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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.8 n.1 São Paulo jun. 2006
ARTIGOS
Linguagem cotidiana e competência existencial
Daily language and existential competence
Marco Casanova
Departamento de Filosofia - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
O intuito primordial de nosso texto é investigar o estatuto da linguagem cotidiana no interior da construção do projeto existencial de cada ser-aí em Ser e tempo. Para alcançarmos esse intuito, nós nos dedicaremos, inicialmente, a uma análise da concepção heideggeriana do impessoal presente nessa obra. Por intermédio desta análise, o que buscamos conquistar é, antes de mais nada, uma compreensão adequada do lugar do discurso (Rede) na constituição do espaço impessoal de existência. Juntamente com a apreensão desse lugar, teremos a possibilidade de visualizar em que medida o impessoal não se mostra apenas como uma espécie de entrave à concretização do próprio em Ser e tempo, mas também como manancial significativo para todas as possibilidades existenciais do ser-aí.
Palavras-chave: Discurso, Competência, Existencialidade, Significância, Dèja vu.
ABSTRACT
The fundamental intention of our text is to investigate the status of daily language in the interior of the construction of the existential project of each being-there in Being and Time. In order to fulfill this intention, the text initially dedicates itself to an analysis of the heideggerian concept of the impersonal in the referred to work. As intermediary to this analysis, we seek to show is above all an adequate comprehension of the place of discourse (Network) in the constitution of the impersonal space of existence. Together with this, we have the possibility of visualizing to what degree the impersonal does not show itself only as a species of impediment to the concretization of the personal in Being and Time, but also as a significant source of all the existential possibilities of being-there.
Keywords: Discourse, Competence, Existential, Meaning, Dèja vu.
Prefiro as palavras obscuras que moram nos fundos
de uma cozinha - tipo borra, latas, cisco
Do que as palavras que moram nos sodalícios -
tipo excelência, conspícuo, majestade.
Também os meus alter-egos são todos borra,
ciscos, pobres-diabos
Que poderiam morar no fundo de uma cozinha
- tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego
Preto etc.
Todos bêbados ou bocós.
E todos condizentes com andrajos.
Um dia alguém me sugeriu que adotasse um
alter-ego respeitável - tipo um príncipe, um almirante, um senador.
Eu perguntei:
Mas quem ficará com os meus abismos se os
pobres-diabos não ficarem?
(Manoel de Barros, A Borra, Ensaios Fotográficos)
Introdução
Ser e tempo é uma obra que tem por tarefa fundamental colocar a pergunta sobre o sentido do ser a partir da análise de um ente específico para o qual algo assim como ser pode ser compreendido.1 Tal como Heidegger mesmo deixa claro no parágrafo 45 da obra:
O que é buscado é a resposta à pergunta sobre o sentido do ser em geral, e, antes de tudo, a possibilidade de uma elaboração radical dessa pergunta fundamental de toda ontologia. No entanto, a liberação do horizonte no interior do qual algo assim como ser é acima de tudo inicialmente compreensível equivale ao esclare cimento da possibilidade da compreensão de ser em geral. Essa compreensão pertence ela mesma à constituição do ente que denominamos ser-aí. A compreensão de ser pode ser esclarecida radicalmente como momento ontológico essen-cial do ser-aí, caso o ente a cujo ser ela pertence for interpretado originariamente. (ST, § 45, pp. 231-2)
Assim, se considerássemos a obra apenas por esse ângulo, ela pareceria seguir sem muita inovação a tradição da filosofia transcendental kantiana e husserliana.2 A própria articulação entre a pergunta sobre o sentido do ser e o ser-aí impõe aqui, contudo, uma primeira delimitação do âmbito de desdobramento do problema. O ser-aí não é apenas o ente que traz consigo a possibilidade de compreensão de algo assim como ser e que funciona então necessariamente como ponto de partida metodológico para a formulação da pergunta sobre o seu sentido, mas também vem à tona essencialmente como o ente que já sempre se movimenta no interior de uma compreensão fática de ser e que experimenta de início e na maioria das vezes essa compreensão de maneira pré-temática. Imerso na cotidianidade mediana, ele existe de modo "pré-ontológico" (id., § 16, 72) porque nunca se detém expressamente na determinação do ser dos entes em geral nem tampouco desenvolve uma investigação direta desses entes com vistas à descoberta de suas propriedades ônticas. A compreensão fática em meio à qual o ser-aí já sempre se encontra e com a qual ele se relaciona de início e na maioria das vezes pré-ontologicamente não aponta por sua vez para um horizonte parcial de realização, algo como o campo circunscrito de nossas percepções particulares. Ao contrário, ele diz respeito à abertura do mundo como campo de manifestação dos entes em geral.3 Com isso, o que temos desde o começo em Ser e tempo é uma junção de duas dimensões estruturais copertinentes: por um lado, a compreensão de ser em geral enquanto elemento constitutivo do ser-aí e, por outro lado, a compreensão fática do mundo enquanto horizonte primário de realização do ser-aí. Na medida em que essa compreensão fática do mundo funciona como campo de jogo originário de todas as possibilidades existenciais do ser-aí, ela desempenha além disso um papel determinante no próprio surgimento de projetos de mundo em geral. Exatamente por isso, é decisivo ter clareza quanto à concepção heideggeriana do mundo sedimentado no qual o ser-aí se encontra de início e na maioria das vezes jogado. Como essa concepção de mundo enquanto campo de manifestação originário dos entes em geral tende porém em Ser e tempo naturalmente para a noção de discurso e o intuito primordial de nosso texto é uma reconstrução dessa concepção, o percurso a ser aqui percorrido acompanha inicialmente essa tendência natural e sai de uma rápida consideração da dimensão pré-ontológica do mundo para o sentido mesmo do termo discurso. Depois de termos considerado sufi-cientemente a concepção heideggeriana do discurso em Ser e tempo, poderemos tratar do seu caráter eminentemente decisivo para a constituição da competência existencial dos seres-aí em geral.
Mundo, facticidade e significância
Tal como se encontra exposto na seção I de Ser e tempo, o ser-aí se vê lançado em sua cotidianidade mediana em um modo de abertura do ente na totalidade marcado pela lógica da ocupação com os entes intramundanos.4 O ser-aí não se articula de início e na maioria das vezes teoricamente com os entes, mas sempre os utiliza com vistas a alguma serventia. No momento em que o mundo fático se descerra, os entes intramundanos vêm ao encontro do ser-aí e requisitam dele um modo de se ocupar com eles. A afirmação da originariedade dessa ocupação poderia levar então a pensar que o ser-aí viveria de início e na maioria das vezes em uma dimensão de total indistinção e que essa própria afirmação acabaria por fim se auto-refutando. Em um mundo completamente funcionalizado, os movimentos e as ações dos seres-aí se repetem afinal como que automaticamente, sem que nenhum ente em particular chame a atenção para si e se revele em sua determinação própria.5 No entanto, o que temos nesse caso não é uma atividade prática totalmente desprovida de uma experiência de descoberta do que os entes efetivamente são. Ao contrário, é na própria ocupação que os entes vão para Heidegger paulatinamente se revelando como tais. Diante de uma tal afirmação do caráter revelador da ocupação, precisamos dar um passo à frente e perguntar: em que medida é possível afirmar a ocupação com os entes como um âmbito no interior do qual os entes alcançam a sua determinação própria? Em que consiste o caráter descobridor da ocupação? Como compatibilizar esse caráter descobridor com a experiência pré-temática e pré-ontológica do ser-aí na cotidianidade mediana?
De acordo com a concepção heideggeriana exposta em Ser e tempo, o ser-aí não possui uma relação originariamente teórica com os entes intramundanos em geral, com os outros seres-aí e consigo mesmo. Ao contrário, ele se mostra muito mais de início e na maioria das vezes como um ente que se comporta praticamente em relação aos entes em geral. Nas palavras do próprio Heidegger:
A apresentação fenomenológica do ser do ente que vem mais imediatamente ao encontro realiza-se sob o fio condutor do ser-no-mundo cotidiano que também denominamos a lida no mundo e com o ente intramundano. A lida já se dispersou em uma multiplicidade de modos da ocupação. No entanto, o modo mais ime-diato da lida não é (...) o conhecer que apenas se mantém apreendendo, mas a manipulação e a utilização que possui o seu próprio "conhecimento". (ST, § 15, 66-7)
O ser-aí encontra-se em suma de início e na maioria das vezes jogado em modos de ocupação com os entes intramundanos, que não possuem uma relação direta com a prévia fixação dos entes em sua aparência específica e com uma análise lógico-predicativa subseqüente intrínseca ao movimento da teoria. Na medida em que esses modos de ocupação não são porém dirigidos por nossa capacidade intelectiva de conceber as determinações essenciais dos entes, nós poderíamos perguntar como é afinal que conseguimos levar a termo as atividades mais corriqueiras de nossa vida cotidiana. Para responder a essa pergunta é fundamental ter em vista o que Heidegger compreende acima pelo "conhecimento" próprio à ocupação. Em verdade, tal como afirmamos anteriormente, a lida com os entes intramundanos não é cega. Ela é sim muito mais marcada por estruturas que revelam de maneira fina distinções que não coseguimos acompanhar sem mais e que carecem de uma certa familiaridade. Essas estruturas vêm por sua vez ao nosso encontro de início e na maioria das vezes juntamente com os entes intramundanos. No momento em que vemos, por exemplo, um martelo em meio a uma determinada atividade cotidiana como o pregar um quadro, o que temos diante de nós não é a simples presença fática de um objeto qualquer simplesmente subsistente, mas o aparecimento imediato e concomitante de um horizonte ocupacional ao qual o martelo se adequa de maneira plena e que revela ao mesmo tempo o martelo enquanto um utensílio dotado de uma serventia específica. Dito de maneira mais clara, é o horizonte de manifestação do ente que determina fundamentalmente o seu caráter ôntico enquanto utensílio, ser vivo, objeto do conhecimento, instituição social, etc.6 A questão passa a ser então como se caracteriza o campo de manifestação dos entes com os quais nos ocupamos de início e na maioria das vezes em nossa cotidianidade mediana e que merecem justamente por isso a denominação de utensílios.7 Esse campo de manifestação é descrito em Ser e tempo a partir da explicitação inicial de uma série de elementos referenciais. Ao vir ao nosso encontro em meio à atividade cotidiana de colocar um quadro na parede, o martelo se refere imediatamente à serventia à qual está ligado, aos outros utensílios relacionados com essa atividade, aos materiais a partir dos quais é feito e que condicionam a sua maior ou menor eficácia, além de aos outros seres-aí que produziram o martelo, que forneceram o material para a sua realização, que transportaram e venderam o martelo. A rede referencial complexa, que permanece incessantemente velada enquanto a ocupação se desenrola de maneira plena, não se constitui por isso a posteriori em função de nossa capacidade de apreender remissões não relacionadas diretamente com a essência do objeto em questão, mas transpassa antes originariamente o próprio fenômeno do utensílio que vem ao nosso encontro.8 Ela se confunde, em outras palavras, com o próprio campo de manifestação e o determina em termos de conteúdo. No entanto, a rede referencial complexa em sintonia com a qual o ente intramundano vem de início e na maioria das vezes ao encontro do ser-aí como um utensílio que serve para algo específico é insuficiente para descrever plenamente o que tem lugar em meio às atividades cotidianas do ser-aí. O fato de estar disposto praticamente para uma lida com os utensílios que incessantemente lhe acome tem no interior de seu mundo não consegue dar conta do que mobiliza efetivamente uma tal lida. Saber praticamente o que é um martelo e possuir uma certa familiaridade com a estrutura complexa na qual o martelo está radicalmente imerso enquanto utensílio não explica como é que o ser-aí constrói projetos particulares de ocupação. Exatamente por isso, Heidegger introduz no parágrafo 18 de Ser e tempo as noções de conformidade e de em-virtude-de e afirma:
Conformidade é o ser do ente intramundano, para a qual ele é sempre inicialmente liberado. Com ele enquanto ente, ele tem a cada vez uma conformidade. O fato de ele possuir uma conformidade com... junto a... é a determinação ontológica do ser desse ente, não um enunciado ôntico sobre o ente. Aquilo junto-ao-que ele possui a conformidade é o para-quê da serventia, o em-função de que da aplicabilidade. Com o para-quê da serventia ele pode ter uma vez mais a sua conformidade; por exemplo, com esse à-mão que nós denominamos por isso martelo, ele possui a conformidade junto ao martelar, com esse martelar, ele tem a sua conformidade junto à fixação, com essa, junto à proteção contra as intempéries; essa "é" em-virtude do abrigo do ser-aí, ou seja, em virtude de uma possibilidade de seu ser. Que conformidade ele possui com um à-mão é predelineado a cada vez a partir da totalidade conformativa. (...) A própria totalidade conformativa, porém, se remete por fim a um para-quê, junto ao qual não há mais nenhuma conformidade, e que não é ele mesmo sob o modo de ser do ente à-mão no interior de um mundo, mas um ente cujo ser é determinado enquanto ser-no-mundo, a cuja constituição ontológica pertence a mundanidade. (ST, § 18, 84)
Heidegger compreende o ser-aí em Ser e tempo como um ente marcado fundamentalmente pelo caráter de poder-ser. O ser-aí não possui a priori nenhuma determinação qüididativa e só concretiza a sua essência a partir dos modos de ser que conquista existencialmente. No entanto, o ser-aí não se relaciona de início e na maioria das vezes consigo mesmo a partir desse seu caráter de poder-ser, mas antes a partir da facticidade de seu mundo. O ser-aí não é apenas um ente que projeta incessantemente o campo existencial no qual pode realizar o poder-ser que é, ele é também o ente que se vê de início e na maioria das vezes imerso em uma rede referencial complexa que transpassa originariamente o modo como os entes intramundanos vêm aí ao seu encontro. Como vimos acima, os utensílio trazem incessantemente consigo uma pluralidade de referências que permitem usos adequados por parte dos seres-aí. Para descrever a determinação ontológica dos utensílios, Heidegger se vale por isso coerentemente do termo Bewandtnis que traduzimos acima por conformidade. Bewandtnis significa entre outras coisas condição, essência, propriedade. O sentido em que esse termo é pensado é aqui, contudo, extremamente importante. Bewandtnis possui uma ligação essencial com a expressão bewenden lassen que designa a ação de deixar algo se conformar a algo. Dessa forma, o que se tem em vista aí não é a simples presença de uma propriedade ou de uma determinação essencial qualquer, mas antes o surgimento dessa propriedade e dessa determinação a partir da adequação ao campo de jogo em que algo se encontra inserido. Não é difícil apreender o que está em questão nesse uso heideggeriano da expressão "deixar conformar-se". Para tanto basta considerar um exemplo cotidiano como um jogo de futebol. O que faz com que um determinado jogador se mostre como excepcional ou como ruim não é apenas a sua alta ou baixa qualidade técnica e a sua capacidade ou incapacidade de controlar o movimento da bola: há uma série de jogadores extremamente habilidosos que simplesmente não se adequam à dinâmica do jogo ou que com freqüência se retraem nos momentos mais decisivos, assim como há também uma série de jogadores não muito habilidosos que desenvolvem uma plena integração a essa dinâmica e se superam em situações de tensão máxima. Ao contrário, o que torna um jogador excepcional ou ruim é muito mais a sua plena conformidade à mobilidade vital do jogo ou a sua inadequação a essa mobilidade. Cada jogador alcança assim a sua condição9 de excepcionalidade ou o seu caráter como ruim, na medida em que se deixa conformar com o jogo junto à atividade em questão. Ao falar da conformidade como modo de ser dos utensílios, Heidegger tem em mente algo muito similar. Um utensílio não é um ente dotado de propriedades a priori que o definem essencialmente como o ente que é, ele é antes um ente que recebe a sua determinação a partir do campo de jogo ao qual se conforma originariamente. Como encontramos formulado na passagem a seguir: "Com o para-quê da serventia ele pode ter uma vez mais a sua conformidade; por exemplo, com esse à-mão que nós denominamos por isso martelo,10 ele possui a conformidade junto ao martelar, com esse martelar, ele tem a sua conformidade junto à fixação, com essa, junto à proteção contra as intempéries". Ou seja: o que torna um martelo um martelo não são as suas notas conceituais passíveis de explicitação e análise teórica, mas a sua conformidade à totalidade junto à qual ele funciona como tal. Além disso, as totalidades conformativas não emergem a posteriori a partir de uma decisão arbitrária dos seres-aí. Elas condicionam a priori a própria possibilidade do desenvolvimento de atividades ocupacionais em geral e, por conseguinte, da respectiva conformidade dos utensílios em jogo. Elas são em suma campos de atividades sedimentados que acompanham originariamente a abertura de um mundo e transpassam ao mesmo tempo de início e na maioria das vezes os movimentos possíveis dos seres-aí em sua ocupação com os entes intramundanos. A questão é, contudo, a seguinte: toda ocupação com os entes intramundanos e toda conformidade possível desses entes às totalidades conformativas correspondentes precisam necessariamente repousar sobre uma instância em virtude da qual tanto a ocupação quanto a conformidade possam ser mobilizadas. Dito de maneira mais explícita: as noções mesmas de ocupação e de totalidade conformativa exigem a intervenção de um ente em virtude do qual a ocupação adequada possa ser levada a termo. O martelo funciona no interior de uma determinada situação de uso como utensílio que serve para martelar e se conforma nesse caso plenamente à rede referencial complexa aí presente. No entanto, não se consegue pensar de modo suficiente essa situação, sem articulá-la simultaneamente com o ente que deixa a atividade emergir do projeto do campo existencial de seu poder-ser. Nós podemos em outras palavras refinar ao máximo os momentos da conformidade junto a... com... No interior dessa estrutura, nunca se descobre aquilo em virtude do que a conformidade se dá. Essa descoberta carece do ser-aí como o ente em virtude do qual totalidades conformativas podem ser apropriadas de uma maneira específica. O martelo serve para prendermos um prego na parede ou para arrancarmos o caixonete de uma porta ou mesmo para nos defender de alguém que nos ameaça; e isso de acordo com o campo utensiliar ao qual ele a cada vez se conforma. Não obstante, é em virtude da experiência da necessidade de o ser-aí harmonizar o espaço de sua moradia, de substituir utensílios que não desempenham mais tão bem a sua função e de se proteger de um outro mais forte que as totalidades conformativas em geral e as atividades em específico são colocadas em movimento. Essa unidade entre totalidades conformativas e mobilizadores estruturais das diversas atividades ocupacionais dos seres-aí perfazem, por fim, o conteúdo específico da cotidianidade mediana do ser-aí. O que temos com isso não é, porém, uma simples descrição do processo de funcionamento do cotidiano. Como veremos a partir de agora, Heidegger retira daí a própria gênese das significações dos entes intramundanos.11
O ser-aí encontra-se originariamente jogado em um campo sedimentado de manifestação dos entes, em um mundo fático específico.12 Esse mundo fático determina-se originariamente por meio de uma rede de estruturas referenciais complexas e de mobilizadores estruturais dessas estruturas. Da articulação entre tais estruturas referenciais e tais mobilizadores, os entes intramundanos vêm ao encontro do ser-aí como os entes que são.13 Eles se mostram aí como os entes que são e conquistam ao mesmo tempo o seu significado.14 O significado de martelo, mesa, computador, banco, etc. repousa em outras palavras originariamente sobre a conformidade de cada um desses entes ao mundo fático no interior do qual eles se mostram como os entes que são. Na medida em que eles aparecem em sintonia plena com o seu campo de manifestação, eles conquistam a significação que é a deles. De início e na maioria das vezes, portanto, os seres-aí não aprendem o que cada utensílio significa por meio de uma apreensão temática de cada um deles em particular, mas muito mais por meio de uma paulatina adequação às estruturas complexas que eles trazem consigo ao virem ao encontro do ser-aí cotidianamente e de uma adoção de algum mobilizador estrutural também previamente cristalizado em seu mundo. Isso não se reduz apenas, porém, ao processo de fixação dos significados dos entes intramundanos. Se, nessa descrição da existência cotidiana do ser-aí, Heidegger estivesse tentando dar conta apenas dos utensílios em geral, nós precisaríamos imediatamente objetar que o cotidiano não pode ser reduzido a uma lida incessante com utensílios que acometem os seres-aí.15 Nem mesmo um trabalhador de uma oficina extremamente movimentada permanece incessantemente imerso em sucessivas atividades ocupacionais, mas mesmo esse trabalhador se acha muitas vezes envolvido em discussões que encerram direta ou indiretamente noções não-utensiliares como felicidade, coragem, amizade, bem e mal entre outras. Mais ainda: porquanto a linguagem cotidiana opera sem mais com conectivos lógicos como negação, igualdade, diferença, ela traz consigo necessariamente uma gramática intrínseca que não parece à primeira vista explicável a partir da assunção do horizonte fenomenal dos utensílios. Quanto a esse ponto, Heidegger nos diz no parágrafo 41 de Ser e tempo:
O projetar-se compreensivo do ser-aí já sempre se encontra enquanto um projetar-se fático junto a um mundo descoberto. A partir desse mundo, ele toma - e inicialmente de acordo com a interpretação levada a termo pelo impessoal - as suas possibilidades. Essa intepretação limita desde o princípio as possibilidades que se encontram abertas para uma escolha livre à esfera do que é conhecido, alcançável, realizável, daquilo que é próprio e adequado. Esse nivelamento das possibilidades do ser-aí ao que está de início cotidianamente disponível concretiza ao mesmo tempo um obscurecimento do possível enquanto tal. A cotidianidade mediana da ocupação é cega para a possibilidade e se aquieta junto ao que é apenas "real". Esse aquietamento não exclui uma funcionalidade extensa, mas a evoca. (ST, § 41, 194-95)
Não importa nesse momento acompanhar mais detidamente a teoria heideggeriana do domínio cotidiano do impessoal e as suas conseqüência para problemas éticos em geral. O que precisamos fazer agora é muito mais analisar as conseqüências da afirmação do obscurecimento do caráter de poder-ser do ser-aí e do encurtamento de seus modos de ser possíveis daí decorrente. Em primeiro lugar, o conceito heideggeriano de mundo não se reduz de maneira alguma à significação dos entes intramundanos em geral e à rede referencial a partir da qual essa significação emerge. Como vimos acima, a própria rede referencial complexa na qual os entes intramundanos estão imersos sempre repousa sobre mobilizadores estruturais que possuem uma conexão direta com possibilidades próprias ao ser-aí, de tal modo que as atividades ocupacionais em geral sempre acontecem em certa medida necessariamente em virtude do ser-aí. Nós colocamos um quadro na parede em virtude da necessidade de harmonizar o ambiente em que moramos; nós fixamos as telhas no telhado em virtude da necessidade de nos protegermos da chuva e do vento; nós colocamos sinais nas ruas em virtude da necessidade de ordenar o tráfego e evitar colisões, etc. Na medida em que o ser-aí se mostra, contudo, como um poder-ser, ele não pode experimentar essas necessidades como algo intrinsecamente dado em seu psiquismo. Ao contrário, é preciso que elas venham ao seu encontro juntamente com o mundo fático. Exatamente por isso, nós encontramos a seguinte formulação em Da essência do fundamento:
O ser-aí é de tal modo que ele existe em virtude de si mesmo. Todavia, se é em meio a um ultrapassamento em direção ao mundo que se temporaliza pela primeiríssima vez o si próprio, então ele se mostra como aquilo em virtude do que o ser-aí existe. O mundo tem o caráter fundamental do em-virtude-de... e isso no sentido originário de que ele apresenta pela primeiríssima vez a possibilidade interna para todo e qualquer em-virtude-de-ti, em-virtude-dele, em-dirtude-disso que se determine faticamente. (DEF, 53)
Com isso, o mundo fático não encerra em si mesmo apenas a significação dos utensílios em geral, mas também uma série de compreensões medianas acerca dos mobilizadores estruturais e de outras noções relativas ao ser-aí. Ele se revela como significância, como a totalidade de ligações a partir das quais o ser-aí "se dá a compreender previamente o seu ser-no-mundo" (ST, § 18, 87). O ser-aí como ser-no-mundo encontra-se assim inicialmente jogado em uma estrutura significativa complexa com a qual ele paulatinamente se familiariza e que torna ao mesmo tempo possível a construção de seu projeto existencial singular. De acordo com as palavras do próprio Heidegger no parágrafo 18 de Ser e Tempo:
A compreensão (...) retém em uma abertura prévia as relações indicadas. Detendo-se nesta familiaridade, a compreensão se atém a essas relações como o contexto em que se movem as suas referências. A própria compreensão se deixa referenciar nessa e para essas relações. O caráter de relação destas relações de referência apreendemos como a ação de dar significado. Na familiaridade com estas relações, o ser-aí dá o significado para si mesmo, ele dá a compreender originariamente o seu ser e o seu poder-ser de acordo com o seu ser-no-mundo. (Idem, 87)
Mas como precisamos entender aqui essa associação entre compreensão e significação?
