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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.8 n.2 São Paulo dez. 2006
ARTIGOS
Liberdade e dinâmica psicológica em Sartre
Freedom and dynamic psychology in Sartre
Daniela Ribeiro Schneider
Psicóloga, Mestre em Educação (UFSC), Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP), Professora do Departamento de Psicologia da UFSC.
RESUMO
O artigo aborda a contradição entre o fato de o homem ser ontologicamente livre, mas, ao mesmo tempo, experimentar-se psicologicamente “determinado”, como se fosse compelido a certos comportamentos indesejados. Como é possível compreender tal paradoxo? Para tanto, o artigo aborda: 1) a proposta de Sartre, de uma nova perspectiva para a psicologia clínica, estabelecida a partir de interlocuções com a psicanálise freudiana; 2) a história de um indivíduo, que utilizaremos como “estudo de caso” no transcorrer de nossa explanação, especificamente a biografia de Jean Genet, escrita por Sartre; 3) o conceito de liberdade na concepção sartriana e suas implicações na compreensão do humano; 4) a questão da dinâmica psicológica e seus desdobramentos para o entendimento dos impasses psicológicos. Com esses elementos, forneceremos alguns subsídios dessa teoria buscando elucidar como são possíveis tais contradições.
Palavras-chave: Jean-Paul Sartre; Jean Genet; Liberdade; Dinâmica psicológica; Psicologia existencialista.
ABSTRACT
This article deals with the contradictions between the fact that man is ontologically free, but at the same time, he experiences himself “determined”, as if compelled by certain undesired behaviours. How is it possible to understand this paradox? To be able to (resolve this), this article introduces 1) the Sartrean’s proposal of new perspective to clinical psychology, set up by dialogue with psychoanalyse; 2) the history of an individual we will use as an “case study” during the explanation. Particularly, Jean Genet’s biography, written by Sartre; 3) the idea of freedom within a Sartrean conception and its implications for human understanding; 4) the issue of psychological dynamics and its development in relation to understanding psychological impasses. With these elements we provide instruments taken from Sartrean theory so as to attempt an explanation of how such contradictions are possible.
Keywords: Jean-Paul Sartre; Jean Genet; Freedom; Psychological dynamics; Existentialist psychology.
O que faz uma pessoa agir, muitas vezes, “contra a sua própria vontade”? Como explicar, por exemplo, que alguém não suporte mais a rotina de, mesmo sem necessidade, lavar as mãos constantemente, mas, ainda assim, por mais que lute contra, não consiga parar com esse comportamento compulsivo? Ou que um indivíduo que sabe que a ingestão excessiva de álcool o está prejudicando, mas, por mais que tente, não consegue parar de beber? Poderíamos dizer que essa pessoa é livre? Como entender, então, em Sartre, a noção fundamental, de que “o homem é liberdade”, se muitas vezes nos experimentamos, ao contrário, como que determinados a realizar certos atos, a viver certas emoções, ainda que não queiramos? O próprio Sartre (1943, p. 553) expressa essa contradição em uma passagem de O Ser e o Nada:
[...] os psicoastênicos que Janet estudou sofrem de uma obsessão que eles mantêm intencionalmente e da qual querem ser curados. Mas, precisamente sua vontade de ser curados tem por objetivo afirmar essas obsessões como sofrimentos e, em decorrência, realizá-las com toda sua força.
Da mesma forma, um paciente expressou apropriadamente tal contradição quando, ao sofrer de agorafobia e experimentar-se impossibilitado de tomar um ônibus devido à ansiedade que o acometia, afirmava em sua simplicidade: eu sei que posso ir ao centro, ir para lá ou para cá; ainda que alguém me diga para não ir, eu posso ir se quiser, não tem nada que me impeça, eu sou livre para fazer o que eu quiser, no entanto, eu não consigo... é isso que me desespera! (sic). É exatamente essa incongruência entre o antropológico (poder escolher ir e vir) e o psicológico (não conseguir entrar no ônibus) que temos que explicar.
Pareceria mais fácil entender tal situação se recorrêssemos à explicação, já popularizada e apropriada pelo senso comum, dos “mecanismos inconscientes”, conforme postula a psicanálise. A constatação que serviu a Freud de ponto de partida para a constituição da psicanálise foi a de que “a histeria era uma patologia que tinha origem numa situação traumática que acabava por produzir idéias inconscientes no interior do psiquismo; essas idéias estariam ativas e agindo sobre o paciente, produzindo seus sintomas” (Fulgêncio 2003, p. 139). Portanto, a explicação dos sintomas dos pacientes adviria de seus mecanismos inconscientes, baseada em noções como trauma, psiquismo interior, etc. Sartre e outros críticos consideram essa concepção a dimensão metafísica da psicanálise. Será que a única alternativa que temos para explicar tais fenômenos cotidianos é recorrer a esses mitos metafísicos? É possível compreender essa contradição entre a liberdade do sujeito e a experimentação de uma certa determinação psicológica sem precisar apelar às concepções subjetivistas, tão comuns na psicanálise e nas psicologias mentalistas? A perspectiva do existencialismo sartriano, considerado em sua ontologia, antropologia e psicologia dialéticas, traz-nos outro horizonte de compreensão.
Portanto, a elucidação do paradoxo entre liberdade e dinâmica psicológica, conforme elaborada pela psicologia existencialista, é o desafio que nos propomos enfrentar neste artigo. Para tanto, vamos discutir as seguintes questões: 1) o projeto fundamental da obra técnica de Sartre desemboca na proposição de uma nova perspectiva para a psicologia clínica, estabelecida a partir de interlocuções com a psicanálise freudiana; 2) a história de um indivíduo concreto, utilizada como estudo de caso no transcorrer da explanação, especificamente a biografia do poeta francês Jean Genet, escrita por Sartre, exemplifica os fundamentos de sua psicologia clínica; 3) o conceito de liberdade em Sartre e suas implicações para a compreensão do humano; 4) a questão da dinâmica psicológica e seus desdobramentos para o entendimento dos impasses psicológicos.
Com o esclarecimento desses itens, estabelecemos as bases para a compreensão do desafio que nos dispusemos a enfrentar nestas reflexões.
Sartre, psicologia clínica e psicanálise
A psicologia, a partir de sua constituição enquanto disciplina, no século XIX, tornou-se um dos alicerces do saber antropológico moderno, quer dizer, do conhecimento e da postulação acerca do homem, de suas características, de suas possibilidades de ser. Sartre, desde o início de seus estudos no campo da filosofia, compreendeu a relevância do conhecimento psicológico na definição do ser do homem hodierno. Dessa forma, o filósofo debruçou-se sobre essa disciplina em função de tal importância, além da influência sofrida pela fenomenologia de Husserl e de Heidegger, que realizavam uma crítica contumaz ao psicologismo dominante no final do século XIX. Sartre começou suas incursões teóricas elaborando proposições no campo da psicologia (Sartre 1936, 1938, 1940); voltou-se, porém, à filosofia pela necessidade técnica de melhor fundamentar seus estudos naquela área, na medida em que constatava que não havia uma ontologia à disposição que lhe possibilitasse as mudanças necessárias para a constituição de uma nova psicologia (Bertolino 1995).
Esse intelectual, mais conhecido pelo seu perfil de filósofo, foi também um pesquisador sistemático da psicologia, sendo que sua obra técnica inscreve-se, boa parte dela, nesse campo. Poderíamos afirmar que, primordialmente, o projeto fundamental do trabalho técnico de Sartre foi reformular a psicologia, o que realizou numa démarche coerente com a ciência contemporânea, totalmente diferente daquela do empirismo e da metafísica, perspectivas que determinaram a constituição daquela disciplina até aquele momento histórico (Schneider 2002).
