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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.13 no.1 São Paulo  2011

 

Artigos

 

Pobreza de espírito? Philippe Lacoue-Labarthe e a crítica ao nacional-espiritualismo de Heidegger

 

Spiritual poverty? On Philippe Lacoue-Labarthe's critique against Heidegger's national-spiritualism

 

 

André Duarte

Professor no Departamento de Filosofia da UFPR e bolsista do CNPq
E-mail: andremacedoduarte@yahoo.com.br  

 

 


Resumo

Segundo Lacoue-Labarthe, a filosofia tardia de Heidegger se caracterizaria por um "nacional-espiritualismo" de teor quase religioso, articulado por dois procedimentos teóricos complementares: por um lado, pelo caráter "geoetnopolítico" de sua reflexão ontológica, eufemismo com o qual o crítico francês alude ao caráter supostamente fascista da filosofia de Heidegger; e, por outro lado, pela sacralização do texto poético de Hölderlin, interpretado como "texto sagrado". Em meu comentário crítico à apresentação proposta por Lacoue-Labarthe à conferência Die Armut (A pobreza), de Heidegger, argumento, em primeiro lugar, que a hermenêutica epocal do ser deve ser entendida como uma superação da anterior concepção heideggeriana a respeito da missão histórico-espiritual do Dasein do povo alemão. Em segundo lugar, argumento que a hermenêutica epocal heideggeriana não se confunde com qualquer procedimento de sacralização dos textos poéticos, de sorte que o privilégio concedido à poesia no contexto do pensamento tardio de Heidegger mereceria ser mais bem caracterizado levando em conta sua exigência de encontrar uma linguagem não calculadora, pós-metafísica.

Palavras-chave: Heidegger, pobreza, Philippe Lacoue-Labarthe, espírito, filosofia, política.


Abstract

According to Lacoue-Labarthe, Heidegger's later philosophy is characterized by a sort of quasi-religious "national-spiritualism" articulated by two theoretical procedures: on the one hand, by his attribution of a "geo-ethno-political" character to his ontological reflection, an aspect which would carry together with itself a fascist penchant; on the other hand, by his sacralization of Hölderlin's poetry, which would be interpreted by him as "sacred text". In my critical commentary to Lacoue-Labarthe's presentation of Die Armut (On poverty), a Heidegger's conference, I argue, firstly, that Heidegger's hermeneutics of Being is to be understood as the overcoming of his previous considerations about the German people's historical mission; and secondly, that Heidegger's hermeneutics of Being has nothing to do with the sacralizing of poetical texts, but rather with the search of another way of saying, by means of a non-calculative, post-metaphysical language.

Key-words: Heidegger, poverty, Philippe Lacoue-Labarthe, spirit, philosophy, politics.


 

 

Heidegger proferiu a conferência intitulada "A pobreza" (Die Armut) na cerimônia de encerramento do semestre de verão de 1945, no dia 27 de junho. Naquele momento histórico, o que restava ativo na Universidade de Freiburg havia sido deslocado para o Castelo de Wildenstein, situado na Floresta Negra, região do alto Danúbio nas proximidades de Messkirch, cidade natal do filósofo (Safranski, 1996, pp. 350-351). A conferência se deu, portanto, em circunstâncias particularmente graves, para o país e para o próprio filósofo: a Alemanha já havia sido derrotada na Segunda Guerra Mundial, já se rendera, fora ocupada e encontrava-se totalmente destruída; quanto a Heidegger, sua carreira intelectual como professor universitário corria sérios riscos, no contexto dos procedimentos do tribunal de desnazificação coordenado pelos aliados. Como Heidegger havia sido reitor da Universidade de Freiburg entre 1933 e 1934, era de se esperar que ele fosse submetido a rigoroso juízo. De fato, o filósofo pagou alto preço pela aventura filosófico-política do reitorado: seu caso foi detidamente analisado, ele viu-se forçado a apresentar explicações, quase teve sua biblioteca pessoal confiscada e foi mesmo proibido de lecionar nas universidades alemãs. Segundo um comentário incisivo de Karl Jaspers, o estilo de pensamento de Heidegger foi considerado como "desprovido de liberdade, ditatorial e refratário à comunicação", motivo pelo qual ele deveria ser banido da Universidade, sob o risco de exercer "efeitos desastrosos sobre os estudantes" (Safranski, 1996, pp. 357-358). Tais acontecimentos levaram-no a um colapso nervoso, e Heidegger teve de buscar auxílio psiquiátrico junto à equipe de Medard Boss, em 1948. Pouco tempo depois, a severa punição do banimento foi revista, e Heidegger pôde retornar ao ensino universitário.

