremos aí em meio aos limites retirados da consideração atual.

A unidade essencial da vontade de poder não pode ser nada além dela mesma. Ela é o modo como a vontade de poder enquanto vontade traz a si mesma para diante de si. Ela a coloca em sua própria prova e ante ela de um tal modo que a vontade de poder chega aí pela primeira vez a representar a si mesma puramente, e, com isso, a representar a si mesma nessa figura maximamente elevada. Mas a representação não é aqui de modo algum uma apresentação ulterior, mas a presença determinada a partir dela é a maneira na qual e enquanto tal a vontade de poder é.

A sua maneira de ser é, contudo, ao mesmo tempo o modo no qual ela se coloca no seio do desvelamento de si mesma. Nisso reside, porém, sua verdade. A pergunta pela unidade essencial da vontade de poder é a pergunta pelo modo daquela verdade, na qual a vontade de poder se mostra enquanto o ser do ente. Essa verdade é, no entanto, ao mesmo tempo, a verdade do ente enquanto tal, segundo a qual a metafísica é. A verdade que é agora colocada em questão não é, por conseguinte, aquela que a própria vontade de poder instaura enquanto a condição necessária do ente enquanto um ente, mas aquela na qual a vontade de poder instauradora de valores já se essencializa enquanto tal. Esse uno, no qual ela se essencializa, sua unidade essencial, diz respeito à vontade de poder mesma.

De que tipo é agora, todavia, essa verdade do ser do ente? Ela só pode se determinar a partir disso, de que ela é verdade. Conquanto no interior da metafísica moderna o ser do ente se determinou como vontade, e com isso como o querer-se, e o querer-se já é contudo em si o saber-a-si-mesmo, o ente, o upokeimenon, o subiectum essencializa-se sob o modo de ser do saber-a-si-mesmo. O ente (subiectum) presentifica-se, e isso para ele mesmo, sob o modo do ego cogito. Esse presentificar-se, a re-presentação (Vor-stellung), é o ser do ente qua subiectum. O querer-a-si-mesmo transforma-se pura e simplesmente em sujeito. Em meio ao saber-a-si-mesmo reúne-se todo saber e o que é passível de ser sabido por ele. Ele é uma reunião de saber, como a cordilheira é uma reunião de montanhas. A subjetividade do sujeito enquanto uma tal reunião é co-agitatio (cogitatio), a conscientia, a voz-da-consciência, consciência. A co-agitatio já é entretanto, em si velle, querer. Com a subjetividade do sujeito vem à tona a vontade enquanto sua essência. A metafísica moderna pensa enquanto metafísica da subjetividade o ser do ente no sentido da vontade.

À subjetividade pertence, enquanto primeira determinação essencial, o fato de o sujeito representante assegurar-se enquanto um tal. De acordo com um tal asseguramento, a verdade do ente tem enquanto a certeza o caráter da segurança (certitudo). O saber-a-si-mesmo, no qual a certeza é enquanto tal, permanece por sua vez uma subespécie da essência da verdade até aqui: da correção (rectitudo) da representação. Mas o correto não consiste mais na equiparação a algo presente e impensado em sua presença. A correção consiste agora no direcionamento de todo representante para o critério de medida, que é estabelecido no cerne da requisição de saber das res cogitans sive mens representantes. Essa requisição estende-se até a certeza que consiste no fato de tudo o que há para ser representado e todo representar ser conduzido e lá reunido no seio da clareza e da distinção das idéias matemáticas. O ens é o ens co-agitatum perceptionis. A representação é agora correta quando ela faz jus a essa requisição por certeza. Identificada dessa maneira enquanto correta, ela é conformada como justa e se torna disponível, justificada. A verdade do ente no sentido da certeza-de-si-mesmo da subjetividade é enquanto certeza (certitudo) no fundo a justi-ficação da representação e do que é representado ante a clareza que lhe é própria. A justificação (iustificatio) é a realização da iustitia e assim a justiça mesma. Conquanto o sujeito é sempre e a cada vez sujeito, ele se assegura de seu asseguramento. Ele se justifica ante a requisição por certeza por ele mesmo estabelecida.

No começo da modernidade despertou novamente a pergunta, como o homem pode estar e vir-a-estar certo em meio ao ente na totalidade, e isso significa, ante o fundamento mais essente de todos os entes (Deus), da subsistência constante de si mesmo, isto é, de sua salvação. Essa pergunta pela certeza da salvação é a pergunta pela justificação, isto é, pela justiça (iustitia).

No interior da metafísica moderna, Leibniz é o primeiro a pensar o subiectum enquanto ens percipiens et appetens. Ele pensa no caráter-visdo ente pela primeira vez distintamente a essência volitiva do ser do ente. Ele pensa modernamente a verdade do ente enquanto certeza. Em suas 24 teses sobre a metafísica, Leibniz diz (tese 20): iustitia nihil aliud est quam ordo seu perfectio circa mentes. As mentes, isto é, as res cogitantes são, segundo a tese 22, as primariae Mundi unitates. Verdade enquanto certeza é o asseguramento da segurança, é ordenação (ordo) e fixação genérica, isto é, per-feição e acabamento (per-fectio). O caráter do tornar-seguro o primeva e propriamente ente em seu ser é a iustitia (justiça).

Kant pensa em sua fundamentação crítica da metafísica o derradeito auto-asseguramento da subjetividade transcendetal enquanto a quaestio iuris da dedução transcendental. Ela é a questão de direito da justi-ficação do sujeito representante, que fixou para si mesmo a sua essência no seio da auto-justiça de seu "eu penso".

Na essência da verdade enquanto certeza, esta última pensada enquanto a verdade da subjetividade e esta enquanto o ser do ente, oculta-se a justiça experimentada a partir da justificação da certeza. Ela vige mesmo enquanto a essência da verdade da subjetividade, mas não é pensada no interior da metafísica da subjetividade enquanto a verdade do ente. É certo, em contrapartida, que a justiça enquanto o ser do ente que sabe a si mesmo precisa advir ao pensamento da metafísica moderna, logo que o ser do ente se mostra como vontade de poder. Esta sabe a si mesma enquanto a vontade essencialmente instauradora de valores, que se assegura em meio à instauração de valores enquanto a instauração das condições de sua própria subsistência essencial e assim se torna constantemente justa para consigo mesma. A vontade de poder é em um tal vir-a-ser justiça. Nesta e enquanto esta última a essência própria da vontade de poder precisa representar; e isso significa, pensada moderna e metafisicamente: ser. Exatamente como na metafísica nietzschiana, o pensamento valorativo é mais fundamental do que o pensamento basilar da certeza na metafísica cartesiana, uma vez que a certeza só pode vigir enquanto o correto, quando ela vige como o valor supremo, assim também a certeza-de-si-mesma intelectiva da subjetividade se mostra com Nietzsche, no tempo do acabamento da metafísica ocidental, enquanto a justificação da vontade de poder de acordo com a justiça, que vigora no ser do ente.