A passagem acima nos fala de uma certa familiaridade da compreensão com certas relações indicadas. Por essa familiaridade, Heidegger não tem em vista a princípio senão a segurança e a confiabilidade que o ser-aí vai paulatinamente adquirindo em meio à pluralidade de referên-cias dadas em seu mundo fático e que permitem de início e na maioria das vezes uma fluidez e uma continuidade dos movimentos cotidianos. Jogado em um mundo determinado, o ser-aí sempre se encontra a cada vez inserido em uma totalidade conjuntural sedimentada que ele aprende a recortar praticamente a partir de mobilizadores estruturais também disponíveis em seu mundo. Com isso, esta totalidade conjuntural não é mobilizada de início e na maioria das vezes senão em virtude do próprio mundo: ou seja, em virtude dos modos de uso, das relações materiais, das remissões levadas a termo em virtude de possibilidades existenciais do ser-aí etc que se mostram como vigentes no espaço compartilhado que cada mundo é. No entanto, o mundo fático nunca se reduz a essas referências. Ao contrário, ele sempre traz consigo ao mesmo tempo uma certa conceptualidade herdada, concepções e interpretações cristalizadas na esfera pública. No que concerne a uma tal miríade de referências e a essa conceptualidade, a passagem acima nos fala sobre uma certa retenção. A compreensão como a instância responsável pela construção do espaço de jogo no interior do qual o ser-aí concretiza seu poder-ser retém em uma abertura prévia (pré-ontológica) as relações que constituem faticamente o seu mundo. Ela desempenha uma tal função, na medida em que promove uma adequação entre as ações e estas relações. Assim, as mais diversas ações tendem de início e na maioria das vezes a se manter em meio a um contexto referencial e simplesmente lançar mão de concepções dadas. Como vimos nos últimos parágrafos, porém, a inserção plena na dinâmica da ocupação não implica uma supressão radical de toda e qualquer clareza quanto ao ser dos entes em geral e uma realização quase maquinal das atividades ocupacionais em geral. Nós descobrimos muito mais neste contexto o que os entes propriamente são e assim conseqüentemente o que eles significam, assim como vamos aos poucos aprendendo a operar com as concepções e interpretações medianas. Em meio à convivência com outros seres-aí em um horizonte utensiliar qualquer não aprendemos apenas a acompanhar a complexidade das referências em jogo nesse espaço, mas a pensar como se pensa, a falar como se fala, a ser como se é. Este fato está por sua vez expresso na passagem supracitada por meio da associação entre relação e significação: "O caráter de relação destas relações de referência apreendemos como a ação de dar significado". Portanto, não temos na cotidianidade apenas uma totalidade conjuntural que promove a utilização mediana dos utensílios a partir de um certo conjunto de referências, mas também temos ao mesmo tempo as próprias referências funcionando como um manancial de significados que torna possível tanto a fixação do que os entes em geral são quanto a determinação compreensiva do poder-ser que o ser-aí é. Se temos clareza quanto a esse ponto, uma pergunta impõe-se como que por si mesma: como é afinal que precisamos entender efetivamente a conexão entre relações cotidianas e significância? Qual o sentido próprio a esta afirmação de que o ser-aí dá o significado a si mesmo a partir da familiaridade com o modo cotidiano de abertura do ente na totalidade? A resposta a essas questões exige uma análise da concepção de linguagem presente em Ser e Tempo. Heidegger nos diz no parágrafo 34 dessa obra:
O discurso é co-originário à disposição e à compreensão. Compreensibilidade também já está sempre articulada antes da interpretação apropriadora. Portanto, ela já se encontra à base da interpretação e da enunciação. Nós denominamos sentido o que já se mostra como articulável na interpretação, e, por conseguinte, mais originariamente ainda, no discurso. Nós denominamos totalidade significativa o que é estruturado na articulação discursiva. Esta totalidade pode ser desmembrada em significações. Enquanto o que é articulado do articulável, as significações sempre são dotadas de sentido. Se o discurso, a articulação da compreensibilidade do aí, é um existencial originário da abertura, mas esta é primariamente constituída por meio do ser-no-mundo, então o discurso também precisa ter essencialmente um modo de ser especificamente mundano. A compreensibilidade dispositiva do ser-no-mundo expressa-se como discurso. A totalidade significativa da compreensibilidade vem à palavra. Para as significações brotam palavras. Mas as palavras não são coisas munidas de significados. (ST, § 34, 161)
Compreensão e discurso
Com a passagem acima vemo-nos diante dos elementos centrais da concepção heideggeriana do discurso. O que está aí inicialmente em questão é a relação entre discurso (Rede), disposição (Befindlichkeit) e compreensão (Verstehen). Essa relação repousa sobre a dita familiaridade do ser-aí com o abertura cotidiana do ente na totalidade, com a dimensão pré-ontológica na qual o ser-aí se encontra de início e na maioria das vezes inserido. O termo disposição aponta diretamente para o modo como o ser-aí a cada vez se descobre em meio a uma tal abertura. Na medida em que o ser-aí é um ente marcado essencialmente por seu caráter existencial e não se mostra senão como um poder-ser, ele não pode apreender a abertura do ente na totalidade por meio de alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade.16 Ao contrário, é preciso que alguma instância compatível com a sua existencialidade e com o seu poder-ser viabilize essa experiência. A disposição é uma tal instância. Traduzindo ao pé da letra, a palavra alemã Befindlichkeit designa o fato de alguém se encontrar de uma certa maneira. Assim, a disposição precisa ser pensada em seu sentido efetivamente locativo. A cada momento em que o ser-aí se apresenta, ele já sempre conquista a si mesmo a partir de um modo possível de encontrar-se. Estes modos possíveis sempre apontam por sua vez para tonalidades afetivas (Stimmungen) que afinam radicalmente o espaço existencial da abertura e perpassam a própria convivência entre os seres-aí em geral. Por intemédio da ligação estrutural da disposição com as respectivas tonalidades afetivas descobrimo-nos faticamente no interior de um mundo determinado.17 Em sintonia com a descoberta dessa facticidade opera incessantemente a compreensão. Como Heidegger reiteradamente afirma em Ser e tempo, o ser-aí é um ente diverso de todo ente simplesmente subsistente em geral porque ele é um ente marcado essencialmente pelo caráter de poder ser. Tudo o que ele é ganha corpo inexoravelmente no interior de uma certa dinâmica existencial em que se constrói o âmbito mesmo de realização da possibilidade que ele sempre a cada vez é. Todavia, essa dinâmica e essa construção não se perfazem em meio a uma absoluta ausência de limites. Ao contrário, a experiência da facticidade lhe faz incessantemente companhia. Exatamente por isto, Heidegger procura pensar a compreensão, como instância responsável por uma tal construção do poder-ser que o ser-aí é, em ressonância de fundo com a disposição. A disposição traz à tona consigo a totalidade do horizonte fático de realização do ser-aí: ela o coloca em sintonia com o mundo que é o seu, promovendo o processo de familiarização com as referências e determinações medianas características deste mundo. No entanto, como o ser-aí nunca é uma coisa já prontamente constituída no interior desta malha, ele sempre carece de uma outra instância que projete o seu poder-ser a partir deste horizonte. Essa outra instância não é outra senão a compreensão.
Heidegger não toma a compreensão como um simples correlato de nossa capacidade intelectiva de apreensão do significado de certos termos, coisas ou estados de coisa. Ele a assume muito mais desde o princípio como o "ser existencial do próprio poder-ser do ser-aí" (ST, § 31, 144). Assim, a compreensão não se mostra como uma faculdade entre outras de um ente marcado pelo caráter de coisa por si subsistente. Ela se revela antes como o próprio modo de realização desse ente que é essencialmente um poder-ser, um existente. Quanto a esse modo de realização, o decisivo é justamente a junção entre facticidade e poder-ser. O ser-aí não é originariamente uma coisa dotada de uma qüididade específica e não possui por conseguinte a sua verdade ôntica na descoberta de suas propriedades essenciais.18 Ele não é em si mesmo nem racional nem irracional, nem ser-vivo nem não-ser-vivo, nem trabalhador nem não-trabalhador, etc. Tudo o que ele é, ele é desde a concretização do poder-ser que é. No entanto, esta possibilidade essencial ao ser-aí nunca se configura de maneira totalmente ilimitada. Ela encontra muito mais no interior da facticidade de seu mundo os limites estruturais do campo de jogo no qual pode efetivamente se conformar. Dito de outra maneira, o poder-ser já sempre se mostra a cada vez a partir de um cerceamento originário do espaço de sua realização possível. A compreensão trabalha em sintonia com esse cerceamento e projeta por meio daí o campo de jogo acima mencionado. Até que ponto essa projeção se confunde com uma compreensão primária do mundo sedimentado, podemos ver agora rapidamente por intermédio de um pequeno trecho do parágrafo 18 de Ser e tempo:
Se convém essencialmente ao ser-aí o modo de ser do ser-no-mundo, então pertence à consistência essencial de sua compreensão de ser o compreender do ser-no-mundo. A abertura prévia daquilo em relação ao que tem lugar a liberação do que vem ao encontro no mundo não é nada além do compreender do mundo, ao qual o ser-aí já sempre se liga como ente. (ST, § 18, 86)
A compreensão abre o espaço de jogo em meio ao qual se estruturam as possibilidades existenciais do ser-aí. Esse espaço jamais consiste em um âmbito de pura ilimitação, mas sempre se articula por princípio com a facticidade do mundo do ser-aí. Dessa forma, o próprio surgimento do espaço de jogo experimenta inicialmente um certo fechamento. Um tal fechamento aponta por sua vez para a totalidade de significados que vêm à tona juntamente com o horizonte referencial de determinação do ser dos entes intramundanos em geral. De início e na maioria das vezes vemo-nos lançados sem travas na lógica da ocupação e é no interior dessa lógica que conquistamos não apenas uma apreensão do que os entes são, mas também e principalmente do que nós podemos ser. Nas palavras de Heidegger no parágrafo 55 de Ser e tempo:
Por meio da abertura, o ente que denominamos ser-aí se encontra na possibilidade de ser seu aí. Com seu mundo, ele está aí para ele mesmo, e, em verdade, de início e na maioria das vezes de tal modo que abre para si o poder-ser a partir do "mundo" da ocupação. O poder-ser que perfaz o modo como o ser-aí existe já sempre se entregou a cada vez a possibilidades determinadas. E isso porque ele é um ente jogado, cujo caráter de jogado é aberto de maneira mais ou menos distinta e incisiva por intermédio do estar afinado. À disposição (tonalidade afetiva) pertence de forma igualmente originária a compreensão. (ST, § 55, 271)
O que temos aqui é com isso uma nítida articulação entre as possibilidades existenciais do ser-aí e os modos de ocupação possíveis com os entes intramundanos em sua manifestação primordial enquanto utensílios. Retomando o exemplo do martelo anteriormente citado, esse ente não se determina em sua significação própria a partir de uma essencialidade previamente constituída, mas só se mostra como martelo em meio à abertura do horizonte integral de significações (uma totalidade conformativa) que caracteriza a cada vez um mundo específico. O seu significado é em suma um resultado do estabelecimento de uma relação referencial em um mundo fático em particular. No momento em que esse significado se apresenta, ele orienta ao mesmo tempo os modos possíveis de ocupar-me com ele. Mesmo os usos mais inusitados que possamos fazer de um martelo repousam sobre a totalidade conformativa a partir da qual ele vem ao nosso encontro como martelo. O que equivale nesse contexto a dizer que as ações possíveis dos seres-aí em sua lida cotidiana com os entes intramundanos em geral são originariamente reguladas pela significância, pelo mundo fático como totalidade conformativa. Essa regulação das ações possíveis dos seres-aí em geral pela significância enquanto totalidade de remissões e de mobilizadores estruturais de tais remissões cunha uma via de acesso efetiva à concepção heideggeriana do discurso em Ser e tempo.