Mas voltemos ao ano de 1945. Em sua conferência, Heidegger toma como motivo central uma sentença enigmática atribuída a Hölderlin: "Entre nós tudo se concentra no espiritual, nos tornamos pobres para chegarmos a ser ricos" (Heidegger, 1945/2006, p. 92; 1945/1994, p. 5).1 Em seu texto, Heidegger apresenta-nos uma meditação (Besinnung) na qual se multiplicam palavras como pobreza (Armut), penúria, indigência e miséria (Not), necessidade (Notwendigkeit), constrangimento (Nötigung), necessário (Nötige), necessitado (notdürfitig), coação (Zwang), carência e carecer (Entbehren), materialismo, materialismo grosseiro (grob Materialismus), comunismo. Ao final da conferência, Heidegger também menciona o "perigo da miséria e dos tempos de indigência" (Gefahr der Not und der Notzeiten), o "perigo da fome" e dos "tempos de escassez", as "guerras" e o "perecimento de muitos homens", bem como a própria "guerra mundial" que acabara de encerrar-se (Heidegger, 1945/2006, p. 114 e p. 118; 1945/1994, p. 10). Está claro que problemas políticos e econômicos cruciais de nosso tempo estão no centro de sua meditação. Ao pensar tais fenômenos políticos e econômicos, entretanto, Heidegger visa-os em seu caráter "essencial", e isto implica, de sua parte, não corroborar a opinião e as expectativas correntes a respeito de seu significado imediato e ôntico. Para o filósofo, a essência do político e do econômico, entrevista desde a perspectiva da história do ser, não pode ser entendida como algo de estritamente político ou econômico, assim como a essência da pobreza e da necessidade tampouco se confundiria com algo de que se precisasse ou se carecesse empiricamente.

Esse paradoxal movimento reflexivo desperta inúmeras desconfianças. Tudo se passaria, aparentemente, como se Heidegger pretendesse negar a premência das carências e necessidades pelas quais passava o povo alemão, contornando-as ao transformá-las em abstrações filosóficas. Ademais, a conferência também pode provocar profunda indignação no leitor ao omitir qualquer autocrítica, a considerar-se o envolvimento prévio do filósofo com o nacional-socialismo. Na conferência de Heidegger, de fato, não se encontram quaisquer palavras de consolo e de conforto em meio ao sofrimento e à dor do povo alemão e dos demais povos europeus; nenhuma indicação acerca dos novos caminhos a seguir; nenhum chamado à consciência moral; enfim, nenhuma palavra de esperança pelo futuro. Para muitos, Heidegger seria um pensador moralmente insensível, permanentemente alheio às necessidades ônticas em sua premência imediata, constantemente enredado numa especulação filosófica que acabaria por encobrir a dor, a morte e a miséria tão evidentes a seu redor (Bernstein, 1992; Caputo, 1992).

Seja como for, dificilmente Heidegger renegaria o secreto poder extemporâneo do pensamento filosófico em nome de discursos moralizadores ou de consolação, naquele ou em qualquer outro instante da história mundial. Para ele, era justamente no tempo da maior necessidade que mais se carecia de uma reflexão corajosa, que não se acovardasse diante de sua tarefa, nem assumisse para si expectativas que jamais poderia saldar. Se naquele momento preciso da história mundial Heidegger houvesse abandonado a exigência e a necessidade do caminho de seu pensamento para chamar a si e a própria audiência a um exame de consciência a respeito dos erros individuais e coletivos cometidos durante o período do nazismo, certamente tal atitude teria sido reconfortante para seus ouvintes imediatos e para seus leitores futuros, bem como talvez tivesse favorecido a fortuna póstuma de seus escritos. Ao mesmo tempo, isso também teria significado uma capitulação de seu pensamento, que teria perdido a oportunidade de pensar o significado da pobreza e da necessidade para além de sua dimensão ôntica, imediatamente reconhecível.