Já em um de seus primeiros escritos, em um escrito amplamente conhecido, na segunda consideração intempestiva, "Da utilidade e da desvantagem da história para a vida", Nietzsche coloca "a justiça" no lugar da objetividade das ciências históricas (parágrafo 6). No mais, porém, Nietzsche silencia em relação à justiça. Somente nos anos decisivos de 1884-85, à medida que a "vontade de poder" apresenta-se ao olhar pensante enquanto o traço fundamental do ente, ele anota dois pensamentos sobre a justiça, sem publicá-los.

A primeira anotação (1884) carrega o título "Os caminhos da liberdade". Ela nos diz: "A Justiça enquanto o modo de pensar edificante, extirpador, aniquilador, desde avaliações; mais elevada representante da vida mesma" (XIII, A. 98).

A segunda anotação (1885) diz: "A Justiça, enquanto função de um poder amplamente abrangente com o olhar, que se lança para além das pequenas perspectivas de bem e mal, que possui, portanto, um horizonte mais amplo de vantagem - a intenção de manter algo que é mais do que esta e aquela pessoa". (XIV, A. 158).

Um esclarecimento exato desses pensamentos extrapola os limites da meditação aqui intentada. Aqui é suficiente o aceno para o âmbito essencial, ao qual pertence a justiça pensada por Nietzsche. Para a preparação de uma compreensão da justiça que Nietzsche tem em vista, precisamos colocar de lado todas as representações sobre justiça, que provêm da moral cristã, humanista, iluminista, burguesa e socialista. Pois Nietzsche não entende a justiça absolutamente, em um primeiro momento, enquanto uma determinação do âmbito ético e jurídico. Ele a pensa muito mais a partir do ser do ente na totalidade, isto é, a partir da vontade de poder. O justo permanece o que é adequado ao direito. Mas o que é direito determina-se a partir do que é essente enquanto ente. Por isso diz Nietzsche (XIII, A. 462. A.d. A. 1883): "Direito = a vontade de eternizar uma respectiva relação de poder. Contentamento com isso é a pressuposição. Tudo o que é digno de veneração é chamado a deixar o direito manifestar-se enquanto o eterno".

A esse âmbito pertence a anotação do ano seguinte: "O problema da justiça. O primordial e mais poderoso é em verdade justamente a vontade e a força para o suplantar dominador. Somente o dominante firma depois `justiça', isto é, mede as coisas segundo a sua medida; se ele é muito poderoso, ele pode ir muito longe em relação ao deixar-fazer e ao reconhecimento do indivíduo experimentador" (XIV, A. 181). Também é possível agora, o que está em ordem, que o conceito nietzschiano metafísico de justiça ainda soe estranho ante a representação corrente. Ele toca não obstante a essência da justiça, que já é histórica no começo do acabamento da era moderna em meio à luta pelo domínio da terra e que determina com isso, expressamente ou não, encoberta ou abertamente, todo agir do homem nesta era.

A justiça pensada por Nietzsche é a verdade do ente, que é do modo da vontade de poder. Por si mesmo, Nietzsche também não pensou a justiça enquanto a essência da verdade do ente, nem explicitou a partir desse pensamento a metafísica da subjetividade acabada. A justiça é, porém, a verdade do ente determinada pelo próprio ser. Enquanto essa verdade, ela é a metafísica mesma em seu acabamento moderno. Na metafísica enquanto tal oculta-se o fundamento do porquê de Nietzsche experimentar o niilismo com certeza metafisicamente enquanto uma história da instauração de valores, mas não poder entretanto pensar a essência do niilismo.

Que configuração velada e se conformando a partir da essência da justiça enquanto sua verdade foi reservada para a metafísica da vontade de poder, não sabemos. Seu primeiro princípio fundamental mal é expresso, sendo que ele não chega mesmo a configurar-se aí sob a forma de um princípio. Certamente, o caráter principial desse princípio no interior dessa metafísica é de um tipo peculiar. Certamente, o primeiro princípio valorativo não é o princípio supremo para um sistema dedutivo de princípios. Se entendermos o título princípio fundamental da metafísica em um sentido cauteloso, enquanto o fundamento essencial do ente enquanto tal, isto é, enquanto a denominação do ente na unidade de sua essência, então ele permanece ampla e embrionariamente o suficiente para determinar respectivamente segundo o modo da metafísica a maneira de seu discurso acerca do fundamento.

Nietzsche expressou ainda de uma outra forma o primeiro princípio valorativo da metafísica da vontade de poder (V.d.P. A. 822. A. d. A. 1888): "Nós temos a arte, para que não venhamos a sucumbir à verdade".

Não devemos certamente apreender esse princípio da relação essencial, e isso significa aqui valorativa, entre arte e verdade segundo nossas representações cotidianas sobre verdade e arte. Se isso acontece, então tudo se torna banal e nos toma, o que é sim realmente fatídico, a possibilidade de tentar uma discussão essencial com a posição velada da metafísica da era que está se acabando, para assim libertar nossa própria essência histórica do enevoamento causado pela história e pelas visões de mundo.

