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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade*

 

Elements of the winnicott′s theories of sexuality

 

 

Zeljko Loparic

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Universidade Estadual Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Após resumir as diferenças entre os paradigmas freudiano e winnicottiano da psicanálise (seção 1), o presente trabalho passa a apresentar as idéias centrais da teoria winnicottiana da sexualidade. As principais teses defendidas são as seguintes: 1) Winnicott redescreveu a sexualidade a partir de duas raízes: a raiz instintual (os instintos entendidos como impulsos biológicos) e a raiz identitária (as inter-relações humanas acontecendo à parte dos impulsos instintuais, como identificações de diferentes tipos), 2) ele reescreveu o essencial da teoria psicanalítica tradicional desse fenômeno, e 3) ao fazer tudo isso, ele acrescentou elementos essenciais ao seu novo paradigma da psicanálise (seção 2). Depois de apresentar de maneira esquemática da concepção winnicottiana da raiz instintual e da raiz identitária da sexualidade, bem como algumas das sua implicações (seção 10), (seções 6-9), especificarei os conflitos sexuais correspondentes bem como os distúrbios que deles resultam (mostrarei, em particular, que a raiz instintual pode dar origem a neuroses e a identitária, a dissociações com complicações psicóticas). Na ultima parte do artigo (seções 11-12), analisarei uma tese adicional de Winnicott, a de que ambas as raízes da sexualidade humana são fincadas no chão comum do processo de amadurecimento e que todos os conflitos do tipo sexual são relacionados ao conflito mais profundo entre o ser e o fazer, concebido como problema universal dos seres humanos inerente nesse processo.

Palavras-chave: Sexualidade; Amadurecimento; Instinto; Identificação; Ser; Fazer.


ABSTRACT

This paper has the aim to present the central ideas of Winnicott's theory of sexuality. The main thesis put forward being that Winnicott rewrote the psychoanalytic theory of this phaenomenon showing that it has two roots: instincts and interrelating a part from instinctual drives, the first giving origin to neuroses and the second to dissociations. After describing each one of these two roots, the article shows that they are related to a still deeper conflict, the one between being and doing, which is conceived by Winnicott as a universal problem emerging from the maturation process of human individuals.

Keywords: Sexuality; Maturation; Instinct; Identification; Being; Doing.


 

 

1. O paradigma freudiano e o paradigma winnicottiano da psicanálise

Mesmo que a psicanálise tradicional não possa ser considerada uma ciência factual madura, parece-me frutífero olhar para ela na perspectiva kuhniana, procurando por formas incipientes de um paradigma e por crises, seguidas de pesquisa revolucionária. Procedendo assim, é possível dizer que o exemplar principal da disciplina criada pela pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de édipo, a criança na cama da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que estão relacionadas à administração de pulsões sexuais em relações triangulares. A generalização-guia central é a teoria da sexualidade, centrada na idéia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré-genitais e genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré-genitais. O modelo ontológico do ser humano, explicitado na parte metapsicológica da teoria, comporta um aparelho psíquico individual, movido por pulsões libidinais, e outras forças psíquicas determinadas por leis causais. A metodologia é centrada na interpretação do material transferencial à luz do complexo de édipo ou de regressões aos pontos de fixação. Os valores epistemológicos básicos são os das ciências naturais, incluindo explicações causais, e o valor prático principal é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais, do tipo libidinal. Considerando a importância do exemplar do édipo na psicanálise de Freud, convém chamar o seu paradigma de edípico ou triangular. Se levarmos em conta a natureza sexual da situação edípica, a matriz disciplinar de Freud pode ser designada como sexual.1

A psicanálise passou por várias reformulações pelo próprio Freud e seus seguidores, efetuadas no mais das vezes sob pressão de fatos clínicos. Nas pesquisas de Winnicott, contudo, o paradigma freudiano como tal entra em crise, dando lugar à busca por um novo paradigma. O motivo principal da crise foi o acúmulo de problemas clínicos - entre eles as manifestações da tendência anti-social e da psicose infantil - que não podiam ser compreendidos teoricamente nem tratados clinicamente no quadro do paradigma edípico de Freud, mas que, segundo Winnicott, não deviam ser eliminados do campo de aplicação da psicanálise.2

Na percepção de Winnicott, a principal dificuldade da psicanálise tradicional decorria do fato de ela pensar a etiologia dos distúrbios psíquicos em termos relacionados aos conflitos "pulsionais" intrapsíquicos, deixando de ver que, pelo menos nesses casos, a patologia ou a anormalidade estava primariamente no ambiente e só secundariamente na criança. Em outras palavras, Winnicott entendeu que era necessário mudar a etiologia dos distúrbios em questão. Foi por considerações desse tipo, relacionadas essencialmente à capacidade de a psicanálise resolver problemas clínicos no seu quadro teórico - e não por análises abstratas, de cunho especulativo, exemplificadas pela obra de Lacan3 -, que surgiu a matriz disciplinar da psicanálise winnicottiana, substancialmente diferente da de Freud. Cabe destacar, contudo, que a mudança do paradigma freudiano foi elaborada por Winnicott de maneira a preservar "as pontes que levam da teoria mais antiga para a mais nova" (1989a, p. 256; tr. p. 198). Tratava-se de "retornar ao meio ambiente sem perder tudo o que fora ganho pelo estudo dos fatores internos" (pp. 576-7; tr. p. 439).

Que modificações seriam necessárias para assegurar o progresso da psicanálise nos campos assinalados? Em primeiro lugar, era preciso abandonar o paradigma edípico, baseado, conforme vimos, no papel estruturante do complexo de édipo e na teoria da sexualidade concebida como a teoria-guia da psicanálise. O novo exemplar proposto por Winnicott é o bebê no colo da mãe, que precisa crescer, isto é, constituir uma base para continuar existindo e integrar-se numa unidade. A generalização-guia mais importante é a teoria do amadurecimento pessoal, da qual a teoria da sexualidade é apenas uma parte. Se supusermos que a mudança winnicottiana do paradigma freudiano aconteceu, como diria Kuhn, de forma análoga a um Gestalt switch, ela não podia limitar-se a pontos isolados, devendo abranger todo o campo teórico da psicanálise. é fácil mostrar que, de fato, Winnicott também introduziu um novo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise, centrado no conceito de tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e coisas e para a parceria psicossomática. A sua metodologia preserva a tarefa de verbalização do material transferencial, admitindo, contudo, apenas interpretações baseadas na teoria do amadurecimento, sem recurso à metapsicologia freudiana, e incluindo também o manejo da regressão à dependência e do acting-out dos anti-sociais. O valor principal é a eliminação de defesas endurecidas, paralisadoras do amadurecimento, e a facilitação para que agora aconteça o que precisava ter acontecido, mas não aconteceu; bem como que se junte o que permaneceu ou se tornou dissociado, ou mesmo cindido. O sofrimento decorrente de conflitos, internos ou externos, deixa de ser o fundamental, fica em segundo plano, considerado parte da vida sadia.

Em virtude da importância do relacionamento mãe-bebê na psicanálise de Winnicott, passei a chamar o seu paradigma de dual. Visto que a generalização-guia é a teoria do amadurecimento, sugeri ainda que chamá-lo de maturacional.4 Este termo não deve ser tomado no sentido exclusivamente biológico, pois, além do lado anatômico-fisiológico, o desenvolvimento humano tem, ainda, o lado pessoal.

 

2. As duas raízes da sexualidade: os instintos e as identificações

Essa mudança do paradigma da psicanálise abriu a Winnicott o caminho para a sua própria pesquisa sobre a natureza, os primórdios, o desenvolvimento e os distúrbios da vida sexual humana.5 Os principais resultados podem ser resumidos da seguinte maneira. A sexualidade humana adulta é resultado de um processo de amadurecimento que parte de duas raízes em si mesmas não-sexuais: excitações corpóreas de todos os tipos e relações inter-humanas. As aquisições principais realizadas ao longo desse processo são duas: 1) o desenvolvimento da vida instintual, que consiste na elaboração imaginativa de todos os instintos - impulsos de natureza biológica -, integração desses instintos no si-mesmo e nas relações interpessoais, duais, triangulares ou múltiplas, terminando por estabelecer a sexualidade como o tipo instintual dominante na fase adulta e 2) o desenvolvimento de características sexuais não fundadas biologicamente, decorrentes de inter-relacionamentos de diferentes tipos. No presente trabalho, apresentarei os elementos centrais da teoria winnicottiana da sexualidade, dando destaque aos aspectos pelos quais essa teoria se distingue da versão original freudiana. Desta forma, exemplificarei por itens adicionais a mudança paradigmática que separa Winnicott do fundador da psicanálise.

 

3. O início do desenvolvimento da vida instintual

Na exposição da sua teoria da sexualidade de raiz instintual, Winnicott recorre freqüentemente à linguagem emprestada de Freud. Ao mesmo tempo em que acomoda esse modo de teorização, Winnicott também aponta as suas limitações, mostrando a necessidade de completar ou reformular as teses freudianas no interior de uma teoria do amadurecimento pessoal. A principal limitação deve-se ao fato de a concepção freudiana da sexualidade ter sido desenvolvida a partir da situação edípica na sua forma mais simples, o amor do menino pela mãe, constando, no essencial, de um estudo da administração da instintualidade no contexto de uma certa fase do desenvolvimento pessoal - a dos primeiros relacionamentos interpessoais triangulares (1988, pp. 49 e 54; tr. pp. 67 e 72). Ora - essa é uma das teses centrais da psicanálise winnicottiana -, as relações pessoais iniciais do bebê humano não são triangulares e sim duais. A rigor, elas não são nem mesmo duais, pois, nos primórdios da vida, o bebê não existe como ente separado do ambiente materno e não pode, portanto, estabelecer "relacionamentos" nem mesmo com a própria mãe. Nas primeiras fases da vida, ele é a mãe. Sendo assim, a sexualidade, tal como descrita por Freud, deve ser vista como um fenômeno humano relativamente tardio, pertencente a um período no qual os indivíduos já estão constituídos como pessoas inteiras e separadas do ambiente, que usam esse ambiente quando excitados e reconhecem a existência de terceiros envolvidos na mesma situação. A descrição desse fenômeno, que pode ser feita corretamente na linguagem objetificante, não se aplica às fases mais primitivas.

Winnicott está longe de negar a importância do fato de "Freud ter ido até o fim na busca das origens da sexualidade genital madura ou adulta, chegando até a sexualidade infantil e mostrando as raízes prégenitais da genitalidade infantil" (idem, p. 58; tr. p. 76). Contudo, o principal fruto dessa abordagem não foi a descoberta da sexualidade infantil, mas a "descrição dos primórdios de todo o desenvolvimento da vida instintiva" (idem). O maior mérito de Freud consistiu na elaboração de uma teoria das origens e do desenvolvimento da instintualidade humana. De acordo com essa avaliação, Winnicott passará a usar o termo freudiano "sexual" como sinônimo de "instintual" para designar "o conjunto de excitações locais e gerais que são um aspecto da vida animal, na experiência das quais há um período de preparação, um ato com um clímax e um pósclímax" (1965b, p. 130; tr. p. 119).

