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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005

 

RESENHAS

 

Marcos José Müller-Granzotto

Universidade Federal de SantaCatarina (UFSC)

Endereço para correspondência

 

 

Ernildo Stein, 2001: Compreensão e finitude - estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí (RS), Unijuí (Col. Ensaios - Política e Filosofia).

Em 28 de junho de 1968, Ernildo Stein defendeu, na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a tese de livre docência intitulada, Compreensão e finitude, a qual foi considerada, naquela ocasião, "a introdução mais inteligente e penetrante na `intenção fundamental' de Heidegger (Stein, 2001, pp. 9-10)", conforme declaração de Henrique Lima Vaz em carta dirigida ao próprio Stein aos 10 dias de agosto de 1967. Trata-se da concretização de um projeto que o próprio Heidegger, ao saber das intenções de Stein, considerou "muito difícil" (ibid., p. 19). Afinal, Stein deveria mostrar que, não obstante os diferentes pontos de vista

assumidos por Heidegger nas obras compreendidas entre a publicação de Sein und Zeit (1927) e a publicação do artigo "La fin de la philosophie et la tache de la pensée" (1966), a estrutura da interrogação pelo sentido do ser permaneceu a mesma. O que permitiria a Stein falar da obra heideggeriana como o movimento de uma só interrogação. E, conforme penso, mesmo não tendo se permitido suspeitar das interpretações heideggerianas a respeito da história da filosofia e a respeito das intenções de Husserl, Stein logrou mostrar, na intimidade dos textos de Heidegger, a existência dessa estrutura e desse movimento únicos e que já no título do livro estão didaticamente indicados: "compreensão" e "finitude".

Em seu livro, Stein defende a interpretação de que a originalidade da obra de Heidegger é menos evidente pelas vigorosas análises que o filósofo realiza da metafísica do que pela consideração da estrutura e do movimento de sua interrogação pelo sentido do ser. Tal estrutura e tal movimento, acredita Stein, são correlativos à postura heideggeriana

de assumir, contrariamente à pretensão de atemporalidade que caracteriza a pergunta pelo ser desenvolvida na tradição metafísica, a finitude do próprio interrogar. Stein adverte, entretanto, que finitude não é para Heidegger a pura contingência, a fórmula inversa de uma instância apodíctica, seja ela uma idéia adventícia, um princípio transcendental ou uma teleologia historicamente desdobrada. Finitude implica, sim, a condição temporal da interrogação que, ao se voltar para o ser dos entes, simultaneamente vela o que nela própria se desvela, a saber, sua prévia compreensão sobre o ser. Finitude, portanto, é o modo temporal de emergência do ser num contexto de circularidade hermenêutica próprio à interrogação pelo ser. E segundo Stein, já em Sein und Zeit (1927), a analítica da compreensão do ser, estabelecida por meio das estruturas do ser-aí, indicava a presença prévia do ser, do sentido do ser, de tal modo que aquilo que se estava a procurar, já se devia admitir como dado na procura (2001, p. 264). Se essa presença prévia, por sua vez, não pôde ser tabulada nos termos de uma ontologia fundamental, tal se deveu à limitação da linguagem analítica para acompanhar o modo temporal de manifestação do ser (2001, p. 337). De onde se seguiu, alguns anos após a publicação de Sein und Zeit (1927), a viravolta da interrogação heideggeriana, que em vez de se dirigir ao sentido do ser, passou a ser apresentada desde o sentido, como a expressão do ser. Heidegger então não mais se perguntaria pelo tempo enquanto sentido do ser, mas pelo ser do tempo, que é a historicidade da própria interrogação, aquém de toda pretensão metafísica de apoditicidade. Eis em que sentido, então, Stein pôde falar de uma originalidade estrutural da obra heideggeriana, que consistiria na fidelidade da interrogação à situação circular de retorno a um fundante que, entretanto, se furta; desvelamento de uma origem que, dessa forma, acaba sendo velada: ser como a-létheia. Eis em que sentido, por outro lado, Stein pôde falar da coerência interna do movimento operado pela interrogação heideggeriana, e que outra coisa não seria senão a viravolta ante sua própria finitude. De algum modo, a presença de um fundante que se apresenta, mas não se deixa apreender pela interrogação, exige, da interrogação, a consideração dela mesma enquanto aquilo que é fundado.