Na formulação derradeiramente nomeada do princípio da metafísica da vontade de poder, arte e verdade são pensadas enquanto as conformações primevas de domínio da vontade de poder na ligação com o homem. Como em geral é para ser pensada a ligação essencial da verdade do ente enquanto tal com a essência do homem no interior da metafísica de acordo com a essência desta última, permanece para o nosso pensamento ainda encoberto. A pergunta mal foi feita e está extremamente emaranhada através do predomínio da antropologia filosófica. De qualquer maneira, seria contudo equivocado se se quisesse tomar a formulação do princípio valorativo como uma prova de que Nietzsche filosofa existencialmente. Ele nunca fez isto. Mas ele pensou metafisicamente. Nós ainda não estamos maduros para o rigor de um pensamento do tipo que Nietzsche anotou por volta do tempo de sua preparação da obra central planejada "A vontade de poder": "Em torno do herói, tudo se transforma em tragédia; em torno do semideus, tudo se transforma em sátira; e em torno de Deus, tudo se transforma em - como? Talvez em `mundo'?" - (Para além do bem e do mal, A. 150. 1886).

De qualquer modo, já é tempo de aprender a ver que o pensamento nietzschiano, por mais que historicamente e considerado em função de seu título precise mostrar um outro gestual, não é menos objetivo e rigoroso do que o pensamento de Aristóteles, que no quarto livro de sua metafísica pensa o princípio de contradição enquanto a primeira verdade acerca do ser do ente. A equiparação que se tornou usual, mas nem por isso menos questionável entre Nietzsche e Kierkgaard, desconhece que Nietzsche enquanto um pensador metafísico guarda a proximidade com Aristóteles. Kierkgaard permanece deste, apesar de o nomear freqüentemente, essencialmente distante. Pois Kierkgaard não é nenhum pensador, mas um escritor religioso; e mesmo não um entre outros, mas o único em sintonia com a destinação de sua era. Nisso consiste sua grandeza, caso falar assim já não revele uma incompreensão.

A unidade essencial da vontade de poder foi nomeada em meio ao princípio fundamental da metafísica nietzschiana através da relação essencial dos valores arte e verdade. A partir dessa unidade essencial do ente enquanto tal determina-se a essência metafísica do valor. Ele é a condição de possibilidade dupla de si mesmo estabelecida na vontade de poder para esta.

Porque Nietzsche experimenta o ser do ente enquanto vontade de poder, seu pensamento precisa projetar-se conceptivamente para o seio dos valores. Por isso vale colocar, por toda parte e antes de tudo, a questão valorativa. Esse questionar experimenta a si mesmo enquanto histórico.

Como se encontram as coisas em relação aos valores supremos até aqui? O que significa a desvalorização desses valores ante a transvaloração de todos os valores? Porque o pensamento segundo valores é fundacional na metafísica da vontade de poder, a interpretação nietzschiana do niilismo enquanto o evento da desvalorização dos valores supremos e da transvaloração de todos os valores é uma interpretação metafísica; e isso no sentido da metafísica da vontade de poder. Conquanto Nietzsche compreende o próprio pensamento, a doutrina da vontade de poder enquanto o "princípio da nova instauração de valores", no sentido do acabamento efetivo do niilismo, ele não entende mais o niilismo apenas negativamente enquanto a desvalorização dos valores supremos, mas ao mesmo tempo positivamente, em verdade enquanto a superação do niilismo; pois a realidade do real agora experimentada expressamente, a vontade de poder, transforma-se em origem e medida de uma nova instauração de valores. Valores que determinam imediatamente a representação humana e igualmente balizam o agir humano.

No aforismo lido 125, de A gaia ciência, o homem desvairado nos diz o seguinte acerca do ato dos homens, através do qual Deus foi morto, isto é, através do qual o mundo supra-sensível foi desvalorizado: "Nunca houve um ato mais grandioso - e quem quer que venha a nascer depois de nós pertence por causa deste ato a uma história mais elevada do que toda história até aqui!".

Com a consciência de que "Deus está morto" inicia-se a consciência de uma transvaloração radical dos valores supremos até aqui. O homem mesmo passa para uma outra história depois dessa consciência: uma história que é mais elevada porque nela o princípio de toda avaliação, a vontade de poder, é experimentada e assumida explicitamente enquanto a realidade do real, enquanto o ser de todo ente. A auto-consciência, na qual a humanidade moderna tem sua essência, empreende com isso o derradeiro passo. Ela quer a si mesma enquanto concretizadora da vontade de poder incondicionada. O declínio dos valores normativos chegou ao fim. O niilismo "da desvalorização dos valores supremos" foi superado. Aquela humanidade que quer o seu próprio ser-humano enquanto vontade de poder e experimenta esse ser-humano enquanto pertencente à realidade na totalidade determinada pela vontade de poder é determinada através de uma configuração essencial do homem, que se lança para além do homem até aqui.

O nome para a configuração essencial da humanidade que se lança para além dos homens até aqui é "o super-homem". Por este nome Nietzsche não entende um exemplar singular qualquer de homem, no qual as capacidades e intenções do homem habitualmente conhecido são monstruosamente ampliadas e elevadas. "O super-homem" também não é aquele tipo de homem que surge pela primeira vez sobre o caminho de uma aplicação da filosofia nietzschiana à vida. O nome "super-homem" designa a essência da humanidade, que enquanto a humanidade moderna começa a adentrar no acabamento essencial de sua era. "O super-homem" é o homem, que é homem a partir da realidade determinada pela vontade de poder e para esta.

O homem, cuja essência é o querido a partir da vontade de poder, é o super-homem. O querer dessa essência assim pronta a se deixar tomar pelo querido precisa corresponder à vontade de poder enquanto o ser do ente. Por isso emerge, necessariamente, em uníssono com o pensamento que pensa a vontade de poder a pergunta: em que configuração precisa se apresentar e desdobrar a essência do homem pronto a se deixar tomar pelo querido a partir do ser do ente, para que ela seja suficiente para a vontade de poder e assim consiga assumir o domínio sobre o ente? Inopinadamente e antes de tudo inopinadamente, o homem se encontra colocado a partir do ser do ente diante da tarefa de assumir o domínio da terra. O homem até aqui concentrou entretanto suficientemente o pensamento para determinar de que modo o ser do ente se manifesta? O homem até aqui se assegurou de que sua essência possui a maturidade e a força para corresponder à requisição desse ser? Ou será que o homem até aqui só se valia de muletas e rodeios que sempre o impediam novamente de experimentar o que é? O homem até aqui gostaria de permanecer o homem até aqui e já é ao mesmo tempo o querido pelo ente, cujo ser começa a aparecer enquanto vontade de poder. O homem até aqui ainda não está absolutamente preparado em sua essência em geral para o ser, que todavia transpassa e vige sobre o ente. Nele vige a necessidade de que o homem se lance para além do homem até aqui; não a partir de um simples desejo e não por um mero arbítrio, mas unicamente em virtude do ser.