A teoria winnicottiana da vida instintual humana parte, portanto, da de Freud, mas difere dela em vários pontos essenciais. Para Winnicott, não é preciso fazer muita diferença entre os diversos tipos de demanda instintual e tampouco há muita diversidade entre seres humanos e animais. "Não é necessário, aqui, entrar em discussão quanto à classificação dos instintos, nem decidir se há um único instinto ou se eles são dois, ou se talvez existem às dúzias. Tudo isso é irrelevante" (1988, pp. 39-40; tr. p. 57). Não para Freud. Na sua teoria, a libido é separada da energia dos processos psíquicos em geral, por ter uma "origem especial" e um "caráter qualitativo".6 A urgência libidinal é essencialmente diferente, por exemplo, da urgência da fome: os objetos da primeira podem ser transformados pela fantasia ou mesmo sublimados; os da segunda, não. Contra Adler, Freud insistiu em excluir da psicanálise a pulsão da vontade de poder. Por isso mesmo, para ele, uma boa classificação das pulsões é um requisito teórico - isto é, metapsicológico - indispensável.

Igualmente importante é a determinação do número de instintos: existem somente duas pulsões fundamentais.7 Constantemente reafirmado ao longo da sua obra, o dualismo pulsional foi usado estrategicamente por Freud em várias oportunidades, por exemplo, em 1912, contra a alternativa de Jung de que existiria uma única pulsão básica.8 Já para o psicanalista inglês, o impulso amoroso primitivo, aquele que pode ser atribuído, de maneira apropriada, ao lactente nos estágios mais primitivos do seu amadurecimento, é indistinguível do impulso agressivo e destrutivo, também considerado primário. Tal como o fogo, o impulso amoroso originário é, em si mesmo, destrutivo, podendo ser chamado, devido a essa "unidade primária", de "impulso combinado amor-conflito". 9 Tem-se, aqui, uma forte indicação de que Winnicott chegou perto de uma forma de monismo instintual primitivo, filiando-se, nesse ponto, mais a Jung que a Freud.10

Finalmente, a tese de Winnicott de que os homens e os animais não são diferentes no que concerne aos instintos - aqui temos mais uma indicação de que Winnicott leva a sério a animalidade do homem - opõe-se frontalmente à de Freud de que a libido é uma pulsão tipicamente humana.11

Teria Winnicott recaído no biologismo do tipo darwiniano? Não. O que diferencia o homem do animal não é o tipo ou o número de instintos, mas o que acontece com estes na vida humana e na vida animal, respectivamente. No homem, muito mais do que no animal, as excitações instintuais e as funções corpóreas em geral são gradualmente integradas na pessoa total mediante a elaboração imaginativa. A elaboração imaginativa não é sinônimo de fantasia sexual. é uma atividade da psique humana que abraça as funções, as excitações e as sensações corpóreas em geral, assegurando a sua unificação e organização. Em determinadas fases do amadurecimento, certos tipos de excitações são dominantes, de modo que a "elaboração imaginativa de todas as excitações tende a ser feita em termos de um tipo instintual dominante" (1988, p. 40; tr. p. 58).

A elaboração imaginativa não somente unifica e organiza os instintos, mas também prepara a satisfação e permite o controle destes últimos. Muito daquilo que ocorre entre uma excitação e a outra refere-se, diz Winnicott, "ou à administração do instinto, com a preparação para [nova] satisfação dos instintos, ou à tarefa de mantê-lo vivo de modo indireto através do brincar ou da dramatização de uma fantasia" (ibid., pp. 53-4; tr. p. 72). Quanto ao controle, ele fica por conta de idéias que acompanham as excitações instintuais. Na fase edípica, por exemplo, o controle é exercido pelas idéias de morte do pai, de castração, de responsabilidade pela satisfação plena da mãe etc. (p. 59; tr. p. 77).

 

4. As fases do amadurecimento instintual

Na presente seção, exploro, de maneira muito parcial e resumida, a redescrição das principais fases do desenvolvimento instintual apresentada por Winnicott em Natureza humana. Uma outra abordagem do mesmo assunto, mais detalhada, embora menos técnica, encontra-se em Criança e o seu mundo e em numerosas observações espalhadas por toda a obra do autor.

4.1. As fases oral e anal

Vejamos, para começar, como Winnicott muda a concepção tradicional das fases oral e anal. No início da vida, o tipo instintual dominante é oral - visto que as excitações do processo digestivo, mesmo não totalmente integrado, predominam sobre todas as outras - e a elaboração imaginativa organiza todas as excitações do bebê em torno do "erotismo oral", colorido (acrescenta Winnicott) de idéias, isto é, de fantasias também de tipo oral.12 Por isso, cabe falar em uma fase (pré-genital) oral no processo de amadurecimento. Contudo, tal como qualquer outra fase do desenvolvimento humano, a fase oral não pode ser descrita exclusivamente em termos instintuais, cabendo considerar a instintualidade inicial do bebê no quadro do seu amadurecimento emocional global, processo que depende de um ambiente facilitador, o qual é indiscernível, nas fases iniciais, do si-mesmo primitivo.13

Winnicott não concorda com Karl Abraham em subdividir o estágio oral em erótico e sádico, em função da predominância da libido ou do sadismo constitucionais.14 Mesmo admitindo que não seria "muito inteligente jogar fora todo esse trabalho teórico sobre a vida instintiva infantil", Winnicott põe em dúvida a existência da fase oral sádica: "Não há certeza de que a fantasia da atividade oral é primeiramente erótica (isto é, sem sadismo ou pré-ambivalente) e só então sádica, destrutiva e, por assim dizer, ambivalente" (ibid., p. 42; tr. p. 60). O motivo dessa "incerteza" decorre da tese winnicottiana do monismo instintual primitivo, enunciada anteriormente, que afirma a unidade originária entre o impulso amoroso primitivo e o impulso agressivo e destrutivo, também primário. Por isso, ao invés de falar de pulsões impessoais, Winnicott prefere dizer "que é o bebê quem se transforma, começando como incompadecido [ruthless] e tornando-se concernido [concerned]" (1988, p. 42; tr. p. 60; os itálicos são meus). A sua justificativa para essa mudança de linguagem é a seguinte: "A ambivalência tem mais a ver com as mudanças no ego do bebê que com o desenvolvimento do id (ou do instinto)" (idem). Em resumo, para Winnicott, a ambivalência se define, primariamente, em termos de relações inter-humanas, estabelecidas de acordo com a tendência para a integração do bebê, e só secundariamente pelas relações instintuais como tais.

O mesmo não vale para o estágio anal. Aqui, um ponto importante a considerar é o fato de a excreção de alguma "coisa", assunto da experiência anal, ter uma pré-história: "Ela já esteve dentro, e era originariamente subproduto da experiência oral" (1988, p. 42; tr. p. ). Além disso, ela tem efeitos sobre o ambiente, isto é, a história dessa "coisa" continua. Por isso, conclui Winnicott, "as experiências anal e uretral implicam muito mais que apenas um estágio no crescimento do id, e tanto é assim que não é possível classificá-las e datá-las com precisão" (idem).15 Esse "muito mais" é o crescimento do bebê como indivíduo. Por inserir as experiências anal e uretral no processo de amadurecimento mais amplo - todas elas serão de novo particularmente importantes na fase do concernimento -, Winnicott as vê de maneira essencialmente diferente da psicanálise tradicional.16 A mudança paradigmática está nítida: sob pena de ser factualmente incorreta, a descrição das fases iniciais da instintualidade sexual precisa ser reformulada no quadro da "teoria do ego" - ou, em termos de Winnicott, no interior da teoria do amadurecimento pessoal.

4.2. Um exemplo concreto da mudança do paradigma da psicanálise: a redescrição winnicottiana da atividade de chupar o polegar

As conseqüências teóricas da inserção do desenvolvimento sexual no processo mais amplo do amadurecimento emocional, ocorrendo num ambiente facilitador ou não, podem ser ilustradas pela reformulação da teoria freudiana da atividade de chupar, apresentada por Winnicott em diferentes momentos da sua obra. Não escolhi esse exemplo ao acaso. Segundo Freud, a atividade dos bebês e das crianças de chupar o polegar ou algum dedo é "modelo" para compreender todas as manifestações da fase do desenvolvimento sexual, isto é, é caso paradigmático a ser usado no estudo de todos os "traços essenciais" da sexualidade infantil (Freud 1924, parte II.2.). Da sua parte, num artigo de 1945, intitulado "Desenvolvimento emocional primitivo", no qual expôs, pela primeira vez, a sua teoria das fases iniciais da vida humana, Winnicott usa precisamente o ato de chupar o dedo como caso paradigmático para ilustrar a aplicação da sua teoria do amadurecimento (1958a, p. 155; tr. p. 231).

No início da vida, diz Freud, a busca da satisfação sexual - implementação do que Freud posteriormente chamará de programa do princípio do prazer - é apoiada sobre a sucção do seio materno, cujo objetivo, contudo, é outro: o atendimento da necessidade de alimentação. Por essa razão, a função corpórea de sucção permanece como referência básica para todo relacionamento amoroso posterior. Com o tempo, a atividade especificamente sexual separa-se da alimentar (deixa de ser anaclítica) e passa a manifestar-se cabalmente na prática de colocar o próprio polegar ou o dedo na boca, ato do tipo auto-erótico que preserva a zona erógena, mas substitui o objeto de satisfação externo pelo próprio corpo, preparando assim o caminho para a atividade de masturbação, relacionada, por sua vez, com vários distúrbios posteriores, tais como a enurese e a polução noturna.17 Constatando que nem todos os bebês chupam o dedo, Freud assume que essa atividade só se inicia se "a significação erógena da zona bucal estiver reforçada constitucionalmente" (1924 [1905], parte II.2). Nesses casos, os adultos ficam inclinados a dar "beijos perversos", beber e fumar ou, no caso de haver repressão, a desenvolver patologias tais como distúrbios alimentares (nojo pela comida, vômitos histéricos) etc.

Winnicott não nega que a boca seja uma zona erógena, especialmente organizada já na infância, nem que os bebês humanos, desde que nascem, usem polegares, dedos e punhos, procurando aplacar, autoeroticamente, os instintos dessa zona e tendo prazer. Observando os danos que a criança causa no dedo, ou no seio, por chupá-lo com demasiado vigor ou freqüência, ele também faz notar, dando uma inflexão às idéias de M. Klein, que o objeto do amor primitivo sofre também por ser amado, não apenas por ser odiado. Contudo, segundo Winnicott, essas afirmações, apoiadas na teoria psicanalítica tradicional, não esgotam o assunto. Por uma razão fundamental: a vida de um ser humano não é a realização do programa do princípio do prazer, mas uma tentativa precária de responder à pergunta de saber se a vida vale a pena ser vivida (cf. Winnicott 1986b, p. 39; tr. p. 43).18

Vejamos como essa divergência com Freud se aplica ao presente caso. Chupar o dedo pode significar muita coisa e não apenas o prazer; pode, por exemplo, servir de consolo: "O punho ou o dedo estão ali, em vez do seio ou da mãe, ou de alguém", como reação normal à perda da mãe ou de alguém (1945, p. 156; tr. p. 167). Em personalidades esquizóides, a mesma atividade revela-se extremamente compulsiva, fenômeno que não pode ser explicado sem considerar a idéia de ele consistir, diz Winnicott, "na tentativa de localizar o objeto (o seio etc.), mantendo- o a meio caminho entre o interno e o fora. Esta é uma defesa contra a perda do objeto no mundo externo ou no interior do corpo, ou seja, contra a perda do controle do objeto" (idem). O ato normal de chupar o dedo pode ter a mesma função. Ao executá-lo, o bebê humano exerce o domínio sobre essa parte do seu corpo. Há casos claros nos quais o interesse por essa operação não consiste em descarga libidinal, mas, sobretudo, no fato de o polegar representar todos os outros objetos que passam a ser reunidos sob a mesma instância controladora. Sendo assim, conclui Winnicott, "o elemento auto-erótico nem sempre tem a importância preeminente, e com certeza o uso da chupeta ou do dedo rapidamente transforma- se numa clara defesa contra o sentimento de insegurança ou contra outras ansiedades primitivas" (idem).