Logo no início da passagem do parágrafo 34 citada anteriormente por nós, Heidegger afirma a cooriginariedade de disposição, compreensão e discurso. A afirmação remete-nos para a integralidade de um mesmo fenômeno que podemos designar agora como o fenômeno da aber tura do mundo fático. Até aqui temos considerado apenas a ligação entre compreensão e disposição. De maneira sucinta podemos dizer que a disposição (as tonalidades afetivas) nos coloca em sintonia com o mundo enquanto a totalidade do espaço determinado de convivência dos seres-aí e que a compreensão projeta o poder-ser essencial a cada um deles a partir dos limites fornecidos por esse espaço.19 No interior desse contexto, o discurso não se perfaz como um elemento extrínseco. Ao contrário, ele é explicitamente definido pelo autor como a "articulação significativa da compreensibilidade dispositiva do ser-no-mundo" (ST, § 34, 162). Essa definição pode assustar à primeira vista, mas não diz nada além do que já apresentamos acima. A expressão "compreensibilidade dispositiva" não designa nesse contexto senão a ligação essencial do poder-ser com a facticidade que sempre tem lugar na existência dos seres-aí singulares em geral. Como tivemos a oportunidade de acompanhar nos últimos parágrafos, as significações dos entes intramundanos e as orientações para as ações dos seres-aí em geral não nascem em um âmbito de pura idealidade. O ser dos entes intramundanos emerge antes a partir de sua conformidade com a abertura das relações referenciais em que incessantemente estão imersos e determina o modo como podemos lidar com eles. Na medida em que essa abertura não é apreendida teoricamente, mas projetada existencialmente pela compreensão dispositiva, a relação mesma entre compreensão e disposição se revela como a instância na qual se cunham as mais diversas significações. No entanto, se as significações surgem realmente da relação da compreensão com a disposição e as possibilidades do discurso se fundam em modos de expressão respaldados pelas significações, então o discurso também repousa sobre uma tal relação. Toda e qualquer interpelação discursiva dos entes está enfim originariamente enraizada em uma abertura prévia do âmbito de compreensibilidade que vem à tona a partir da significância fática.20 Por exemplo, precisamos anotar uma informação importante, estamos sem qualquer utensílio adequado para a escrita à mão e perguntamos assim educadamente a alguém ao nosso lado: "será que você poderia me emprestar uma caneta?" Tomando essa proposição em consideração, uma série de momentos estruturais vão se revelando. Em primeiro lugar, a própria interpretação da situação é estabelecida a partir de um certo horizonte. Nosso dia nunca é marcado apenas por anotações, mas sempre envolve necessariamente uma miríade de atividades diversas. Nós nos levantamos da cama, escovamos os dentes, penteamos o cabelo, ligamos o carro e dirigimos, sentamos na cadeira do escritório, saímos para pegar um café, etc. Em cada uma dessas atividades não nos movimentamos às cegas, mas recebemos incessantemente orientações da compreensibilidade dispositiva. Em cada uma delas já nos vemos de antemão diante de um campo de possibilidades aberto pela compreensão no qual uma série de atividades se mostram como possíveis e mesmo desejáveis. Tal como Heidegger afirma na passagem citada do parágrafo 34: "Compreensibilidade também já está sempre arti-culada antes da interpretação apropriadora. Portanto, ela já se encontra à base da interpretação e da enunciação" (idem, 161). Isso significa em última análise que interpretamos de início e na maioria das vezes o que precisamos e desejamos fazer a partir da relação entre compreensão e disposição. No instante em que a interpretação articula uma possibilidade de compreensão, surge o horizonte conjuntural de uma ocupação determinada. Nós precisamos anotar uma informação importante. Esse horizonte viabiliza então simultaneamente o aparecimento de um ente específico como o utensílio que serve para o desempenho de uma tal ocupação, como o utensílio que serve para escrever. Conseqüentemente, dizemos: precisamos de uma caneta. Portanto, a proposição expressa nasce de um âmbito de compreensibilidade já anteriormente constituído e retira desse âmbito não apenas o seu sentido, mas também o sentido de outras proposições similares que poderiam ter sido expressas. Mais ainda: como a proposição se direciona a um outro, ela implica uma certa interação comunicativa. E essa também está por sua vez fundada na abertura do horizonte significativo que sempre tem lugar a cada vez por intermédio da relação entre compreensão e disposição.
Nós procuramos apresentar acima de maneira bastante sucinta a articulação entre discurso, compreensão e disposição. Como vimos, as múltiplas possibilidades do discurso no interior da cotidianidade mediana não repousam senão sobre o solo significativo previamente constituído pela compreensão dispositiva. Tudo o que dizemos e podemos dizer ganha corpo em sintonia com a totalidade conjuntural enquanto o espaço de determinação ontológica dos entes intramundanos em geral. Portanto, as possibilidades discursivas estão essencialmente associadas com uma experiência anterior de abertura de um horizonte no qual os entes se mostram como os entes que são. Essa experiência nunca é um privilégio de um ser-aí singular em específico, mas é antes incessantemente compartilhada por todos os seres-aí que convivem em um mesmo mundo fático. Com isso, eles não são originariamente capazes de entender uns aos outros porque são dotados de alguma faculdade racional que torna possível a dedução do conteúdo significativo de proposições, mas sim porque tomam parte na mesma abertura. Heidegger nos diz isso em uma difícil passagem do parágrafo 33 de Ser e tempo:
Enunciar é deixar ver concomitantemente o que é apresentado na medida em que o determinamos. O deixar ver comunica aos outros o ente apresentado em sua determinação. O que é "partilhado" é o ser para o que é apresentado, um ser marcado pela visão comum. Esse "ser em relação a" precisa ser mantido como ser-no-mundo, no mundo, a saber, no mundo a partir do qual o que é apresentado vem ao encontro. À enunciação enquanto a comun-icação assim existencialmente compreendida pertence o ter sido expressa. O enunciado enquanto comunicado pode ser "partilhado" pelos outros com o enunciador, sem que eles mesmos tenham o ente presente e determinado em uma proximidade paupável e visível. O enunciado pode ser "transmitido". O círculo do compartilhamento na visão se amplia. (ST, § 33, 155)
Heidegger funda o fenômeno da comunicação no acontecimento originário da abertura da significância. Comunicar não é simplesmente entregar uma mensagem dotada de sentido a um outro que está a princípio em condições de apreender esse sentido. Não são aqui as mensagens que têm sentido e que tornam assim possível a sua intelecção. Ao contrário, a comunicação tem por base um certo deixar-ver intrínseco à própria enunciação. No que se enuncia uma determinada sentença, torna-se ao mesmo tempo possível a visualização do ente sobre o qual versa a sentença. Essa visualização repousa sobre a participação em um horizonte comum no interior do qual o ente se revela como o ente que é. O que é partilhado não é assim um conteúdo significativo previamente dado nos termos usados em uma sentença, mas uma relação com o que é apresentado. Retoma-se aqui a experiência existencial de inserção na totalidade conjuntural a partir da qual se constitui a própria manifestação do ente enquanto tal. Exatamente por isso, Heidegger nos fala acima que a relação mesma "precisa ser mantida como ser-no-mundo, no mundo, a saber, no mundo a partir do qual o que é apresentado vem ao encontro". Por meio da enunciação comunica-se, portanto, uma experiência visual que tem por base um mundo comum e é somente a partir dessa experiência que se pode chegar a uma intelecção do conteúdo significativo de proposições. Ora, essa posição impõe-nos simultaneamente a colocação de uma pergunta: se a enunciação é efetivamente "apresentação que determina comunicativamente" (idem, p. 156); se ela deixa ver o ente por meio da remissão a um horizonte de significação previamente constituído; e se a significação já se encontra, além disto, de antemão decidida no interior da facticidade intrínseca à totalidade referencial característica de cada mundo, então qual a implicação disso para o modo de constituição da existência impessoal? Como se dá o discurso no interior da cotidianidade mediana do ser-aí?
A abertura do aí abre co-originariamente todo o respectivo ser-no-mundo, isto é, o mundo, o ser-em e o si-próprio que esse ente é como "eu sou". Com a abertura de mundo já está sempre a cada vez aberto o ente intramundano. A descoberta do manual e do ente por si subsistente funda-se na abertura do mundo; pois a liberação do manual exige uma pré-compreensão da significância. Compreendendo-a, o ser-aí ocupado se remete circunvisivamente para o manual que vem ao encontro. A compreensão da significância como abertura do respectivo mundo funda-se uma vez mais na compreensão do em-virtude-de, ao qual todo descobrir da totalidade conjuntural remonta (...). Jogado em seu "aí", o ser-aí sempre está referido a cada vez a um - seu - mundo determinado. Em sintonia com isso, os projetos fáticos iniciais são conduzidos pela dispersão ocupada no impessoal. (ST, § 60, 297)
Impessoalidade e linguagem cotidiana
No que concerne à abertura da dimensão pré-ontológica na qual o ser-aí se encontra de início e na maioria das vezes imerso, o que nos interessa aqui efetivamente está expresso por meio da afirmação de uma pré-compreensão da significância como constitutiva da abertura dos utensílios e dos entes por si subsistentes em geral. Essa afirmação sintetiza de alguma forma o horizonte estrutural da existência impessoal e viabiliza ao mesmo tempo uma primeira via de acesso à concepção heideggeriana da linguagem cotidiana. O termo significância não designa aqui o conteúdo específico de uma palavra, mas é antes pensado como totalidade de significações. As significações repousam por sua vez sobre relações referenciais em meio às quais os entes intramundanos se mostram como os entes que são. Dessa forma, a significância aponta para uma estrutura semântica complexa que tem o seu solo de enraizamento no espaço de jogo do mundo das ocupações. Uma tal estrutura não é incessantemente criada pelos seres-aí individuais a partir de suas competências próprias, mas encontra-se intrinsecamente articulada com o seu mundo fático determinado. Cada mundo fático tem em outras palavras a sua significância específica. Dizer isso equivale a afirmar o seguinte: no momento em que se dá a abertura do mundo, tem lugar imediatamente a abertura da significância relativa a esse mundo. Como vimos anteriormente, os seres-aí não têm de início e na maioria das vezes uma atitude teórica ante a abertura do mundo fático. Eles sempre se movimentam inversamente no interior de referências que acompanham inces santemente os usos que fazem dos utensílios em geral. Agindo assim, porém, eles nunca se comportam cegamente. Ao contrário, eles sempre se colocam maximamente de acordo com a significância previamente estabelecida. E é exatamente esse acordo que aparece acima denominado como a pré-compreensão da significância. A compreensão projeta o campo de possibilidades de realização do ser-aí, mas o faz desde o princípio a partir dos limites significativos fáticos de seu mundo. Uma vez que a significância vem à tona juntamente com o mundo e não se constrói somente a posteriori em meio aos caminhos singulares do ser-aí, o discurso tomado como arti-culação da compreensibilidade já está de início e na maioria das vezes concretizado. Expresso em termos heideggerianos, o discurso (Rede) impessoal é falatório (Gerede).
Se considerarmos apenas o uso corrente das palavras, a equiparação do discurso impessoal com o falatório tende a ser entendida como uma desqualificação da experiência cotidiana e como o ponto de partida para a descrição de uma outra dimensão mais própria. No entanto, essa tendência provém necessariamente de uma perda de certas nuanças etimológicas inerentes aos dois vocábulos em alemão. O substantivo alemão Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa "falar". O particípio dos verbos em alemão é feito na maior parte das vezes por meio da inserção da partícula "ge". Assim, temos kaufen (comprar) e ge-kauft (comprado), lieben (amar) e ge-liebt (amado), finden (achar) e ge-funden (achado). Essa relação entre presente e particípio é fundamental para a concepção heideggeriana da linguagem cotidiana. O que temos na cotidianidade mediana do ser-aí é falatório não porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da linguagem impessoal e porque sempre é possível acompanhar a falta de profundidade desses discursos. Ao contrário, ele é falatório porque não se realiza senão a partir de um movimento a priori já concluído - o que se confunde com a própria idéia do particípio passado. Mas como precisamos entender afinal esse caráter de particípio passado do discurso cotidiano?21 Em que medida o falatório repete um discurso de antemão já determinado? Heidegger responde a essas perguntas em uma passagem do parágrafo 35 de Ser e tempo:
A palavra "falatório" não deve ser usada aqui em uma significação depreciativa. Ela designa terminologicamente um fenômeno positivo que constitui o modo de ser do compreender e do interpretar do ser-aí cotidiano. O discurso se expressa na maioria das vezes e já sempre se expressou. Ele é linguagem. Todavia, compreensão e interpretação já residem a cada vez no que foi expresso. A linguagem como o ter-sido-expresso guarda em si o acontecimento de uma interpretação da compreensão do ser-aí. Assim como a linguagem, esse acontecimento também não está simplesmente presente como um ente subsistente. Ao contrário, seu ser é ele mesmo consoante ao ser-aí. De início e em certos limites, o ser-aí está constantemente entregue à sua tutela: ela regula e distribui as possibilidades do compreender mediano e da disposição pertinente. O ter-sido-expresso assegura no todo de suas conexões significativas articuladas uma compreensão do mundo aberto, e, de modo cooriginário, uma compreensão do co-ser-aí dos outros e do ser-em a cada vez próprio. A compreensão que já se encontra com isso por detrás do ter-sido-expresso diz respeito tanto à descoberta a cada vez alcançada e transmitida do ente, quanto à respectiva compreensão de ser e às possibilidades e horizontes disponíveis para interpretações a serem retomadas e para a articulação conceitual. (ST, § 35, 167-68)
O texto inicia-se com uma explicitação do que dissemos acima: o termo "falatório" não envolve aqui um juízo de valor negativo em relação à linguagem cotidiana. A justificativa para uma tal posição encontra-se em uma ligação direta com o próprio fenômeno do falatório. O falatório não é um estado de coisas contingente, característico de uma determinada época do desenvolvimento histórico das sociedades. Algo como um traço peculiar da cultura de massas e da medianização avassaladora dos discursos que lhe é característica. Ele é muito mais constitutivo do "modo de ser do compreender e do interpretar do ser-aí cotidiano". Em que medida ele desempenha um tal papel, podemos considerar agora a partir de uma análise do conceito de expressão. Heidegger nos diz acima que "o discurso se expressa na maioria das vezes e já sempre se expressou". O que ele tem em vista com a noção de "expressão do discurso" aponta para aquela articulação entre compreensão, disposição e discurso. A compreensão projeta o campo de possibilidades de realização dos entes intramundanos e dos seres-aí em geral, mas o faz sempre a partir de uma circunscrição prévia à facticidade de um mundo determinado - um mundo para o qual ela se abre a cada vez por intermédio das tonalidades afetivas, das disposições. Dessa junção entre compreensão e facticidade vem à tona ao mesmo tempo o âmbito de compreensibilidade: o âmbito do que há de efetivamente possível e do que é por conseguinte dotado de sentido no interior de tais limites fáticos. A conformação desse âmbito não envolve o aparecimento de estruturas não lingüísticas, uma vez que se perfaz antes como totalidade de significados ou como significância. Desse modo, a interação entre compreensão e disposição traz consigo necessariamente o acontecimento da linguagem. Na medida em que tudo o que fazemos ou podemos fazer surge de início e na maioria das vezes a partir desse âmbito, não há como negar que ele condiciona a priori o compreender e o interpretar do ser-aí cotidiano; ou seja, as dimensões que estruturam o próprio poder-ser do ser-aí cotidiano. Assim, o discurso enquanto existencial do ser-aí não é algo que se construa a posteriori. E não porque as significações já se acham desde o início previamente vigentes e por si subsistentes no interior dos dicionários, mas porque o discurso já sempre se realiza juntamente com a abertura do mundo determinado em que cada ser-aí se vê originariamente jogado. A abertura do mundo fático tem conseqüentemente por correlato a expressão do discurso. Mas se o discurso já foi desde sempre expresso e o ser-aí cotidiano vive sob o seu domínio, então não podemos senão afirmar o discurso mediano como uma repetição exaustiva dessa expressão originária. E não apenas o discurso mediano tomado como um conjunto de proposições dotadas de um certo caráter específico. Por constituir a compreensão e a interpretação próprias à cotidianidade mediana do ser-aí, esse domínio se estende de início e na maioria das vezes sobre todas as possibilidades de ação e inação do ser-aí. O ser-aí acha-se medianamente sob a tutela do discurso já expresso.