Sartre realizou sua compreensão psicológica em moldes totalmente diversos dos que tinham sido elaborados pela psicologia e a psicanálise até então, ao colocar em xeque: 1) a perspectiva subjetivista, na qual tudo se resolve “no mundo interno do sujeito”; 2) a perspectiva mentalista, que entende esse mundo interno substancializado em uma estrutura mental que, uma vez constituída, ganha motor próprio; 3) a concepção metafísica do psiquismo, como vemos aparecer nos conceitos da metapsicologia freudiana. Sartre traz a dialética definitivamente para o corpo da psicologia, sem perder de vista a subjetividade e o sujeito. Dessa forma, na psicologia existencialista, a noção de doença mental não tem lugar. O francês não trabalhará nem com a noção de doença, por implicar a criticada noção organicista de entidade mórbida, herança da medicina e psiquiatria clássica, nem com a noção de mental, como vimos acima. Em conseqüência, será outra a sua compreensão dos processos de impasse psicológico e da loucura, já que outra é a sua noção de consciência, de mundo e de personalidade.
Quando Sartre escreveu parte de sua obra psicológica, nos anos 1930-40, inclusive elaborando a proposição de uma metodologia para a psicologia sua psicanálise existencial contida no livro O Ser e o Nada, tinha interesse na viabilização prática, clínica, da psicologia que elaborava. A psicologia clínica ainda não havia nascido oficialmente na França, pois só se estruturou enquanto disciplina independente a partir de 1945, com a obra de Daniel Lagache. O existencialista acompanhava, no entanto, o movimento de constituição dessa área de atuação, bem como da consolidação da psicanálise em solo francês, mantendo relações intelectuais profícuas com psiquiatras e psicanalistas de sua época, como Daniel Lagache, já citado, J. B. Pontalis, entre outros, o que demonstra que esses temas faziam parte de seu contexto intelectual e de seu campo de interesses. Em boa parte de suas obras filosóficas Sartre dialoga com psicanalistas, psiquiatras, psicólogos clínicos. No Imaginário, o existencialista debate as teorias sobre a imaginação que aparecem em Pierre Janet, Lagache, Binet, Alain, Wallon, Dembo, Freud, discutindo, inclusive, patologias da imaginação a partir de casos clínicos descritos na literatura da área. Em o Esboço de uma teoria das emoções, destrincha as teorias clássicas da emoção: William James, Janet, os teóricos da Gestalt, além da psicanálise, para, por fim, propor sua própria teoria fenomenológica da emoção. Essas referências demonstram como Sartre construiu sua obra em interlocução com o contexto daquilo que viria a ser a psicologia clínica e a psicanálise francesa.
Portanto, quando Sartre propôs a sua psicanálise existencial, ele não estava simplesmente expondo um método para a psicologia, mas, especialmente, para a clínica psicológica, entendida por ele como sinônimo de psicanálise, pois esse era o único modelo de clínica vigente em sua época (anos 1930 e 1940) que superava o modelo marcadamente neurológico e organicista da psiquiatria de então, já bastante criticado pelo existencialista. É por isso que acabou por utilizar o termo psicanálise, o que foi considerado por muitos como uma impropriedade, pois na verdade sua concepção contrapõe-se àquela teoria em muitos aspectos. No entanto, a função do termo é a da demarcação da sua proposição no campo da clínica. A sua argumentação de que “esta psicanálise ainda não encontrou seu Freud; quando muito, pode-se encontrar seus prenúncios em certas biografias particularmente bem-sucedidas” (Sartre 1943, p. 663) demonstra como sua preocupação era a de viabilizar uma prática clínica para sua psicanálise existencial.
Sartre deixar-se-á influenciar pela rica experiência clínica da psicanálise, interessando-se pela temática das neuroses e demais psicopatologias, buscando, a partir de seu exemplo, construir um novo método de investigação e intervenção na realidade humana:
Somente uma escola partiu da mesma evidência original que nós: é a escola freudiana. Para Freud, assim como para nós, um ato não se limita a si mesmo: ele reenvia imediatamente a estruturas mais profundas. A psicanálise é o método que permite explicitar tais estruturas. Freud se questiona como nós: em que condições é possível que tal pessoa realiza tal ação em particular. E ele recusa como nós de interpretar a ação pelo seu momento antecedente, quer dizer, de conceber um determinismo psíquico horizontal. O ato lhe aparece como simbólico, quer dizer, parece traduzir um desejo mais profundo, que ele mesmo não saberia interpretar senão a partir da determinação inicial da libido do sujeito. Somente que Freud acabou, assim, por constituir um determinismo vertical. (Ibid., p. 535)
Dessa forma, Sartre “tem o desejo de se apropriar de um instrumento admirado (a psicanálise), mas lamenta vê-lo desvirtuado por aqueles mesmos que o inventaram. (...) O existencialista lançou-se em relação à psicanálise como um companheiro de percurso, só que em uma perspectiva crítica” (Lavers 1990, p. 172).
Sartre aproximar-se-á da compreensão de dinâmica psíquica, ou seja, da noção de que os atos do sujeito têm significados que remetem à sua constituição psicológica, ganhando uma dinâmica transcendente às condições sociomateriais que a geraram. No entanto, Sartre o faz sem apelar para o determinismo vertical, que ele critica em Freud, quer dizer, sem utilizar a noção de causalidade psíquica, que compreende as situações psicológicas a partir de ocorrências ou traumas recalcados no passado. Na psicanálise freudiana, ficamos presos a uma reconstrução determinista da vida psíquica, muito ao contrário do que concebe o existencialismo, para o qual o futuro, o projeto, é que são fundamentais para se compreender o significado da realidade humana. Como explicita Cannon (1993), em seu livro intitulado Sartre e a Psicanálise, esses aspectos conduzem a uma diferença de metodologia entre a psicanálise existencial e o freudismo. Através da análise regressiva, Freud não introduz senão a primeira metade do método. Ele reconhece que seu método deve permanecer analítico, mais do que sintético: ele pode reconstruir o passado, mas não pode predizer o futuro. Sartre (1943, p. 536) discute que “devemos aplicá-lo [o método psicanalítico] no sentido inverso. Nós concebemos, com efeito, todo ato como fenômeno compreensível e não admitimos o acaso determinista de Freud. Mas, em lugar de compreender o fenômeno considerado a partir do passado, concebemos o ato compreensivo como um retorno do futuro sobre o presente”.
Essa crítica à temporalidade em Freud não significa desconsiderar a importância da história na constituição do sujeito. Ambas as perspectivas tomam o ser humano como uma historialização perpétua, considerando o homem em sua situação concreta, ou seja, no desenrolar histórico de suas relações com o mundo, com os outros e, especialmente, com a família.