Em textos posteriores, Winnicott descreverá vários novos aspectos do mesmo fenômeno. Menciono alguns. Como toda atividade de um indivíduo é, no essencial, um gesto de comunicação com outros seres humanos, antes e independentemente de ser um ato para aplacar o instinto sexual, chupar o dedo não pode ser reduzido à busca da diminuição da tensão instintual; mesmo quando serve para tal fim, essa atividade preserva o caráter de um modo de comunicação ou de contato com a mãe-ambiente, tendo o sentido de relacionamento inter-humano e não apenas de relacionamento com objetos de satisfação instintual,19 a não ser nos casos de profunda e já patológica desesperança de conseguir contato e comunicação pessoais, tema sobre o qual não me deterei. Acrescente-se a isso que, segundo Winnicott, colocar o dedo na boca é, desde o início, uma função corpórea submetida à elaboração imaginativa, pela qual fica integrada ao indivíduo, adquirindo, também por isso, um significado distinto de uma via de descarga.

Nos trabalhos sobre os fenômenos transicionais, Winnicott retoma a tese de que, já nos primeiros meses de vida, a experiência autoerótica dos bebês de chupar o dedo é "complicada" por uma série de atividades simultâneas, em virtude das quais essa experiência rapidamente adquire um significado (meaning) ou significância (significance) adicional. O polegar passa a simbolizar objetos externos, abrindo caminho para o surgimento de objetos transicionais, tais como os ursinhos, cujo valor não é dado, primariamente, por qualquer uso prazeroso que se possa fazer deles, proporcionando descargas pulsionais, mas por razões totalmente diferentes. Uma delas é a de eles terem vitalidade e realidade próprias, e de poderem, em virtude disso, fazer as vezes da presença da mãe, isto é, simbolizar a mãe,20 tornando-se inclusive mais importantes do que a mãe por estarem no poder total do bebê. Uma vez adquirida, essa capacidade simbólica permitirá ao bebê inventar os mais variados representantes da sua união com a mãe, localizados no espaço potencial entre ele e ela, capacidade que vai se ampliando paulatinamente para o brincar, a criatividade artística, o sonhar e assim por diante (cf. 1971a, p. 6; tr. p. 19). O brincar, em particular, é uma atividade que dispensa a excitação libidinal.21 Decerto, o brincar é em si mesmo excitante, mas essa característica não provém do despertar instintual, mas da precariedade "própria ao interjogo na mente da criança do que é subjetivo (próximo da alucinação) e do que é objetivamente percebido (realidade efetiva ou compartilhada)" (1971a, pp. 60-1; tr. p. 77). Winnicott vai até dizer que a excitação corporal das zonas erógenas é uma ameaça constante não só do brincar como do "sentimento que a criança tem de existir como uma pessoa". No contexto do brincar criativo, a atividade de chupar o dedo, longe de ter o sentido de substituir a atividade inicial de amamentação por uma outra, mais específica, com objetivo sexual, vem desempenhar o importante papel de preparar o surgimento de uma série de outras capacidades não-sexuais, entre as quais a de usar um objeto para brincar e para simbolizar a união de dois entes em vias de se tornarem separados.

Winnicott sabe muito bem que a sua clínica acabou sendo impregnada de sua teoria do amadurecimento. A teoria dos fenômenos transicionais revelou-se particularmente significativa. Num escrito tardio, ele confessa: quando estou empenhado no meu trabalho clínico, "sinto que a teoria que formei, para o meu próprio proveito, sobre os fenômenos transicionais, influencia o que vejo e escuto, e o que faço" (1971, p. 24; tr. p. 37). Aqui, como em todos os outros casos de uso da teoria winnicottiana do amadurecimento aos fatos clínicos, cabe observar a seguinte regra fundamental de aplicação: 1) especificar a fase do amadurecimento à qual pertence o material a ser trabalhado (o diagnóstico), 2) determinar os conceitos e as afirmações da teoria do amadurecimento que se aplicam a essa fase, e 3) explicitar o sentido peculiar dos conceitos e das afirmações da teoria do amadurecimento quando referidos à fase especificada. Seguindo essa regra fundamental, Winnicott observa que, embora possa parecer que os conceitos da teoria dos objetos transicionais façam sentido na infância muito primitiva, não há como desconsiderar o fato de que "há uma idade antes da qual o objeto transicional não pode existir, por causa da imaturidade do lactente" (1965, p. 110; tr. p. 102). O objeto transicional não pode existir no início da vida por que o bebê não pode dar (aqui, dar é o mesmo que criar) essa significância a nenhum detalhe do seu corpo ou do seu ambiente. Winnicott escreve: "O próprio chupar dedo na mais terna infância não pode ter a significância, para o lactente, ao nascer, que pode ter para a criança de poucos meses, e certamente, não tem toda a significância que o chupar o dedo compulsiva mente tem para uma criança psicótica de dez anos" (idem, pp. 110-1; tr. p. 102-3). Não é lícito, portanto, aplicar o conceito de objeto transicional às fases muito primitivas.22

Vejamos agora alguns exemplos de aplicação da teoria do amadurecimento, realizada por Winnicott ele próprio, à atividade de chupar o dedo concebida como fenômeno transicional. Já mencionei a visão winnicottiana da patologia do polegar em pacientes esquizóides. Numa vinheta clínica que ilustra as patologias relativas especificamente aos objetos transicionais, Winnicott relata o caso de um menino que nunca chupou os dedos e que, quando desmamado, "não teve nada para onde voltar" (1971a, pp. 7-9; tr. p. 20). Com 12 meses, ele adotou um coelho de brinquedo que usava como um confortador, mas não como um verdadeiro objeto transicional, algo que fosse "mais importante do que a mãe, uma parte quase inseparável" dele (idem). Compreende-se daí por que o impedimento de chupar o dedo é "um manejo grosseiramente equivocado" (1989a, p. 436; tr. p. 333). Seguindo a mesma linha de teorização, Winnicott sustenta que a atividade masturbatória é uma nova forma do auto-erotismo, criada como uma reação defensiva contra a insegurança ambiental, e não um prolongamento, na fase transicional, da ocupação libidinal com os dedos. A enurese é vista como reação à deprivação - isto é, à perda repentina de relações com objetos fortalecedores do ego ou facilitadores do processo de amadurecimento - e não mais como um retorno da excitação libidinal do tempo das primeiras mamadas, ou, no caso, das primeiras relações eróticas com o seio. Um tema de especial interesse é o fato de o objeto transicional poder transformar-se em fetiche quando a fase da transicionalidade é dominada pela insegurança em relação à mãe. Nesse caso, ao invés de simbolizar a união com a mãe, o objeto transicional é usado para negar a separação dela, razão pela qual perde o seu significado simbólico original, torna-se uma coisa em si mesma e pode dar início ao desenvolvimento da homossexualidade ou de perversões (ibid., p. 22; tr. p. 36). O uso do polegar como fetiche, nesse sentido nãofreudiano, mas como objeto de apego em reação à separação da mãe que não aconteceu gradativamente, de acordo com a capacidade crescente do bebê de lidar com a falha materna, é muito bem ilustrado pelo material do Caso B.23 Resumindo, depois de ter refeito a teoria freudiana da atividade de chupar o polegar, Winnicott desenhou um quadro de patologias relacionadas a ela muito diferente do de Freud.

4.3. Os instintos nas fases do uso do objeto e do concernimento

Winnicott considera as experiências instintuais ao tratar de todas as fases seguintes do desenvolvimento emocional, em particular, as fases do uso de objeto e do concernimento, ambas não consideradas pela teoria tradicional de Freud e Abraham. Como essas experiências serão essenciais para a compreensão da redescrição winnicottiana dos distúrbios característicos dessas fases, as depressões reativas, convém caracterizar, em poucas palavras, essa contribuição importante do psicanalista inglês à teoria psicanalítica da instintualidade.

Vimos que, segundo Winnicott, o impulso amoroso primitivo - aquele que pode ser atribuído, de maneira apropriada, ao lactente nos estágios muito primitivos do seu amadurecimento - é indistinguível do impulso agressivo e destrutivo, também considerado primário. Essa tese teve um longo período de amadurecimento na sua obra e só ficou explicitada em 1968, no artigo "O uso de um objeto e relacionamento através de identificações". Uma vez formulada, ela forneceu os meios conceituais para a descrição da passagem do mundo de objetos subjetivos, inclusive os transicionais, para o dos objetos objetivamente percebidos, os que têm existência separada e independente do indivíduo, têm propriedades por si mesmos, e, ao chegar à externalidade, a criança percebe que eles sempre estiveram ali, no tempo e espaço externos. Essa passagem - que vai do objeto subjetivo ao objeto objetivamente percebido - envolve uma destruição do objeto que não está relacionada com a inveja, mas - esta é a tese central de Winnicott - com o impulso efetivo de destruir, indistinguível do amor primitivo, o qual "cria a qualidade da externalidade" do mundo e dos objetos (1971a, p. 110; tr. p. 130). Uma vez criada uma realidade externa que possa ser usada, a criança pode chegar à idéia de uma membrana limitadora que, por sua vez, permite conceber a oposição entre o mundo externo e o interno, entre o não-eu e o eu, cujos conteúdos são, em parte, precisamente as experiências instintuais imaginativamente elaboradas (1988, p. 68; tr. p. 88).

Num próximo momento, após ter atingido a identidade unitária, a criança desenvolve o sentimento de responsabilidade pelas experiências instintuais, bem como o de independência do que está fora dela. Nesse estágio, dito do concernimento (stage of concern), as experiências instintuais predominantes são as relacionadas com a digestão (incorporação), que vai sendo integrada no si-mesmo da criança pela elaboração imaginativa.24 A digestão, enquanto função que consiste em amamentação e trânsito do material ingerido pelo interior do corpo da criança, permite a ela fazer uma série de experiências novas, consigo mesma e com o mundo. 25 A criança começa a distinguir entre a incorporação satisfatória (e, nesse sentido, boa) e a não-satisfatória (má, complicada pela raiva e frustração). Os objetos reais das incorporações boas são eles próprios experienciados como amados e bons, e os das incorporações más, como odiados e maus. Objetos bons e maus efetivamente incorporados são vividos como contribuições para o aumento geral, não específico, da bondade ou, respectivamente, da maldade interna do bebê. Ao mesmo tempo, ocorre a excreção ("excorporação"), que povoa o ambiente facilitador - a situação é sustentada no tempo pela mãe ou por quem fizer as vezes dela - de objetos bons e maus. Esse ciclo básico pode vir a ser, e via de regra é, acompanhado, em seguida, pelo ciclo de introjeções e de projeções no sentido de M. Klein, isto é, por processos mentais que pressupõem a idealização prévia e são a fonte do bom e do mau mágicos, não fazendo parte da experiência instintual (1988, p. 75; tr. br.; p. 95). 26 Por serem mentais, esses processos devem ser cuidadosamente distinguidos das funções corpóreas de incorporação e excreção que, devidamente compreendidas, permitem que se dê a devida importância ao caráter histórico do processo digestivo e às "localizações de tudo o que se passa entre o comer e a defecação e que tem a ver com o interior do corpo". 27

Quando tudo corre bem, cria-se um círculo benigno, constituído de mãe-ambiente (que sustenta a situação no tempo), criança envolvida pela mãe e mãe-objeto externo. é no interior dessa nova totalidade - que refaz, sob novas condições do amadurecimento, a unidade" inicial do bebê e da mãe - que podem acontecer trocas concretas entre o que é bom e mau, base para a constituição futura de um si-mesmo da criança capaz de sentir-se compadecido com a mãe e concernido pelos danos que causou a ela pelo seu uso excitado. Essa é, segundo Winnicott, a principal origem da responsabilidade para com os outros, da capacidade de se sentir culpado, de recompensar, de modo construtivo, o ambiente pelo o mal causado e, mas significativamente ainda, de presentear o ambiente com coisas boas. No mesmo lugar, contudo, cria-se a capacidade de odiar e de agredir com as coisas más.

