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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Representação, atenção e consciência na primeira teoria freudiana do aparelho psíquico

 

Representation, attention and consciousness in the first Freudian theory of the psychic aparatus

 

 

Fátima Caropreso

Pós-doutoranda na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A idéia de que o psíquico não se limita ao consciente é essencial à psicanálise, mas nem a ampliação do campo do psíquico em relação ao dos estados de consciência, nem a colocação em primeiro plano da noção de psíquico inconsciente, levaram Freud a deixar de lado a questão da consciência. Ao contrário, o estabelecimento das condições de possibilidade da consciência de um processo psíquico ou representacional tornou-se um dos problemas centrais da metapsicologia, ao qual Freud dedicou parte considerável de suas reflexões teóricas desde o “Projeto de uma psicologia” (Freud, 1950/2003). O objetivo deste artigo é analisar de que maneira a possibilidade de uma representação se tornar consciente é concebida na primeira teoria freudiana do aparelho psíquico, como contribuição ao exame do problema da consciência em Freud. Em primeiro lugar, serão discutidas as hipóteses elaboradas por Freud no “Projeto de uma psicologia” e, em seguida, as que são apresentadas no capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos” (Freud, 1900/1982).

Palavras-chave: Freud, Metapsicologia, Consciência, Representação, Percepção, Memória.


ABSTRACT

The idea that the mind is not restricted to consciousness is essential to psychoanalysis, but neither the enlargement of the mental field in relation to that of conscious states, nor the bringing of the concept of a psychic unconscious to the foreground did lead Freud to put the question of consciousness aside. On the contrary, the establishment of the conditions of possibility of the awareness of a psychic or representational process became a central problem of metapsychology, to which Freud dedicated a considerable part of his theoretical reflections since the “Project for a psychology” (Freud, 1950/2003). The objective of this paper is to analyze how the possibility of a representation becoming conscious is conceived in the first Freudian theory of the psychic apparatus, as a contribution to the study of the problem of consciousness in Freud’s work. The hypotheses elaborated by Freud in the “Project for a psychology” shall be discussed in first place and, afterward, those presented in the chapter 7 of “The interpretation of dreams” (Freud, 1900/1982).

Keywords: Freud, Metapsychology, Consciousness, Representation, Perception, Memory.


 

 

A teoria psicanalítica freudiana se constitui recusando-se a definir o campo do psiquismo pela presença da consciência; no entanto, ela nunca deixou de considerar a consciência como algo essencial, como observam, entre outros, Laplanche e Pontalis (1982/1998). A partir do momento em que Freud desvincula os conceitos de psíquico e consciência, surge a necessidade de explicar como a consciência se relaciona com o restante do psiquismo e quais são suas condições de possibilidade. Ao longo de seus principais textos metapsicológicos2, Freud se ocupa, de fato, regularmente dessas questões, e a importância de sua contribuição tem sido reconhecida. Por exemplo, Natsoulas (2002) argumenta que Freud elaborou uma teoria da consciência sofisticada e inovadora. Outros autores, como Gomes (2003), apontam para a relevância de estabelecer uma relação entre a teoria freudiana da consciência e os desenvolvimentos recentes nas áreas da psicologia cognitiva, das neurociências e da filosofia da mente.

A primeira e mais extensa reflexão freudiana sobre a consciência está presente no “Projeto de uma psicologia”, texto escrito em 1895, mas publicado postumamente em 1950. Nesse texto, a noção de um psiquismo inconsciente é, pela primeira vez, claramente afirmada na teoria freudiana. Em “Sobre a concepção das afasias” (Freud, 1891), Freud identificara claramente o psíquico ao consciente: todo processo psíquico, a partir do momento em que emergisse de seu substrato neural, seria necessariamente consciente. Nos textos dedicados à teoria e à clínica das neuroses produzidos nos anos seguintes, podemos perceber que essa identificação começa a ser progressivamente questionada (Caropreso, 2003); contudo, é somente no “Projeto de uma psicologia” que ela é cabalmente descartada. Aí, o psíquico passa a ser pensado como sendo originalmente, e em sua maior parte, inconsciente, e a consciência é definida como uma qualidade que pode vir a se acrescentar, sob determinadas condições, a apenas uma parte dos processos mentais. No capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos” (Freud,1900/1982), Freud dá continuidade à reflexão sobre o problema da relação entre a consciência e a representação iniciada em 1895. O objetivo deste artigo é fazer uma análise de como a possibilidade da consciência de um processo psíquico é concebida na primeira teoria freudiana do aparelho psíquico, dando assim continuidade ao exame do modo como o problema da consciência se formula e se desenvolve na obra de Freud (Simanke & Caropreso, 2005).

 

Representação e consciência no “Projeto de uma psicologia”

No “Projeto de uma psicologia”, Freud se propõe a explicar os processos psíquicos em termos de dois postulados principais: o “neurônio” - que seria a unidade material e funcional do sistema nervoso ou do “aparelho neuronal” - e a “quantidade” - que é definida como algo que diferencia a atividade do repouso e que está submetida à lei geral do movimento. A tendência primordial do aparelho - o “princípio de inércia neuronal” - seria anular todo o aumento quantitativo, descarregando a quantidade recebida pela via mais direta possível. Essa tendência pode ser entendida como uma disposição a evitar o desprazer, pois Freud identifica, nesse momento de sua teoria, o aumento no nível de excitação com o desprazer e a sua diminuição com o prazer.3 Se o aparelho recebesse apenas quantidades de origem exógena, seria possível, em princípio, por meio do movimento reflexo, descarregá-las totalmente e, assim, manter o sistema livre de qualquer aumento quantitativo permanente. Mas, além das quantidades exógenas, o aparelho neuronal receberia também quantidades endógenas de origem somática, e estas não poderiam ser suprimidas apenas através do mecanismo reflexo. Embora os movimentos reflexos funcionem como um meio de descarga para essas quantidades oriundas das necessidades vitais, eles não são capazes de afastar o organismo da fonte da estimulação, como o fazem, em princípio, com relação às quantidades exógenas provenientes do mundo físico; em outras palavras, eles não permitem, neste caso, a “fuga do estímulo”.