A psicanálise é um método que se preocupa, antes de tudo, em estabelecer a maneira pela qual a criança vive suas relações familiares no interior de uma sociedade dada. (...) O existencialismo acredita poder integrar este método porque ele descobre o ponto de inserção do homem em sua classe, isto é, a família singular como mediação entre a classe universal e o indivíduo: a família, com efeito, é constituída no e pelo movimento geral da história e vivida, de outro lado, como um absoluto na profundidade e na opacidade da infância. (Sartre 1960, p. 47)
As duas psicanálises não objetivam, assim, restaurar um evento psíquico isolado, mas, sim, o processo de constituição do sujeito, ao afirmarem que o indivíduo é um todo não fragmentado (Cannon 1993). Ambas destacam “o acontecimento crucial da infância e a cristalização psíquica em torno desse acontecimento” (Sartre 1943, p. 657). Essa cristalização é fundamental para o entendimento da questão da dinâmica psíquica em ambas as perspectivas, pois exatamente nessa cristalização ocorre a absolutização do cogito, segundo Sartre (conforme explicaremos mais adiante), ou instaura-se o evento traumático, segundo Freud, situações que estão na raiz das psicopatologias. No entanto, o existencialista rejeita “a linguagem e a mitologia coisificante da psicanálise” (ibid., p. 91). A dinâmica psíquica na psicanálise freudiana, quando traduzida numa linguagem física de interação de forças psíquicas, que se explicita em noções como censura, pulsão, sublimação, etc., é considerada como uma herança metafísica da psicanálise. Afirma o filósofo que:
Se renunciarmos, com efeito, a todas as metáforas que representam a repressão como um choque de forças cegas, teremos de admitir que a censura deve escolher e, para escolher, deve representar-se. Por outro lado, como ela deixaria passar impulsos sexuais lícitos e permitiria que necessidades (fome, sede, sono) se exprimissem na consciência clara? Como explicar que ela possa relaxar sua vigilância, que ela possa mesmo ser enganada pelos disfarces dos instintos. (...) Pode-se admitir um saber que seja ignorante de si mesmo? (Ibid., p. 91)
A crítica do existencialista não é exatamente ao uso da noção de forças, pois estas são constatações objetivas, ainda que não dadas à observação empírica, pois as forças, até mesmo as físicas, não se dão à simples percepção, mas sim à verificação de um conjunto de características de um dado fenômeno, compreendido enquanto articulação de ocorrências por relações de funções (Bertolino 2003). As forças sociológicas, as que nos interessam na questão da dinâmica psicológica, são ocorrências de pressão social, advindas de seu contexto material, sociológico, que levam o sujeito a experimentar-se atraído ou repelido por certas situações. Diz Sartre, em O Imaginário: “há aqui este espaço pleno de vetores de tensão, de linhas de forças que Lewin chama de espaço hodológico. No entanto, no lugar de rodear a mim, ele rodeia e pressiona um certo objeto que imagino no meio dos outros e que é o eu-objeto” (Sartre 1940, p. 334). Em A Transcendência do Ego afirma: “tudo se passa como se nós vivêssemos num mundo em que os objetos, além de suas qualidades de calor, odor, forma, etc., tivessem as de repulsivo, atrativo, encantador, útil, etc., e como se essas qualidades fossem forças que exercessem sobre nós certas ações” (Sartre 1936, p. 42). Portanto, a crítica sartriana ao ponto de vista dinâmico em Freud é dirigida, mais especificamente, à utilização do “paradigma neurofisiológico evolucionista” (Cannon 1993, p.33), que leva o psicanalista a lançar mão de um arcabouço especulativo contido em noções como pulsão, libido, censura, entre outras, enquanto elementos constitutivos da concepção de aparelho mental, quer a partir do modelo tópico, quer do modelo econômico, que acabam por substancializar o psíquico, aspecto incompatível com a concepção sartriana de consciência.
Além disso, Sartre considera uma contradição o fato de a psicanálise freudiana, em sua prática clínica, pautar-se por relações de compreensão e, ao mesmo tempo, pela elaboração de uma metapsicologia, que estabelece relações de causalidade, sustentando-se em uma interpretação genérica dos atos humanos, a partir de um simbolismo a priori. Argumenta que esses dois tipos de ligação são incompatíveis:
Por isso, o teórico da psicanálise estabelece laços transcendentes de causalidade rígida entre os fatos estudados (no sonho, uma pregadeira de alfinetes “significa” sempre seios de mulher e entrar numa carruagem “significa” praticar o ato sexual), enquanto o prático assegura os êxitos estudando os fatos de consciência em compreensão, isto é, procurando com flexibilidade a relação intraconsciente entre simbolização e símbolo. Pela nossa parte, não repelimos os resultados da psicanálise quando estes são obtidos através da compreensão. Limitamo-nos a negar todo o valor e toda a inteligibilidade à sua teoria subjacente da causalidade psíquica. (Sartre 1938, p. 65-66)
Essa distinção entre a psicanálise dos fatos clínicos e os conceitos metapsicológicos freudianos remete à crítica da metapsicologia como a dimensão metafísica da psicanálise, fruto de uma ficção científica, remarcada por vários autores, entre eles Grünbaum A. e Holzman P (1993), Mannoni (1982), Spence (1992), Fulgêncio (2003, p. 145), que assinala que a metapsicologia constitui “a superestrutura especulativa da psicanálise”, bem como Loparic (1999, p. 356), que argumenta que
[...] a sua metapsicologia não é senão a tentativa de construir vários tipos de metáforas (...) que permitam visualizar o inconsciente e o psiquismo em geral. (...) Esses modelos eram tidos como estritamente causais. O caráter não experencial das especulações só aprofundam o seu naturalismo.
Sartre rejeita, peremptoriamente, a metapsicologia psicanalítica, considerando que as contribuições da clínica psicanalítica são muito importantes para serem reduzidas a uma mitologia coisificante. Daí o existencialista definir a compreensão da dinâmica psicológica, fenômeno facilmente constatável na atividade clínica, numa nova perspectiva, a partir de uma démarche dialética.
É bem por isso que Sartre, em suas biografias, seu Saint Genet, por exemplo, utilizar-se-á da perspectiva psicanalítica, no sentido de buscar a elucidação da infância, através dos processos de mediação familiar, enquanto determinante do projeto de ser do sujeito. Ao mesmo tempo, porém, justamente para não cair num subjetivismo, traz a contribuição do marxismo, com a análise das determinantes sócio-históricas do sujeito. Dessa forma, realiza o movimento progressivo-regressivo (Sartre 1960), através do qual explica o individual a partir do contexto da época e a época a partir das experiências concretas dos sujeitos e grupos. Diz Sartre (1976, p.100): “desde o início eu utilizei conjuntamente os dois métodos. Considero ser impossível falar de uma criança ou de um jovem sem situá-lo em sua época. (...) Queria mostrar como a infância interioriza o mundo social”.
Vejamos, então, a partir da biografia de Jean Genet, a compreensão da dinâmica psíquica na perspectiva existencialista, bem como sua relação com a noção de liberdade humana.
A biografia de Jean Genet
Em seu Saint Genet: ator e mártir, Sartre escreve a biografia de Jean Genet, poeta e escritor francês de grande renome no século XX, autor de livros como Nossa Senhora das Flores, Diário de um Ladrão, Querelle (filmado por Fassbinder), entre outros. Na sua adolescência e início de vida adulta, Genet foi ladrão, homossexual prostituído, mendigo. A questão que Sartre se propôs a compreender foi como alguém “destinado” a ser um excluído social conseguiu fazer uma reviravolta e tornar-se um escritor reconhecido? Para responder a essa questão, elaborou a biografia do poeta, utilizando-se do método de sua psicanálise existencial. Falaremos aqui somente de aspectos de sua infância, pois o espaço limitado não permite maiores detalhes.
Genet foi abandonado ao nascer, tornando-se pupilo da assistência pública francesa. Aos sete anos, foi adotado por uma família do interior da França, cujos valores eram fortemente ligados à cultura camponesa e religiosa, na qual a posse da terra era muito valorizada e o comportamento devoto e dentro das regras morais era a exigência; aspectos que marcaram o horizonte de racionalidade do menino. Genet, por sua condição de bastardo, já se encontrava fora dos padrões requeridos. Desde cedo, preferiu o isolamento à inserção nos grupos; passava muitas horas brincando sozinho nos quartos existentes no exterior da casa dos pais (White 1993). Não se experimentava pertencendo àquele ambiente, era como se fosse sempre um estrangeiro na casa. Tinha ressentimento e hostilidade pelo lugar em que vivia.