4.4. A inveja do pênis

A tese da incompletude da teoria freudiana da sexualidade pode ser exemplificada adicionalmente pela análise winnicottiana da inveja do pênis. Essa inveja ocorre e revela a presença do elemento masculino nas meninas. é fato clínico incontestável que a fantasia de "macho castrado" constitui um momento do desenvolvimento da criança do sexo biológico feminino. A síntese da história dessa inveja, elaborada na fantasia das meninas sadias, é a seguinte:

Eu tenho um pênis. é claro que vai me crescer um pênis. Eu tive um pênis, estou traumatizada (castigo pela excitação). Posso usar um pênis por procuração, algum macho pode agir por mim. Vou deixar o macho me usar. Desta forma, terei um defeito corrigido, mas terei de reconhecer que dependo do macho para estar completa. Desta forma descubro meu genital verdadeiro. (1988, pp. 44-5; tr. pp. 62-3)

Esse texto é acompanhado de uma nota de rodapé que diz: "Na fase fálica, o menino está completo, e na genital, ele depende da fêmea para se completar". Adendo importante: na fase fálica, as meninas experienciam, sim, a inveja do pênis. Contudo, à medida que se dão conta da incompletude dos meninos, elas terminam por constatar a complementaridade dos órgãos sexuais masculino e feminino, assim como o fato de que meninos e meninas precisam uns dos outros para exercerem plenamente os respectivos papéis sexuais; com isso termina, quando tudo corre bem, a inveja do pênis enquanto preocupação dominante.

A inveja do pênis caracteriza, portanto, somente uma fase, de resto bastante curta, do desenvolvimento sexual feminino, em que a menina precisa integrar o seu elemento masculino. Esse período logo é ultrapassado pela inserção desse elemento no todo das aquisições anteriores (inclusive as mais primitivas), entre outras a de ter um interior e de poder guardar segredo - prefigurações da capacidade genital plena de engravidar, dar à luz e amamentar. Um dos efeitos desse amadurecimento das meninas, observados nos meninos e nos homens, é a inveja e mesmo medo da mulher (isto é, medo da dependência e da dominação),28 que são sentimentos não menos fortes que a inveja do pênis das meninas, na "fase fálica".

Na psicanálise tradicional, a oposição entre o masculino e o feminino é essencialmente vinculada ao problema da castração, sendo o termo "mulher" praticamente sinônimo de "macho castrado". Na redescrição winnicottiana, essa oposição é desvinculada da castração e associada à problemática da constituição da identidade pessoal, relacionada à elaboração imaginativa das funções corpóreas e às identificações de vários tipos. Entendido assim, o par de conceitos masculino-feminino ocupa um lugar central na teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal, abrindo uma nova perspectiva tanto para o estudo de fenômenos que caracterizam a masculinidade e a feminilidade como para a compreensão dos vários tipos de homossexualidade.29

4.5. A fase genital: o complexo de édipo e o inconsciente reprimido

De um modo geral, ao falar de édipo, Winnicott não faz mais do que parafrasear Freud ou acrescentar ênfases pessoais. O termo "complexo de édipo" é usado, diz Winnicott, na "descrição do primeiro relacionamento interpessoal em que os instintos estão em vigor", situação triangular em que "a criança é impulsionada pelos instintos de natureza genital recém-surgidos" (1988, p. 49; tr. p. 67). Apoiado em Freud, Winnicott negará, contra os kleinianos, a aplicabilidade do conceito de complexo de édipo a fases iniciais, nas quais "só há duas pessoas envolvidas e a terceira pessoa ou objeto parcial é internalizada, um fenômeno da realidade interna" (idem). Ele escreve: "Não posso ver nenhum valor na utilização do termo "complexo de édipo" quando um ou mais de um dos três que formam o triângulo é um objeto parcial. No complexo de édipo, ao menos do meu ponto de vista, cada um dos componentes do triângulo é uma pessoa total, não apenas para o observador, mas especialmente para a própria criança" (idem).

Em vários pontos importantes, entretanto, Winnicott apresenta inovações substanciais em relação a Freud. Por exemplo, a angústia de castração não precisa ser pensada como decorrente da rivalidade com o pai mais poderoso. Se atentarmos para o fato de que, na fase genital, a performance (a capacidade de fazer) da criança do sexo biológico masculino é ainda deficiente, tendo a criança que "esperar (até a puberdade, como sabemos) pela capacidade de realizar seu sonho", pode-se chegar à conclusão de que "o medo da castração pelo progenitor rival torna-se uma alternativa bem-vinda para a angústia de impotência" (ibid., p. 44; tr. p. 62). Essa curta frase abre espaço para todo um capítulo da teoria winnicottiana da sexualidade, a ser ainda escrito: aquele que trataria da relação entre as angústias sexuais e a experiência natural, inevitável - ou então, extemporânea, evitável -, da imaturidade somática. Aqui temos mais um exemplo que confirma a tese de que, em Winnicott, a teoria da sexualidade deve ser lida em conjunto com a sua teoria da parceria psicossomática.30

Na sua caracterização geral das neuroses, Winnicott segue a psicanálise tradicional: trata-se de distúrbios decorrentes de conflitos que surgem das relações interpessoais triangulares no estágio do complexo de édipo. Se as organizações defensivas contra a angústia gerada por esses conflitos são mais evidentes que os próprios instintos, mais significativas que o controle consciente dos instintos, então, diz Winnicott, "o quadro clínico é mais de psiconeurose que de saúde" (1988, p. 62; tr. p. 80). O traço essencial das defesas que caracterizam o quadro neurótico é serem inconscientes, constituindo o núcleo central do "inconsciente reprimido", e, em boa parte, regressivas; a regressão podendo atingir, mas não ultrapassar, o limiar do EU SOU.31

 

5. Resumo da redescrição winnicottiana da sexualidade de raiz instintual

A teoria winnicottiana da sexualidade de raiz instintual tem as seguintes características gerais:

1) não é baseada nas pulsões (forças psíquicas de caráter especulativo ou mitológico) nem nos instintos como tais;

2) os instintos são resultado de elaboração imaginativa no interior do processo do amadurecimento pessoal, pressupondo o alojamento da psique no corpo, a constituição do si-mesmo e a aquisição da capacidade de ter relações interpessoais ou inter-humanas duais e triangulares, além de plurais, posteriores, baseadas nos instintos, isto é, no uso excitado de objetos externos;

3) além de levar em conta a elaboração imaginativa dos instintos, tem em vista também a performance - o fazer, a execução de ações que resultam na satisfação instintual e asseguram a manutenção no contexto das relações interpessoais - e não apenas as fantasias sexuais;

4) é essencialmente incompleta, tal como a teoria freudiana original, sobretudo no que diz respeito à sexualidade feminina, a qual envolve instintos pré-genitais elaborados imaginativamente em fases muito primitivas e que não podem ser descritos na linguagem dos instintos, além de componentes não-instintuais, simplesmente não considerados pela teoria tradicional;32

5) abre novas perspectivas sobre a etiologia e a natureza de distúrbios neuróticos, gerados pela repressão da instintualidade genital na fase edípica;

6) não permite a compreensão ou o tratamento de distúrbios não-edípicos das outras fases ou relacionados a outro tipo de etiologia (psicoses, depressão esquizóide, tendência anti-social, distúrbios psicossomáticos etc.).

A teoria winnicottiana da sexualidade instintual pode corretamente ser caracterizada como uma das partes centrais de uma teoria geral do amadurecimento psicossomático do ser humano. Proposta como uma doutrina factual, ela é formulada sem recurso à metapsicologia do tipo freudiano, em particular, sem as idéias do aparelho psíquico e as pulsões psíquicas, e sem outras tantas fórmulas especulativas da psicanálise tradicional, emprestadas da filosofia naturalizada da subjetividade. Embora trate da sexualidade com base biológica, a teoria de Winnicott não é biologizante, pois a biologia é levada em conta tão-somente na medida em que as excitações ditas instintuais e as partes do corpo são organizadas pela imaginação, que é uma atividade da psique humana.33

 

6. A bissexualidade e os elementos masculino e feminino

Como Freud e os psicanalistas ortodoxos, Winnicott admite a bissexualidade dos seres humanos. Neste sentido, ele fala do "lado feminino" e do "lado masculino" da natureza humana, bem como de "elementos" masculino e feminino em cada ser humano.34 Há o "feminino" em meninos e meninas e o "masculino" em ambos os sexos, considerados do ponto de vista do gênero.35 Daí surge a necessidade de uma teoria da presença e do desenvolvimento desses elementos na vida dos indivíduos. Essa é uma problemática em parte nova, visto que a teoria freudiana do desenvolvimento do id ou das pulsões (Winnicott diz "instintos") é "mais adequada para a descrição do elemento masculino que do feminino" (idem, p. 47; tr. p. 63).

Há pelo menos duas razões da insuficiência da teoria tradicional para caracterizar adequadamente o feminino. Em primeiro lugar, uma boa descrição da sexualidade feminina necessita, diz Winnicott, "de um conhecimento prévio da fantasia que a menina desenvolve a respeito do interior de si mesma e da mãe" (ibid.). Ou seja, a teorização sobre o feminino precisa levar em conta, de um modo mais enfático do que a sobre os meninos, a distinção entre o interior e o exterior do corpo, entre o mundo interno e o externo, as múltiplas relações entre os dois mundos e os conflitos no mundo interno que resultam dessas relações, por exemplo, os que estão na origem da depressão. Esses aspectos do amadurecimento se consolidam na fase do concernimento e não podem ser enunciados, de maneira satisfatória, na linguagem objetificante da teoria tradicional das pulsões.36 De um modo geral, "a fantasia e o funcionamento femininos repousam muito mais pesadamente sobre raízes pré-genitais" que os masculinos (ibid.).

Ao comentar um sonho aparentemente edípico de uma jovem que sofria de depressão reativa (um pesadelo em que a mãe é atropelada por um carro dirigido por um motorista que portava um boné parecido com o do pai), Winnicott escreve: "Aqui se poderia falar de ódio reprimido e de desejo de morte na posição heterossexual, conduzindo a uma inibição dos impulsos instituais" (1986b, p. 75; tr. p. 58). No entanto, neste modo de falar, fica omitido o que é característico no caso dessa moça, o humor depressivo, a sensação de falta de vida. Também deixa de ser descrita a razão principal do seu pesadelo. Este não se deve apenas à rivalidade sexual com a mãe, mas à idéia da moça de que, se ela permanecesse viva, sua mãe sairia ferida. Uma parte importante da motivação inconsciente do sonho era o sentimento de culpa operando preventivamente, culpa relacionada primariamente aos danos causados à mãe decorrentes do uso excitado e não à situação edípica.