O pensamento nietzschiano que pensa o super-homem emerge a partir do pensamento que pensa ontologicamente o ente enquanto o ente e se submete assim à essência da metafísica, sem poder porém experimentar essa essência no interior da metafísica. Por isso, exatamente como em toda metafísica antes de Nietzsche, permanece velado, também para ele, em que medida se determina a essência do homem a partir da essência do ser. Por isso se oculta necessariamente na metafísica nietzschiana o fundamento da conexão essencial entre a vontade de poder e a essência do super-homem. No entanto, em todo ocultamento vige já ao mesmo tempo uma manifestação. A existentia, que pertence à essentia do ente, isto é, à vontade de poder, é o eterno retorno do mesmo. O ser nela pensado contém a ligação com a essência do super-homem. Mas essa ligação permanece necessariamente impensada em sua essência ontológica. Por isso, também está para Nietzsche mesmo em obscuridade em que conexão o pensamento que pensa o super-homem sob a figura de Zaratustra se encontra com a essência da metafísica. Por isso o caráter de obra da obra Assim falou Zaratustra permanece velado. Somente quando um pensamento futuro for levado até o ponto de pensar este "Livro para todos e para nenhum" em conjunto com as Investigações sobre a essência da liberdade humana, de Schelling (1809), e isso significa concomitantemente, em conjunto com a obra hegeliana A fenomenologia do espírito (1807), e isso significa concomitantemente, em conjunto com a Monadologia (1714) de Leibniz, e de pensar essas obras não apenas metafisicamente, mas a partir da essência da metafísica, serão fundados o direito e o dever, assim como o solo e o campo de visão para uma discussão.

É fácil indignar-se com a idéia e a figura do super-homem, que deram margem à própria incompreensão, e tomar essa indignação por uma refutação. Não é fácil, contudo, responsabilizar-se por essa idéia. É difícil, mas inexorável para o pensamento futuro alcançar o cerne da elevada responsabilidade, a partir da qual Nietzsche considerou a essência daquela humanidade, que em meio à destinação ontológica da vontade de poder é determinada à assunção do domínio sobre a terra. A essência do super-homem não é nenhuma carta branca para a fúria de uma disposição arbitrária. Ela é a lei fundada no ser mesmo de uma longa corrente das mais elevadas auto-superações, que tornam o homem pela primeira vez maduro para o ente, o qual enquanto ente pertence ao ser. Este ser traz à aparição enquanto vontade de poder sua essência volitiva e faz época através desta aparição; em verdade, a última época da metafísica.

Segundo a metafísica nietzschiana, o homem até aqui tem a denominação até aqui porque sua essência é determinada pela vontade de poder enquanto o traço fundamental de todo ente. Ele mesmo não experimentou e assumiu entretanto a vontade de poder enquanto esse traço fundamental. O homem que se lança para além do homem até aqui acolhe a vontade de poder enquanto o traço fundamental de todo ente em seu próprio querer e quer assim a si mesmo no sentido da vontade de poder. Todo ente é enquanto o ente posto nesta vontade. O que anteriormente condicionava e determinava a essência humana sob o modo de uma meta e de uma medida perdeu seu poder de efetivação incondicionado e imediato e antes de tudo infalivelmente eficaz por toda parte. Aquele mundo supra-sensível das metas e medidas desperta e não carrega mais a vida. Aquele mundo mesmo perdeu sua vitalidade: ele está morto. A crença cristã se apresentará aqui e acolá. Mas o amor vigente em um tal mundo não é o princípio efetivador e eficaz do que agora acontece. O fundamento supra-sensível do mundo supra-sensível tornou-se, pensado enquanto a realidade efetiva de todo real, irreal. Esse é o sentido metafísico da sentença pensada metafisicamente: "Deus está morto".

Nós queremos permanecer ainda por muito tempo com os olhos fechados diante da verdade a ser assim pensada dessa sentença? Se o quisermos, então naturalmente essa sentença não se torna inverídica em função dessa estranha cegueira. Deus não se transforma em um Deus mais vital ao tentarmos nos assenhorar do real sem, anteriormente, colocarmos de maneira séria em questão sua realidade, sem considerarmos se o homem está assim amadurecido para a essência, para o seio da qual ele é arrebatado a partir do ser, à medida que se sobrepõe a essa destinação a partir de sua essência e não com a ajuda aparente da mera adoção de medidas.

A tentativa de experimentar sem ilusões a verdade daquela sentença acerca da morte de Deus é algo diverso de um credo em relação à filosofia nietzschiana. Se tivéssemos um tal credo em vista, então não prestaríamos com isso nenhum serviço ao pensamento. Nós só estimamos um pensador conquanto pensamos. Isso exige pensar tudo de essencial que foi pensado em seu pensamento.

Se Deus e os deuses estão mortos no sentido da experiência metafísica esclarecida, e se a vontade de poder é querida através do saber enquanto o princípio de toda instauração das condições do ente, isto é, enquanto princípio da instauração de valores, então o domínio sobre o ente enquanto tal, que se perfaz sob o modo do domínio sobre a terra, lança-se em direção ao novo querer do homem, determinado através da vontade de poder. Nietzsche termina a primeira parte de Assim falou Zaratustra, que apareceu um ano depois de A gaia ciência, no ano 1883, com a seguinte proposição: "Mortos estão todos os deuses: agora queremos que o super-homem viva!".

Pensando-se grosso modo, poder-se-ia achar que a proposição diz: o domínio sobre o ente passa de Deus para os homens. Ou mais grosso modo ainda: Nietzsche coloca o homem no lugar de Deus. Quem considera as coisas assim pensa com certeza menos divinamente a essência de Deus. O homem nunca pode se colocar no lugar de Deus porque a essência do homem nunca alcança o âmbito essencial de Deus. Muito ao contrário, medido a partir dessa impossibilidade, é possível que aconteça algo muito mais sinistro, cuja essência mal começamos a considerar. A posição que, pensada metafisicamente, é própria a Deus, é o lugar de efetivação e manutenção causante do ente enquanto um ente criado. Esse lugar de Deus pode permanecer vazio. Ao invés desse lugar pode-se abrir um outro, metafisicamente correspondente, que não é idêntico nem ao âmbito essencial de Deus, nem ao âmbito essencial do homem; um outro, ao qual o homem tem acesso porém novamente em uma ligação privilegiada. O super-homem nunca se mostra no lugar de Deus, mas o lugar no qual se insere o querer do super-homem é um outro âmbito de uma outra fundamentação do ente em seu outro ser. Este outro ser do ente tornou-se, entretanto - e isso designa o começo da metafísica moderna -, a subjetividade.