O livro de Stein é o mapeamento das diversas formulações por cujo meio Heidegger procurou caracterizar a finitude implicada na pergunta pelo ser. Tal mapeamento está realizado em quatro partes, que têm como título, respectivamente, "A aletheia", "A fenomenonologia", "O círculo hermenêutico" e a "Viravolta".

Na primeira parte, Stein ocupa-se da palavra que, no seu entender, exprime a unidade do pensamento, a constância do caminhar e a inspiração fundamental de Heidegger. Trata-se da palavra aletheia, a qual, simultaneamente, envolve a pergunta pelo sentido do ser e pela verdade no horizonte de uma ontologia da finitude. Segundo Stein, a palavra "aletheia cria as possibilidades e a atmosfera em que se desenvolve o método fenomenológico, a analítica da circularidade do ser-aí e o movimento da viravolta, caracterizando um conceito de finitude e compreensão tipicamente heideggerianos (2001, p. 55)". Isso porque a palavra aletheia contém em si, de modo flagrante, a possibilidade de se pensar essa ambivalência, esse movimento de inclinação recíproca entre o velamento e o desvelamento, que caracteriza o modo temporal (finito) de manifestação do ser no seio da circularidade hermenêutica da interrogação. Por meio de uma leitura fenomenológica - que privilegia a descrição das intuições inerentes à experiência de leitura em detrimento do formalismo das análises genéticas e etimológicas - Heidegger identificou, entre os gregos, uma compreensão pré-filosófica do sentido da palavra aletheia. Nos termos dessa pré-compreensão, os gregos empregavam aletheia para falar da verdade, mas de uma verdade que não é correspondência ou adequação a um ente. A aletheia - enquanto "verdade" - teria relação com o desvelamento de uma presença que, tendo sido esquecida em proveito dos entes que a revelaram ou em decorrência da metafísica que só se interessa pelos entes, retorna como prévia compreensão implícita à interrogação pelo ser daqueles mesmos entes. A aletheia, assim compreendida, seria o desvelamento de uma presença ambivalente. Por um lado, tal presença é o que cai no esquecimento (lethe) - seja para que os entes apareçam (sentido positivo do esquecimento), seja porque a investigação metafísica dos entes obnubilou a diferença entre ser e ente (sentido negativo de esquecimento). Mas, por outro lado, essa presença é o que é desvelado na interrogação pelo ser dos entes, não como ente, mas como prévia compreensão sobre o ser. De onde se depreendeu, segundo Stein, a possibilidade para Heidegger estabelecer a diferença ontológica entre "ser" e "ente", pensar o caráter circular da interrogação pelo ser e, fundamentalmente, compreender o sentido temporal e, por essa razão, finito, dessa presença que a interrogação simultaneamente vela e desvela. Ademais, acrescenta Stein, é por meio da palavra aletheia que Heidegger pôde compreender, nos textos posteriores a Sein und Zeit, a ambivalência radical de outras palavras gregas que indicam, por sua vez, os grandes temas da história da metafísica, - e que não por acaso Heidegger passou a chamar de história do esquecimento do ser -, quais sejam aquelas palavras: physis e logos. Em seu estudo sobre a essência e o conceito de physis ("Vom Wesen und Begriff der Physis") lembra Stein, Heidegger (1958) reconhece haver, na noção de physis, a mesma ambivalência característica da aletheia. Assim como posso falar de uma presença (ousia) que se apresenta e se oculta como aletheia, posso falar de algo que se abre e se fecha (kryptesthai) como physis, de onde a tradução heideggeriana do fragmento 123 de Heráclito nos seguintes termos: "A emergência (a partir do velar-se) deve seu favor ao velar-se (physis kryptesthai philei)" (2001, p. 110). Do mesmo modo, lembra Stein, Heidegger estabelece a consonância e dependência ente logos e aletheia. Nas palavras de Heidegger - citadas e traduzidas por Stein (ibid., p. 112) - "O logos é um recolher, um pôr na presença, e, assim, ao mesmo tempo, um abrigar. Logos aponta para o velamento e desvelamento".