A fim de dar conta de todos os aspectos da sexualidade feminina, é necessário considerar as fases ainda mais primitivas que a do concernimento, fases nas quais acontecem as identificações iniciais da menina com a mãe-fêmea (female) e com a mãe-mulher (woman). Pela primeira identificação, constitui-se a base dos traços feminino-genitais e pela segunda, dos traços maternais da menina. Por um lado, a menina adquire a capacidade de guardar segredo que, no futuro, se tornará a de engravidar e de amamentar. Por outro, ela passa a ter condições de transmitir a continuidade do ser (continuidade geracional). Nenhum desses processos de identificação pode ser conceitualizado em termos do desenvolvimento do id.

Resumindo, a genitalidade feminina madura, por ser co-determinada pela integração gradual de diferentes momentos maturacionais, tanto pessoais como somáticos, alguns deles muito precoces, distingue-se essencialmente da masculina, centrada no momento fálico, o que faz com que a descrição da feminilidade no paradigma freudiano, guiado pelo paradigma instintual de sexualidade, permaneça, conforme dito anteriormente, necessariamente incompleta. Examinarei a seguir de que maneira Winnicott vai remediar essa incompletude.

 

7. O caso FM

A pesquisa de Winnicott sobre a sexualidade feminina e a sexualidade em geral recebeu, já na fase tardia, um novo impulso de um caso clínico, que chamarei de caso FM, em que se manifesta a dissociação de "características sexuais que são diferentes daquelas que o [...] sexo biológico justifica" (1989a, p. 190; tr. p. 149). No que segue, apresentarei uma versão resumida do caso e os principais passos da teorização winnicottiana sobre este assunto. Tentarei oferecer evidências para a tese de que, partindo desse caso clínico, Winnicott formulou a teoria de uma segunda raiz da sexualidade, suplementar à instintualidade, baseado no estudo das propriedades de dois diferentes modos de relacionamento com outras pessoas - a identificação e a objetificação.

Os resultados desse estudo encontram-se no artigo "Os elementos masculino e feminino puros dissociados", de 1966, inicialmente publicado como parte do capítulo 5 de O brincar e a realidade (1971a) e reeditado no capítulo 28 de Explorações psicanalíticas (1989a), junto com material adicional relativo ao mesmo caso e comentários teóricos elaborados por Winnicott em 1968-9, no contexto de um debate público sobre o assunto. Os capítulos 10 e 15 deste último livro tratam do mesmo material clínico. O capítulo 10 de O brincar e a realidade, intitulado "Interrelacionar- se independentemente do impulso instintual e em função de identificações cruzadas", faz parte do mesmo grupo de textos. A minha interpretação está longe de ser óbvia, exigindo, a fim de ser devidamente avaliada, uma releitura cuidadosa desse conjunto de textos.

Lembro um momento essencial do caso FM. O paciente era um homem casado, com filhos, bem sucedido em uma das suas profissões e que, no entanto, tinha a queixa de se sentir mulher. Na sessão de uma sexta-feira, que se revelou decisiva, ele falava de algo que podia ser entendido como inveja do pênis. Winnicott lhe disse: "Estou escutando uma menina. Sei perfeitamente que você é homem, mas estou escutando uma menina e falando com uma menina. Estou dizendo a uma menina: ´Você está falando da inveja do pênis´". Essa observação - que, enfatiza Winnicott, não continha qualquer insinuação de homossexualidade - teve um efeito imediato no paciente, sob forma de aceitação, ainda meramente intelectual, da idéia da menina, acompanhada de alívio. Após uma pausa, o paciente disse: "Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa menina, seria chamado de louco". Sentindo ter tocado num ponto essencial, Winnicott permitiu-se fazer um comentário que foi uma surpresa para ele próprio: "Não foi você que tenha contado isso a alguém. Sou eu que vejo uma menina e escuto-a falar quando, na realidade, há um homem no meu divã. Quem é louco aqui sou eu". O paciente disse então que, agora, ele se sentia são em um ambiente louco. Em seguida, acrescentou, tranqüilo: "Eu mesmo nunca poderia dizer (sabendo que sou homem) "Sou uma menina". Não sou louco assim. Mas você o disse, e você falou para as ambas partes de mim" (idem, p. 171; tr. p. 135).

O material das fases anteriores da análise deram a Winnicott algumas pistas adicionais sobre as duas partes do seu paciente que acabara de descobrir. Havia boas evidências de pensar que a mãe do paciente "via um bebê menina ao olhar para ele quando bebê, antes de vir a pensar nele como menino". Em outras palavras, observa Winnicott, "este homem teve que ajustar-se à idéia dela que seu bebê seria e era uma menina". Mais ainda, havia indicações claras "de que no manejo inicial, a mãe o segurava e dele tratava de todas as maneiras físicas como se não conseguisse vê-lo como menino" (ibid.).

Na sessão de segunda-feira seguinte, o paciente apresentou vários sintômas psicossomáticos que Winnicott interpretou como manifestações da menina no paciente. Essa menina não estava interessada no homem que era o paciente, mas no "reconhecimento pleno de si mesma e de seus direitos sobre o seu corpo", diretos que se manifestavam na forma da sua inveja do pênis (p. 172; tr. p. 136). Aproveitando-se de uma gripe do paciente, esse si-mesmo feminino nele esboçou "gestos de protesto", para sentir-se doente, isto é, diz Winnicott, pré-genitalmente grávida.37 Esse momento psicossomático foi motivado, segundo a interpretação de Winnicott comunicada ao paciente, pelo fato de que a parte feminina da sua personalidade "sempre teve a esperança de que a análise acabaria descobrindo que esse homem, você mesmo, é e sempre foi uma menina" (ibid.).

 

8. Análise teórica do caso FM

O que se observa, neste caso, são as características sexuais femininas, presentes numa personalidade masculina e dissociadas desta personalidade. Nas palavras de Winnicott, "a fim de poder contribuir para a situação familiar, um menino ou menina pode precisar explorar características sexuais outras-que-biológicas" (1989a, p. 190; tr. p. 149).38 No paciente do caso FM parecia existir algo como um "elemento feminino" que, no entanto, "não tinha nada a ver com o impulso (ou o instinto)".39 Tudo se passava, diz Winnicott, como se uma nova teoria dos estágios iniciais do desenvolvimento emocional do indivíduo "fosse necessária para separar não os meninos das meninas, mas o elemento incontaminado menino do elemento incontaminado menina" (p. 180; tr. p. 142). Os fatos pareciam sugerir a hipótese de que existia uma oposição entre o masculino e o feminino que não era definível pelas diferenças sexuais baseadas na elaboração imaginativa dos instintos (ou do gênero). Esta hipótese permitia, por sua vez, que se diga que uma pessoa tem múltiplas identidades sexuais, umas instintuais, amparadas nas funções corpóreas ou no gênero (sexo biológico) e outras, relacionais, concebidas exclusivamente no contexto de relacionamentos interpessoais estabelecidas tanto pelo si-mesmo verdadeiro como pelo si-mesmo falso.

à luz desta descoberta clínica, Winnicott concluiu que nem a teoria freudiana das pulsões nem a sua própria teoria dos instintos davam conta de todos problemas clínicos relacionados à sexualidade humana. Havia distúrbios que não podiam ser abordados em termos da oposição entre o "ativo" e o "passivo", "agir" e "deixar que seja feito". Tratava-se de algo que precisava ser descrito "em termos de um outro tipo de consideração que vai mais fundo e que é primitiva" (idem, p. 190; tr. p. 149). Era necessário criar conceitos teóricos novos e admitir a existência de mecanismos novos: "O que se precisa, porém, é uma enumeração de outros mecanismos empregados quando um paciente manifesta características sexuais que são diferentes daquelas que o seu sexo biológico justifica" (p. 190; tr. p. 149). Entre esses mecanismos sofisticados, "deve-se contar uma identificação [sexual] cruzada que pode ser, quase exclusivamente, uma organização de defesa", determinada "pelas expectativas provenientes do ambiente" (ibid.). 40

A fim de explorar essa linha de argumentação, Winnicott aprofundou-se na etiologia da dissociação do tipo exemplificado pelo caso FM. Parecia claro que o paciente, desde bebê, esteve exposto às expectativas sexuais que atravessavam a linha divisória entre os sexos biológicos; mais ainda, que ele havia sido submetido pela mãe a um manejo efetivo correspondente a essas expectativas e que estava, desde então, tentando atendê-las. Aqui, a pergunta decisiva era: por que ele fazia isso? Winnicott responde:

No [caso do] meu paciente, havia a extrema necessidade inconsciente da mãe de ter uma menina que determinou o seu manejo [handling] do bebê em estágios muito iniciais. O resultado [disso] em meu paciente foi que, embora ele tivesse a certeza de sua identidade masculina, ele levava consigo, até este ponto da análise que estou descrevendo, a convicção de que, a fim de ter um relacionamento com a mãe, ele tinha que ser uma menina. (1989a, p. 190; tr. p. 149; os itálicos são meus)

Confrontado com o olhar da mãe e, mais significativamente ainda, com o manejo da mãe, com o que a mãe lhe fazia - com o seio que faz, não com o seio que é -, o paciente, não podendo crescer de acordo com a sua "provisão biológica", passou a "explorar toda partícula nele do ser feminino e de querer ser assim" (p. 183; tr. p. 144). Objetivamente, fisicamente, ele não tinha mesmo outra escolha: quem manejava as suas fraldas era a sua genitora. Nesta fase de imaturidade extrema, qualquer solução mágica meramente mental (fantasiosa) estava fora de questão (p. 183; tr. p. 144). Por essa via, ele criou um si-mesmo feminino (female self) não real, isto é, falso - falso por que, como vimos na descrição do caso, era reativo e invejoso. Quando a mãe tem o seio que é, "ela não produz uma criança cujo si-mesmo "feminino puro" é invejoso do seio, uma vez que, para esse criança, o seio é o si-mesmo e o si-mesmo é o seio (p. 179; tr. p.141). "Inveja é um termo", prossegue Winnicott, "que poderia ser aplicado na experiência de um fracasso tantalizador do seio como algo que é".

O caso indicava que o paciente, enquanto bebê, fora posto pela mãe diante do seguinte dilema enlouquecedor: ou você se torna menina (identifica-se comigo como fêmea, pessoa de sexo biológico oposto ao seu) e, como prêmio, poderá me ter (poderá continuar identificando-se comigo como mulher, pessoa de quem você depende e que cuida de você, algo de que você precisa para ter uma identidade pessoal, ser si-mesmo, sentir-se real e poder existir); ou, então, você permanece menino (guarda a sua identidade masculina inicial, constituída pela sua elaboração imaginativa das suas funções e excitações corpóreas, e se torna alguém diferente da fêmea que eu sou), mas, então, você irá perder os meus cuidados maternos (e correrá, por conseguinte, também o sério risco de perder a sua identidade pessoal). Para pode ser (pela identificação primária) a mãe-que-cuida e, portanto, ter esses cuidados, o paciente bebê tinha que funcionar corporalmente como se fosse a mãe-fêmea, de maneira contrária ao modo de funcionar do seu corpo determinado geneticamente e elaborado pela sua imaginação ainda incipiente.41

Desta forma, ele acabou criando duas identidades sexuais: uma, feminina, que correspondia à intrusão materna e a outra, masculina, também de natureza reativa, por que essencialmente defensiva. Ambas eram falsas (formações do seu si-mesmo falso), não fundadas na sua provisão biológica e irreais. Nenhuma asseguravam uma base para agir. A fêmea nele não conseguiu levá-lo pelo caminho de homossexualidade assumida, e no centro do seu lado masculino - Winnicott descreveu essa fato com muita clareza - não tinha nada, condição que o obrigava de usar a análise como "parte da sua busca de um si-mesmo que se sentisse real" (1989, p. 51; tr. p. 42). Ele teve de pôr de lado até mesmo a sua potência, por ser reativa.