O cancelamento de uma fonte interna de estímulos dependeria de uma atuação mais complexa sobre o mundo, como, por exemplo, aquela necessária para a obtenção de alimento, no caso da fome. Seria necessário, para que a estimulação endógena pudesse cessar, o que Freud chama de uma “ação específica”, a qual, devido à sua complexidade, teria como condição para a sua execução um certo acúmulo de quantidade no aparelho, impondo uma modificação de sua tendência fundamental originária: em vez de trabalhar para manter o nível interno de quantidade igual a zero, a tendência dominante passaria a ser mantê-lo constante no nível mínimo necessário. Assim, o princípio de inércia daria lugar ao que Freud denomina uma “tendência à constância”. No entanto, essa tendência não se oporia ao princípio de inércia; ao contrário, atuaria em seu favor, criando condições para que a quantidade endógena fosse, de fato, descarregada adequadamente.

Três sistemas de neurônios comporiam o aparelho neuronal: o primeiro seria um sistema de percepção, phi, cuja função seria receber as quantidades de estímulo provenientes da periferia do sistema nervoso e transmiti-las, enfraquecidas e fracionadas, ao sistema vizinho psi; esse sistema psi seria um sistema de memória, onde se constituiriam as representações; o terceiro sistema, ômega, seria responsável pela consciência. Tais sistemas não se diferenciariam uns dos outros devido à natureza dos neurônios que os compõem, mas sim devido ao modo distinto de ação da quantidade em cada um deles. Entre os neurônios, haveria “barreiras de contato”, as quais ofereceriam uma certa resistência à passagem da excitação de um neurônio para outro, fazendo com que apenas as quantidades cuja intensidade fosse superior à da resistência das barreiras conseguissem passagem. Quando isto ocorresse, a barreira de contato seria “facilitada”, fazendo com que, numa segunda ocupação dos neurônios correspondentes, a resistência encontrada fosse menor. A facilitação diferenciada das barreiras de contato faria com que se constituíssem caminhos diferenciados no aparelho, os quais tornariam possível a memória, ensejando a repetição de processos anteriormente ocorridos. Apenas no sistema psi as barreiras de contato seriam capazes de oferecer resistência à passagem da excitação; no sistema de percepção phi, a intensidade da quantidade recebida seria superior à da resistência das barreiras de contato, de modo que, nesse sistema, essas barreiras estariam totalmente facilitadas e, portanto, incapazes de exercer qualquer função: nos termos de Freud, phi seria um sistema completamente permeável à quantidade. Já em psi - que receberia a quantidade exógena através de phi - as ocupações seriam menos intensas, devido ao fato de que a estrutura ramificada de phi faria com que a corrente excitatória se distribuísse ao longo de diversos caminhos neuronais, incidindo sobre psi em vários pontos. Assim, a cada aumento de quantidade em phi, o sistema de memória seria ocupado em vários pontos com intensidades menores, em vez de ser ocupado muito intensamente em um único ponto. Assim, a quantidade que alcançasse psi possuiria intensidade inferior à da resistência das barreiras de contato e, por isso, para conseguir abrir passagem, uma mesma barreira teria que ser afetada a partir da ocupação de dois ou mais neurônios simultaneamente.

Em cada passagem da quantidade pelas barreiras de contato, a resistência apresentada por estas seria diminuída, de modo que, numa segunda ocupação da mesma barreira, a resistência encontrada seria menor. Assim, surgiriam caminhos preferenciais para o curso da excitação no sistema psi, os quais constituiriam a base da memória. Um circuito de neurônios ocupados cujas barreiras de contato estivessem facilitadas entre si constituiria uma representação, segundo o que propõe Freud. Na ausência de uma ocupação atual, a representação continuaria existindo como possibilidade, dado que as facilitações assegurariam a possibilidade de recorrência do mesmo processo, isto é, elas tornariam possível uma nova ocupação do mesmo circuito e, com isso, assegurariam a possibilidade do ressurgimento da representação.

O sistema de memória estaria conectado, de maneira direta, ao interior do corpo, de modo que sobre ele incidiria também a excitação somática de origem endógena. O modo de ação da quantidade endógena seria diferente da exógena e, por esse motivo, Freud é levado a dividir o sistema psi em dois: “psi do manto”, que receberia quantidade exógena via phi e “psi do núcleo” que receberia quantidade endógena diretamente do interior do organismo. O conjunto de ocupações de psi do núcleo constituiria a parte constante do “eu”; este último seria o portador do armazenamento da constante de quantidade necessária para a satisfação das necessidades vitais, quantidade esta que seria por ele utilizada para direcionar os processos associativos, de modo que estes alcançassem as condições necessárias para a satisfação e impedissem a produção de desprazer.

De acordo com a teoria do aparelho neuronal, a constituição das representações precederia e seria independente da consciência. As representações se constituiriam no sistema de memória psi e apenas secundariamente, com o prosseguimento do processo até o sistema ômega - que estaria diretamente ligado a psi -, e elas poderiam dar origem a qualidades sensoriais e, então, virem a se tornar conscientes. O sistema ômega produziria o que Freud chama de “signos de qualidade”, que seriam, então, enviados à psi. A produção desses signos seria condição necessária para uma representação se tornar consciente, mas não seria condição suficiente: os signos recebidos pelo sistema de memória teriam que ser antes focalizados pelo mecanismo da “atenção” - que seria uma das funções do eu - para que a representação fosse de fato apreendida conscientemente. Se essa focalização pela atenção não ocorresse, mesmo tendo sido produzidos os signos de qualidade, a representação não alcançaria a consciência.4

Como Porchat (2005) analisa em detalhe, o mecanismo da atenção é definido de maneiras bastante diferentes nos diversos textos freudianos. No “Projeto...”, Freud concebe a atenção como uma ocupação dos signos de qualidade recebidos por psi do manto, uma ocupação que partiria do eu (núcleo de psi) e estaria condicionada biologicamente. Esse condicionamento biológico do eu, que o leva a manter uma ocupação constante dos signos de qualidade, deve-se ao fato de que a falta dessa ocupação, em certos casos, levaria à produção de desprazer. A atenção consistiria, desse modo, na “segunda regra biológica” a regular os processos no aparelho neuronal, enquanto que o abandono de caminhos que conduzem ao desprazer (a “defesa primária”) consistiria na primeira dessas regras.