Na segunda parte do livro, Stein se ocupa do tema "fenomenologia", querendo com ele caracterizar o "método" específico e constante com o qual Heidegger procurou abordar a questão que, não obstante haver compreendido, Husserl não soube responder, senão apelando para uma terminologia comprometida com a tradição do esquecimento do ser, qual seja tal questão: qual é o modo de ser do ente, no qual se constitui "mundo"? Como admite o próprio Heidegger, em carta dirigida a Husserl e traduzida por Stein (ibid., p. 157), o autor das Meditações cartesianas (1930) estava certo ao dizer que a constituição dos entes mundanos não pode ser compreendida por meio de um regresso a um ente da mesma espécie. Todavia, a solução apresentada, que é o apelo à Consciência Transcendental, não resolve o problema, porquanto fica indeterminada a diferença entre essa consciência e os entes que ela constitui. "O que significa ego absoluto à diferença do puramente anímico?", pergunta-se Heidegger (apud ibid.). Eis em que sentido, acredita Stein, institui-se uma discordância, "até um ponto decisiva, nas concepções de Husserl e Heidegger com relação à fenomenologia e à tarefa do labor filosófico" (ibid., p. 156). Convicto de que a fenomenologia husserliana não conseguiu responder à questão sobre o sentido do ser no qual se constitui o mundo, senão confinando esse sentido aos limites de um ente de segunda ordem, Heidegger dirige-se para a problemática do ser, muito embora não se tratasse do ser no sentido da tradição. Afinal, o que Heidegger visava não era uma abstração dos entes ou um "ente" privilegiado que se estabelecesse como condição dos demais. Mesmo a analítica deste ente admirável que é o ser-aí, não visava descrevê-lo como constituidor de coisa alguma. Heidegger queria tão-somente apresentar o sentido do ser deste ente, entendendo por tal ser não uma forma objetiva ou uma abstração do plano ôntico, mas uma ocupação, um operar, um cuidado - que em sua forma autêntica é capaz de se compreender, não como uma forma objetiva, mas como um movimento de transcendência, que é sua própria temporalidade e, nesse sentido, sua finitude.

Ora, Stein não discute a posição de Heidegger relativamente a Husserl. Limita-se a apresentá-la, como se a investigação dos motivos de Husserl não pudesse acrescentar nada às razões de Heidegger. Ou, o que é pior, Stein interpreta as críticas de Heidegger a Husserl como se as razões de Heidegger dispensassem a investigação da filosofia husserliana. Conforme penso, a unilateralidade dos comentários de Stein prejudicou não apenas o entendimento da posição de Husserl, mas o próprio entendimento acerca do sentido do método fenomenológico na obra heideggeriana. Stein não se apercebe que, na carta que traduziu, a demanda de Heidegger em relação a Husserl desconsidera a natureza distinta dos projetos a que ambos se dedicavam. E é somente por isso que, em certo momento, Heidegger pôde lançar a suspeita de que, em Husserl, a consciência transcendental não transcende o plano da metafísica dos entes. Entretanto, a leitura dos textos de Husserl não nos deixa essa impressão. Como o próprio Heidegger admitiu, ao falar da consciência transcendental, Husserl não se ocupa de caracterizar um ente ou qualquer sorte de forma natural. Da mesma forma, ao falar de objetos constituídos, Husserl não tem em vista "entes" relativamente aos quais a consciência deveria se diferenciar. É verdade que, a partir de 1924, Husserl reconhece haver algo assim como uma população de "quase-coisas", reunidas sob o nome de mundo-da-vida, e que ofereciam um arcabouço a partir de onde, por meio de uma primeira redução, a consciência haveria de abstrair uma sorte de sentido capaz de preencher os atos constituidores de objetividade. Todavia, se Husserl reporta-se ao domínio do mundo-da-vida, tal se deve a que, neste, melhor do que em outros domínios, transparece o caráter incoativo de todo sentido. Conseqüentemente, transparece a necessidade de uma atividade transcendental que, a partir daquele sentido, possa alcançar um valor objetivo. Eis por que Husserl não se detém muito na temática do mundo da vida (Die Faktizitaet ist das Feld nicht der Phaenomenologie und Logik, sondern das der Metaphysik . Husserl, 1956, p. 390). Eis por que, já nas Idéias I, Husserl fala de uma segunda redução, na forma da qual logramos alcançar o verdadeiro âmbito de constituição de significação, a saber, a consciência pura ou transcendental (Husserl, 1913, p. 76-77), a qual de forma alguma se confunde com o mundo-da-vida ou qualquer sorte de ente, tampouco com os objetos por cujo meio o mundo-da-vida possa ser pensado. Nas Meditações Cartesianas, Husserl diz ser "preciso efetuar conscientemente a redução fenomenológica, para obter aquele eu e aquela vida de consciência, em relação aos quais podem ser postas questões transcendentais como questões sobre a possibilidade do conhecimento transcendente" (1930, p. 116). De onde se segue que, assim como Heidegger - ao falar do sentido do ser do ente -, também Husserl - ao tratar do problema da constituição transcendental - não se ocupa de um ente especial, mas das condições por meio das quais nossa facticidade pode valer de maneira determinada (como objeto). À diferença de Heidegger - que se ocupa da temporalidade das formas pré-objetivas que se ocultam nos próprios entes que elas viabilizam -, Husserl se ocupa de descrever como, a partir daquelas mesmas formas, nossos atos podem lograr modos de apresentação objetiva de nossa facticidade. É verdade que - e isso Heidegger não deixou de assinalar, tampouco Husserl de admitir -, a investigação das condições para apresentação objetiva de nossa facticidade é uma modalidade de nossa existência fáctica. Mas, por outro lado, a descrição da temporalidade das formas pré-objetivas implica uma sorte de objetividade, cujas condições devem ser apuradas: esse era o tema de Husserl. Por isso, talvez, fosse o caso de se dizer: a pergunta heideggeriana pelo sentido do ego puro à diferença do anímico tanto se presta para justificar a necessidade de uma ontologia fundamental (que se ocupe da facticidade da própria fenomenologia), como para legitimar a intuição husserliana relativamente à necessidade de se esclarecer a objetividade específica da apresentação fenomenológica da facticidade.