O preço a pagar foi uma forma de loucura: a dissociação entre essa identificação com a mãe-fêmea - esse elemento feminino dentro dele, não-instintual, meramente relacional - e a sua identidade masculina, gerando permanente conflito que se manifestava, por uma lado, busca não conclusiva de companhias homossexuais e pelos protestos e pelas reivindicações da menina que estava nele e por sua identidade cindida.42

 

9. Do contraste entre o masculino e o feminino puros à oposição entre ser e fazer

A idéia de uma sexualidade sem instinto - sem respaldo no instinto, essencialmente relacional - trazia grandes dificuldades teóricas. Para Winnicott, estava fora de questão tentar acomodar tal idéia na teoria clássica de feminilidade e masculinidade, desenvolvida no contexto metapsicológico das pulsões. Nem mesmo a sua própria teoria da sexualidade, referente às funções e excitações corpóreas elaboradas imaginativamente, podia acolher uma hipótese desta natureza. Winnicott via-se na contingência de falar em elementos masculino e feminino não somente diferentes um do outro, mas desligados da instintualidade, idéia que não fazia sentido nem em Freud nem na teoria da sexualidade exposta em Natureza humana. "Vi", ele escreve, "que eu estava tratando do que poderia ser chamado de elemento feminino puro" (1989a, p. 173; tr. p. 137).

Generalizando essa descoberta, Winnicott formulou uma teoria muito sucinta dos elementos masculino e feminino puros. Segundo essa teoria,

é necessário aceitar a existência de um elemento masculino e um elemento feminino, tanto em meninos e homens, como em meninas e mulheres. Esses elementos podem ser cindidos um do outro em mais alto grau. Essa idéia exige de nós tanto um estudo dos efeitos clínicos deste tipo de dissociação, quanto um exame dos elementos masculino e feminino em si mesmos, destilados. (1989a, p. 176; tr. p. 137)

No contexto dessa teoria, um elemento masculino ou feminino é dito "puro" ou "destilado" se não for "amalgamado" (alloyed) - Winnicott trabalha aqui com uma metáfora emprestada à alquimia43 - às pessoas concretas do sexo ou do gênero masculino ou feminino, em particular, às suas funções corpóreas ou aos instintos. Uma característica básica de cada um dos dois elementos puros é a de ele poder tornar-se e permanecer cindido (split off) do outro, não em decorrência da repressão, mas da intrusão ambiental.

Winnicott decidiu ir mais longe ainda e "chegar atrás de todas as sofisticações de sexo cruzado, identificações cruzadas e até mesmo expectativas cruzadas (onde o bebê ou criança só pode contribuir para um dos pais em termos do sexo que não é biológico)" (p. 191; tr. p. 150). Nesta tentativa, ele propôs uma reformulação da sua própria teoria dos elementos puros em termos de uma "especulação" sobre o contraste entre os elementos masculino e feminino não amalgamados e considerados "no contexto do relacionamento objetal" (p. 176; tr. p. 139). Essas análises dos modos de relacionamento objetal não devem ser classificadas entre as do tipo metapsicológico, pois, diferentemente destas últimas, Winnicott emprega termos diretamente referidos ao domínio da experiência clínica.44

A fim de avançar nessa direção, Winnicott se serviu de conceito de relacionamento objetal. O elemento feminino puro "relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito" (idem). Um vez estabelecido, esse tipo de relacionamento objetal, característico do estágio inicial do processo de amadurecimento e chamado por Winnicott "identificação primária", permite ao bebê de criar um "mundo subjetivo", um "mundo sonhos", livre das intrusões do mundo da realidade externa, no qual lhe é facultado vive a "experiência de onipotência" e exercer um controle mágico sobre tudo o que há, isto é, sobre os objetos subjetivos (1989, p. 287; tr. p. 220).45 A identificação primária distingue-se por uma diferença fundamental da união de duas pessoas separadas: "Duas pessoas separadas podem sentir-se em união, mas aqui, no lugar que estou examinando, o bebê e o objeto são um só" (1989a, p. 177; tr. p. 140). A experiência de identificação primária, na qual "não há nenhum impulso instintual [instinct drive]", prepara o caminho para o surgimento do "sujeito objetivo", isto é, para a idéia do si-mesmo dotado de uma "forma" incipiente, e para o sentimento do real. Não surge qualquer sentido do si-mesmo, esclarece Winnicott, "a não ser com base neste relacionamento [tomado] no sentido de SER [relating in the sense of BEING]". Este sentido transitivo do ser é algo "que antecede a idéia de ser-unido-a, porque ainda não há nada mais a não ser a identidade" (ibid.). Aqui se tem o início e, neste sentido acontecencial, o pressuposto, de todas as experiências subseqüentes de identificação. Em particular, "as identificações projetiva e introjetiva originam-se, ambas, neste lugar em que cada um é o mesmo que o outro". Sendo assim, o "relacionamento objetal" do elemento feminino puro estabelece "o que é talvez a mais simples de todas as experiências, a experiência de ser". Aqui encontramos, inclusive, o fundamento da "verdadeira continuidade de gerações, ser que é passado de uma geração para a outra" (ibid.). Num texto escrito no último da sua vida, Winnicott afirma

Por outro lado, o elemento masculino puro "circula" entre os objetos "em termos de um relacionamento ativo ou de um passivo deixarse pôr em relação, cada um deles sendo respaldado em instinto" (ibid.). Mesmo não sendo, em si mesmo, de natureza instintual, este elemento relacionase, portanto, com objetos de modo semelhante ao comportamento instintual. Assim que a organização do ego fica disponível, "o bebê concede ao objeto a qualidade de ser não-eu e separado, e experiencia satisfações do id", isto é, satisfações instintuais. Este tipo de relacionamento "pressupõe a separação" entre quem faz e a quem algo é feito, e "leva à objetificação" (idem, p. 178; tr. p. 140), desenvolvimento que poderia ser descrito com as seguinte palavras-chave: o ser humano fazedor, contando com os seus instintos já integrados até certo ponto, necessariamente busca agir, ou seja, tem que fazer algo com o outro que ali está, e, para tanto, separa-se do outro e objetifica a ele e a todas as coisas, distanciando-se da sua identidade originária com o ambiente, os outros e as coisas.

A partir daí, a identificação passa a se valer de "complexos mecanismos mentais, aos quais se deve dar tempo para que apareçam, desenvolvam- se e estabeleçam-se como parte de um novo aparelhamento do bebê" (idem). Entre estes mecanismos estão a percepção externa, as identificações projetiva e introjetiva, e a capacidade de simbolização tanto verbal como imaginal. A linguagem adquirida durante o processo de objetificação é necessariamente também uma linguagem objetificante, linguagem que se torna errônea quando usada na descrição do elemento feminino puro e do relacionamento objetal desse elemento. Esta última tarefa exige uma linguagem não-objetificante, outras palavras-chave, o sentido das quais é determinado de maneira diferente do das palavras-chave da linguagem objetificante.

 

10. Crítica à psicanálise tradicional

De posse da teoria "elementar" da sexualidade, formulada na linguagem dos elementos masculino e feminino puros, Winnicott lança um olhar retrospectivo sobre a psicanálise tradicional: "Os psicanalistas talvez tenham concedido uma atenção especial a este elemento masculino ou aspecto impulsivo [drive aspect] do relacionamento objetal [...]". "Talvez", pois não está certo de que eles desconehciam por completo a existência de algo como elemento masculino puro.46 Em todo caso, prossegue Winnicott, "eles negligenciaram a identidade sujeito-objeto para a qual eu estou chamando aqui a atenção e que se encontra na base da capacidade de ser" e, por isso, não viram uma verdade fundamental que é a seguinte: "O elemento masculino faz, enquanto que o elemento feminino (em homens e mulheres) é" (idem, p. 178; tr. p. 140).

Tudo o que vem sendo dito na psicanálise tradicional sobre achar objetos, usar objetos, erotismo oral, sadismo oral, estágios anais etc. pode ser visto como surgindo "da consideração do elemento masculino puro" (p. 180; tr. p. 142). Essa psicanálise não trata, portanto, do que o bebê é, mas do que ele faz, mediante os diferentes modos do fazer que vai dos primitivos aos mais sofisticados. Da mesma forma, os estudos das identificações projetiva e introjetiva tomam como objeto "a experiência de elementos masculino e feminino já misturados", não puros. Essas "experiências de identificação" são secundárias, baseadas em mecanismos mentais de projeção e introjeção gerados durante as fases não-iniciais do processo de amadurecimento, e pressupõem, tal como todas as outras formas de identificação, a identificação primária, um "lugar em que cada um é o mesmo que o outro" (p. 177; tr. p. 140).

O essencial da crítica winnicottiana consiste em dois pontos. Em primeiro lugar, ela diz que a teoria da sexualidade da psicanálise tradicional é parcial, por ser baseada, na melhor das hipóteses, em apenas um aspecto da natureza humana - o elemento masculino (puro).47 Em segundo lugar, diz que essa teoria desconhece seus pressupostos, pois usa o aspecto impulsivo sem atentar para o fato de que, devido à estrutura essencial da natureza humana, os seres humanos, a fim de poderem ser impulsivos e capazes de fazer coisas, precisam primeiro criar a capacidade de ser e chegar à identidade pessoal, tornando-se sujeitos objetivos. Segundo tal visão - que faz parte do modelo ontológico do paradigma winnicottiano -, um bebê se torna sujeito real apenas na medida em que resolve as tarefas básicas iniciais: a de ter uma identidade pessoal, estar inserido no tempo e no espaço, alojado num corpo e capaz de relacionarse com outros seres humanos e com as coisas do mundo em que vive. Tudo se passa como se a teoria da sexualidade da psicanálise tradicional estivesse em relação de dupla dependência com a winnicottiana, precisando desta tanto para ser completa como para chegar a conhecer os seus fundamentos.

 

11. Dos conflitos sexuais ao conflito entre ser e fazer

Num fragmento de 1968-9, Winnicott levou a comparação entre ser e fazer às ultimas conseqüências:

No extremo dessa comparação, descobri-me examinando um conflito essencial dos seres humanos, um conflito que já deve ser operante em data muito inicial, o conflito entre ser o objeto que também tem a propriedade de ser e, por contraste, uma confrontação com o objeto que envolve uma atividade e um relacionamento objetal respaldados pelo instinto ou impulso [instinct or drive]" (1989a, p. 191; tr. p. 149; tradução modificada, os itálicos são meus).

A novidade teórica contida neste texto é a idéia de que o contraste entre ser e fazer não reflete tão-somente a diferença entre dois tipos de relacionamento objetal, mas assinala um conflito que ocorre na passagem do relacionamento no sentido de ser para o relacionamento no sentido de fazer.