No caso das representações constituídas a partir de estimulação proveniente do sistema phi, e não a partir de estimulação endógena via psi do núcleo, os signos de qualidade sempre seriam produzidos: Freud postula que a produção desses signos dependeria, de alguma forma, apenas das propriedades dos estímulos perceptivos, isto é, daqueles estímulos oriundos do sistema phi, embora ele não consiga justificar plenamente essa dependência (Simanke & Caropreso, 2005). No caso dos processos representacionais que se originassem no interior do aparelho - por exemplo, na rememoração - a consciência dependeria das “associações lingüísticas”. Freud atribui a possibilidade de rememoração de uma representação ao elo desta com as associações da linguagem, que constituiriam as “representações-palavra”. Ele argumenta que, uma vez que a consciência dependa do despertar de signos de qualidade e que estes últimos provenham de percepções, para que uma representação ocupada pelo eu (e não a partir de phi) se tornasse consciente seria necessário que, de alguma forma, fosse produzida uma percepção. Ele, então, conclui que um dos componentes da “representação-palavra” - a imagem cinestésica da fala - seria capaz de fornecer esse elemento: como os movimentos produzem percepções, a ocupação das imagens de movimento das palavras faladas levaria à produção de um signo de qualidade e, assim, a “representação-objeto” a ela associada poderia tornar-se consciente.

Freud retoma, no “Projeto...”, os conceitos de “representação-palavra” (Wortvorstellung) e de “representação-objeto” (Objektvorstellung) que haviam sido primeiro propostos em “Sobre a concepção das afasias” (Freud, 1891). A representação-palavra, de acordo com o que havia sido estabelecido neste último texto, formaria um complexo constituído por um intrincado processo de associações, no qual estariam presentes quatro elementos: a imagem acústica da palavra, a imagem cinestésica da fala, a imagem visual da leitura e a imagem cinestésica da escrita. A representação-objeto seria também um complexo associativo constituído por diversos tipos de imagens sensoriais. A ligação associativa entre esses dois tipos de representações se daria sempre entre a imagem acústica da representação-palavra e, normalmente, a imagem visual da representação-objeto.

No “Projeto...”, ao se questionar sobre a possibilidade de uma representação ocupada pelo eu tornar-se consciente, Freud retorna a esses conceitos. Ele formula a hipótese de que, quando a ocupação de uma representação-objeto seguisse para a imagem acústica da palavra e, daí, para sua imagem cinestésica, produzir-se-ia uma percepção que levaria ao despertar de um signo de qualidade, com o que a representação-objeto poderia tornar-se consciente:

(...) se as imagens de recordação forem tais que uma corrente parcial possa ir de uma delas para as imagens acústicas e para as imagens motoras da palavra, então a ocupação das imagens de recordação é acompanhada de notícias de eliminação, que são os signos de qualidade, e que, em conseqüência, também são signos de cons[ciência] da re[cordação]. (Freud 1950/2003, p. 239)

Dessa forma, com a constituição das representações-palavra, os processos que ocorressem em psi estimulados a partir do interior do aparelho poderiam alcançar a consciência, e não mais apenas aqueles incitados por uma estimulação exógena, surgindo, assim, a possibilidade da rememoração consciente. Portanto, enquanto houvesse apenas representações-objeto no aparelho, os processos representacionais que aí ocorressem seriam inevitavelmente inconscientes, com exceção das percepções e das alucinações. Nessas, a consciência seria imediata, ou seja, decorreria única e diretamente das propriedades das percepções ou de processos que são tomados por percepções. Com a linguagem, surgiria uma segunda forma de consciência, uma consciência mediata, isto é, intermediada pelos signos lingüísticos.5

Sendo assim, antes da constituição das associações lingüísticas, só seria possível pensamento consciente se este consistisse em uma ação, pois só assim haveria percepções (sensações de movimento) associadas a processos internos. De fato, Freud afirma que o pensamento consciente inicialmente consistiria na ocupação de imagens de movimento e, embora ele não explicite como, a partir de um certo momento, o pensamento consciente e a ação poderiam diferenciar-se; é possível inferir que o que tornaria isto possível seria a constituição das associações da linguagem, as quais permitiriam que as ações fossem conscientemente rememoradas e, conseqüentemente, que não fosse mais preciso agir para pensar.

Como vimos, para que as representações pudessem ser rememoradas, seria necessário que elas estivessem associadas a uma representação-palavra; logo, antes da constituição das associações lingüísticas, as representações-objeto não teriam nenhuma possibilidade de se tornarem conscientes. Em sua origem - isto é, na ocasião da sua constituição -, elas poderiam ter sido ou não conscientes, o que dependeria de os signos de qualidade por elas despertados terem sido ou não focalizados pelo mecanismo da atenção do eu. No entanto, mesmo tendo sido conscientes na ocasião de sua percepção, elas se tornariam, logo em seguida, inconscientes e permaneceriam sem acesso à consciência até que se associassem a palavras. Portanto, a inconsciência poderia ser, teoricamente, o estado originário de pelo menos algumas representações e já é possível pensarmos, a partir dessas idéias apresentadas por Freud, na possibilidade de parte das representações permanecerem “insuscetíveis de consciência” por não se
associarem a representações-palavra. Essa última hipótese é explicitada e desenvolvida no artigo metapsicológico “O inconsciente”, de 1915.