Todo ente é agora ou bem o real enquanto o objeto ou bem o realizador enquanto a objetivação, na qual a objetividade do objeto se conforma. A objetivação articula re-presentacionalmente o objeto com o ego cogito. Nesta articulação apresenta-se o ego cogito enquanto o que se encontra no fundo de sua própria ação (no fundo da articulação re-presentacional): enquanto subiectum. O sujeito é por si mesmo sujeito. A essência da consciência é a auto-consciência. Todo ente é, por isso, ou bem objeto do sujeito ou bem sujeito do sujeito. Por toda parte o ser do ente repousa no colocar-se-diante-de-si-mesmo e assim estabelecer-se. O homem desponta no interior da subjetividade do ente para o seio da subjetividade de sua essência. O homem toma pé no levante. O mundo torna-se objeto. Nesta objetivação insurreta de todo ente, o que precisa ser primeiramente colocado à disposição do re-presentar e do pro-duzir, a terra, ganha o centro da postação e da discussão humana. A terra mesma só pode ainda se mostrar enquanto o objeto da tomada de assalto que se institui enquanto a objetivação incondicionada no querer do homem. A natureza manifesta-se por toda parte, uma vez que querida a partir da essência do ser, enquanto o objeto da técnica.

Do tempo de 1881/82, no qual surgiu o aforismo "O homem desvairado", provém a anotação nietzschiana: "O tempo está por chegar, no qual a luta em torno do domínio da terra será conduzida - ela será conduzida em nome de doutrinas filosóficas fundamentais" (XII, 441).

Com isso não está dito que a luta em torno da exploração ilimitada da terra enquanto região de matéria-prima e em torno da aplicação sem ilusões do "material humano" a serviço da subsunção dominadora da vontade de poder em sua essência tome expressamente o auxílio do chamado de uma filosofia. Ao contrário, é de se supor que a filosofia enquanto doutrina e enquanto conformação da cultura venha a desaparecer e em sua figura atual possa mesmo desaparecer; porque ela, conquanto tenha sido autêntica, já trouxe à fala a realidade do real e assim o ente enquanto tal em direção à história de seu ser. As "doutrinas filosóficas fundamentais" não têm em vista doutrinas de eruditos, mas sim a linguagem da verdade do ente enquanto tal; verdade que a própria metafísica é sob a configuração da metafísica da subjetividade incondicionada da vontade de poder.

A luta pelo domínio da terra já é em sua essência histórica a conseqüência do fato de o ente enquanto tal se mostrar sob o modo da vontade de poder, sem ser entretanto já reconhecido ou mesmo concebido enquanto esta vontade. Além disto, as doutrinas correlatas da ação e as ideologias da representação nunca dizem o que é, e, por isso, acontece. Com o começo da luta pelo domínio da terra, a era impele a subjetividade para o seu acabamento. A este acabamento pertence o fato de o ente, o qual é no sentido da vontade de poder, tornar-se a ser modo e em todos os aspectos certo e com isso também consciente da própria verdade sobre si mesmo. O tornar consciente é um instrumento necessário do querer, que quer a partir da vontade de poder. Com respeito à objetivação, ele acontece sob a figura da planificação. Ele acontece em meio à circunscrição do levante do homem em direção ao querer-se através do desmembramento contínuo da situação histórica. Metafisicamente pensada, a situação é sempre a estação da ação do sujeito. Toda e qualquer análise da situação está fundamentada, quer o saiba ou não, na metafísica da subjetividade.

"O grande meio dia" é o tempo da claridade mais clara, da consciência em verdade, que se tornou consciente de si mesma incondicionadamente e em todos os aspectos enquanto aquele saber que consiste em querer intencionalmente a vontade de poder enquanto o ser do ente e em sobrepor-se enquanto um tal querer insurretamente em relação a si sobre todas as fases necessárias da objetivação do mundo e em assegurar assim a subsistência constante do ente para o querer maximamente uniforme e homogêneo. No querer dessa vontade abate-se porém sobre o homem a necessidade de co-desejar as condições de um tal querer. Isso significa: instaurar valores e tudo avaliar segundo valores. Dessa maneira, o valor determina todo ente em seu ser.

O que é agora, em meio a esta era, à medida que o domínio incondicionado da vontade de poder irrompe notoriamente e este notório e sua notoriedade mesma se tornam uma função dessa vontade? O que é? Nós não perguntamos por dados e fatos, para os quais cada um é capaz de arranjar testemunhos e de afastá-los sempre e a cada vez de acordo com o carecimento no âmbito da vontade de poder.

O que é? Nós não perguntamos por este ou aquele ente, mas pelo ser do ente. Antes ainda: nós perguntamos, como estão as coisas com o ser mesmo? Também não perguntamos isso aproximadamente, mas em consideração à verdade do ente enquanto tal, que ganha voz no interior da configuração da metafísica da vontade de poder. Como estão as coisas com o ser na era do domínio da vontade de poder incondicionada que se inicia?

O ser tornou-se um valor. O dar subsistência à constância do constante é uma condição necessária para o asseguramento de si mesma estabelecida pela própria vontade de poder. O ser pode porém ser mais elevadamente avaliado do que desse modo, conquanto é alçado expressamente até o valor? Por si só, no que o ser é dignificado enquanto um valor, ele já é rebaixado a uma condição estabelecida pela própria vontade de poder. No que o ser mesmo é avaliado e assim dignificado, ele já foi anteriormente apartado da dignidade de sua essência. Se o ser do ente é alcunhado como um valor e se com isso a sua essência é marcada, então, no interior dessa metafísica, e isso significa sempre no interior da verdade do ente enquanto tal durante esta era, todo e qualquer caminho para a experiência do ser mesmo é extinto. Aí pressupomos contudo com um tal discurso, o que talvez não tenhamos absolutamente o direito de pressupor, que algum dia houve um tal caminho para o ser e que um pensamento sobre o ser já tenha alguma vez pensado o ser enquanto ser.