Nós podemos considerar agora mais claramente a amplitude de uma tal tutela. Como vimos acima, a linguagem determina de início e na maioria das vezes enquanto totalidade de significações o que fazemos e o que podemos fazer. Ela orienta de tal modo a constituição de nossas ações que mesmo as nossas escolhas e desejos se enraízam em possibilidades aí estruturadas. Nas palavras de Heidegger:
O projetar-se compreensivo do ser-aí como um ser-aí fático já está sempre a cada vez junto a um mundo descoberto. A partir desse mundo descoberto - e inicialmente de acordo com a interpretação levada a termo no impessoal - ele toma as suas possibilidades. Essa interpretação já restringiu desde o princípio as possibilidades de escolha livre ao âmbito do já conhecido, alcançável, suportável, do que convém e se recomenda. (ST, § 41, 194-95)
Assim, temos aqui efetivamente uma regulação e uma distribuição das "possibilidades do compreender mediano e da disposição pertinente": um estabelecimento prévio do campo de ação da compreensão mediana e do modo como o ser-aí se acha lançado em um tal campo. Esse modo não se reduz por sua vez a uma sensação particular de cada ser-aí, ele se constitui muito mais como a afinação fundamental da própria convivência dos seres-aí entre si. Isso significa dizer que o ter-sido-expresso do discurso como totalidade de significações não impera apenas sobre as múltiplas ocupações particulares dos seres-aí, mas também originariamente sobre os modos de convivência dos seres-aí entre si. Esse fato é decisivo no que concerne ao fenômeno do falatório, na medida em que descreve diretamente o papel da noção de comunicação na concepção heideggeriana do discurso. A tutela da expressão já sempre levada a termo no discurso e o falatório enquanto repetição incessante do que já foi expresso ganham corpo em meio à participação em um modo específico de comunicação. Heidegger nos fala sobre a relação entre discurso, falatório e comunicação no parágrafo 35 de Ser e tempo:
Discurso que se expressa é comunicação. A tendência ontológica da comunicação visa a fazer com que o ouvinte participe no ser aberto para o que é discutido no discurso. De acordo com a compreensibilidade mediana que já reside na linguagem falada em meio ao expressar-se, o discurso comunicado pode ser amplamente compreendido sem que o ouvinte seja trazido para o interior de um ser originariamente compreensivo em relação ao "sobre o quê" do discurso. Não se compreende tanto o ente discutido, mas já se escuta apenas o falado (Geredete) como tal. Esse é compreendido, o "sobre o quê" apenas aproximadamente, por alto; visa-se ao mesmo porque se compreende o dito conjuntamente na mesma medianidade. O ouvir e o compreender se colaram previamente ao falado como tal. A comunicação não "partilha" a ligação ontológica primária como o ente discutido, mas a convivência se move no falar um com o outro e na ocupação com o que é falado. O seu empenho é que se fale. O que se diz, o dito e a dicção se empenham agora pela autenticidade e objetividade do discurso e de sua compreensão. Por outro lado, dado que o discurso perdeu ou jamais alcançou a ligação ontológica primária com o ente discutido, ele nunca se comunica no modo de uma apropriação originária desse ente, contentando-se com repetir e passar adiante a fala. O falado no falatório arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo um caráter autoritário. As coisas são assim como são porque delas se fala assim. Nisso se constitui o falatório. (ST, § 35, 168)
O texto acima inicia-se com uma afirmação que carece de uma explicitação inicial: "discurso que se expressa é comunicação". Tal como vimos nos últimos parágrafos, o discurso já sempre se encontra a cada vez expresso juntamente com a abertura de mundo. No momento em que se conforma o horizonte significativo que mundo é e os entes intramundanos se mostram aí respectivamente como os entes que são, o discurso é simultaneamente firmado e sedimentado. A cada ente alia-se então uma significação, à qual se liga em seguida uma palavra. Com isso, a experiência originária do ter-sido-expresso do discurso não repousa senão sobre a abertura do mundo fático, sobre a totalidade conjuntural em que cada ente intramundano se determina a cada vez ontologicamente. Esse estado de coisas traz consigo uma conseqüência imediata: o discurso já sempre encerra em si a mostração do ente de que é discurso e as palavras se referem essencialmente a esse acontecimento. Na mostração do ente enquanto tal está fundado ao mesmo tempo o fenômeno da comunicação. Portanto, a comunicação não é promovida pela capacidade intelectiva do ouvinte de apreender o conteúdo significativo das proposições expressas pelo falante. O que garante a sua efetividade não é nenhuma faculdade racional, mas a intelecção de significações proposicionais já sempre pressupõe antes inversamente a abertura do espaço no interior do qual o discurso se expressa e o ente vem à tona como o ente que é. Dessa forma, o fenômeno da comunicação aponta para uma participação dos seres-aí que compartilham de um mesmo mundo no espaço de determinação ontológica dos entes intramundanos em geral. Pode-se falar assim sem maiores problemas de uma "tendência ontológica da comunicação". Em meio à interação comunicativa, o ouvinte se acha lançado em uma experiência conjunta de visualização do ente discutido em seu ser. O modo como essa visualização se dá é contudo decisivo para a articulação entre discurso, comunicação e falatório.
De acordo com o que tivemos a oportunidade de acompanhar acima, o fenômeno da comunicação é inteiramente condicionado pela abertura de mundo.22 Essa abertura constitui-se inicialmente não a partir de um âmbito teórico de tematização e problematização do ser dos entes intramundanos em geral, mas sim a partir da predominância total da lógica da ocupação. É em meio à lida com os entes intramundanos que esses entes se mostram como os entes que são e que vamos ao mesmo tempo nos familiarizando com as interpretações medianas vigentes em nosso mundo. Na medida em que os entes surgem, porém, de início e na maioria das vezes a partir de uma tal lida e o campo de jogo das mais diversas ocupações não funciona a princípio senão como espaço de veiculação de interpretações medianas já sedimentadas, o ser-aí não possui nesse caso senão uma compreensão vaga e indeterminada do ser dos entes e do sentido efetivo dos elementos em jogo em suas mais diversas interpretações. Assim, para o ser-aí imerso na cotidianidade mediana sempre vale a máxima de que todos sabem tudo até que alguém pergunte o que é isso que todos sabem. De início e na maioria das vezes sempre impera em suma uma certa obscuridade em relação a determinações ontológicas em geral, que repercute diretamente sobre o modo de manifestação dos entes, entregando-lhes uma uniformidade específica e dissolvendo as suas diferenças estruturais. Conforme uma passagem paradigmática da preleção de 1929/30, Os conceitos fundamentais da metafísica (mundo - finitude - solidão):
De início e na maioria das vezes, na cotidianidade de nosso ser-aí, deixamos muito mais o ente se aproximar de nós em uma estranha indistinção e ser um ente por si subsistente. Não que todas as coisas confluam umas para as outras indistintamente - ao contrário, somos sensíveis à multiplicidade de conteúdos do ente que nos envolve, nunca estamos satisfeitos com as mudanças e somos ávidos por novidades e por alteridade. No entanto, o ente que nos envolve está aí homogeneamente manifesto como o justamente subsistente por si no sentido mais amplo possível;há terra e mar, montanhas e florestas, e, em tudo isto, há animais e plantas; há homens e obras humanas, e, no interior de tudo isto, nós mesmos também. (CFM, 315-16)
Como a comunicação se enraiza em uma tal experiência primária do ente, ou seja, em uma compreensão marcada originariamente pela ausência de uma apropriação originária do ser dos entes em geral, o que se comunica remonta então incessantemente a essa abertura mediana do mundo fático. Por isso, podemos efetivamente compreender amplamente o discurso comunicado, sem que essa compreensão traga consigo "um ser originariamente compreensivo em relação ao sobre o que do discurso". Tem-se em outras palavras uma difusão do que foi expresso pelo discurso, mas não se chega a problematizar o ente propriamente dito.23 Esse modo de difusão do discurso no interior da interação comunicativa cotidiana traz à tona por fim a vigência máxima do falatório. Em meio à cotidianidade mediana do ser-aí, o ente na totalidade perde as suas determinações ontológicas próprias e é homogeneizado segundo o caráter de uma coisa por si subsistente. Tudo é aí indistintamente assumido como subsistindo em si mesmo, por mais que sempre possamos atribuir diferenças à pluralidade multiforme dos entes singulares. Essa indistinção é um traço essencial do acontecimento mesmo da abertura do mundo fático em que cada ser-aí se vê de início e na maioria das vezes lançado. Ela perpassa originariamente o processo de formação das significações e de expressão do discurso, de modo que o fato de o discurso já sempre ter-sido-expresso repousa desde o princípio sobre uma tal indistinção. Dessa maneira, a relação do discurso com o ente de que trata é marcada pela falta de uma real ligação ontológica. A linguagem cotidiana não faz por sua vez outra coisa senão repetir essa falta. O discurso cotidiano fala a cada vez de um ente determinado, mas jamais cria o espaço adequado para a interpretação do ser desse ente. O que é válido para a simples situação de fala, estende-se simultaneamente para o cerne da comunicação. O que é comunicado por intermédio do discurso media-no encerra em si a mesma opacidade primordial ante os entes em geral porque a comunicação não se perfaz senão por meio do compartilhamento da atitude pré-ontológica em que o ente de início e na maioria das vezes se manifesta. Com isso, o falatório é a essência da comunicação e propaga-se aí de maneira tanto mais abrangente quanto maior é a esfera do que é comunicado. Não porque em meio à comunicação nunca se diz coisa alguma, mas porque sempre se repete em toda fala o que já foi expresso no discurso. Na medida em que o discurso comunicado não traz o ouvinte para um questionamento próprio do ente sobre o qual se discute e toda atenção se volta exclusivamente para o ente expresso por meio do dis-curso, não se cunha em momento algum na comunicação um acesso ao que esse ente é. Ao contrário, permanece-se constantemente em um compartilhamento do ente em sua indistinção mediana.24 Nas palavras de Heidegger na passagem supracitada:
Não se compreende tanto o ente discutido, mas já se escuta apenas o falado (Geredete) como tal. Esse é compreendido, o sobre o que apenas aproximadamente, por alto; visa-se ao mesmo porque se compreende o dito conjuntamente na mesma medianidade. O ouvir e o compreender se colaram previamente ao falado como tal. A comunicação não "partilha" a ligaçã25o ontológica primária como o ente discutido, mas a convivência se move no falar um com o outro e na ocupação com o que é falado. O seu empenho é que se fale.