Começou, na inocência e espontaneidade da infância, a praticar pequenos furtos, como forma de se apoderar de certos objetos que o fariam proprietário e pertencente a esse meio hostil. Seus colegas de classe lembram-se dele como uma criança solitária, que não brincava junto com os outros e que roubava pequenas bobagens. Um deles declara que “ele pegava pequenas quantias de sua mãe para comprar balas, coisa que qualquer criança já fez”. Outro lembra que “quando algo sumia da sala de aula todos já sabiam quem tinha dado o golpe” (ibid., p. 42). O próprio Genet declara:
Quando eu era criança eu roubava meus pais adotivos. (...) Aos dez anos, eu não provava nenhum remorso de roubar as pessoas que eu amava e que eu sabia que eram pobres. Eu fui descoberto. Eu creio que a palavra “ladrão” me fere profundamente. Profundamente, quer dizer suficientemente para me fazer desejar, deliberadamente, ser isto que os outros me fazem enrubescer por sê-lo, de querer ser com orgulho, apesar dos outros. (Genet apud White 1993, p. 40)
Esse flagrante marcará a sua história, pois, uma vez acusado de ladrão, passará a experimentar-se humilhado, definitivamente excluído daquela sociedade. Vive o despertar de sua ingenuidade: abre os olhos e se dá conta de que rouba. Volta-se para si mesmo, talvez pela primeira vez. Descobre que é ladrão e que é culpável. Rapidamente, toda a comunidade onde mora fica sabendo do acontecido; seu comportamento passa a ser vigiado por todos. Aos poucos, vai assumindo o papel de “marginal” que sua comunidade lhe outorga, como se essa fosse sua sina (Sartre 1952). Genet, a partir desse episódio, compreender-se-á como destinado para o mal. “Serei aquilo que o crime fez de mim”, diz ele (Genet 1983). Passará boa parte de sua vida como um excluído, sem conseguir tecer-se às pessoas, sem estabelecer reciprocidade, nem com os criminosos, nem com seus amantes. Viverá em absoluta solidão.
Detenhamo-nos nesses poucos elementos para voltarmos à teoria existencialista, utilizando a biografia de Genet como uma espécie de estudo de caso.
A liberdade enquanto aspecto essencial do homem
Uma das grandes metas de Sartre, no conjunto de sua obra, foi fazer valer sua definição de homem enquanto liberdade entendendo por isso que ele é o sujeito de sua própria história (engendrando aquilo que designou como compromisso ontológico), ao mesmo tempo em que é também sujeito da história da humanidade (desdobrando-se no compromisso político), constituindo-se, dessa forma, no produtor da realidade social, da qual, dialeticamente, é também produto.
A liberdade em Sartre é um conceito ontológico. Ou seja, ela é definidora do ser da realidade humana. É preciso estabelecer, portanto, a estrutura ontológica do homem. “A liberdade, longe de ser algo a ser conquistado e conferido como prêmio visão própria do senso comum surge com o ser como fato contingente” (Boechat 2004, p. 116).
Sartre, ao afirmar que o homem é liberdade, indica que isso só é possível porque a realidade humana não é um si mesmo, mas presença a si, conforme postula Heidegger. Esclarece o existencialista:
O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que por ter sido no âmago do homem pressiona a realidade humana a fazer-se, em vez de ser. Nós já vimos que para a realidade humana ser é escolher-se (...). Ela está inteiramente abandonada, sem nenhuma ajuda de nenhuma espécie, entregue a sua insustentável necessidade de se fazer ser até os mínimos detalhes. Assim, a liberdade não é um ser: ela é o ser do homem, ou melhor, seu nada de ser. (...) O homem não poderia ser ora livre e ora escravo: ou ele é inteiro e sempre livre ou não o é. (Sartre 1943, p. 516)
Quer dizer, o ser que é em-si, que coincide consigo mesmo, não pode ser livre, já que está condenado ao determinismo de ser o que é. O homem, outrossim, ainda que pretenda, não consegue coincidir consigo próprio, posto que “é o que não é e não é o que é”, o que quer dizer que ele é obrigado a fazer-se, em vez de, simplesmente, ser, como vimos acima. Dessa forma, ele é presença em um mundo que exige sua posição ou atuação constante. Assim, ser é escolher-se e essa escolha se põe como ação no mundo.
Ser livre é ter de escolher em cada situação, situação essa que aponta um campo de possibilidades de ser para o sujeito. Aqui é preciso esclarecer que a liberdade não pode ser comparada a uma simples escolha gratuita. Afirma Sartre (ibid., p. 530): “isto não significa absolutamente que eu seja livre de me levantar ou me sentar, de entrar ou sair, de fugir ou enfrentar o perigo, se se entende por isso uma pura contingência caprichosa, ilegal, gratuita, incompreensível”. Da mesma forma, o animal realiza escolhas: entre esta e aquela comida, entre correr ou ficar deitado, etc. Poderíamos dizer que está na mesma situação do homem enquanto liberdade? Não. A escolha no homem é livre nos sentido em que ela transcende a situação dada em direção a um campo de possibilidades de ser, aponta ao sujeito um futuro a realizar. Exatamente esse futuro que se especifica em forma de projeto de ser, concretizando-se no mundo enquanto desejo de ser. Quer dizer, o homem tem o seu ser comprometido nessa escolha, enquanto que o animal não postula um devir. “A liberdade, se ela reina como mestra, deveria afirmar-se como ruptura, como tensão em direção ao futuro, como descolamento em relação ao passado” (Coorebyter 2005, p. 109).
Dessa forma, ao realizar sua liberdade, o sujeito humano sempre se situa em direção a um fim, a um projeto de ser, que acaba por definir as significações do mundo para ele. Sartre (1943) dá o exemplo de um grupo de pessoas que faz uma excursão a pé: um deles não suporta mais o cansaço e desiste da caminhada. O senso comum afirmaria que a fadiga provocou sua decisão, foi o motivo de sua desistência. No entanto, as outras pessoas também deviam estar cansadas e não desistiram, demonstrando que as pessoas suportam os percalços de modo diferente! Mas o que as faz agir diferentemente ante as circunstâncias? Exatamente o fim que perseguem, ou seja, o projeto de ser de cada um. No exemplo citado, alguém que queira ser esportista, além de ter um melhor preparo físico, terá que ter uma disposição mais enérgica de enfrentar o cansaço; já outro, que faz caminhada por puro lazer, sem grande compromisso com o treino físico, pode se permitir que o cansaço vença mais rápido; ou, ainda, alguém que tenha por máxima na vida “vencer os desafios”, suporta muito mais tempo o cansaço do que alguém que se sabe aquele que, ante qualquer dificuldade, desiste de seus propósitos. O coeficiente de adversidade nas situações tem seu dado objetivo (a montanha realmente é íngreme), no entanto, essa adversidade é sempre apropriada singularmente pelo sujeito, que lhe atribui significados. A desistência da caminhada, no nosso exemplo, foi expressão da liberdade daquele sujeito, de sua escolha de ser. Ao desistir, definiu contornos precisos ao mundo onde estava inserido, intuindo que aquelas montanhas eram muito íngremes e que ele não tinha condições de explorá-las. Preferiu o risco de ser criticado pelos amigos ao de enfrentar a empreitada.
Sartre esclarece que é livre aquele ser que pode realizar seus projetos. No entanto, é preciso distinguir entre o fim projetado e a realização desse fim; não basta conceber, para realizar; é preciso agir no mundo na direção dessa realização. Se assim não fosse, não nos diferenciaríamos de nossos sonhos, nos quais o possível não se distingue do real. Portanto, a liberdade não é somente dizer que se quer algo, mas fazê-lo acontecer. O homem é aquele que faz e nesse fazer se faz. A sua ação compromete-o em determinada direção.