Em suma, segundo a teoria apresentada no “Projeto...”, o campo da consciência seria mais restrito que o da memória e apenas uma parte das representações - aquelas que despertassem signos de qualidade e que tivessem esses signos ocupados pelo eu - poderia se tornar consciente. A representação é aí concebida como um fato de memória totalmente independente da consciência, e esta última define-se como algo que pode ou não vir a se acrescentar a uma parte das representações, desde que cumpridas certas condições. Antes da constituição das associações lingüísticas, a única forma de consciência possível decorreria diretamente das propriedades da percepção. A constituição das representações-palavra traria consigo a possibilidade de uma segunda forma de consciência, intermediada pelos signos lingüísticos. Como uma parte das representações-objeto possivelmente não chegaria a ser associada a representações-palavra, poderia haver representações que permanecessem desde sempre “insuscetíveis de consciência”.

A distinção entre as representações suscetíveis e as insuscetíveis de consciência se limitaria, então, ao fato das primeiras serem representações-objeto associadas a palavras e das últimas serem representações-objeto às quais falta essa associação. Tanto as representações suscetíveis quanto as insuscetíveis de consciência seriam, no funcionamento psíquico normal, governadas pelo “processo secundário”6. Sendo assim, os processos psíquicos suscetíveis e aqueles insuscetíveis de consciência não possuiriam propriedades intrínsecas diferentes; apenas a presença ou ausência de vínculos com palavras os distinguiria. Portanto, se no “Projeto...” encontra-se já a hipótese de um inconsciente dinâmico, constituído por processos inconscientes e psiquicamente ativos, não há ainda nesse texto a hipótese do inconsciente como um sistema, a qual só irá tomar forma na carta 52 (Freud, 1950/1998) e em “A Interpretação dos sonhos” (Freud, 1900/1982).

 

Representação e consciência no capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos”

O esquema do aparelho psíquico proposto por Freud no capítulo 7 do livro “A interpretação dos sonhos” (Freud, 1900/1982) restringe-se a representar a relação dos processos psíquicos com a percepção e a motilidade, além das relações internas entre os sistemas. A relação entre o psíquico e o somático não está ali representada, apesar de Freud se referir ao papel desempenhado pela excitação de origem endógena no desenvolvimento e no funcionamento do aparelho. Portanto, pensando-o em comparação com o aparelho neuronal de 1895, o aparelho psíquico do capítulo 7 corresponderia somente a phi, psi do manto e ômega.

Freud coloca em um dos extremos do esquema a percepção e, no extremo oposto, a motilidade, e reafirma que o reflexo permanece sendo o modelo de toda a operação psíquica. Os processos psíquicos seriam, inicialmente, regulados automaticamente pelo “princípio de desprazer”7, e o prazer e o desprazer continuam a ser concebidos, tal como no “Projeto...”, como sensações decorrentes, respectivamente, da diminuição e do aumento dos níveis de excitação no aparelho.

A primeira diferenciação estabelecida no aparelho psíquico é entre a percepção e a memória. Ambas devem ser função de dois sistemas diferentes, argumenta Freud, devido às mesmas razões apontadas já no “Projeto...”: enquanto a percepção requer uma capacidade receptiva sempre igual - portanto, o sistema por ela responsável não deve ser modificado em nada pela excitação que recebe -, a memória requer a conservação de traços permanentes - portanto, tal sistema deve ser permanentemente modificado pela excitação que o percorre. A percepção fica sendo, então, função do primeiro sistema que compõe o aparelho, e a memória dos sistemas que se lhe sucedem.

A memória não apenas conserva o conteúdo das percepções como também associa esses conteúdos de acordo com determinadas leis. Para esclarecer o processo da associação, Freud parece retomar as idéias de facilitação e resistência do “Projeto...”. Diz ele: “A associação consiste, então, no seguinte: como conseqüência de reduções na resistência e de facilitações, desde um dos elementos Mn a excitação se propaga melhor em direção a um segundo elemento Mn do que em direção a um terceiro” (Freud, 1900, p. 515). Tudo indica, nessa passagem, que Freud continua a conceber a memória da mesma maneira que no “Projeto”, isto é, como modificações permanentes resultantes da excitação recebida, as quais estariam situadas entre os elementos dos sistemas e não nos próprios elementos, o que teria como conseqüência a constituição de caminhos preferenciais (uma seqüência de “facilitações”) para a passagem da excitação. Levando-se isso em conta, pode-se dizer que a representação continua a ser pensada como consistindo em um processo associativo. A seguinte afirmação de Freud corrobora esta hipótese: “(...) representações, pensamentos e produtos psíquicos em geral não podem ser localizados dentro dos elementos orgânicos do sistema nervoso, mas, por assim dizer, entre eles, onde resistências e facilitações constituem seus correlatos” (Freud, 1900/1982, p. 579)8. Em várias ocasiões Freud volta a falar também em neurônios9, o que indica que é mantida a hipótese de que estes seriam os elementos constituintes do aparelho.

Freud retoma a idéia que havia sido apontada na Carta 52 como a tese “essencialmente nova de sua teoria”: a de que haveria vários sistemas de memória nos quais o mesmo conteúdo estaria associado de maneira diferente. De tempos em tempos, esses traços mnêmicos seriam novamente transcritos de acordo com princípios associativos diferentes, de modo que a memória seria constituída por vários níveis de registros. Na carta 52, Freud afirmara não saber quantos sistemas deveria haver, no mínimo três, provavelmente mais; no esquema do capítulo 7, outros sistemas de memória são incluídos entre o sistema da percepção e o do inconsciente. Freud propõe, na seção B desse capítulo, uma representação tópica dos sistemas de memória, que os representa como se eles possuíssem localizações distintas. Adiante, ele esclarece que essa representação tópica é uma representação “auxiliar”, empregada com o objetivo de facilitar a explicação dos processos psicológicos.