Mas qual é a conseqüência de uma tal difusão do falatório? Até que ponto ele controla radicalmente até mesmo as possibilidades de conhecimento do ser dos entes em geral?
Heidegger responde a primeira dessas perguntas logo abaixo no texto, na medida em que menciona o caráter autoritário do falatório. Nós nunca falamos de início e na maioria das vezes senão a partir de significações que se abrem juntamente com a constituição fática das relações referenciais/conjunturais intrínsecas ao meu mundo. O falatório é característico da cotidianidade mediana do ser-aí porque essa cotidianidade se constrói a partir de uma repetição infinda do discurso já expresso. Essa repetição não se reduz às possibilidades discursivas medianas dos seres-aí singulares, mas perpassa essencialmente mesmo as possibilidades de sua interação comunicativa. Dessa forma, a comunicação também é marcada pela repetição do discurso expresso, pela dinâmica do falatório. Em meio a essa dinâmica retoma-se incessantemente uma atitude ontológica em relação aos entes intramundanos em geral e ao ser-aí em específico. Todos são primordialmente homogeneizados a partir da noção de uma subsistência por si: todos passam a ser desde o princípio considerados como entes por si subsistentes e detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas. Além disso, as propriedades referentes a cada ente e as possibilidades de explicitação discursiva dessas propriedades tampouco se encontram abertas. Ao contrário, o discurso fático cerceia e orienta efetivamente o movimento de construção da competência lingüística dos falantes. Ele decide de início e na maioria das vezes de antemão o que se pode e o que não se pode falar, o que se pode e não se pode pensar, o que se pode e não se pode fazer. Tal como aparece formulado na passagem supracitada: "As coisas são assim como são porque delas se fala assim". Qualquer questionamento desse discurso já expresso e retomado à exaustão no interior da comunicação cotidiana tende a ser ou bem incompreendido, ou bem considerado como sem sentido. O falatório coibe então o aparecimento de uma outra forma discursiva que se perfaça por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriação originária do ente considerado. Na medida em que a difusão do falatório aumenta, intensifica-se ainda mais esse domínio e a força de sua coerção. Até que ponto essa força se abate sobre as possibilidades de lida com os entes em geral, podemos considerar agora rapidamente em uma análise dos dois outros modos de comportamento cotidianos dos seres-aí em relação aos entes em geral: a curiosidade e a ambigüidade.
O termo curiosidade aponta correntemente para uma certa relação com o conhecimento. Nós denominamos curioso alguém que possui um desejo intenso de conhecer e experimentar coisas novas, de aprender e pesquisar sobre os temas mais diversos. A essa associação entre curiosidade e saber, Heidegger contrapõe uma outra mais fundamental. Ele nos diz logo no início do parágrafo 36 de Ser e tempo:
A constituição fundamental da visão mostra-se em uma peculiar tendência ontológica da cotidianidade para o ver. Nós a designamos com o termo curiosidade, que de maneira característica não está restrito ao ver e expressa a tendência para um modo de deixar o mundo vir ao encontro, um modo apreendedor. Nós interpretamos esse fenômeno com um intuito fundamentalmente ontológico-existencial, não segundo a estrita orientação pelo conhecimento, que, não por acaso, já cedo foi concebido na filosofia grega a partir do "desejo de ver". (ST, § 36, 170)
O que temos em meio à consideração da curiosidade como atitude fundamental do ser-aí cotidiano em relação aos entes aponta aqui para a concretização de uma certa possibilidade da visão. Essa possibilidade não é pensada onticamente a partir de uma ligação da visão com certos objetos ou tipos de objeto em específico, mas se estende desde o princípio para o modo como o mundo mesmo vem de início e na maioria das vezes ao encontro do ser-aí. Imerso na cotidianidade mediana, o ser-aí se acha jogado em uma maneira peculiar de ver a totalidade dos entes intramundanos que vêm ao seu encontro. Na passagem acima, essa maneira de ver é qualificada por intermédio do termo "apreendedor". Concomitantemente à abertura do mundo, o ser-aí vê cotidianamente os entes e essa sua visão é marcada pelo caráter da mera apreensão. O sentido dessa mera apreensão que perpassa a visão do ser-aí cotidiano pode ser alcançado a partir de uma formulação presente em uma outra passagem desse mesmo parágrafo:
O ser-no-mundo é absorvido inicialmente no mundo da ocupação. A ocupação é conduzida pela circunvisão que descobre o manual e o preserva em sua descoberta. A circunvisão fornece a todo aporte e a toda execução o caminho a seguir, o meio de levar a termo, a boa ocasião, o instante apropriado. A ocupação pode descansar, no sentido de interromper a execução com o repouso ou de finalizá-la. No repouso a ocupação não desaparece. Ao contrário, a circunvisão se torna livre, ela não está mais vinculada ao mundo da obra. Na aquietação, o cuidado se coloca em meio à circunvisão que se tornou livre. O descobrir circunvisivo do mundo da obra tem o caráter ontológico do dis-tanciar. A circunvisão que se tornou livre não tem mais nada à mão com cuja aproximação ela pudesse se ocupar. Como essencialmente dis-tanciadora, ela arranja para si novas possibilidades do dis-tanciar. Isso significa: ela tende a sair do que está inicialmente à mão e a se lançar para o mundo distante e alheio. O cuidado torna-se ocupação com possibilidades de ver o mundo, reduzindo-se esse, para aquele que está parado e em repouso, à sua aparência. O ser-aí busca o distante pura e simplesmente para aproximá-lo em sua aparência. O ser-aí se deixa tomar unicamente pela aparência do mundo, um modo de ser, no qual ele se ocupa em se ver livre de si mesmo como ser-no-mundo, livre do ser junto ao manual mais proximamente cotidiano. A curiosidade que se tornou livre se ocupa, porém, em ver não para compreender o visto, para se lançar em um ser em relação com ele, mas apenas para vê-lo. Ela busca o novo tão somente para saltar uma vez mais em direção ao ainda mais novo. (Idem, 172)
Nós nos deparamos acima uma vez mais com a afirmação de que o ser-aí é inicialmente absorvido pelo mundo da ocupação. No que concerne às tematizações empreendidas até aqui, essa afirmação não traz nenhuma novidade efetiva. O elemento novo aparece antes por meio da menção ao termo "circunvisão" (Umsicht). O sentido básico desse termo aponta para o ponto de partida do que vimos acompanhando desde o começo de nossas análises do impessoal: o fato de o ser-aí não possuir originariamente uma lida teórica com os entes intramundanos, mas se relacionar com eles de início e na maioria das vezes em meio à dinâmica do uso. Cotidianamente, os entes vêm ao nosso encontro como utensílios que requisitam de nós uma maneira de lidar com eles. Ao virem ao nosso encontro, contudo, eles nunca nos tocam puramente. Ao contrário, os utensílios já sempre se mostram desde uma totalidade conformativa que orienta a constituição das diversas possibilidades fáticas de uso e direciona a instauração de escolhas adequadas. Os utensílios se acham, em outras palavras, incessantemente jogados em uma malha referencial complexa que sustenta o surgimento dos usos específicos. Em relação a essa malha e aos utensílios que se manifestam a partir dela, nunca possuímos em meio ao uso uma ligação cognitiva. A reflexão e a tematização teórica só entram em cena no momento em que alguma perturbação radical da utensiliaridade ganha corpo e em que não podemos mais levar a termo plenamente a lógica da ocupação. Tal como aparece formulado no parágrafo 16 de Ser e tempo:
Para que na ocupação cotidiana o utensílio à mão possa vir ao encontro do "mundo circundante" em seu "ser-em-si", as referências e as totalidades referenciais nas quais a circunvisão "irrompe" precisam permanecer atemáticas para essa circunvisão, assim como também com mais razão para uma apreensão não circunvisiva e "temática". (ST, § 16, 75)
Como não lidamos com a malha referencial de início e na maioria das vezes com o auxílio de alguma faculdade cognitiva, resta a pergunta sobre o que torna possível então a movimentação precisa e habilidosa que utiliza cada coisa perfeitamente em seu contexto utensiliar. Para responder a essa pergunta, Heidegger cunha o termo "circunvisão". A circunvisão é um modo de visualização atemático dos entes que acompanha o horizonte referencial em seu universo de significações e torna possível ao mesmo tempo a ação oportuna em cada momento específico. Ela é uma visão que se aprimora incessantemente com a experiência, na medida em que interage sempre cada vez mais com as inter-relações entre as diversas serventias e os utensílios que aí se mostram como os utensílios que são.25 Mas o que vem à tona afinal juntamente com a circunvisão? Até que ponto pode-se falar aqui efetivamente de uma visão dos entes?
Nós já respondemos anteriormente a essa questão. Como tivemos a oportunidade de acompanhar atentamente, o espaço de realização da ocupação é ao mesmo tempo responsável pela determinação do ser e da significação dos entes em geral. Por meio da abertura do mundo fático e do despontar de uma totalidade conjuntural específica deparamo-nos com o que cada ente é, uma vez que é no interior dessa totalidade que cada um deles se manifesta expressamente em seu ser. No que concerne a essa manifestação, a circunvisão se mostra como a instância capaz de promover um acolhimento de suas determinações próprias e uma dinâmica consonante de uso. Portanto, ela orienta o estabelecimento da lógica da ocupação porque viabiliza a descoberta do que está à mão como algo que serve para e porque preserva ao mesmo tempo essa descoberta. Essa preservação contamina então todas as possibilidades do ser-aí cotidiano. A circunvisão torna possível o movimento irrefletido em meio ao uso dos utensílios e promove o aparecimento de um modo de abertura do ser dos entes no qual não se tem nenhuma apropriação originária desse ser, mas sempre se permanece preso a uma certa opacidade em relação a ele. Tudo o que está efetivamente em jogo na circunvisão é a lida com os entes que nos acometem no interior do mundo fático e essa lida mesma repousa sobre uma ligação não temática com esses entes. Na medida em que o ser-aí se compreende de início e na maioria das vezes a partir da lógica da ocupação, é decisivo acompanhar o peso dessa compreensão mediana. Em primeiro lugar, afirmar o caráter estruturante da utensiliaridade não significa absolutizar o espaço de sua realização. Nós evidentemente não passamos todo o tempo imersos em atividades com utensílios, mas descansamos muitas vezes e perdemos, por conseguinte, o contato explícito com eles. Nas palavras de Heidegger: "A ocupação pode descansar, no sentido de interromper a execução com o repouso ou de finalizá-la". No momento em que isso tem lugar, o que acontece não é de qualquer modo o simples desaparecimento dos significados daí emergentes. Ao contrário, a rede referencial responsável pela determinação primordial do ser dos entes em geral se estende para o interior do repouso e se mantém simultaneamente vigente. O que se perde nesse momento posterior é apenas a vinculação à dinâmica da produção de algo ou da simples utilização de utensílios com vistas a um fim. Nesse sentido, a opacidade da ligação com o ser dos entes se repete uma vez mais no interior da dita interrupção do simples uso. Temos aqui uma libertação da circunvisão ante a lida prática. No entanto, essa libertação não propicia o surgimento de um novo modo de visão. Ela provoca muito mais uma ampliação de seu campo de atuação. Heidegger nos fala na passagem supra-citada de um certo movimento de distanciamento. O sentido dessa afirmação aponta para o próprio aparecimento do ente como algo que serve para. No momento em que revela o ente em seu ser, a circunvisão instaura a relação entre o ser-aí e o utensílio à mão. Para que o ente possa se mostrar como algo à mão, é indispensável que se crie o campo de jogo do uso e assim um certo distanciamento entre o utensílio e a mão. Esse distanciamento não aponta para um espaço dado qualquer, mas se perfaz juntamente com o despontar de regiões existenciais a partir de orientações fornecidas pela conjuntura utensiliar mesma. Tal como encontramos formulado de maneira paradigmática no início do parágrafo 22 de Ser e tempo, intitulado "A espacialidade do manual intramundano":
O manual da lida cotidiana tem o caráter da proximidade. Considerada exatamente, essa proximidade do utensílio já está insinuada no termo que expressa seu ser, na "manualidade". O ente "à mão" tem sempre a cada vez uma proximidade diversa, que não é constatada por intermédio da mensuração de distâncias. Essa proximidade regula-se por meio do manejo e do uso circunvisivamente "calculador". A circunvisão intrínseca à ocupação fixa ao mesmo tempo o que é dessa maneira próximo segundo a direção na qual o utensílio é a cada momento acessível. A proximidade estabelecida do utensílio significa que esse não tem meramente, simplesmente subsistente em algum lugar, uma posição qualquer no espaço, mas é como utensílio essencialmente instalado, disposto, instituído, alojado. O utensílio tem o seu lugar ou "se acha por aí", o que precisa ser fundamentalmente diferenciado de uma pura ocorrência em uma posição espacial qualquer. O seu lugar respectivo determina-se como lugar desse utensílio para... a partir de uma totalidade dos lugares reciprocamente estabelecidos do contexto utensiliar à mão no mundo circundante. (ST, § 22, 102-3)
O distanciamento em questão em meio à constituição dos usos específicos não é com isso produzido pela mensurabilidade objetiva de espaços simplesmente dados entre os utensílios e os seres-aí, mas surge muito mais de um processo de abertura do mundo circundante no inte-rior do qual os diversos lugares e as múltiplas relações espaciais vão sendo instaurados. Esse processo condiciona o modo como os entes intramundanos vêm de início e na maioria das vezes ao nosso encontro, assim como continua repercutindo em nossa existência no momento em que se dá a liberação da circunvisão ante o mundo da obra. A repercussão da essência distanciadora da circunvisão sobre o momento de interrupção do mundo da obra projeta-nos diretamente para o cerne da compreensão heideggeriana do termo "curiosidade".26
A circunvisão que se tornou livre não tem mais nada à mão com cuja aproximação ela pudesse se ocupar. Como essencialmente dis-tanciadora, ela arranja para si novas possibilidades do dis-tanciar. Isso significa: ela tende a sair do que está inicialmente à mão e a se lançar para o mundo distante e alheio. O cuidado torna-se ocupação com possibilidades de ver o mundo, reduzindo-se esse, para aquele que está parado e em repouso, à sua aparência.