O existencialista posiciona-se, com firmeza, contra o senso comum e contra toda a filosofia anterior, ao afirmar que ser livre não significa obter o que se quer, mas sim determinar-se a querer. Portanto, a liberdade não diz respeito ao plano moral, da escolha entre o “bem e o mal”, mas sim ao plano ontológico, da escolha de ser. A liberdade é constitutiva do ser do homem. Esclarece mais:
O êxito não importa em absoluto à liberdade. A discussão que opõe senso comum aos filósofos vem aqui de um mal-entendido: o conceito empírico e popular de liberdade, produto de circunstâncias históricas, políticas e morais, equivale à faculdade de obter os fins escolhidos. O conceito técnico e filosófico de liberdade, o único que consideramos aqui, significa somente: “autonomia de escolha”. (Sartre 1943, p. 563)
Portanto, liberdade de escolher é muito diferente de liberdade de obter. Sartre cita o exemplo do presidiário que, apesar de não ser livre para sair da prisão quando lhe aprouver, é sempre livre, no entanto, para tentar sua libertação; qualquer que seja sua situação, ele sempre pode projetar sua fuga e descobrir o valor desse projeto. Nada mais paradoxal do que uma pessoa em situação de tortura, como ele descreve no conto O Muro: viver a angústia da liberdade em seu extremo, pois terá que decidir até quanto suportará a dor, se preferirá morrer, sofrer ao extremo ou contará ao torturador o que ele quer saber.
Sendo assim, não poderíamos conceber que o homem é livre em certas ocasiões e em outras não, conforme as condições em que se encontra. Não! O homem ou é inteiramente livre ou não o é, independente da situação onde se encontre. Não seria concebível essa dualidade no âmago do ser humano. Sendo assim, somos uma liberdade que escolhe, no entanto, nós não escolhemos ser livre. Justamente por isso, afirma Sartre, estamos condenados à liberdade. “Estabelecemos que o para-si é livre. Mas isto não significa que ele seja seu próprio fundamento. Se ser livre significa ser seu próprio fundamento, seria preciso que a liberdade decidisse sobre a existência de seu ser” (Sartre 1943, p. 564).
Estar condenado à liberdade significa que não podemos deixar de escolher; mesmo não escolher é ainda escolher: neste caso, uma escolha alienada, quando o ser do sujeito está em poder dos outros é, ainda assim, uma escolha. O fato de não poder não ser livre é a facticidade do homem. Isso quer dizer que a liberdade não escapa ao mundo, de estar nele situada, de ter de se relacionar com o que está “dado”. Portanto, toda liberdade é sempre em situação. Esse é seu paradoxo! A liberdade é delimitada pela situação que, por sua vez, só ganha sentido por ser posta por uma liberdade.
Não há liberdade senão em situação e não há situação senão pela liberdade. A realidade humana encontra por todo lugar resistências e obstáculos que ela não criou, mas estas resistências e obstáculos não têm sentido senão pela livre escolha que a realidade humana é. (...) O que temos denominado de faticidade da liberdade é o dado que ela tem-de-ser e que ilumina pelo seu projeto. (Sartre 1943, p. 569)
Dessa forma, a liberdade só existe em uma estrutura de escolha, dada pela situação onde está inserida. Portanto, o indivíduo se escolhe dentro de determinadas condições. A liberdade só pode ser em situação, pois em tudo aquilo que a liberdade empreende há uma face não escolhida por ela, que lhe escapa e com a qual tem de se haver. Portanto, a liberdade não é gratuita e caprichosa, ela é a escolha inelutável que o sujeito tem de fazer dentro de determinada situação, ou seja, dentro de uma estrutura de escolha, que acaba por defini-lo. Por exemplo, quando Genet foi flagrado roubando, o modo como as pessoas lidaram com a situação implicou uma estrutura de escolha, na qual Genet, ainda muito jovem, teve de tomar uma posição. Essa estrutura de escolha definiu-lhe um campo de possibilidades de ser: Genet decidiu ser ladrão, ainda que na alienação.
Portanto, uma das características essenciais da liberdade é a do compromisso ontológico, significando que, ao escolher, ainda que de forma alienada, sob pressão das circunstâncias, o sujeito escolhe o ser que ele é e será. A escolha que faz compromete seu ser em um devir. Não adianta em nada, por exemplo, eu dizer que quero ser uma pessoa calma, se cada vez que me deparo com uma dificuldade perco o meu próprio controle, começo a roer as unhas, a brigar com as pessoas próximas, etc. Meus atos acabarão por me definir como uma pessoa nervosa e os outros me confirmarão nesse perfil que tento negar. Sou, assim, responsável pelo meu ser, mesmo que esteja numa situação adversa, perigosa, excludente. Sempre sou responsável pela maneira como vou enfrentar uma situação, ainda que extrema. A tradicional justificativa para a desresponsabilização de meus atos, contida na frase “não pedi para nascer”, só faz enfatizar minha facticidade. Posso indagar por que nasci, declarar que não pedi para nascer, maldizer esse dia, mas todas essas atitudes não fazem mais do que fazer com que eu assuma com plena responsabilidade esse meu nascimento e o torne cada vez mais meu. Portanto, não há como fugir da liberdade, nem a alienação absoluta me livra dela (ibid.).
Podemos agora compreender a amplitude da frase: “o essencial não é aquilo que se fez do homem, mas sim aquilo que ele fez daquilo que fizeram dele” (Sartre 1952). É a expressão do sujeito enquanto liberdade em situação. Estamos cercados de determinações, mas, ainda assim, não somos seres passivos, condicionáveis, pois sempre fazemos algo do que fazem de nós (como Genet fez ao decidir “ser o que o crime fez dele”), ainda que seja simplesmente corresponder à expectativa dos outros.
Como vimos, o êxito não importa em absoluto à liberdade. Escutemos o que o filósofo declara na Conferência de Araraquara:
Eu, pessoalmente, falei da liberdade em meus livros de filosofia. Creio mesmo que essa liberdade é a noção capital de nosso mundo. Penso, entretanto, em uma liberdade alienada. Acho que, por ora, o homem é livre para ser alienado. Alienação e liberdade não são, em absoluto, conceitos contraditórios. Muito pelo contrário: se não fosses livre como poderia transformar-te em escravo? Não se escraviza um pedregulho ou uma máquina: só se escraviza e se aliena a um homem que, primeiramente, é livre: não há alienação a não ser de um homem livre. (Sartre 1987, p. 39)
Como conciliar, portanto, que o homem é condenado à liberdade se ele não escapa à alienação? Para compreender tal situação, é preciso distinguir diferentes níveis de realidade: a liberdade é da condição humana; já a alienação que vem a ser o fato de não podermos, em termos absolutos, ser senhores de nós mesmos, na medida em que o sentido de nossos atos sempre nos escapa através do que os outros fazem de nós , portanto, é do processo sócio-histórico, pois depende do contexto cultural em que o homem vive, depende das condições do sujeito concreto no seu processo histórico de relações. Só uma personalidade, no sentido existencialista do termo, pode ser alienada, pois é só para quem é sujeito do seu ser que passa a ser problemático o sentido do seu ser lhe evadir. Temos de considerar aqui a dimensão psicológica. A liberdade nunca se aliena, nem a consciência, uma vez que elas são uma condição fática da realidade humana (nível ontológico). Já o sujeito concreto não tem como escapar à alienação, uma vez que ela resulta do processo dialético da relação eu/outro, resulta do fato de o homem não ser fechado em si mesmo, mas de viver em um constante processo de totalização/destotalização/retotalização. Dessa forma, podemos passar de uma situação de maior para uma de menor alienação, mas nunca atingiremos uma desalienação absoluta.
Há de se distinguir, portanto, as diferentes ordens de realidade. A liberdade não é um dispositivo da personalidade humana, ela não é de ordem psicológica, mas sim ontológica e antropológica. Como vimos, eleger-se é escolher-se em um campo de possibilidades; o homem é aquele que faz e nesse fazer ele se faz. No entanto, ele não faz o que bem entende, pois está inserido em uma estrutura de escolha, que define os contornos do seu ser, levando-o a se saber sendo tal sujeito específico (Bertolino 2003).