Sem ter em vista o ser e sua própria verdade, o pensamento ocidental pensa desde o seu começo incessantemente o ente enquanto tal. Não obstante, ele só pensou o ser em uma tal verdade, de modo que dá voz a esse nome de maneira suficientemente desajeitada e em uma multissignificância inextricável porque não-experienciada. Esse pensamento, que permaneceu sem ter em vista o ser mesmo, é o acontecimento simples e suportador de tudo, por isso enigmático e não-experienciado da história ocidental; um acontecimento que se encontra entretanto a ponto de se expandir e transformar em história mundial. Por fim, o ser decaiu na metafísica e tornou-se um valor. Com isso atesta-se o fato de que o ser não é admitido enquanto o ser. O que isso nos diz?

Como estão as coisas com o ser? Com o ser não acontece nada. Como, se a essência até aqui velada do niilismo só se anunciar através daí? Então o pensamento em valores seria o puro niilismo? Mas Nietzsche concebe de qualquer forma a metafísica da vontade de poder justamente enquanto a superação da metafísica. De fato, à medida que o niilismo é pensado apenas enquanto a desvalorização dos valores supremos e a vontade de poder enquanto o princípio da transvaloração de todos os valores a partir de uma nova instauração dos valores supremos, a metafísica da vontade de poder é uma superação da metafísica. Mas nessa superação do niilismo o pensamento valorativo é elevado a princípio.

Se entretanto o valor não deixa o ser ser o ser, o que ele enquanto o ser mesmo é, então a suposta superação é antes de mais nada o acabamento do niilismo. Pois agora a metafísica não apenas não pensa o ser mesmo, mas esse não-pensar o ser toma a aparência de que realmente o pensa, uma vez que avalia o ser enquanto valor, o ser da maneira mais digna, de modo que toda pergunta pelo ser se torna e permanece supérflua. Se, todavia, o pensamento que tudo pensa segundo valores, pensado em sintonia com o ser mesmo, for niilismo, então até mesmo a experiência nietzschiana do niilismo, a experiência de que ele é a desvalorização dos valores supremos, já é uma experiência niilista. A interpretação do mundo supra-sensível, a interpretação de Deus enquanto o valor supremo, não é pensada a partir do ser mesmo. O último golpe contra Deus e contra o mundo supra-sensível consiste no fato de Deus, o ente do ente, ser degradado a valor supremo. Não o fato de Deus ser tomado como cognoscível, não o fato de a existência de Deus mostrar-se como indemonstrável é o golpe mais duro contra Deus, mas o fato de o Deus tomado por real ser elevado a valor supremo. Pois esse golpe justamente não é desferido pelos que estão à toa e não acreditam em Deus, mas pelos crentes e teólogos, que falam do mais ente de todos entes sem jamais se atraverem a pensar o ser mesmo, para aí adentrar, à medida que esse pensamento e aquela fala, vistos a partir da crença, são pura e simplesmente uma blasfêmia, caso eles se imiscuam na teologia da crença.

Agora surge também pela primeira vez uma fraca luz sobre o obscuro da questão, que já queríamos, enquanto ainda escutávamos o aforismo sobre o homem desvairado, lançar a Nietzsche: Como pode afinal acontecer que os homens consigam alguma vez matar Deus? Claramente, contudo, Nietzsche pensa exatamente isso. Pois em todo o aforismo apenas duas proposições encontram-se expressamente destacadas em itálico. A primeira diz: "Nós o matamos", a saber, nós matamos Deus. A outra diz: "e, porém, eles o praticaram", a saber, os homens praticaram o ato do assassinato de Deus, apesar de não terem ainda hoje ouvido nada acerca desse ato.

As duas proposições destacadas em itálico oferecem a interpretação para a sentença "Deus está morto". A sentença não conquista o seu significado como se fosse expressa a partir da renegação e do ódio baixo: não há nenhum Deus. A sentença significa algo mais malévolo: Deus foi morto. Assim, o pensamento decisivo vem pela primeira vez à tona. Entretanto, a compreensão torna-se ainda mais difícil. Pois antes poderíamos compreender ainda a sentença "Deus está morto" no sentido de uma anunciação de que o próprio Deus se afastou a partir de si mesmo de sua presença vital. Deus ser morto, contudo, por um outro, e quiçá pelos homens, é algo impensável. Nietzsche mesmo espanta-se com esse pensamento. Apenas por isso ele deixa o homem desvairado perguntar logo depois da sentença decisiva "Nós o matamos - vós e eu! Todos nós somos assassinos!": "Mas como fizemos isto?". Nietzsche esclarece a pergunta à medida que a repete circunscrevendo o perguntado através de três imagens: "Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagarmos todo o horizonte? O que fizemos ao arrebentarmos as correntes que prendiam esta terra ao seu sol?".

À última pergunta poderíamos responder: o que os homens fizeram, ao arrebentarem as correntes que prendiam a terra ao seu sol, designa a história européia dos últimos trezentos e cinqüenta anos. Mas o que aconteceu no fundo dessa história com o ente? Nietzsche pensa, quando denomina a ligação entre o sol e a terra, não apenas na revolução copernicana inerente à concepção moderna da natureza. O nome sol lembra ao mesmo tempo a alegoria platônica. Segundo esta alegoria, o sol e o âmbito de sua luz perfazem a circunscrição na qual o ente se manifesta segundo sua aparência, segundo suas facetas (idéias). O sol conforma e delimita o campo de visão no qual o ente enquanto tal se mostra. O "horizonte" tem em vista o mundo supra-sensível enquanto o verdadeiramente ente. Este é concomitantemente o todo, que tudo abarca e em si compreende como o mar. A terra enquanto a estadia do homem desprendeu-se de seu sol. O âmbito do supra-sensível em si essente não se encontra mais sobre o homem enquanto a luz normativa. Todo o campo de visão foi apagado. O todo do ente enquanto tal, o mar, foi esvaziado pelo homem. Pois o homem soergueu-se em meio à determinação essencial de "eu" do ego cogito. Com este soerguimento, todo ente se transforma em objeto. O ente é tragado para o seio da imanência da subjetividade. O horizonte não brilha mais a partir de si. Ele só permanece ainda como o ponto de vista estabelecido na instauração de valores da vontade de poder.