Na seção B do capítulo 7, Freud propõe que os dois últimos sistemas mnêmicos - entre os quais se situaria uma “censura” - seriam o Inconsciente (Ics) e o Pré-consciente (Pcs). Este último estaria ligado à consciência e governaria o acesso à motilidade voluntária. Tais sistemas, na verdade, corresponderiam a dois tipos de processos. No início da seção F, Freud afirma:

Se as consideramos com maior atenção, as elucidações psicológicas da seção anterior não nos sugerem a suposição da existência de dois sistemas perto do extremo motor do aparelho, mas sim de dois processos ou de dois modos no decurso da excitação. Para nós dá na mesma; sempre devemos estar dispostos a abandonar nossas representações auxiliares quando nos acreditamos em condições de substituí-las por alguma outra coisa que se aproxime mais da realidade desconhecida. (Freud 1900/1982, p. 578)

Esses dois processos, que corresponderiam aos sistemas pré-consciente e inconsciente, seriam os processos primários e os secundários que já haviam sido mencionados no “Projeto...”. Portanto, essa diferenciação entre dois “modos no decurso da excitação” seria aquela entre o estado “livre” e estado “ligado” ou “quiescente” da quantidade. O primeiro corresponderia ao processo primário e, o segundo, ao secundário. Apesar da representação dos sistemas como localidades diferentes (a representação tópica) ser uma representação menos rigorosa, dado que trata-se de processos que se sobrepõem e não de processos ocorrendo em lugares distintos, ela deve continuar sendo utilizada, argumenta Freud, uma vez que ela figura de maneira mais simples a distinção pretendida. Assim, a representação tópica deveria continuar sendo usada por motivos didáticos.

Os sistemas pré-consciente e inconsciente estabelecem uma diferenciação clara entre os processos suscetíveis e os insuscetíveis de consciência. Os processos secundários (ou o Pcs), por incluírem entre suas associações representações-palavra, seriam suscetíveis de se tornarem conscientes. Os processos primários, ao contrário, seriam insuscetíveis de consciência por dois motivos: em primeiro lugar, por permanecerem, ao menos na normalidade, sob inibição do pré-consciente e, portanto, impedidos de acederem à consciência pela via alucinatória e, em segundo lugar, por não incluírem representações-palavra entre suas associações, o que não lhes permite alcançar a consciência pela via normal do pensamento.

No “Projeto...”, como se viu acima, já estava presente a idéia de um psíquico inconsciente e insuscetível de se tornar consciente devido à ausência de vínculos com representações-palavra. A principal novidade do capítulo 7 em relação a isso parece ser a hipótese de que essas representações inconscientes formariam o conteúdo dos processos primários e, portanto, possuiriam propriedades distintas daquelas do psíquico que tem acesso à consciência (atemporalidade, ausência de contradição, mobilidade das ocupações, substituição da realidade exterior pela psíquica). Para representar essas propriedades distintivas, como Freud esclarece mais tarde, no texto “Nota sobre o conceito de inconsciente” (Freud, 1912/1982), é introduzida a concepção dos sistemas inconsciente e pré-consciente. Freud também esclarece, no capítulo 7, que tipo de representações comporiam o psíquico insuscetível de consciência: não apenas o reprimido - ou seja, representações que foram incorporadas ao sistema pré-consciente, mas acabaram sendo excluídas deste sistema por terem se tornado desprazerosas -, como também moções de desejo que não chegaram a ser incorporadas ao processo secundário, devido ao estabelecimento tardio desse processo.

Embora não esteja representada nos esquemas da seção B, Freud diz que a “percepção-consciência” seria a operação psíquica de um sistema particular, ao qual ele atribui a designação abreviada Cs10. Esse sistema se situaria ao lado do Pcs - seria o último sistema da extremidade motora do aparelho - e suas características mecânicas seriam semelhantes àquelas do sistema de percepção (P): apresentaria sempre as mesmas capacidades receptivas, isto é, seria um sistema no qual nenhuma modificação causada pelos processos que aí ocorressem se conservaria permanentemente. Freud define a consciência como “um órgão sensorial para a concepção {Auffassung} de qualidades psíquicas” (Freud, 1900/1982, p. 578), cuja função seria direcionar a “atenção” que atua no Pcs. Parte da energia de ocupação móvel de que esse último sistema disporia seria usada como “atenção”, enquanto outra seria usada para inibir e direcionar os demais processos11. Ao dar origem a qualidades, o sistema consciente, de alguma forma que não nos é explicada, atrairia a atenção pré-consciente, e esta “sobre-ocuparia” aqueles processos dos quais proviesse a excitação da consciência; disso decorreria a tomada de consciência de um processo representacional. No “Projeto...”, quem perceberia seria o eu, pois a atenção é uma função que lhe era ali atribuída; agora, no capítulo 7, essa função é transferida ao Pcs, que seria, então, o agente da percepção consciente.

Assim como no “Projeto...”, uma coisa é um processo de despertar qualidade, outra é ele ser de fato percebido conscientemente. Para que uma representação fosse de fato conscientemente percebida, seria preciso que a qualidade por ela despertada fosse focalizada pelo mecanismo da atenção. Quanto a isso, Freud esclarece apenas o papel que a consciência exerceria no aparelho e as condições que os processos psíquicos inconscientes teriam que satisfazer para se tornarem aptos a despertar a consciência. O modo de funcionamento do sistema Cs propriamente dito permanece bastante obscuro.