Com essas palavras, Heidegger procura reconstruir a gênese do próprio fenômeno da curiosidade. Assim, vemos a curiosidade nascendo em ressonância de fundo com o próprio acontecimento de uma certa interrupção na dinâmica da utensiliaridade. No momento em que o uso dos utensílios cessa, tem lugar uma nova atitude do ser-aí em relação aos entes em geral. O ser-aí não se atém mais ao que se encontra imediatamente à mão e não se insere diretamente em um exercício de manipulação dos entes, mas se projeta antes para a conquista de um modo de visualização desses entes enquanto entes. Os entes parecem perder, em outras palavras, a sua constituição fundamental enquanto manuais intramundanos e conquistar por meio daí uma determinada autonomia em relação aos diversos usos possíveis. Eles parecem se transformar em entes por si subsistentes que possuem uma independência completa em relação às ocupações mesmas. No entanto, essa não passa de uma aparência. A suposta independência dos manuais intramundanos não se perfaz aqui a partir de uma ruptura radical ante a lógica da ocupação. Ao contrário, ela permanece essencialmente debitária dessa lógica. Mas como se dá um tal débito? O uso dos utensílios promove por um lado o surgimento dos diversos espaços utensiliares específicos no interior dos quais se constroem as atividades cotidianas em geral: esses espaços vão paulatinamente se sedimentando na medida em que a rede referencial complexa essencial a cada mundo fático se cristaliza. Em meio a esses espaços sedimentados, a circunvisão orienta de maneira não teórica a lida com os utensílios em geral. Na medida em que a ação cessa, a circunvisão acompanha em sua ligação originária com o manuseio o distanciamento dos manuais. A interrupção do uso não abre, por outro lado, contudo, o caminho para o aparecimento de uma nova espacialidade, mas se mantém completamente vinculada ao distanciamento produzido pelo primado cotidiano da ocupação. O que se tem é então apenas o surgimento de novas possibilidades de realização do mesmo. A circunvisão sai efetivamente do âmbito do que está à mão e se direciona para o que está alheio e distante. Todavia, essa saída mesma repercute o modo de ligação inicial com o que está à mão. No interior da lida circunvisiva mediana com os manuais intramundanos, esses ganham um espaço próprio e se revelam como os entes que são. Em momento algum, porém, se suprime aí a opacidade ontológica em relação ao ser dos entes. O que eles propriamente são permanece totalmente velado para nós, de tal modo que à pergunta pelo ser dos entes não conseguimos senão responder com um aceno em direção a eles ou com a repetição de alguma interpretação mediana tomada de empréstimo à cotidianidade. Essa opacidade se mantém em meio ao fenômeno da curiosidade. A circunvisão continua promovendo aqui distanciamento e delimitação da espacialidade, sem estabelecer nenhuma apropriação originária do ser dos entes. Nós também saltamos aqui de um ente para o outro, exatamente como saltamos de uma atividade para outra no interior do mundo das obras. A única diferença é que o salto não se perfaz a partir do simples desenvolvimento da lida com os entes, mas a partir de uma experiência visual.
Heidegger fala-nos nesse contexto sobre uma redução do mundo à sua mera aparência. O que ele tem em vista aí por essa redução aponta para a reprodução da opacidade acima mencionada. Na medida em que não nos atemos aqui radicalmente ao ser dos entes, acabamos por nos restringir ao modo como eles se apresentam faticamente, aos seus traços circunvisivamente descobertos em meio à lógica da ocupação. Esses traços acometem incessantemente o ser-aí mesmo após o término de uma atividade utensiliar, mas jamais são considerados senão em função das configurações já anteriormente sedimentadas que a cada vez assumem. E é por isso que podemos continuar falando aqui em ocupação. Interrompida a dinâmica do uso, o ser-aí não se acha necessariamente entregue a uma postura teórica diante dos entes. Ao contrário, a curiosidade instaura apenas um novo modo de ocupação com eles. Exatamente como o ser-aí imerso no falatório lida com o discurso como com um manual intramundano, a curiosidade trabalha incessantemente com as possibilidades de visão como manuais. A curiosidade se atém ao distante e alheio, promovendo justamente por meio daí o acontecimento de uma aproximação. Essa aproximação viabiliza a permanência da lógica da ocupação e a transformação das próprias possibilidades de ver em realidades dadas à mão, com as quais o ser-aí se ocupa ao mesmo tempo em que provê a si mesmo com sempre novas possibilidades congêneres.
Com isso, a curiosidade é (então) caracterizada especificamente por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso, também não busca o ócio de uma permanência contemplativa, mas se acha presa à excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro. Em sua impermanência, a curiosidade arranja para si a possibilidade constante da dispersão. A curiosidade não tem nada em comum com a consideração admirada do ente, com o qauma/zein. Ela não se empenha em se deixar levar para o que não compreende por meio da admiração, do espanto. Ela se ocupa muito mais em providenciar um conhecimento apenas para tomar conhecimento. Os dois momentos constitutivos da curiosidade, a impermanência no mundo circundante das ocupações e a dispersão em novas possibilidades, fundam a terceira característica essencial desse fenômeno, que denominamos desamparo. A curiosidade está em toda parte e em parte alguma. Esse modo do ser-no-mundo desentranha um novo modo de ser do ser-aí cotidiano, no qual ele se desenraiza constantemente. (ST, § 36, 172-3)
Portanto, também temos com a curiosidade o aparecimento de uma atitude do ser-aí que inviabiliza incessantemente a própria possibilidade de um outro tipo de visão do ente. De acordo com a formulação presente acima, ela se diferencia radicalmente da visão que se admira com o ente e que experimenta através da admiração a necessidade de colocar em questão o ser dos entes em geral. No entanto, essa diferença não se mantém em um puro espaço abstrato de tematização. A curiosidade não é apenas diversa da consideração admirada do ente. Ao contrário, ela obstrui o caminho de realização dessa consideração. Em meio à dispersão desamparada junto ao sempre novo, a curiosidade impede o acontecimento da admiração e propaga a força de um modo desenraizado de ver os entes. Da junção desse modo de ver absolutamente difundido com o discurso já sempre pronunciado sobre a totalidade dos entes vem à tona o fenômeno da ambigüidade em seu caráter determinante para a constituição da cotidianidade mediana.
Ambigüidade é um termo que procura descrever fundamentalmente a experiência do ser-aí em meio ao falatório e à curiosidade. Essas duas atitudes do ser-aí em relação aos entes em geral apontam em certo sentido para um mesmo resultado. No interior da repetição incessante do discurso já expresso no momento da abertura do mundo fático, não temos senão a manutenção do ser-aí em um âmbito de radical indistinção quanto ao ser dos entes em geral. O ser-aí constrói nesse contexto incessantemente as possibilidades discursivas acerca dos entes a partir de significações que surgem na lida circunvisiva com os manuais intramundanos e permanece conseqüentemente preso à opacidade intrínseca à formação mesma dessas significações. Assim, o ser-aí preso ao falatório salta de uma enunciação para outra, uma vez que nunca interrompe o movimento da enunciação em nome da possibilidade de uma apropriação originária do ser dos entes em questão no discurso, de uma desobstrução do poder de nomeação das palavras. No que concerne a essa caracterização, a curiosidade vem à tona como um correlato visual. Do mesmo modo que o falatório, a curiosidade é determinada essencialmente por uma ligação com o ser dos entes que nunca se fixa efetivamente em um aprofundamento desse ser. Levado pela curiosidade a buscar o distante e o alheio, o ser-aí se insere em um movimento ininterrupto de aproximação desses entes e ocupação com os seus traços medianamente constituídos. De maneira inquieta, ele se vê simplesmente disperso em sempre novas possibilidades,27 sem jamais vivenciar uma estadia duradoura em alguma delas.28 Exatamente essa característica comum ao falatório e à curiosidade acaba por produzir um estado de coisas deveras peculiar. Heidegger nos diz logo no início do parágrafo 37 de Ser e tempo:
Quando na convivência cotidiana vem ao encontro algo que é acessível a qualquer um e sobre o que cada um pode falar qualquer coisa, logo não se está mais em condições de decidir o que é descerrado em um compreender autêntico e o que não é. Essa ambigüidade não se estende apenas para o mundo, mas igualmente para o ser do ser-aí em relação a si mesmo. (ST, § 37, 173)
Com a passagem acima encontramos uma primeira definição da ambigüidade. Preso ao falatório e à curiosidade, o ser-aí cotidiano não consegue mais estabelecer nenhuma diferença entre o que nasce efetivamente da projeção autêntica de possibilidades existenciais e o que provém da mera repetição de significações dadas desde o princípio na mediania de uma opacidade em relação ao ser dos entes em geral. Como ele não está em condições de levar a cabo uma tal diferenciação, ele também perde ao mesmo tempo a capacidade de considerar a inautenticidade como inautenticidade e cai, com isso, em um espaço de radical esquecimento ante as suas possibilidades próprias de realização. A opacidade ontológica intrínseca tanto ao falatório quanto à curiosidade não se aplica em outras palavras apenas aos entes que incessantemente vêm ao encontro, mas também se insere radicalmente na relação do ser-aí consigo mesmo e com os outros seres-aí. Exatamente por isso Heidegger nos diz logo em seguida no texto:
A ambigüidade não diz respeito somente ao dispor de e ao enredar-se com o que está disponível no uso e no desfrute. Ao contrário, ela já se instaurou no compreender como poder-ser, no modo do projeto e da dotação prévia de possibilidades do ser-aí. Qualquer um não apenas conhece e discute o que se encontra à sua frente e acomete, mas qualquer um já sabe mesmo falar sobre o que ainda não está à sua frente, mas "propriamente" deveria ser feito. (Idem)
A ambigüidade imiscui-se em suma na própria estrutura projetivo-existencial do ser-aí. Mas como se dá uma tal imiscuição? Até que ponto a ambigüidade perpassa a dotação prévia de possibilidades ao ser-aí? Em que medida ela é decisiva para o modo impessoal de existência? Heidegger responde a essas perguntas em um outro trecho do parágrafo 37:
A ambigüidade da interpretação pública proporciona o debate prévio e o pressentimento curioso com relação ao que propriamente acontece. Além disso, ela cunha para a execução e para a ação o caráter do suplementar e insignificante. No que diz respeito às suas autênticas possibilidades ontológicas, o compreender do ser-aí em meio ao impessoal constantemente deixa de ver assim a si mesmo em seus projetos. O ser-aí está sempre ambiguamente "aí", na abertura pública da convivência, onde o mais ruidoso falatório e a mais engenhosa curiosidade mantêm "a máquina" em funcionamento, aí onde cotidianamente tudo e no fundo nada acontece. Essa ambigüidade sempre entrega à curiosidade o que ela busca e oferece ao falatório a aparência de que tudo seria decidido nele. (ST, § 37, 174)
A ambigüidade perpassa essencialmente a estrutura projetivo-existencial do ser-aí. Ela não diz respeito apenas a um conjunto de possibilidades onticamente determináveis, mas aponta diretamente para o próprio horizonte de constituição do poder-ser que o ser-aí é. A razão de ser desse estado de coisas repousa sobre a articulação entre ambigüidade, falatório e curiosidade. De acordo com o que tivemos a oportunidade de apreender anteriormente, o falatório descreve a repetição incessante de um discurso desde o princípio já perfeito. A cotidianidade mediana não se constrói a partir de uma investigação temática acerca das significações mesmas dos entes aos quais os diversos termos estão ligados. Ao contrário, ela se movimenta incessantemente em meio à mera instrumentalização das significações sedimentadas do discurso. O que se diz na cotidianidade mediana há muito já foi dito, assim como o que aparece como passível de ser dito em cada situação sempre experimenta aí um cerceamento prévio por parte do registro fático desse dizer. Falamos sobre os entes que se encontram à nossa frente e sobre os que chegam até nós; falamos mesmo sobre o que deve acontecer e ainda não teve lugar. No entanto, nunca ultrapassamos de início e na maioria daz vezes o campo de jogo traçado originariamente pelo discurso. Dessa feita, o discurso funciona por um lado como um elemento limitador de nossas possibilidades existenciais cotidianas. Por outro lado, porém, essa limitação mesma viabiliza uma sensação de confiabilidade e consistência para o ser-aí. Não se chega jamais a vivenciar nesse contexto uma real inquietude quanto ao caráter ontológico dos entes em geral, de modo que tudo se passa sem que qualquer perturbação propicie uma apropriação radical do ser desses entes. O mesmo tem lugar no interior do fenômeno da curiosidade. Tudo o que aproximamos em meio à visualização curiosa já perdeu de antemão o caráter de distante e alheio porque a própria aproximação se perfaz em sintonia com aqueles aspectos do ente que a abertura do mundo fático revela a priori como passíveis de interpretação. Nós lidamos efetivamente com o que ainda não foi visto e esperamos por ele. Todavia, o modo de constituição dessa espera retira do que não foi visto o caráter de possibilidade e o transforma em algo simplesmente real. Assim, o desenrolar da curiosidade não acaba senão por ratificar o que desde sempre já tínhamos próximo e por solidificar o domínio da absorção cotidiana no mundo confiável da ocupação. Por intermédio da curiosidade e do falatório, o ser-aí acaba em suma por relacionar-se ambiguamente com suas possibilidades ontológicas. Ele vai construindo a si mesmo por meio de uma lida tática com o que acomete e não constrói o espaço de jogo para a realização do poder ser que é senão a partir das orientações previamente dadas no projeto impessoal de seu mundo. Ele age, fala e vê em sintonia com a significância previamente constituída. Dessa forma, tudo parece se decidir no interior dessa significância. Como as diversas dimensões intrínsecas ao mundo fático intrínseco à cotidianidade mediana dependem, porém, fundamentalmente, de uma manutenção ininterrupta do movimento e de um conseqüente abandono das possibilidades já perfeitas, não há aí nada decisivo. Preso à ambigüidade de falatório e curiosidade, o ser-aí vive em um puro espaço de eterno "déjà vu".