Sob o fio condutor das três imagens (sol, horizonte, mar), que ao que parece são ainda mais do que imagens para o pensamento, as três perguntas esclarecem o que se tem em vista no acontecimento do assassinato de Deus. O assassinato diz respeito ao afastamento do mundo supra-sensível em si essente pelo homem. O assassinato denomina o evento no qual o ente enquanto tal não é pura e simplesmente aniquilado, mas sim se diversifica em seu ser. Nesse evento, contudo, também e antes de tudo o homem se diversifica. Ele se transforma naquele que afasta o ente no sentido do ente em si. O soerguimento humano no seio da subjetividade transforma o ente em objeto. O objetivo é, entretanto, o que é trazido à permanência através da representação. O afastamento do ente em si, o assassinato de Deus, é empreendido em meio ao asseguramento da subsistência, através do qual o homem se assegura da subsistência material, corpórea, anímica e espiritual; isso, porém, em virtude de sua própria segurança, que quer o domínio sobre o ente enquanto o possível objetivo, para corresponder ao ser do ente, à vontade de poder.

O asseguramento enquanto a constituição da segurança está fundada na instauração de valores. A avaliação tem sob si todo ente em si; e, com isso, provocou a sua morte, transformando-o em um ente por si: assassinou-o. Esse último golpe no assassinato de Deus é conduzido pela metafísica, que enquanto metafísica da vontade de poder empreende o pensamento no sentido do pensamento valorativo. Esse último golpe, através do qual o ser é reduzido a um mero valor, Nietzsche mesmo não reconhece mais porém enquanto o que o golpe, pensado em consideração ao ser mesmo, é. Por si só, Nietzsche mesmo não diz: "Nós todos somos seus assassinos - vós e eu!"? Certamente. De maneira coerente, Nietzsche também compreende ainda a metafísica da vontade de poder enquanto niilismo. Sem dúvida. Isso só diz no entanto para Nietzsche que ela, enquanto um contramovimento no sentido da transvaloração de todos os valores até aqui empreende o mais intensamente, porque definitivamente, a "desvalorização precedente dos valores supremos até aqui".

Entretanto, Nietzsche não pode mais pensar justamente a nova instauração dos valores a partir do princípio de toda avaliação enquanto um assassinato e enquanto niilismo. Ela não é mais nenhuma desvalorização em meio ao campo de visão da vontade de poder que quer a si mesma, isto é, em meio à perspectiva do valor e da instauração de valores.

Mas como se dão as coisas com o próprio instaurar valores, quando este é pensado em relação com o ente enquanto tal, e isso significa ao mesmo tempo, em relação ao ser? Então o pensar através de valores é o assassinato radical. Ele não lança por terra apenas o ente enquanto tal em seu ser-em-si, mas coloca o ser totalmente de lado. O ser só pode vigir, onde ainda é requisitado, enquanto um valor. O pensamento valorativo da metafísica da vontade de poder é mortífero em um sentido extremo, porque não deixa o ser mesmo eclodir; isto é: ele não deixa o ser ganhar a vitalidade de sua essência. O pensar segundo valores não deixa a priori o ser mesmo alcançar o ponto da essencialização em sua verdade.

Mas esse matar pela raiz surge apenas e pela primeira vez sob o modo de ser da metafísica da vontade de poder? Somente a interpretação do ser enquanto valor não deixa o ser mesmo ser o ser que ele é? Se as coisas fossem assim, então a metafísica nas épocas anteriores a Nietzsche precisaria ter experimentado e pensado o ser mesmo em sua verdade ou, porém, no mínimo, ela precisaria ter pergunta por este. Mas em parte alguma encontramos uma tal experiência do ser mesmo. Em parte alguma nos deparamos com um pensamento que pense a verdade do ser mesmo e com isso a verdade mesma enquanto o ser. Até mesmo lá onde o pensamento pré-platônico enquanto o começo do pensamento ocidental prepara o desdobramento da metafísica através de Platão e Aristóteles, o ser não é pensado. O ¦stin (¦În) gr ¦inai nomeia com certeza o ser mesmo. Mas ele não pensa justamente o presentificar-se enquanto o presentificar-se a partir de sua verdade. A história do ser começa, e isto necessariamente, com o esquecimento do ser. Assim, não é afinal um privilégio da metafísica enquanto a metafísica da vontade de poder o fato de o ser mesmo permanecer impensado em sua verdade. Esse estranho alijamento reside então apenas na metafísica enquanto metafísica. Mas o que é metafísica? Conhecemos sua essência? Ela mesma pode conhecer essa essência? Se ela a concebe, ela a apreende metafisicamente. Mas o conceito metafísico da metafísica permanece incessantemente retrojetado para trás de sua essência. Isso vale também para toda e qualquer lógica, suposto que ela antes de tudo ainda consiga pensar o que é o logoV. Toda e qualquer metafísica da metafísica, assim como toda e qualquer lógica da filosofia, que tente ultrapassar de uma maneira qualquer a metafísica como que subindo a um degrau mais alto de uma escada, acaba por cair da forma mais segura possível sob esta, sem experimentar para onde ela mesma cai através daí.

Todavia, nossa reflexão deu ao menos um passo adiante em relação à distinção referente à essência do niilismo. A essência do niilismo repousa na história, de acordo com a qual perde-se completamente de vista o ser mesmo e sua verdade em meio à aparição do ente enquanto tal na totalidade; e isso de tal modo que a verdade do ente enquanto tal vige como o ser, porque a verdade do ser permanece de fora. Nietzsche experimentou sem dúvida alguns traços do niilismo na era do início de seu acabamento, interpretando-os concomitantemente de maneira niilista e com isso soterrando plenamente sua essência. Nietzsche nunca reconheceu contudo a essência do niilismo - tampouco qualquer metafísica antes dele.

Se todavia a essência do niilismo repousa sobre a história de que na aparição do ente enquanto tal na totalidade a verdade do ser permanece de fora, e de que de acordo com isso perde-se de vista o ser mesmo e sua verdade, então a metafísica enquanto a história da verdade do ser enquanto tal é em sua essência niilismo. Se a metafísica é plenamente o fundamento histórico da história mundial ocidental e determinada de modo europeu, então é niilista em um sentido totalmente diverso.