De toda sorte, depois de apresentar os motivos de Heidegger contra Husserl, Stein se dedica a discutir, em seu capítulo sobre "A fenomenologia na obra de Martin Heidegger" (Stein, 2001, p. 161) o conceito provisório de fenomenologia, tal como Heidegger o apresenta na Introdução de Sein und Zeit. Conforme Stein (ibid., p. 167), a partir dos termos contidos na expressão fenomenologia (legein ta phainomena), Heidegger nos remete a termos mais primitivos, que lhe facultam a tradução daquela expressão na seguinte forma: fazer ver, a partir de si mesmo, aquilo que se manifesta, tal como, a partir de si mesmo, se manifesta (apophainesthai ta phainomena). Heidegger estaria procurando aqui caracterizar a fenomenologia não como uma investigação que nos levasse às "coisas mesmas" - tal como esse mote foi entendido pelo "séqüito" de Husserl, a saber, como designativo dos puros entes -, mas ao "ao si mesmo das coisas", que não é senão o ser que nelas se revela ocultando-se. A fenomenologia, por conseguinte, é o método próprio à tarefa de revelação daquilo que, nessa revelação, se oculta, de onde se segue o caráter necessariamente provisório da fenomenologia. Ela não é a própria consecução de uma nova ontologia, mas o caminho por cujo meio, para além ou aquém da metafísica do ente, o ser seria mostrado em si mesmo, a saber, como aquilo que se oculta. A fenomenologia, aqui, aparece simultaneamente articulada com o tema da circularidade da interrrogação (razão pela qual se trata de uma fenomenologia hermenêutica) e com o tema da finitude, porquanto a realização de sua tarefa (desvelar o ser) é, ao mesmo tempo, velá-lo.