Conclusão
Nós procuramos reconstruir aqui a concepção heideggeriana do impessoal em seus momentos fundamentais. Essa concepção levou-nos a uma apreensão do mundo fático enquanto um campo semântico sedimentado a partir do qual os entes intramundanos se mostram como os entes que são e as compreensões medianas em geral vão paulatinamente se difundindo. Imerso no mundo das ocupações cotidianas, os seres-aí não aprendem apenas a acompanhar circunvisamente as referências utensiliares vigentes nas totalidades conformativas em que já sempre se movimentam, mas também a conquistar modos de expressão sobre os entes, sobre estados de coisas e sobre si mesmo, assim como a operar com os mobilizadores estruturais de suas diversas atividades e com a gramática própria à linguagem de sua existência. Em resumo: o descerramento do campo de manifestação do ente na totalidade e a expressão originária do discurso daí decorrente regulam de maneira originária as possibilidades existenciais dos seres-aí. E não apenas as possibilidades discursivas, mas todas as possibilidades de realização de seu poder-ser. Dito de maneira mais explícita: a linguagem cotidiana entendida aqui como discurso do mundo estabelece de início e na maioria das vezes os limites no interior dos quais o ser-aí pode concretizar a sua competência existencial. Tudo o que ele é e pode ser depende aqui estruturalmente do mundo fático em que se encontra desde o começo jogado. Nesse texto concentramo-nos apenas na teoria heideggeriana do impessoal e na manutenção dos seres-aí de início e na maioria das vezes em meio a uma repetição infinda da significância como totalidade de significações presentes no mundo. Esse fato poderia dar a impressão de que o impessoal não possuiria em Heidegger senão uma função negativa e de que o que estaria realmente em questão para ele não seria outra coisa senão descrever a possibilidade de escapar da ditadura do cotidiano. Todos nós conhecemos muito bem o caráter corrente da leitura "existenciária" de Ser e tempo.29 Em relação a essa perspectiva de leitura é preciso levar a sério a afirmação de que todas as possibilidades existenciais do ser-aí em geral estão enraizadas na semântica fática de cada mundo. No momento em que fazemos isso, mesmo a diferença entre impessoalidade e pessoalidade, impropriedade e propriedade ganha um novo contorno. Nesse caso, o próprio vem à tona como uma modulação ou uma modificação do impróprio, como uma nova possibilidade de apropriação da linguagem sedimentada na cotidianidade. Dizer isso equivale ao mesmo tempo a afirmar que a possibilidade mesma de novos mundos encontra-se enraizada na significância do mundo fático mediano e que toda e qualquer postura negativa em relação a esse mundo sedimentado tem consigo por conseqüência um obscurecimento das possibilidades criativas aí vigentes. De maneira análoga ao poema de Manoel de Barros que serviu de epígrafe ao nosso texto, poderíamos concluir: se alguém nos sugerisse adotar um alter-ego respeitável e elogiar então heroicamente a conquista derradeira do próprio, quem ficaria afinal com os abismos de nosso mundo se o impessoal não ficasse?
Referências
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Endereço para correspondência:
Marco Casanova
E-mail: apto103.1@botanicdream.com.br
Recebido em 16 de julho de 2005.
Aprovado em 3 de fevereiro de 2006.
1 Em relação ao papel do ser-aí na própria estruturação da pergunta pelo sentido do ser, cf. Sallis (1986) e Haar (1990).
2 Quanto a uma tal leitura, cf. Gethmann (1993).
3 Em relação ao conceito de mundo como "manifestação do ente na totalidade", cf. Martin Heidegger (2003), § 75. Quanto ao sentido mesmo da noção de "abertura do ente na totalidade", cf. a distinção entre a apreensão do todo do ente e o encontrar-se em meio ao ente na totalidade que está presente na preleção inaugural de Heidegger em Freiburg: Heidegger (1976), p. 110.
4 Em relação a toda essa segunda parte, cf. Dreyfus (1990).
5 Klaus Held fornece uma excelente descrição do estado de funcionalização radical do mundo em seu artigo "Die Dinge und die Welt (As coisas e o mundo)". In: Jamme e Harries (1992), pp. 326-28.
6 Essa é uma das intuições mais centrais do pensamento de Heidegger e uma clara influência de Husserl em sua obra: a articulação entre os modos de ser dos entes e os seus respectivos horizontes de mostração. Diferentemente de Husserl, contudo, os campos de mostração dos entes não apontam aqui para a correlação a priori da consciência intencional com as suas regiões de objetos correlatas, mas para o mundo enquanto campo de mostração do ente na totalidade. Cf. Heidegger (1996) e Gander (2001).
7 Vgl. Dahlstrom (2000).
8 Frederick A. Olafson elabora uma interessante descrição do processo de individuação dos entes intramundanos a partir da presença do mundo em seu What is a Human Being? A Heideggerian View (1995). Cf., nesse caso, em particular p. 148. No entanto, o fato de Olafson procurar incessantemente tornar o pensamento heideggeriano compatível com a tradição da filosofia da mente o impede de ter clareza quanto à própria riqueza do modo de dação dos entes na cotidianidade mediana, ou seja, quanto ao papel positivo das estruturas ocupacionais sedimentadas na determinação das possibilidades de ação e compreensão dos entes em geral. A meu ver, Olafson atribui um papel exagerado à percepção em meio à constituição das relações entre o ser-aí e os entes intramundanos.
9 É importante lembrar que "condição" é uma das palavras possíveis para traduzir Bewandtnis.
10 Itálicos estabelecidos por nós.
11 Hubert Dreyfus apresenta cada um desses momentos de maneira minuciosa em Being-in-the-World: A Commentary on Heidegger"s Being and Time, Division I. Na medida em que segue, porém, inteiramente a ordem de apresentação desses temas na primeira seção de Ser e tempo, não se tem uma visão muito clara de como cada um deles está mais profundamente articulado. Cf. Dreyfus (1990).
12 Cf. Heidegger (2003).
13 Charles Guignon descreve esse estado de coisas em Heidegger and The Problem of Knowledge (1983) a partir do aspecto passivo e ativo do ser-aí em sua cotidianidade mediana. Cf. Capítulo 3, parágrafo 7.
14 A relação entre ser e significado remonta ao primeiro começo da filosofia com os gregos. Cf. Platão (1986) e Aristóteles (1990).
15 Cf. Michel Haar (1985).
16 Em sua preleção inaugural em Freiburg, O que é metafísica? (1929), pp. 7-8, Heidegger mostra de maneira exemplar como a idéia de uma apreensão do todo do ente é em si mesma contraditória e como o encontrar-se disposto em meio ao ente na totalidade descreve a situação originária do ser-aí e com isso se repete incessantemente.
17 Em relação ao caráter originariamente descerrador das tonalidades afetivas, cf. Haar (1985 e 1988) e Held (1991).
18 Cf. Heidegger (1986).
19 Quanto à relação entre as tonalidades afetivas e a abertura do espaço de convivência entre os seres-aí em geral, cf. Heidegger (2003), em particular, § 17. Cf. também Haar (1988), Held (1991) e Coriando (2002).
20 Cf. Guignon (1983), Capítulo 3, parágrafo 9, e Lafont (1994), Primeira parte, 1.
21 Cf. em relação a esse caráter de particípio passado do falatório, Günter Figal (2005).
22 Cf. em relação à determinação do mundo como espaço compartilhado Taylor (1993).
23 Cf. Dreyfus (1990), Capítulos 12 e 13.
24 Isso não implica naturalmente um abandono de todo diálogo e um elogio do trabalho completamente solitário, mas nos chama a atenção para o caráter dos modos de interação discursiva que vigoram em meio à cotidianidade mediana e ao domínio do impessoal.
25 É interessante ter em vista o fato de Heidegger traduzir em várias preleções ante-riores a Ser e tempo o conceito aristotélico de fro/nhsij por circunvisão. Levar em consideração um tal fato é muito importante, uma vez que esse conceito é marcado em Aristóteles por seu caráter não teórico, uma vez que ele também se aprimora com a experiência e torna justamente possível a ação justa no tempo certo dessa ação. Cf. Heidegger (1985) e (2001).
26 Cf. quanto à noção de curiosidade, Ben Vedder (1988).
27 Heidegger trata da curiosidade segundo a sua relação com o futuro no §68 de Ser e tempo. Cf. p. 459: "A avidez pelo novo é em verdade um arremetimento para o que ainda não foi visto. No entanto, isto se dá de tal modo que a atualização busca escapar à expectativa. A curiosidade está ligada ao porvir de maneira totalmente imprópria e isso uma vez mais a tal ponto que ela não fica na expectativa de uma possibilidade, mas só continua cobiçando essa possibilidade como algo real. A curiosidade é constituída por uma atualização que nunca se sustém e que, somente atualizando, busca constantemente evadir-se da expectativa na qual é "mantida" mesmo sem sustentação. A atualidade "emerge" da expectativa pertinente no sentido acentuado da fuga. Mas a atualização "emergente" da curiosidade se entrega tão pouco à "coisa mesma" que, em meio à conquista de uma visão, ela já precisa desviar o olhar para a próxima".
28 O termo traduzido anteriormente por desamparo aponta para a palavra alemã Aufenthaltslosigkeit. Ao pé da letra, essa palavra diz fundamentalmente a falta (-losigkeit) de uma estadia duradoura (Aufenthalt). Quanto ao sentido do termo Aufenthalt para Heidegger, cf. Heidegger (1996).
29 Contra essa leitura, cf. Martin Heidegger (1989), p. 88: "O perigo de interpretar falsamente Ser e tempo de maneira "antropológico-existenciária", de ver as conexões entre decisão - verdade - ser-aí a partir da resolução moralmente visada, ao invés de, ao contrário, a partir do fundamento vigente do ser-aí, conceber a verdade enquanto abertura e a de-cisão enquanto a espacialização temporalizante do espaço-de-jogo-temporal, esse perigo é iminente e é intensificado por meio daquilo que permanece multiplamente indômito em Ser e tempo. A falsa interpretação, porém, é propiciada, ainda que não na realização da superação, se se mantiver desde o princípio a questão fundamental acerca do "sentido do ser"como a única questão". Cf. também Schultz (1984).