Tal idéia não era de todo inédita na obra anterior do pensador inglês. Ele próprio assinala que a citação acima "é um novo enunciado do que [ele] tentara descrever antes, em termos do objeto subjetivo e do objeto que é objetivamente percebido" (p. 191; tr. p. 149). Contudo, ao caracterizar como essencial o conflito entre ser o objeto e confrontar-se com o objeto, Winnicott deu um novo peso à transição da fase na qual o ambiente, identificado com o bebê, lhe facilita "surfar" na onda das tensões instintuais para a fase em que o próprio bebê precisa começar a agir sobre os objetos externos, separados dele e constituídos devido aos impulsos efetivos de destruir objetos subjetivos

De fato, a principal contribuição dos comentários de 1968-9 está na radicalização do seguinte problema: o crescimento em direção ao reconhecimento da realidade acontece a partir de quê? Uma coisa ficou certa para Winnicott: a palavra "narcisismo" da psicanálise tradicional não servia para determinar o ponto de partida desse crescimento nem para explicitar a natureza das mudanças experienciadas. Isso porque o conceito de narcisismo "deixa de fora as tremendas diferenças que resultam da atitude e do comportamento da mãe" (p. 191; tr. p. 149).48 A única saída que lhe sobrou foi a de fazer "uma tentativa de enunciar de forma extrema o contraste entre o ser e o fazer" (ibid.)

O enunciado encontrado tomou a forma de um "dilema básico". A primeira alternativa deste dilema diz: "O bebê é o seio (ou objeto ou mãe etc.); o seio é o bebê. Isto está na ponta extrema da falta inicial do bebê de estabelecer um objeto como não-eu, no lugar onde o objeto é cem por cento subjetivo, onde (se a mãe se adapta suficientemente bem e não de outra maneira) o bebê experiencia onipotência" (p. 191; tr. p. 150). A segunda alternativa afirma: "O bebê é confrontado por um objeto (seio etc.) e precisa chegar a um acordo com ele, com poderes limitados (imaturos) do tipo que se baseia nos mecanismos mentais das identificações projetiva e introjetiva" (ibid.). Esse dilema deixa claro que a identidade: bebê = seio é uma questão de ser, enquanto que a confrontação entre o bebê e o seio envolve o fazer. Ele também permite entender por que a oposição entre ser e fazer se constitui num "problema humano universal" que decorre da incompatibilidade entre a tendência para integração por dentificação primária, definitória da natureza humana e inerente à experiência de ser, e a tendência, igualmente presente nessa natureza, para a desintegração - perda da integração resultante da identificação primária - por objetificação, característica essencial do fazer.49 Muito mais do que o desmame, o que dói ao ser humano é a necessidade de reconhecer que, devido à estrutura temporal do seu existir, depois de experienciar a identidade total com o real, base inicial da sua capacidade de existir, ele terá que passar, para poder continuar existindo, pela experiência da diferença total.50 Dito de outra maneira, o seu dilema básico é insolúvel. Não havendo meios de ser resolvido, pode ser esquecido ou, então, assumido e suportado, isto é, tolerado.51

Embora constitutivo da oposição entre aspectos sexuais "sofisticados" (elementos masculino e feminino puros, identificações sexuais cruzadas etc.), o conflito essencial mencionado não pode mais ser visto como sexual nem no sentido instintual nem no relacional, isto é, em nenhum dos sentidos distinguidos por Winnicott: "Eu não posso evitá-lo, mas exatamente neste estágio pareço ter abandonado a escada (elementos masculino e feminino) pela qual subi até o lugar onde experienciei esta visão" (p. 192; tr. p. 150; os itálicos são meus). O contexto indica que os elementos masculino e feminino mencionados nesta passagem devem ser entendidos como puros. Tal como uma escada, a teoria da oposição entre estes elementos serviram a Winnicott para descobrir uma oposição mais fundamental ainda, aquela entre ser o objeto e fazer algo sobre o objeto ou sofrer que algo lhe seja feito pelo objeto. Esta oposição pertence à própria estrutura do movimento de amadurecimento, à acontecencialidade da natureza humana como tal, podendo ser exacerbada a cada momento e levar, conforme veremos a seguir, ao surgimento de patologias quando o ambiente (os pais) passa bruscamente ou extemporaneamente do estado de ser-o-bebê ou a criança para o confronto fazedor com esta. Winnicott chega, assim, a conceber, embora não a elaborar, uma teoria não-sexual das raízes da sexualidade tanto instintual quanto relacional - a que trata da masculinidade e da feminilidade à luz de dois tipos fundamentais de co-existência humana: a identificação e a objetificação.

 

12. Relevância teórica e clínica do conflito entre ser e fazer

Não há como evitar a conclusão de que a teoria do dilema básico do relacionamento do indivíduo humano com o mundo, ainda pouco estudada na literatura secundária, ocupa uma posição-chave no interior do paradigma winnicottiano. Por tematizar aspectos centrais da natureza humana, esta teoria pode, sem dúvida, servir como ponto de partida para a elaboração de uma concepção winnicottiana das formas da cultura.52 Mas ela é também importante para a própria psicanálise. Ao refazer a teoria da sexualidade com fundamento na distinção entre o ser e o fazer, Winnicott inverte a ordem das razões da psicanálise tradicional, abandonando a perspectiva de fundamentar a teoria da personalidade humana, da doença e da clínica, da ordem social e moral, em termos de episódios libidinais, em favor de uma abordagem centrada em problemas do ser humano entendido como amostra temporal das dificuldades internas à natureza humana.

Embora digam respeito à estrutura ontológica do ser humano, estas análises de Winnicott não têm o caráter de especulações metapsicológicas, isto é, de uma supra-estrutura descartável, usada tão-somente devido à sua utilidade na busca e na organização de fatos clínicos. Um dos seus principais méritos, do ponto de vista da psicanálise enquanto ciência "empírica", é precisamente o de permitir que um problema universal do existir humano seja visto como ingrediente factual, constitutivo, se não de todos, então de um número significativo de problemas clínicos:

Na psicopatologia, alguns dos maiores bloqueios ao envolvimento instintual - ou do impulso [drive] - surgem quando paciente = objeto se transforma violentamente em paciente-se-confronta-e-é-confrontado-pelo-objeto, implicando uma mudança que vai de uma defesa aconchegante para uma posição de angústia de alto grau e uma percepção súbita de imaturidade. (1989a, p. 192; tr. p. 150; tradução refeita, os itálicos são meus)

Se um bloqueio desta natureza está presente no paciente do caso FM - e o material clínico reunido por Winnicott indica que está -, então a sua patologia não pode ser entendida nem tratada seja no quadro da teoria freudiana da sexualidade pulsional seja no da doutrina winnicottiana da sexualidade instintual. Estamos obviamente fora do campo das neuroses e mesmo das depressões reativas. Pensando bem, nem mesmo os conceitos winnicottianos de identificação cruzada e de elementos puros masculino e feminino, enquanto tais, são aplicáveis. (creio que estes últimos são aplicáveis sim) Estamos diante de uma falha do ambiente de um tipo mais fundamental ainda: a que consiste em não ajudar o paciente na resolução do problema fundamental da existência humana como tal, resumido por Winnicott nas seguintes palavras: "Após ser - fazer e ser objeto do fazer. Mas primeiro, ser" (p. 182; tr. p. 144).

Podemos resumir o caminho do pensamento de Winnicott, suscitado pelo caso FM, da seguinte maneira: o ponto de partida da sua teorização era o fato de, no paciente tratado, existir algo como um elemento feminino puro - uma identidade sexual feminina não baseada na sua provisão biológica - dissociado da sua personalidade masculina (estabelecida com base na provisão biológica) e em conflito com esta. A etiologia da situação residia no fato de o paciente ainda bebê - portanto, dependendo de maneira absoluta da mãe - ter sido objetificado por essa mãe, a qual, pelo seu fazer, lhe impunha uma identidade postiça, assumida por ele como defesa contra a possível perda da mãe. A fim de entender o conflito entre as duas identidades sexuais assim criadas, uma biologicamente amparada e a outra meramente relacional, era necessário levar em conta os dois modos básicos de relacionamento de um bebê com o mundo, a identificação primária e a objetificação, ambas de mão dupla.53 Quando pensados com toda a radicalidade, estes dois modos de relacionamento perdem, contudo, o seu caráter sexual. O conflito entre ser e fazer, concebido como tensão entre modos de existir do ser humano a ser suportada ao longo da vida, não pode ser caracterizado em termos da diferença entre o masculino e o feminino.54 Ao mesmo tempo, contudo, essa tensão é decisiva para a constituição da masculinidade e da feminilidade.55

De acordo com o exposto, a teoria winnicottiana da sexualidade, tanto da relacional como da instintual, fica inserida na sua teoria do amadurecimento. Por isso, a clínica da sexualidade esboçada na última fase da obra de Winnicott passou a fazer parte da sua clínica do amadurecimento, mais ampla e mais eficiente que a clínica da sexualidade interpretada metapsicologicamente, introduzida por Freud.

 

Referências

Nota: As obras de Winnicott são citadas de acordo com a bibliografia de Knud Hjulmand, publicada em Natureza humana, v. 1, n. 2, 1999, pp. 459-517. As traduções brasileiras são parcialmente refeitas.

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Endereço para correspondência
E-mail:loparicz@uol.com.br

Recebido em 28 de janeiro de 2005.
Aprovado em 23 de março de 2005.

 

 