Pensado a partir da destinação do ser, o nihil do niilismo significa que não se tem nada com o ser. O ser não chega à luz de sua própria essência. Na aparição do ente enquanto tal o ser mesmo permanece de fora. A verdade do ser se esvai. Ela permanece esquecida.

Assim, o niilismo seria afinal em sua essência uma história, que tem lugar com o ser. Então residiria na essência do ser mesmo o fato de permanecer impensado, porque ele se retrai. O ser mesmo retrai-se em sua verdade. Ele se oculta nela e encobre a si mesmo em um tal ocultamento.

Considerando o ocultamento que encobre a si mesmo da própria essência, talvez venhamos a tocar a essência do segredo, segundo o qual a verdade do ser se essencializa.

A metafísica mesma não seria de acordo com isso um mero descuido referente a uma pergunta pelo ser a ser ainda pensada. Ela não seria absolutamente nenhum erro. A metafísica aconteceria enquanto história da verdade do ente enquanto tal a partir da destinação do ser mesmo. A metafísica seria em sua essência o segredo impensado, uma vez que retido, do ser mesmo. Se as coisas se dessem de outra maneira, então um pensamento que se empenha por se manter junto ao que precisa ser pensado, o ser, não poderia ininterruptamente perguntar: o que é a metafísica?

A metafísica é uma época da história do ser mesmo. Em sua essência, porém, a metafísica é niilismo. Sua essência pertence à história, na qual o ser mesmo se essencializa. Se o nada remete-se entretanto ao ser, como quer que isso venha a se dar, então certamente a determinação histórico-ontológica do niilismo poderia antes ao menos indicar o âmbito no interior do qual a essência do niilismo é experienciável, para tornar-se algo pensado e que diz respeito à nossa meditação. Nós estamos acostumados a escutar a partir do nome niilismo antes de tudo uma dissonância. Se considerarmos porém a essência histórico-ontológica do niilismo, então algo desagradável se insere imediatamente na escuta da dissonância. O nome niilismo diz que, no cerne do que ele denomina, o nihil (nada) é essencial. Niilismo significa: com tudo e em todos os aspectos, ele não é nada. Tudo: isso tem em vista o ente na totalidade. Em cada um de seus aspectos o ente se encontra, contudo, ao ser experimentado enquanto o ente. Niilismo significa então, que ele não tem nada a ver com o ente enquanto tal na totalidade. Mas o ente é, o que ele é e como ele é, a partir do ser. Suposto que no ser reside todo "é", então a essência do niilismo consiste no fato de ele não ter nada a ver com o ser mesmo. O ser mesmo é o ser em sua verdade - verdade essa que pertence ao ser.

Se escutarmos no nome niilismo o outro tom, no qual ressoa a essência do que é aí denominado, então também escutaremos diversamente o cerne da linguagem daquele pensamento metafísico que experimentou algumas coisas sobre o niilismo, sem contudo estar em condições de pensar a sua essência. Talvez ainda cheguemos um dia a considerar, com o outro tom no ouvido, a era do acabamento do niilismo que está se iniciando de uma maneira diversa da até aqui. Talvez reconheçamos, então, que nem as perspectivas políticas nem as econômicas nem as sociológicas nem as técnicas e científicas, que nem mesmo as perspectivas metafísicas e religiosas são suficientes para pensar o que acontece nesta era. O que ela dá a pensar ao pensamento não é nenhum sentido derivado qualquer profundamente escondido, mas algo que se encontra próximo: o que se encontra o mais próximo possível, o que nós, porque ele é apenas este aí, constantemente já passamos por cima. Através desse passar por cima empreendemos constantemente, sem que o notemos, aquele assassinato junto ao ser do ente.

Para que atentemos a isso e aprendamos a atentar a isso, pode ser em um primeiro momento suficiente considerar o que o homem desvairado diz acerca da morte de Deus e como ele o diz. Talvez não sobrescutemos agora tão apressadamente o que é dito no começo do aforismo discutido: que o homem desvairado "gritava ininterruptamente: estou procurando por Deus! Estou procurando por Deus!".

Em que medida esse homem é desvairado? Ele é alien-ado. Pois ele foi alijado enquanto um outro do plano dos homens até aqui; o plano sobre o qual os ideais do mundo supra-sensível, que se tornaram irreais, são supostos como o real, enquanto que o seu contrário se realiza. O homem alienado é projetado para além dos homens até aqui. Não obstante, ele foi dessa maneira apenas introjetado plenamente na essência predeterminada do homem até aqui: o ser um animal racional. Esse homem, dessa forma alienado, não possui por isso nada a ver com o modo de ser desses mandriões públicos, "que não acreditam em Deus". Pois estes não são descrentes porque Deus enquanto Deus se tornou in-crível para eles, mas porque eles mesmos renunciaram à possibilidade da crença, conquanto não estão mais em condições de buscar Deus. Eles não podem mais buscar porque não podem mais pensar. Os mandriões públicos suprimiram o pensamento e o substituíram pelo falatório, que está sempre pronto a expressar o palpite de niilismo onde quer que ache sua própria opinião em risco. Esse auto-obnubilamento, que sempre continua ainda a crescer, ante o niilismo próprio tenta desta maneira dissuadir-se de sua angústia em relação ao pensamento. Esta angústia é, contudo, a angústia em relação à angústia.

O homem desvairado, ao contrário, é inequívoco já segundo as primeiras frases; mais inequívo ainda para quem pode ouvir - segundo as últimas frases, aquele que procura por Deus ao gritar por ele. Talvez um ser pensante tenha aí realmente gritado de profundis? E o ouvido de nosso pensamento? Ainda continua sem escutar o grito? Ele vai sobreouvi-lo até o momento em que ele começar a pensá-lo. O pensamento só começará ao experimentarmos que a razão há séculos glorificada é a mais tenaz rival do pensamento.

 

 

Endereço para correspondência
Marco Casanova
E-mail: mcn@uerj.br

 

 

1 Nisus diz em latim primeiramente o entrar em cena e, em seguida, o ímpeto, a compulsão, o impulso para tanto (N.T.).