Freud afirma que “o aparelho psíquico - que, com o órgão sensorial dos sistemas P, está voltado para o mundo exterior -, é ele mesmo mundo exterior para o órgão sensorial da Cs, cuja justificação teleológica repousa nessa circunstância” (Freud, 1900/1982, p. 583). Inicialmente, apenas as excitações provindas de P e aquelas relacionadas ao prazer e ao desprazer seriam capazes de se tornarem conscientes. Essa excitação proveniente de P teria que passar por um complexo processamento antes de se converter em sensação consciente, diz Freud. Ela teria que percorrer todo o aparelho e passar pelo Pcs, sistema que submeteria todo conteúdo perceptivo a ainda novas elaborações. Portanto, as percepções não despertariam diretamente a consciência e todo processo que se tornasse consciente teria uma etapa prévia inconsciente. Dessa forma, a consciência continuaria sendo posterior à memória e continuaria sendo concebida como algo que pode se acrescentar ou não a uma representação dependendo de certas condições. Contudo, Freud novamente argumenta, como no “Projeto...”, que a consciência “não é um reflexo supérfluo do processo psíquico consumado” (Freud, 1900/1982, p. 583). As sensações de prazer e desprazer, ao direcionarem tanto os processos associativos quanto a percepção dos objetos externos contribuiriam para a sobrevivência do sujeito, pois permitiriam a fuga do que lhe representa perigo e a aproximação ao que lhe é benéfico. Esse direcionamento da atenção exercido pela consciência teria, então, uma função imprescindível no desenrolar dos processos psíquicos, e parece ser nesse sentido que se justifica a afirmação de Freud de que a consciência não é um reflexo supérfluo dos demais processos psíquicos. Desde o “Projeto...”, Freud deixara claro que a regulação exercida pelas sensações de prazer e desprazer, assim como a atenção às percepções, seriam indispensáveis para a sobrevivência do sujeito, tanto que ali a atenção era definida como a segunda regra biológica, e a regulação dos processos pelas sensações de desprazer, como a primeira regra biológica que atuaria na determinação do funcionamento do aparelho.

Segundo as hipóteses do capítulo 7, as percepções poderiam surgir no aparelho por duas vias distintas: a partir da recepção de excitação de origem exógena ou a partir da ocupação do sistema P por excitação proveniente do interior do aparelho, isto é, dos sistemas de memória. O fluxo de excitação que percorreria o aparelho do sistema P até a via motora é chamado por Freud de “progressivo”, e a excitação que o percorreria no sentido inverso - ou seja, dos sistemas de memória ao sistema P - caminharia, portanto, em sentido “regressivo”. Na vigília, a excitação em sentido progressivo predominaria, embora também pudessem ocorrer nesse estado fluxos regressivos, pois uma das etapas da rememoração comum consistiria na ocupação regressiva do sistema P, como veremos. No estado de sono, ao contrário, devido ao cessar quase total da corrente progressiva, à redução parcial da atividade inibitória do Pcs - isto é, a liberação do processo primário - e à atração exercida pelas recordações próximas à percepção, o fluxo regressivo se tornaria bem mais intenso e, conseqüentemente, a ocupação do sistema P poderia produzir alucinações12. Esse percurso regressivo da excitação teria como resultado a transformação dos pensamentos em imagens sensoriais - isto é, por meio desse processo, os pensamentos seriam transpostos em percepções e, como toda percepção, seriam capazes de alcançar a consciência e atrair sobre si a atenção pré-consciente. A reativação alucinatória das representações poderia ocorrer também, em condições patológicas, durante a vigília, ou seja, mesmo na presença de um intenso fluxo progressivo de excitação. Esses processos regressivos que conduzem à alucinação, tal como ocorre nos sonhos e nas psicoses, restaurariam o modo de atividade primário do aparelho: em primeiro lugar, devido ao seu caráter alucinatório e, em segundo lugar, por submeterem o material representacional aos princípios formais primários, isto é, aqueles vigentes nos primeiros e mais antigos sistemas de memória. Nesse sentido é que Freud diz que a “regressão tópica” é também, ao mesmo tempo, uma “regressão temporal” e uma “regressão formal”. Essa idéia de regressão tópica fora proposta por Breuer nos “Estudos sobre a histeria” (Freud, 1895/1952) e já se fazia presente no “Projeto...”, onde Freud propusera que a alucinação resultasse de uma ocupação regressiva do sistema phi a partir de psi.

Então, a consciência originalmente decorreria apenas das sensações de prazer e desprazer e das percepções, e estas últimas poderiam surgir no aparelho por dois caminhos distintos. Freud continua a sustentar a idéia de que, com a associação dos processos psíquicos às palavras, surgiria um novo tipo de consciência, intermediado especificamente pelas associações lingüísticas e que, antes da constituição das representações-palavra, os processos psíquicos seriam regulados automaticamente pelas sensações de prazer e desprazer. Com a associação desses processos a palavras, eles, de certa forma, se tornariam independentes dessa regulação imposta pelas sensações de prazer e de desprazer. Ao comentar o papel dos signos lingüísticos nos processos associativos, Freud diz explicitamente que é a associação com a representação-palavra que tornaria possível o acesso, por parte da ocupação pré-consciente, a representações desprazerosas, o que aperfeiçoaria o modo de operação do aparelho, pois instauraria uma regulação dos processos mais fina do que aquela primária, exercida apenas pelas sensações de prazer e desprazer.