* Texto ampliado e revisto da palestra pronunciada em 2002, no VI Colóquio Winnicott, PUCSP. Gostaria de agradecer as observações críticas e as sugestões proveitosas de vários membros do Centro Winnicott de São Paulo, entre eles Conceição S. de Araújo, Elsa Oliveira Dias, Leopoldo Fulgencio, Maria José Ribeiro e Roseana Moraes Garcia, que me foram de grande valia na elaboração desta versão final.
1 Uma descrição mais detalhada do paradigma edípico de Freud encontra-se em Loparic 2001a e Fulgencio 2003.
2 O presente parágrafo é uma continuação da análise da crise winnicottiana apresentada nas seções 3 e seguintes de Loparic 2001a.
3 Veja, por exemplo, a desenvoltura de Lacan no uso de construções auxiliares e de metáforas óticas, tidas como autorizadas por Freud (Lacan 1975, p. 90).
4 Um análie detalhada da teoria winnicottiana do amadurecimento encontra-se em Dias 2003. Visto que o conceito winnicottiano de amadurecimento pode ser interpretado em termos da fenomenologia heideggeriana da acontecência do ser-nomundo do ser humano, o paradigma proposto pelo psicanalista inglês pode ainda ser chamado de acontecencial. Para maiores detalhes sobre esse aspecto do paradigma winnicottiano, cf. Loparic 2001a.
5 Esse tema, raramente abordado, foi objeto da tese de doutorado de Maria de Fatiam Dias (2005), realizada de acordo com a linha de pesquisa do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP) da PUCSP.
6 Cf. Freud 1924 [1905], parte III. 3.
7 Essa tese é construída por analogia ao dualismo de forças de atração e de repulsão estabelecido por Newton e retomado por Kant; posição que, na física de hoje, é totalmente arcaica.
8 Jung defendia a suposição de uma única libido originária, idêntica ao "interesse por objetos", que passaria por diferentes fases de desenvolvimento e de diferenciação até assumir as características da libido no sentido de Freud (cf. Jung 1938, p. 122 ss.).
9 No original: "combined love-strife drive" (1989a, p. 245; tr. p. 245). Sobre essa idéia central da teoria winnicottiana dos instintos primitivos, cf., por exemplo, 1988, p. 79; tr. p. 99.
10 A relação entre Winnicott e Jung permanece pouco estudada. A resenha que Winnicott dedicou à autobiografia do primeiro e mais notável dissidente do movimento psicanalítico é a referência central para tal estudo (cf. Winnicott 1989a, cap. 57).
11 Sobre o conceito winnicottiano de animal humano, cf. Loparic 2000.
12 Como é sabido, nas fases muito primitivas, a elaboração imaginativa assume modos menos sofisticados, ficando mais próxima do funcionamento fisiológico do corpo. Para detalhes, cf. Loparic 2000.
13 Esta tarefa foi formulada por Winnicott já em 1945, de novo com referência a Jung, mesmo que em termos ainda pouco claros: "Nós [psicanalistas] tentamos reduzir tudo ao instinto, e a psicologia analítica [de Jung] reduz tudo a esta parte do si-mesmo primitivo, que se parece com um ambiente, mas que surge a partir do instinto (arquétipos). Deveríamos modificar as nossas idéias a fim de abarcarmos os dois pontos de vista, para assim podermos ver (se isto for verdade) que, no estágio teoricamente mais primitivo, o si-mesmo possui o seu próprio ambiente, autocriado, que é tanto o si-mesmo quanto os instintos que lhe dão origem. é preciso estudar mais profundamente esta questão" (1958a, p. 155; tr. br., p. 231).
14 A referência básica é Abraham 1925, pp. 209 e 214. Freud parece aceitar as propostas de Abraham (Freud 1924 [1905], parte II.6, nota 2).
15 No seu estudo do estágio de concernimento, Winnicott mostrará que o significado das fezes é muito mais rico do que, por exemplo, o erotismo associado com a defecação ou o erotismo oral deslocado para a experiência receptiva anal. Ver Winnicott 1988, parte 3, cap. 1. A crítica da concepção tradicional da fase anal encontra-se no mesmo livro, parte 2, cap. 1.
16 Alguns detalhes dessa mudança de visão estão explicitados em Winnicott 1988, pp. 42-3; tr. pp. 60-1.
17 Cf., Freud 1924 [1905], parte II, caps. 2, 4 e 6; parte III. 5.
18 A mesma crítica do naturalismo freudiano é formulada em Winnicott 1971, pp. 116-7; tr. p. 137-8.
19 Por trás dessa oposição está a redescrição winnicottiana da teoria dos relacionamentos objetais (no jargão psicanalítico, "relações de objeto"), mencionada anteriormente. Seguindo Fairbairn, Winnicott distingue as relações com objetos que provêm da satisfação instintual (Freud, Klein) das relações com objetos que favorecem o amadurecimento, tais como os objetos transicionais, que propiciam a constituição da realidade externa (1989a, p. 582; tr. p. 443) ou os objetos subjetivos, que permitem a emergência do senso do real e de um modo incipiente da identidade pessoal.
20 Cf., em particular, Winnicott 1971a, cap. 1 et passim.
21 Winnicott faz notar que a atividade masturbatória é essencialmente ausente no verdadeiro brincar (1971a, p. 45; tr. p. 60).
22 Creio que essa seja uma das principais razões pela qual Winnicott introduziu o conceito de objeto subjetivo, aplicável, ele sim, até mesmo à fase da primeira mamada teórica.
23 Cf. Winnicott 1972, pp. 23, 53 e 112; tr. pp. 26, 59 e 126). O mesmo caso contém indicações preciosas sobre a clínica winnicottiana desse tipo de distúrbio.
24 O mesmo não ocorre na fase oral, pois, nesse período, ainda não está constituído o interior do corpo do bebê.
25 Não se deve entender que antes da fase do concernimento não houvesse uma elaboração da entrada e saída dos alimentos, mas que, nessa fase, a digestão é elaborada como um cíclo completo.
26 O caráter idealizado e, nesse sentido, mágico dos objetos das projeções e das introjeções pode ser um sinal de severo distúrbio: "Gostaria de acrescentar o lembrete de que a introjeção de um seio bom é por vezes altamente patológica, uma organização defensiva. O seio (mãe) é então idealizado, e essa idealização indica uma desesperança quanto ao caos interno e ao incompadecimento do instinto" (1958a, p. 276; tr. pp. 372-3).
27 Cf. 1989a, p. 576; tr. p. 438. Winnicott acredita ter apreendido essa distinção de M. Klein, embora reconheça que ela jamais concordou com as suas idéias sobre o interior do corpo (idem).
28 Sobre esse ponto, cf. Winnicott 1986b, pp. 125 e 191-2; tr. pp. 99 e 149-50.
29 A insistência de Freud na sexualidade masculina é atribuída, às vezes, à sua relação com o pai. Winnicott, por sua vez, confessa uma dívida especial com a mãe: "Da minha parte, acontece que fui levado a descobrir tudo o que pude a respeito do significado da palavra "devoção" e a me tornar capaz, se possível, de testemunhar um reconhecimento plenamente informado e pessoalmente sentido à minha própria mãe" (1986b, p. 126; tr. p. 99).
30 Um outro ponto de caráter geral merece ser notado: a fase pré-genital não pode ser tratada, no seu todo, como pré-edípica. O seu dinamismo e estrutura são, propriamente falando, não-edípicos.
31 As diferentes defesas que compõem o quadro das neuroses e as possíveis quebras dessas defesas são listadas com precisão por Winnicott (1988, parte II.2, sumário). Uma análise detalhada desse conteúdo é essencial para a compreensão da teoria e da clínica winnicottiana das neuroses.
32 O sentido mais preciso dessa incompletude é explicitado no que se segue.
33 No seu todo, a psicanálise winnicottiana difere da freudiana justamente pelo fato de não ser uma ciência naturalista.
34 Cf. Winnicott 1988a, p. 43; tr. br., p. 61 e p. 47; tr. br., p. 63, respectivamente. No presente contexto, Winnicott não trata de elementos masculino e feminino puros. Esses dois conceitos só serão introduzidos por ele na fase tardia da sua obra, conforme será mostrado a seguir
35 Embora não tenha tematizado de maneira sistemática o problema do gênero, pareceme que Winnicott fez contribuições importantes para esse assunto.
36 Nesse ponto, Winnicott se considera devedor de M. Klein. Uma análise mais detida permitiria mostrar, contudo, a existência de diferenças profundas que justificam a recusa de Klein em concordar com a redescrição winnicottiana da "posição depressiva", isto é, com a teoria winnicottiana do estágio do concernimento.
37 A idéia de gravidez pré-genital (oral) é ilustrada, por exemplo, na segunda sessão do caso Piggle.
38 O caso FM pedia que fosse feita "a separação entre a idéia de meninos e meninas e de homens e mulheres, e a idéia de dois princípios básicos, aqueles que chamo de elementos masculino e feminino" (1989a, p. 191; tr. br., p. 150).
39 Itálicos no original: "has nothing to do with drive (or instinct)", 1989a, p. 180; tr. br., p. 142. Aqui é particularmente importante não confundir o drive ou o instinct winnicottiano, entidade biológica integrada imaginativamente, com o Trieb (pulsão) de Freud, entidade metapsicológica especulativa rejeitada por Winnicott.
40 Aqui temos mais uma evidência de que a teorização de Winnicott é motivada essencialmente pela clínica, jamais pela especulação pura, como acontece, por exemplo, na obra de Lacan.
41 Sobre o uso winnicottiano dos conceitos de mãe-fêmea e de mãe-mulher, veja a seção 3.
42 A análise do caso FM surtiu efeito precisamente no momento em que Winnicott chamou para si a loucura da mãe e liberou, dessa maneira, o paciente para voltar a si e para assumir a sua identidade sexual como parte do seu si-mesmo.
43 Eu não excluo a possibilidade de, neste caso, a escolha terminológica de Winnicott ter sido influenciada por Jung.
44 Temos aqui mais um caso em que Winnicott usa um termo da psicanálise tradicional num sentido radicalmente diferente do habitual.
45 Num texto escrito no último da sua vida, Winnicott afirma ser axiomático que "não há relacionamento com o objeto subjetivo". E justifica: "O mundo esta para lá para o relacionamento apenas na medida em que é objetivamente percebido e é aquilo que chamamos de externo à criança" (1989, p. 287; tr., p. 221).
46 Quem assumir ser óbvio que os psicanalistas tradicionais nada sabiam da existência do elemento masculino puro dirá que esta é mais uma das amenizadas que Winnicott costuma fazer nos seus textos, para não ser incisivo.
47 Isso se vê bem quando se atenta para fato de, em Freud, a mulher ser definida pelo negativo, como macho castrado.
48 Nos textos anteriores, Winnicott usa o termo "narcisismo primário" como sinônimo de "dependência absoluta" (cf., por exemplo, 1958a, p. 262; tr. br., p. 355). Se levarmos em conta que a "relação" de dependência absoluta não é libidinal e que ela precede a existência de um eu, somos forçados a concluir que o sentido winnicottiano do termo "narcisismo primário" é radicalmente diferente do da metapsicologia freudiana.
49 O que chamo aqui de "desintegração por objetificação" é um modo de ser diferente da desintegração como defesa psicótica.
50 O contato com o real é uma ilusão que só incomoda quando estamos cansados ou quando a ilusão não foi realmente constituída.
51 Convém ligar este ponto com a teoria winnicottiana da agressividade. Nessa psicologia experiencial sem metapsicologia, o papel da pulsão de morte - conceito descartado como sem sentido, por ser inaplicável na descrição dos fenômenos de agressividade - é desempenhado pelo impulso amoroso primitivo que, segundo Winnicott, seria destrutivo em si mesmo (cf., por exemplo, 1988a, p. 79n; tr. br., p. 99n). Sendo assim, a destruição é inerente ao relacionamento objetal como tal (1986b, p. 206; tr. br., p. 161). Essa tese remete à afirmação, referente a um momento posterior dos estágios iniciais, de que "o impulso [drive] cria a qualidade da externalidade" (1988a, p. 110; tr. br., p. 130), isto é, a possibilidade de objetos serem percebidos como externos.
52 Vários autores (cf., por exemplo, Yukawa 1961), assinalaram o fato de várias culturas do extremo Oriente, em particular as baseadas no budismo e no taoismo, terem procurado preservar a união do homem com a natureza no seu todo, diferentemente das culturas ocidentais, de raiz greco-judaica, que apostaram na vitória do homem no confronto com a natureza (cf. Freud 1930). Embora Winnicott revindique para a sua psicologia o status de ciência, a sua linguagem pode ser usada com proveito para iluminar o que já foi dito ou o que possa vir a ser dito em outros gêneros de escrita (mitologia, religião ou filosofia).
53 O mesmo tipo de trabalho poderia ser feito a partir dos casos que apresentam o elemento masculino separado em pacientes mulheres.
54 De fato, esse conflito escapa da competência da psicanálise como tal. Uma evidência disso é a conexão estreita entre o fazer e a objetificação tecnológica do mundo, processo reconhecido por Winnicott como ameaça potencialmente mortífera para a civilização humana (1986b, p. 208; tr. br., p. 161). Creio que se ganharia muito na compreensão do Winnicott, pensador da natureza humana, ao se traduzir esse resultado para a linguagem do "pensamento do ser" de Heidegger, considerando, em particular, a busca heideggeriana da possibilidade de um ultrapassamento da técnica.
55 A tese winnicottiana de que o conflito entre ser e fazer é fundamento da diferença sexual, permite, e mesmo exige, que seja refeita a teoria da instintualidade. A realização dessa tarefa excederia muito os limites do presente trabalho.