A dinâmica psicológica na psicologia existencialista
Como compreender a constituição desse saber-de-ser?
O psicológico é segundo ontologicamente. O que quer dizer isso? Que a dimensão psicológica no homem não é um dado primeiro da realidade, como o é, por exemplo, a consciência ou o corpo, mas sim resultante de um processo de construção. Afirma o existencialista em seu livro Esboço de uma Teoria das Emoções:
A psicologia, encarada como ciência de certos fatos humanos, não poderia ser um começo, porque os fatos psíquicos com que nos deparamos nunca são os primeiros. São sim, na sua estrutura essencial, reações do homem contra o mundo; pressupõe, portanto, o homem e o mundo e não podem assumir o seu verdadeiro sentido se, primeiramente, essas duas noções não forem elucidadas. (Sartre 1938, p. 18)
É que, no existencialismo sartriano, o subjetivo é um momento do processo objetivo. O psicológico não é uma entidade em-si, uma estrutura mental; ele é transcendente, é um processo dialético de apropriação da objetividade, de interiorização da exterioridade. O psicológico só existe como subjetividade objetivada (Sartre 1960). Quer dizer, o sujeito encontra-se inserido em condições materiais, antropológicas (sociais, culturais), sociológicas (familiares, relações de mediação) e é no processo de apropriação ativa dessas condições que se constitui psicologicamente; dimensão essa que imediatamente se objetiva através de seus atos, de seus pensamentos, de suas emoções (Schneider 2002).
Dessa forma, a pessoa singular encontra-se condicionada por suas relações humanas. Na relação com os outros, no entrecruzamento de projetos singulares, constitui-se a rede sociológica, que se torna algo diferente do que o sujeito fez, na justa medida em que os outros também a fizeram, voltando-se para ele como uma força que lhe é constitutiva. Assim, “o acaso não existe ou, pelo menos, não da maneira como se imagina: a criança torna-se esta ou aquela porque vive o universal como particular” (Sartre 1960, p. 45).
A personalização, processo pelo qual o sujeito constitui sua singularidade, ocorre através de um constante processo de interiorização/exteriorização do contexto sócio-histórico. “A personalização, diz Sartre, não é mais do que, no indivíduo, a conservação e a superação (assunção e negação íntima), no seio de um projeto totalizador, daquilo que o mundo fez e continua a fazer dele” (Sartre 1971, p. 657). Dessa forma, as possibilidades de ser de um sujeito não são dadas simplesmente por ele; são dadas pelas condições de materialidade, pelo contexto antropológico, pela rede sociológica à qual pertence, que definem seu campo de possibilidades de ser, quer dizer, sua estrutura de escolha.
Há, assim, um contexto antropológico de gênese, que produz um campo de forças sociológicas1 que estão na base de qualquer processo de personalização. Dessa forma, um sujeito objetivado numa dada atmosfera humana, quer dizer, num ambiente cujas relações envolvem forças e pressões antropológicas e sociológicas, experimenta-se atraído ou repelido por diferentes situações, e, assim, remetido a um campo de possibilidades de ser no qual terá de eleger e, assim, eleger-se em determinada direção (Bertolino 2003; 2004). Pode-se verificar a atmosfera que envolveu o acontecer de Genet: ao ser adotado por uma família camponesa, cujos valores eram ligados à propriedade e à religião, uma série de circunstâncias acabaram por impor a ele a certeza de que não cabia naquele ambiente, que estava excluído; experimentação de ser que o levou a se inteligir como que destinado ao mal, à marginalidade, aos pequenos furtos, a se saber em uma atmosfera de eterna vigilância. É Genet que escolhe roubar, é ele que escolhe se isolar, mas em função das possibilidades que a ele se impuseram pelo contexto em que estava inserido.
O fato de Genet ter crescido no seio de uma sociedade camponesa, que define o ser pelo ter, foi decisivo. (...) Nosso futuro ladrão começou por aprender o respeito absoluto pela propriedade, daí decorrer ele ser remetido ao roubo, justamente porque o roubo constitui a transgressão por excelência nesse universo fundado sobre o direito à propriedade. (Coorebyter 2005, p. 123)
As escolhas cotidianas ocorrem no nível antropológico e não psicológico, ou seja, são livres. No entanto, ao serem realizadas, tais escolhas instauram um psicológico, pois, ao eleger sobre o que os outros fizeram de nós, o sujeito se escolhe em um cogito, quer dizer, em um modo de se saber sendo tal sujeito específico. O cogito é, pois, a consciência de existência que se impõe a partir das situações concretas onde o sujeito está inserido, sendo que nele o sujeito se reconhece como aquele que realizou tais ações, que teve tais emoções e que, portanto, é esta ou aquela pessoa. Ao lançar-se livremente em dada direção, a possibilidade escolhida acaba por se impor a ele como um futuro que deve ser realizado, ou seja, como um destino, que acaba por engendrar sua dinâmica psicológica. O sujeito experimenta-se, assim, como que arrastado por forças alheias, como se algo o estivesse fazendo agir, quando, na verdade, ele sabe que é ele próprio que se lança nessa direção, daí o sofrimento gerado pelas situações de impasse psicológico (Bertolino 2003), conforme podemos ver na biografia de Genet:
Um acidente lançou Genet em uma lembrança da infância e esta se tornou sagrada. Em seus primeiros anos, jogou-se em um drama litúrgico, do qual foi o oficiante: teve o paraíso e o perdeu, era criança e o expulsaram de sua infância. Sem dúvida, esse corte não é facilmente localizável: muda de lugar, ao sabor de seus humores e de seus mitos, entre os dez e os quinze anos. Pouco importa, o corte existe, Genet acredita nele. (...) Passou a jogar seu destino em um lance de dados. (Sartre 1952, p. 9)
Assim, a partir do contexto antropológico, constituem-se arranjos sociológicos que induzem o sujeito a um arranjo racional imanente, gerando a certeza de ser este e não aquele indivíduo; pois o arranjo racional é o teorema que se impõe ao sujeito a partir dos elementos racionais, emocionais, sociológicas que o afetam na atmosfera em que está inserido, teorema esse que o remete ao redemoinho de seu saber de ser (Bertolino 2003). Assim, em seu Saint Genet, o existencialista explica: “é possível traçar, com uma certa fidelidade, as etapas pelas quais Genet se transforma lentamente, para si mesmo, num estranho. E veremos que não se trata mais do que de uma interiorização progressiva da sentença dos adultos” (Sartre 1952, p. 41).
O cogito é, assim, a síntese de vários perfis do sujeito, cada qual com seu saber de ser. Genet se sabia ladrão, homossexual, mendigo, solitário. Seu cogito foi a síntese desses vários perfis, pois, a partir da experimentação psicofísica ocorrida em cada um deles, intuia-se como sendo destinado ao mal, possuidor de uma natureza maléfica, dizia o próprio poeta. Sabia-se excluído e objeto para os outros: por isso, ele mesmo se excluía das situações. Antecipava as situações a partir dessa certeza; quando as pessoas lhe estendiam a mão, via nesse ato segundas intenções. Mesmo depois de ser escritor famoso, já em outro contexto antropológico e sociológico, em outra condição material, Genet, ainda assim, não conseguia se tecer às pessoas, ter amizades. Permaneceu prisioneiro de seu cogito absolutizado.
O cogito acontece a todo e qualquer sujeito e é, por isso mesmo, como Sartre (1965) assinala, uma empresa pessoal. “A forma lingüística cogito indica que o cogitare é efetuado em primeira pessoa e designa, bem como o ego, ao autor dessa efetivação. (...) Dessa forma, o ego opera, por nela se reconhecer, em toda região da experiência” (Desanti 2005, p. 578).