Ora, afirma Stein, a fenomenologia hermenêutica fundou a veritas transcendentalis, o horizonte de abertura no ser-aí concreto, que permite a interrrogação pelo sentido, pela verdade do ser em si mesmo (ibid., p. 173). Todavia, ao final da segunda seção da primeira parte de Sein und Zeit, o próprio Heidegger formulou o limite desse método. Afinal, depois de ter penetrado no acontecer fático da transcendência do ser-aí e, a partir daí, ter determinado a temporalidade das estruturas do ser-aí, a fenomenologia hermenêutica deveria descrever o tempo como horizonte transcendental da pergunta pelo sentido do ser, o que efetivamente Heidegger jamais fez. Afinal, isso implicaria, novamente, imergir numa metafísica do ente, porquanto o tempo já não seria mais compreendido como o horizonte desde onde algo dar-se-ia a saber, mas como aquilo que devesse ser sabido, explicado. E eis o que justificaria que, em textos como A caminho da linguagem (Unterwegs zur Sprache), escrito entre 1953-4, mas publicado somente em 1959, Heidegger se ocupasse de estabelecer uma viravolta metodológica em que, não obstante não se refutar a verdade transcendental fundada pelo fenomenologia hermenêutica, procurar-se-ia mostrar como essa verdade emergiria da clareira do próprio ser, enquanto velamento e desvelamento. A fenomenologia hermenêutica, em certo sentido, faz sua retirada em proveito de uma ontologia fenomenológica em que o ser assume a hegemonia na sua manifestação, fazendo com que o próprio homem o atinja como fenômeno. A interrogação que antes buscava o horizonte desde onde ela própria se estabelecia e que, por essa razão, culminava na afirmação do tempo como sentido do ser, procura agora descrever seu acontecimento fenomenológico, seu surgimento a partir do ser. Mais do que se descrever o tempo como horizonte da interrogação pelo ser, importa, então, descrever o acontecimento fenomenológico (ou, conforme Heidegger, o Wesen) do tempo, que a interrogação vela ao realizar. De onde Stein infere que, "a fenomenologia perpassa a obra de Heidegger, mesmo quando nominalmente silenciada, porque o filósofo sustenta, em sua meditação, aquela que é a suprema possibilidade da fenomenologia, enquanto é a própria possibilidade: a aletheia em seu movimento de velamento e desvelamento, de retração e presença, de retenção e oferta " (2001, p. 182).

Essa onipresença, por vezes silenciada, da fenomenologia hermenêutica no contexto global da obra heideggeriana, Stein também o mostra quando discute, na terceira parte de seu livro, o tema "círculo hermenêutico". Conforme Stein, já no início de Sein und Zeit, Heidegger nota a presença de um círculo no ponto de partida de sua reflexão. Se é verdade que o sentido da interrogação pelo sentido do ser passa pela analítica deste que se interroga, a saber, o ser-aí, também é verdadeiro que a própria analítica do ser-aí pressupõe a prevalência disto que, antes de ser buscado, já é compreendido, a saber, o próprio ser (ibid., p. 245). O que não quer dizer que Heidegger estivesse enredado numa dificuldade lógica, afinal , segundo ele próprio, "tomar esse círculo por vicioso, procurar meios para evitá-lo, ou mesmo experimentá-lo como uma imperfeição inevitável, equivale a uma incompreensão fundamental da compreensão" (Heidegger, apud ibid., pp. 247-248). Nesse sentido, diz Stein, o elemento decisivo não é sair do círculo, mas, sim, introduzir-se nele corretamente. O que justamente o método fenomenológico pode assegurar. Afinal, trata-se, nele, de se atingir as coisas, assim como em si mesmas e a partir de si mesmas se manifestam. O que significa, por um lado, visar "o si mesmo das coisas" (que não é senão o ser ele próprio) e, por outro, descrever o "modo específico" de aparecimento desse si (que é a finitude da interrogação implementada pelo ser-aí). E eis por que Heidegger anuncia a tarefa de uma ontologia fundamental, mas tomando como ponto de partida a descrição do sentido da pergunta pelo ser, a saber, a finitude do ser-aí (ibid., pp. 294-295). E é essa finitude, por fim, o que dilucida esse modo circular segundo o qual o ser dá-se a conhecer como primordialidade que sustenta por dentro a interrogação, sem se deixar por ela esgotar. De onde se depreende a idéia de circularidade hermenêutica como relação temporal entre o ser e o ser-aí.

Ora, diz Stein, as três secções da primeira parte de Sein und Zeit deveriam se esboçar sob o signo do círculo hermenêutico. Tanto a analítica fundamental das estruturas do ser-aí como a interpretação da temporalidade enquanto horizonte transcendental da pergunta pelo sentido do ser em geral partem de uma situação hermenêutica e se movimentam no círculo hermenêutico. Mesmo o projeto da segunda parte de Sein und Zeit, a destruição fenomenológica da história da ontologia à luz da problemática da temporalidade, implica uma situação hermenêutica e se movimenta num círculo hermenêutico. Se a terceira secção, por sua vez, não pode ser realizada, também isso se deveu à fidelidade de Heidegger à circularidade da interpretação. Uma ontologia do tempo faria deste um atributo e, correlativamente, do ser um ente. Razão pela qual, ainda em nome da circularidade, a interpretação deveria declinar de restringir o ser ao seu sentido, para pensar o sentido a partir do ser: viravolta.