No entanto, ao contrário do que ocorre no “Projeto...”, Freud não especifica no capítulo 7 por que a palavra é capaz de produzir a consciência. Mesmo assim, há uma afirmação na seção B que, somada a uma idéia presente na carta 52, permite formular uma hipótese a este respeito. Nesta carta, Freud diz que a consciência do pensamento está ligada à “reanimação alucinatória” da representação-palavra; no capítulo 7, por sua vez, ele afirma que “o recordar intencional e outros processos parciais de nosso pensamento normal correspondem a uma marcha para trás {Rückschreiten} dentro do aparelho psíquico” (Freud, 1900/1982, p. 536). De acordo com a hipótese do aparelho psíquico, pela via regressiva um pensamento se tornaria percepção, e este seria o mecanismo responsável pela ativação alucinatória de uma imagem perceptiva. Se o que permite a consciência do pensamento - a rememoração da representação - é sua associação com palavras e se a rememoração ocorre pela via regressiva, as palavras seriam, nesse processo, transpostas em percepções e, como todas as percepções, poderiam alcançar a consciência e atrair sobre si a atenção. Sendo assim, a consciência do pensamento seria possibilitada pela reativação alucinatória da representação-palavra, como diz Freud na Carta 52. O termo “alucinatório” significaria aí apenas que o processo se daria pelo mesmo caminho da alucinação. Essa reativação da palavra teria que ser pouco intensa para não se confundir com uma alucinação de fato, ou seja, tratar-se-ia de uma reativação alucinatória controlada pelo processo secundário.

Essa hipótese sobre o mecanismo pelo qual as associações lingüísticas poderiam despertar a consciência, no entanto, difere daquela apresentada no “Projeto...” e torna problemático entender por que apenas a palavra possibilitaria a consciência do pensamento. Em 1895, como vimos, Freud havia formulado a hipótese de que a palavra seria capaz de produzir signos de qualidade devido ao seu elemento cinestésico. A ocupação deste último, como todo movimento, produziria uma percepção e, portanto, como toda percepção, seria capaz de despertar signos de qualidade e atrair sobre si a atenção. Essa hipótese do “Projeto...” é incompatível com a idéia de que é a reanimação alucinatória da palavra que permite a rememoração, pois, no aparelho psíquico do capítulo 7, a percepção produzida pelos movimentos - no caso, pela ocupação da imagem cinestésica da palavra - não se daria pela via regressiva, mas pela progressiva. A idéia de que é por meio da sua ativação alucinatória que a palavra se torna percepção e desperta a consciência parece tornar dispensável a suposição do “Projeto...” de que só o elemento cinestésico da palavra poderia produzir qualidades, mas, na verdade, parece tornar dispensável também a suposição de que só a palavra seria capaz de fazê-lo. Não parece haver, em princípio, nenhum impedimento para que uma imagem visual, por exemplo, se tornasse consciente a partir desse mesmo processo.

Uma vez que a percepção só alcançaria a consciência após passar por todos os sistemas que separam os dois extremos do aparelho - tendo em vista que os sistemas consistem, na verdade, em vários níveis de processos, podemos dizer que a informação sensorial exógena só se torna consciente após passar por um longo processamento e sucessivas reorganizações -, a rememoração teria uma primeira etapa regressiva (do Pcs à P), na qual as palavras seriam transpostas em percepções, e uma segunda etapa progressiva (de P a Cs), por meio da qual a percepção se tornaria consciente. Assim, a percepção ordinária - isto é, aquela produzida pela recepção de estímulos exógenos - se daria por um processo progressivo, e a rememoração possuiria duas etapas: uma regressiva e outra progressiva, da mesma forma que a alucinação. A diferença entre a rememoração e a alucinação seria apenas quantitativa ou de intensidade.

No capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos”, Freud sugere a existência de uma censura entre os sistemas Cs e Pcs, semelhante à que haveria entre este último sistema e o Ics. Ele diz o seguinte com referência ao sistema pré-consciente: “suas excitações - certamente obedecendo também a certas regras e, talvez, só depois de superar uma nova censura, mas sem consideração pelo sistema Ics - podem alcançar a consciência” (Freud, 1900/1982, p. 582). Esta censura entraria em ação acima de um certo limite quantitativo, de modo que pensamentos de pouca intensidade se subtrairiam a sua ação. Com essa hipótese, o autor parece estar propondo que, mesmo entre os processos que envolvessem palavras, haveria alguns que não poderiam se tornar conscientes devido a sua baixa intensidade, o que implicaria que haveria, de certa forma, um “insuscetível de consciência” no Pcs. Dois fatores tornariam um processo pré-consciente apto a despertar a consciência: estar associado a palavras e possuir uma intensidade acima de um certo limiar. No entanto, esses processos “aptos a despertarem a consciência” só a despertariam de fato se não fossem barrados pela censura presente entre o Pcs e o Cs. Sendo assim, com exceção das percepções e das sensações de prazer e desprazer, apenas aqueles processos que estivessem associados a palavras, que possuíssem uma certa intensidade e que não fossem barrados pela censura poderiam se tornar conscientes. No artigo “O inconsciente” (Freud, 1915/1982), ele retoma essa hipótese da existência de uma censura entre Pcs e Cs13 e no artigo metapsicológico “A repressão” (1915/1982), Freud esclarece que seriam precisamente os derivados do reprimido que estariam submetidos a essa censura (Caropreso, 2006).

 

Considerações finais

Tanto no “Projeto...”, como no capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos”, a representação é pensada como um fato de memória ao qual a consciência pode ou não vir a se acrescentar. Em ambos os textos, Freud postula um sistema diferenciado que seria especificamente responsável pela produção de qualidades sensoriais. Esta última seria condição necessária para que uma representação viesse a ser conscientemente percebida, mas não seria condição suficiente uma vez que, para isso, seria necessário a sua focalização pelo mecanismo de “atenção”, a qual é pensado como uma função do eu no “Projeto...” e como uma função do pré-consciente no capítulo 7. Já no “Projeto...”, Freud reconhecia que a possibilidade de rememoração de uma representação - a consciência que chamamos de “mediata” - era dependente das associações lingüísticas, hipótese que é mantida no esquema do aparelho psíquico do capítulo 7, embora o mecanismo através do qual a representação-palavra levaria à produção de qualidades sensoriais seja pensado de maneira diferente em cada um dos textos. Procuramos argumentar por que a hipótese formulada no “Projeto...” permite compreendermos a razão pela qual a rememoração dependeria exclusivamente das palavras, ao contrário daquela elaborada no capítulo 7.