Aqui aparece o erro de Descartes, pois este fez do cogito um universal a priori, uma abstração, um princípio primeiro da filosofia, quando o cogito é, na verdade, uma experiência concreta, singular e histórica, pois cada sujeito tem a sua forma específica de apreender sua existência e se saber nela. O cogito não é primeiramente reflexivo, como tenta nos convencer o filósofo racionalista; ele é pré-reflexivo, esclarece Sartre, ou seja, ele é irrefletido e espontâneo. “O cogito pré-reflexivo é condição para o cogito cartesiano”, ou seja, para o cogito reflexivo, afirma Sartre (1943, p. 20).
O plano da espontaneidade é aquele no qual não estamos posicionais enquanto sujeito, é a consciência não judicativa. Nele realizamos as nossas ações, nossos pensamentos, nossas emoções, sem tomarmos distância delas, estamos como que engolidos pela nossa experimentação concreta. “Tudo é, portanto, claro e lúcido na consciência: o objeto está face a ela em sua opacidade característica, mas ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência desse objeto, é a lei de sua existência” (Sartre 1936, p. 24). É o que Sartre denomina consciência de primeiro grau, na qual não há lugar para o eu, sendo, portanto, não posicional deste. Depois temos de nos haver com a situação que experimentamos, temos de nos apropriar, tomar distância daquilo que fizemos, pensamos, sentimos anteriormente. Tomamos a situação anterior como objeto, refletimos sobre ela e, ao fazer esse exercício, aparecemos perante nós mesmos, ficamos posicionais do eu, posicionamo-nos enquanto sujeitos. É o que Sartre define como consciência de segundo grau (ibid.).2 Essa apropriação, que é sempre reflexiva, é nosso esforço de harmonizar aquilo que fizemos espontaneamente (nossas escolhas) com aquilo que somos (somos aquilo que nos sabemos sendo, aquilo que nosso arranjo racional nos impõe) (Bertolino 2003).
O cogito não é, assim, aquilo que um sujeito pretende ser, ou seja, ele não é da ordem nem da vontade, nem do conhecimento, como queria Descartes. O cogito é da ordem do saber,3 sendo uma certeza de ser e, portanto, dá-se no nível irrefletido, no plano da espontaneidade, da experimentação psicofísica de ser; ou seja, o cogito é o sujeito concreto (moi), espontaneamente afetado pelas coisas, pelos outros, pelas situações. Coisas, outros, situações que, dessa forma, ganham função sobre o sujeito, ou seja, estabelecem relações noemático-noéticas, como se refere Sartre, tomando tal noção de empréstimo a Husserl.4
Essa propriedade de um objeto afetar uma pessoa tem suas raízes no contexto antropológico, e é gerada em decorrência da relação estabelecida com tal objeto ou situação ali contextualizado. A relação noemática-noética é, assim, uma relação objetiva, temporal, espacial, concretizando-se como sendo a função de um dado objeto no ser do sujeito. O mito construído por Genet em função de sua situação de exclusão foi alimentado por preocupações cotidianas: por exemplo, tinha a certeza de ser um covarde; sendo assim, quando, junto aos seus amantes fortes e valentões (noema), aparecia seu temor de revelar sua covardia (noese), experimentando ansiedade, suor frio, tremedeira ante eles, ficando, portanto, afetado psicofisicamente por essa antecipação. Ou, ainda, ante qualquer olhar de uma pessoa de bem (noema), experimentava-se imediatamente excluído, essa certeza tomava conta de seu ser e, imediatamente, despontava o orgulho de ser do mal, ficava alterado no seu ser, como que possuído por forças maléficas (noese), remetendo-o aos atos de contravenção. É bem por isso que “Sartre afirma que se poderia inventar uma psicanálise dos objetos, fundada sobre as qualidades dos objetos e a relação dessas qualidades na escolha individual de ser no mundo” (Cannon 1993, p. 50).
Dessa forma, ao realizamos uma série de escolhas (que são livres), experimentamos diferentes afetações psicofísicas de ser, as quais acabam por ser apropriadas reflexivamente por nós, de sorte que, quando o cogito nos ocorre, já é a totalização do caminho que fizemos até ali. Aí nós constatamos aquele sujeito que o cogito nos impôs, instaurando nossa dinâmica psicológica. O cogito ocorre à pessoa, impõe-se ao sujeito; não é escolhido por ela. É resultante do seu processo histórico, de sua condição de ser na sua vida de relações. A biografia do poeta estudado deixa claro como essa situação pôde acontecer: “enquanto Genet rouba com inocência, enquanto cobiça modestamente a palma do martírio, ignora que está forjando um destino!” (Sartre 1952, p. 28).
Assim, o cogito é decorrente da articulação de um conjunto de ocorrências objetivas, fruto das escolhas livres do sujeito, mas a forma como o sujeito se sabe sendo nessas situações não é simplesmente fruto de sua escolha, mas a imposição de um teorema, que advém dos arranjos sociológicos com os quais convive e que são apropriados ativamente pelo sujeito, tornando-se sua dinâmica psicológica.5 Essa dinâmica pode ser dialetizada ou absolutizada. Este último é o caso de Genet, que se tornou “o carrasco zeloso de si próprio”, “o tribunal e o réu de si mesmo”, na medida em que foi tomado pela certeza de estar destinado à marginalidade (ibid.). Dessa forma, Genet foi um homem obcecado pela repetição, pois viveu em função de sua certeza de ser excluído e da possibilidade de sua situação de exclusão repetir-se em qualquer situação. Genet não conseguiu mudar, no pior dos desvarios, continuava fiel à moral da infância. (...) A crise original gravou-se nele como ferro em brasa (ibid., p. 27).
O regular da realidade humana é haver constante relação entre o antropológico (dimensão da liberdade) e o psicológico (dimensão da experimentação psicofísica de ser); ou seja, o regular é o cogito ser dialetizado, o sujeito ter flexibilidade para enfrentar as contradições da sua vida de relações. No entanto, ocorre com freqüência haver uma cisão entre o antropológico e o psicológico, como é o caso de Genet, sendo que a pessoa fica prisioneira do seu cogito, que se torna, assim, absolutizado (Bertolino 2003). O sujeito fica, assim, prisioneiro do recurso à psicologização de si mesmo; retido em sua dinâmica psicológica. O sujeito privado de sua objetividade torna-se uma liberdade alienada. Eis aí a base da maioria das psicopatologias.