Na quarta parte de seu livro, Stein discute, no detalhe, o sentido da viravolta heideggeriana. Trata-se, segundo Stein (2001, p. 300) do nome que recebeu essa mudança que é menos o índice da inevitável incompletude de Sein und Zeit e mais a pedagogia de toda a interrogação pelo ser na finitude. Conforme Stein, a interrogação heideggeriana sempre esteve cônscia da estrutura circular que a definia e, nesse sentido, tinha presente para si o fato de que a analítica da compreensão do ser, que ela empreendia através da descrição fenomenológico-hermenêutica das estruturas do ser-aí, sempre esteve envolta pela presença prévia do ser, do sentido do ser, de tal modo que aquilo que ela buscava já estava presente no próprio movimento de procura. Porém, tal consciência não encontrara, no estilo transcendental implícito à interrogação implementada como analítica, a justa complementação, que pudesse afastar de vez o risco da se interpretar o ser como algo inerente e, nesse sentido, possibilitado pelas estruturas descritivas do tempo. É como se Heidegger tivesse se apercebido do déficit expressivo da analítica. O que abriu caminho para um novo estilo, para uma nova forma de descrição, em que a linguagem não fosse apenas a clarificação do sentido do ser, para se transformar no próprio acontecimento do ser como aquilo que se vela no que, dele, tenta se apropriar. Essa viragem de perspectiva permitiu então a Heidegger reconhecer a história do esquecimento do ser - que é a história da filosofia - não apenas como uma ocorrência negativa, como acontecia em Sein und Zeit, mas também como o próprio acontecimento-apropriação do ser. Afinal, a história do esquecimento é, simultaneamente, a história do acontecimento do ser. Razão pela qual, diz Stein, a viravolta heideggeriana não é senão a perseguição da história do ser através da história da filosofia (ibid., p. 384).

A viravolta heideggeriana estabeleceu, salienta Stein, a hegemonia do ser sobre o ser-aí. O que não quer dizer que a analítica das estruturas do ser-aí tenham perdido sua importância. Se é verdade que a viralvolta é o movimento que manifesta a hegemonia do ser na instauração da circularidade, não é menos verdadeiro que a viravolta revela o fato de o ser sempre se dar no ser-aí e de ele necessariamente acontecer assim, como velamento e desvelamento. De onde se segue que a compreensão do ser é finita, enquanto se manifesta na finitude do ser-aí, muito embora tal finitude seja a positiva possibilidade de o ser se mostrar como aquilo que é enquanto se vela (ibid., p. 385).

Enfim, não obstante a unilateralidade com a qual Stein discute as interpretações heideggerianas acerca da história da filosofia, muito especialmente acerca da filosofia fenomenológica de Husserl, apesar de o livro de Stein fazer poucas referências ao modo como a obra de Heidegger foi recebida nas mais diversas escolas, não há dúvida que se trata de uma investigação consistente que, por seu estilo, realiza ela também um acontecimento-apropriação, senão do ser, ao menos do pensar de Heidegger. Em nos apresentando as fórmulas da interrogação heideggeriana pelo ser, Stein nos faz acreditar na unidade desse pensar que, dessa forma, resta velado, muito embora, somente assim possa ser retomado como uma aquisição da filosofia em língua portuguesa

 

Referências

Heidegger, Martin 1927: Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 1963, 9. Awflage.

_____ 1958: Vom Wesen und Begriff der Physis (Sobre a essência e conceito de physis). Aristoteles Physik B 1. In: Il Pensiero. Milano, 1958.

_____ 1959: Unterwegs zur Sprache (A caminho da linguagem). Pfüllngedn, G. Neske.

Heidegger, Martin 1966: "La fin de la philosophie et la tâche de la pensée". In: Beaufret, Jean (ed.) 1966: Kierkegaard vivant. Paris, Gallimad.

Husserl, Edmund 1956: Erste Philosophie. Haag: Martinius Nijhoff (Husserliana, Bd. VII).

Husserl, Edmund 1913: Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenógica. Trad. José Gaos, 3. ed. México, Fondo de Cultura Econômica, 1986

_____ 1930: Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Trad. Maria Gorete Lopes e Souza. Porto, Rés.

Stein, Ernildo 2001: Compreensão e finitude - estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí (RS), Unijuí (Col. Ensaios - Política e Filosofia).

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: mjmuller@cfh.ufsc.br

Recebido em 10 de agosto de 2004
Aprovado em 6 de dezembro de 2004