No “Projeto...”, a possibilidade de uma parte das representações permanecer sem acesso à consciência por não estar associada a palavras já é contemplada, mas, nesse texto, apenas a presença ou não de vínculo com as palavras diferenciaria a representação suscetível e a insuscetível de consciência. Essa diferenciação torna-se mais complexa no capítulo 7, com a hipótese de que o psíquico suscetível e o insuscetível de consciência consistiria em tipos de processos diferentes (o primário e o secundário), o que faria com que eles apresentassem características peculiares (Caropreso, 2005). No capítulo 7, Freud sustenta que não basta uma representação estar associada a palavras para que ela possa se tornar consciente: além dessa associação, seria necessário ainda que a representação possuísse intensidade superior a certo nível e que não fosse barrada pela censura atuante entre os sistemas pré-consciente e consciente. Essas hipóteses são retomadas e desenvolvidas nos artigos metapsicológicos de 1915. Aí, assim como em muitos outros textos mais tardios, Freud continua a pensar a relação entre a representação e a consciência, de modo que esta se configura como um dos problemas centrais da teoria metapsicológica freudiana, cuja elucidação está ainda longe de ter sido plenamente alcançada.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br

Enviado em 1°/9/2007
Aprovado em 1°/5/2008

 

 

1 Apoio: CNPq.
2 Por exemplo, nos seguintes textos: “Projeto de uma psicologia”(Freud, 1950/2003), capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos” (Freud, 1900/1982), “O inconsciente” (Freud, 1915/1982), “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920/1982), “O eu e o isso” (Freud, 1923/1998).
3 Essa identificação entre aumento de excitação e desprazer, por um lado, e entre seu rebaixamento e prazer, por outro, passa a ser questionada por Freud a partir de certo momento de sua obra. Por exemplo, no texto “Pulsões e seus destinos” (Freud, 1915/1982), ele afirma que essa relação deve ser mais complexa e que, por enquanto, permanece desconhecida. Na 22a das Conferências de Introdução à Psicanálise (Freud, 1916-1917/1998), o autor volta a manifestar sua dúvida a respeito de uma identificação simples entre aumento de excitação e desprazer e sua diminuição e prazer. Em “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920/1982), Freud sugere que talvez o ritmo da variação no nível de excitação seja determinante na produção das sensações de prazer e desprazer.
4 Uma análise minuciosa dos problemas relativos à hipótese do sistema ômega no “Projeto...” está presente em Simanke e Caropreso (2005).
5 Na carta a Fliess de 6 de dezembro de 1896 (Carta 52), Freud fala de uma “consciência secundária”, para se referir a esse tipo de consciência.
6O funcionamento regido unicamente pelo princípio de inércia, que se caracterizaria pelo livre fluxo das quantidades de excitação nervosa entre os neurônios com vistas à descarga mais imediata possível, consistiria no que Freud chama de “processo primário”. Com a substituição do princípio de inércia pela tendência à constância, o processo primário seria substituído pelo secundário. Neste último, o fluxo da excitação estaria parcialmente inibido, de modo que certo nível de quantidade seria retido nos neurônios, isto é, ela se encontraria, assim, em um estado “ligado”. Depois de estabelecido o processo secundário, o primário só voltaria a ocorrer nos sonhos e nas patologias (o que Freud denomina “processos primários póstumos”).
7 Em suas obras posteriores, Freud chamou este princípio de “princípio do prazer”.
8 Afirmações como essa e a precedente permaneceriam totalmente enigmáticas se não se tivesse em vista a teoria do “Projeto...”: elas deixam claro que as hipóteses neurológicas do “Projeto...” não foram abandonadas ou totalmente substituídas por hipóteses psicológicas.
9 Na seguinte passagem, por exemplo, Freud afirma: “Se pudéssemos confirmar que nos sistemas Ψ, memória e qualidade para a consciência se excluem entre si, nos abriria uma promissora perspectiva sobre as condições da excitação nos neurônios” (Freud, 1900, p. 533).
10 Garcia-Roza (1984) considera que o pré-consciente e o consciente constituem, no capítulo 7, um mesmo sistema. No entanto, Freud os diferencia claramente: tratar-se-ia de dois sistemas separados, os quais estariam em conexão. Em alguns dos artigos metapsicológicos de 1915, Freud manifesta sua dúvida quanto a distinguir ou não entre esses dois sistemas, mas ele acaba concluindo, no “Complemento metapsicoloacute;gico à doutrina dos sonhos” (Freud, 1917), que é preciso mesmo diferenciá-los.
11Ao contrário do que afirmam Laplanche e Pontalis (1982), a atenção não é uma função do sistema consciente. Em algumas ocasiões, Freud usa o termo “atenção da consciência”, mas, na verdade, a atenção é uma função do Pcs, como demonstra a seguinte afirmação: “O sistema Pcs não só bloqueia o acesso à consciência, mas preside o acesso à motilidade voluntária e dispõe do envio de uma energia de ocupação móvel, uma parte da qual nos é familiar como atenção” (Freud, 1900, p. 602).
12 No sonho, devido ao cessar parcial da atividade pré-consciente, o processo primário seria liberado e tentaria alcançar a consciência e a motilidade pela via progressiva. Como o Pcs barraria essa tentativa, o processo inconsciente, atraído pelas representações próximas ao sistema perceptivo, tomaria o sentido regressivo e acabaria produzindo uma alucinação.
13 Em “O inconsciente”, Freud afirma: “a existência de uma censura entre Pcs e Cs nos adverte que o tornar-se consciente não é um ato de percepção, mas que provavelmente se trata também de uma sobre-ocupação, um progresso posterior da organização psíquica” (Freud, 1915, p. 152).