Todo dia temos de continuar sendo quem somos, mas não podemos ignorar que podemos escolher diferente. Queremos mudar e não conseguimos, é como “se algo de fora nos governasse” porque não conseguimos compreender o próprio fenômeno em que consistimos, daí instalar-se a dinâmica psicológica (ibid.). É isso que ocorre na grande maioria dos casos psicopatológicos, como, por exemplo, o dependente de álcool que é impelido à compulsão. Ele sabe que não deve beber, que se prejudica fisicamente, socialmente, com a ingestão da bebida; na maioria dos casos, faz esforços para se livrar do vício, mas não consegue parar. Certamente, essa dinâmica ocorre em função do acontecimento de diversas situações que o remetem ao núcleo de seu saber de ser, ou seja, aos seus impasses psicológicos (que sempre são advindos do seu contexto antropológico e sociológico) e, para suportá-los, precisa de tal bengala química. Porém, o feitiço vira contra o feiticeiro, pois a bengala, em vez de ajudá-lo, vira seu próprio inferno. Dessa forma, o sujeito experimenta uma ambigüidade, pois não suporta mais sua situação, mas continua repetindo-a indefinidamente. Daí ser condenado à repetição, como aconteceu com nosso poeta:
Este é um passado que não passa, que suscita sempre em Genet reações vivas e ambivalentes, introduzidas por Sartre sob o duplo signo do horror e da nostalgia o horror, como se este passado estivesse desesperadamente presente; a nostalgia, como se Genet não a quisesse superar, como se ele participasse de sua repetição. (...) Esta é a descrição daquilo que Sartre chama de clima interior de Genet e que se identifica ao horror. Tal situação insinua-se sobre sua repetição. (Coorebyter 2005, p. 110)
Genet quer escapar ao seu destino, quer despertar do pesadelo: ao ser preso, denunciado, ele jura que não recomeçará. Com toda a sinceridade, é claro! Mas, no mesmo momento do juramento, o olhar dos outros intervêm mais uma vez. Os outros não têm as mesmas razões para acreditar em suas juras; relacionam-se com um futuro previsível e imprevisível. “Previsível: Genet errou, logo, errará novamente. Imprevisível: ninguém sabe a hora do próximo delito. Por não conhecer essa data, a vigilância dos adultos confere ao roubo uma presença perpétua” (Sartre 1952, p. 42). Tal destino instala-se na medida em que os arranjos sociológicos (o que cabe ou não nas relações que o cercam) são condenatórios de suas atitudes. Genet é engolido por essa atmosfera: ele encarna como sendo sua a expectativa dos outros, tomará precauções contra si mesmo, temerá a si próprio, aos seus impulsos; desconfiará de seus próprios juramentos. O futuro se impõe a ele como uma fatalidade, quer se livrar de seu destino, mas não consegue, pois se experimenta condenado ao ser quem foi, a ser o sujeito do mal. Dessa forma, seu clima de horror é encharcado de pura fascinação.
Ainda que o homem não possa deixar de escolher, já que livre, ainda assim, não consegue escapar a um certo determinismo.
De uma certa maneira nós todos nascemos predestinados. Somos lançados para um certo tipo de ação desde nossa origem, em função da situação onde se encontra a família e a sociedade em um momento dado. (...) A predestinação, ela nos coloca frente ao determinismo: eu considero que nós não somos inteiramente livre ao menos provisoriamente hoje, já que somos alienados. (Sartre 1976, p. 98)
É importante não confundir determinismo com determinação: na medida em que o sujeito tem um determinismo que lhe é próprio, que define os contornos de sua relação com o mundo, confunde-se que ele está reificado, no sentido de não ter como mudar. Não é assim. O ser do homem é um processo contínuo de totalização/destotalização/retotalização, ou seja, um vir-a-ser, justamente porque livre. Não esqueçamos que o homem é condenado à liberdade. No entanto, o sujeito não pode fazer o que bem quiser, nem mudar a toda hora como bem entender, na medida em que antecipa seu futuro por se saber sendo tal sujeito, com tais experimentações de ser, lançado em um certo modo específico de relação com os outros e com as coisas, tendo certos estados emocionais, certas qualidades de ser, agindo de forma particular, ou seja, enredado em seu dinamismo psíquico (Bertolino 2003). Daí a necessidade de compreender essa relação entre liberdade e dinâmica psicológica.
Para alterar uma dinâmica psicológica, não basta dizer para a pessoa que ela tem que escolher, que ela pode escolher diferente do que sempre o fez. Ela sabe disso! Só que ela não consegue! Para alterá-la, tem de intervir no cogito, no saber de ser, na certeza que o sujeito formou acerca de si mesmo. Esse sistema de certezas de ser não é uma simples cognição, uma linha de raciocínios aprendidos e encadeados. Ele é uma experimentação psicofísica de ser, ou seja, é o sujeito inteiro encarnado por este saber de ser quem ele é.
O sujeito terá de compreender como ocorre essa experimentação, quais as situações e objetos que o afetam, como ele é pego pela atmosfera do ambiente onde se encontra. Terá de localizar-se ante as determinantes antropológicas e sociológicas que o remetaram a esse saber de ser, para que possa superar a dinâmica psicológica instaurada por esse cogito absolutizado. Somente assim conseguirá estar novamente inteiro em seu contexto antropológico, ter a titularidade de seu ser, ou seja, ser sujeito de sua história, uma liberdade desalienada.
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Endereço para correspondência
E-mail: danis@cfh.ufsc.br
Site: www.psiclin.ufsc.br
Recebido em 18 de janeiro de 2006
Aprovado em 31 de julho de 2006
1 Forças aqui entendidas não no sentido físico do termo, mas sim, como Sartre (1939) nos explica, no Esboço de uma Teoria das Emoções, como “ação que se realiza à distância”, ou seja, como ação virtual.
2 Sartre (1936), em seu livro A Transcendência do Ego, investiga a relação entre a consciência e o eu, demonstrando que, ao contrário das filosofias idealistas, que postulam o eu enquanto pólo unificador da consciência (como, por exemplo, Kant, que, conforme crítica do existencialista, concebe o eu enquanto presença formal na consciência, ou Husserl, que prega a presença material do eu na consciência; dessa forma, ambos acabam por substancializar o psíquico), o que produz a sua unidade é, na realidade, o objeto. Dessa forma, é uma unidade noemática que unifica as consciências. O eu resulta desse processo de unificação e não o contrário. Sendo assim, o ego não existe a priori, mas sim enquanto produto do processo de totalização do sujeito, enquanto objeto transcendente.
3 Conhecimento é a atividade de conhecer realizada por meio da razão ou experiência, ato de apreender intelectualmente, de tomar abstratamente um fato ou uma verdade, entendimento. Já o saber, apesar de no senso comum ser sinônimo de conhecer, significa mais precisamente “estar convencido de, ter a certeza de, prever”. Em termos etimológicos significa ter o sabor de, saborear, recordar (Houaiss, 2002). Dessa forma, conhecimento é fruto de uma investigação racional, de uma consciência de segundo grau, no dizer de Sartre. Já o saber vem da experiência espontânea, do sabor advindo de uma experimentação concreta, consciência de primeiro grau.
4 A noção capital da intencionalidade em Husserl é que permite a elaboração da ontologia e psicologia dialética de Sartre. Para Husserl (2001, p. 51): “a palavra intencionalidade não significa nada mais que essa particularidade fundamental e geral que a consciência tem de ser consciência de alguma coisa, de conter, em sua qualidade de cogito, seu cogitatum em si mesma”. Dessa forma, esse objeto intencional que é visado pela consciência é uma unidade noemato-noética, diz Husserl (obid, p. 58). O noema refere-se aos dados hiléticos (sensíveis), que se tornam intencionais ao contato com a vivência; já a noésis refere-se, dessa forma, à intencionalidade, enquanto conjunto de vivências orientadas subjetivamente. O par noema-noése representa, portanto, a relação intrínseca entre dois pólos imanentes: o objeto e o eu. Essa relação, no entanto, ocorre, para Husserl, ao nível da consciência pura (Fragata 1959). São exatamente as noções husserlianas de intencionalidade e de relação noemático-noética que permitem, segundo Sartre, as bases para a superação do idealismo ou da velha filosofia alimentar, como ela denomina (Sartre 1968), já que coloca o sujeito e o mundo como indissociáveis. Devemos, porém, segundo o existencialista, livrar-nos da instância idealista ainda contida em Husserl, justamente por considerar o noema como pertencente ao universo da consciência, tornando-o, assim, um correlativo irreal da noese (Sartre 1943). Em Sartre, noema é o objeto do mundo concreto, porém, significado pelo sujeito. Ou seja, é o objeto que adquire, em razão do contexto de relação antropológico e sociológico onde se encontra, a função de afetar o sujeito.
5 Dessa forma, assim como na psicanálise, o existencialismo admite que o sujeito é arrastado por uma dinâmica psíquica, no entanto, esta não é fruto de mecanismos inconscientes, processos subjetivos, mas resultante do embate com seu contexto antropológico e sociológico.