De fato, é inútil buscar consolo ou intenções morais na conferência de Heidegger. Por outro lado, parece certo que as críticas mais duras de Philippe Lacoue-Labarthe a esse texto heideggeriano mantêm relação com a expectativa frustrada de Heidegger deixar de pensar como Heidegger naquele momento preciso da história mundial. Como em outros ensaios de Lacoue-Labarthe, as críticas incidem sobre a relação entre filosofia e política no pensamento de Heidegger (Lacoue-Labarthe, 1990). No ensaio de apresentação à conferência de Heidegger, Lacoue-Labarthe afirma que a filosofia tardia de Heidegger se caracterizaria por um "nacional-espiritualismo" (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 43) de teor quase religioso, orquestrado por dois procedimentos teóricos complementares: primeiro, pelo caráter "geoetnopolítico" (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 43) de sua reflexão ontológica, eufemismo com o qual o crítico francês alude ao caráter supostamente fascista da filosofia de Heidegger; e, segundo, pela sacralização do texto poético de Hölderlin, assumido e interpretado "sem a menor justificação" como se fosse um "texto sagrado" (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 18 e p. 19). Para Lacoue-Labarthe, o pensamento tardio de Heidegger estaria marcado pelo obscurantismo de uma "'mensagem' enfaticamente arquiética e arquipolítica" (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 17), absolutamente cega para a miséria ôntica e as necessidades imediatas dos povos europeus, já que orientada pela "tese" (metafísica) da história do Ocidente enquanto história do ser. Esta, por sua vez, seria formulada ao modo de uma homilia litúrgica, na qual se pregaria a expectativa de que a Alemanha pudesse, enfim, efetuar "uma 'revolução espiritual', um sobressalto para além da metafísica e de seu domínio mundial com respeito 'à técnica'" (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 35). Segundo Lacoue-Labarthe, desde a desilusão com o projeto filosófico-político de 1933, Heidegger teria feito de Hölderlin

o profeta (se não o messias) da tarefa pertinente ao Dasein historial-destinal (geschichtlich-geschicklich) dos alemães [...] isto é, da tarefa arquipolítica que agora Heidegger, como pensador ao qual cabe a obrigação de dizer a verdade anunciada pelo poeta, reconhece como sua: e isto é, com efeito, o nacional-espiritualismo (Lacoue-Labarthe, 2006, pp. 43-44).

Em suma, Heidegger sustentaria a "tese do Ocidente" como sítio do ocaso e de um novo amanhecer epocal, mas isto, desde que aprendamos a escutar o dizer poético de Hölderlin, por meio da interpretação que dele nos oferece o próprio Heidegger (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 60). Ao considerar-se como o intérprete privilegiado de Hölderlin, Heidegger se situaria na posição ambiciosa e grandiloquente de ser o porta-voz do Ocidente no momento de sua pior crise, e, o que seria ainda mais grave, um porta-voz que nada saberia da miséria real: "Heidegger sabe – ou tem a menor inquietude a respeito – o que é a miséria?" (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 73). À luz da história do ser, "se justifica por isso a pobreza (em sua essência ou não)?" (Lacoue-Labarthe, 2006, pp. 73-74). Eis, em suma, as principais críticas de Lacoue-Labarthe à conferência de Heidegger.

Não se pode desmerecer o aparato crítico elaborado por Lacoue-Labarthe, o qual oferece importantes indicações para decifrar as significativas alusões e omissões que perpassam a interpretação heideggeriana de Hölderlin. Uma de suas principais contribuições reside em ressaltar o diálogo cifrado que Heidegger constrói entre Marx e Hölderlin, o que comprova a erudição e a riqueza de seu comentário crítico. Também não é possível, neste momento, estabelecer um diálogo mais aprofundado com sua interpretação crítica, o que pressuporia relacioná-la às teses defendidas por Lacoue-Labarthe em outras obras nas quais ele discutiu a relação entre filosofia e política no pensamento de Heidegger. Parecem-me, entretanto, bastante questionáveis suas críticas ao caráter supostamente obscurantista e geoetnopolítico da filosofia tardia de Heidegger, em vista do qual se caracterizaria sua pobreza de espírito, isto é, sua "cegueira muito calculada", a despeito do cunho inegavelmente "luminoso" de seu discurso (Lacoue-Labarthe, 2006, p. 80). De fato, um dos aspectos que tornam difícil a leitura do texto de Lacoue-Labarthe é a constante oscilação entre a crítica contundente e o elogio matizado, os quais se sucedem sem maiores justificativas.

Nos limites deste texto, dedicado à discussão da interpretação crítica de Lacoue-Labarthe a respeito da conferência de Heidegger sobre a pobreza, posso apenas enunciar, em grandes linhas, dois motivos de minha discordância. Em primeiro lugar, não penso que a hermenêutica epocal do ser sinalize a persistência daquilo que Lacoue-Labarthe denominou o caráter geoetnopolítico da reflexão ontológica de Heidegger. Antes, pelo contrário, creio que ela aponta justamente no sentido da superação de sua anterior concepção sobre a missão histórico-espiritual do Dasein do povo alemão. Em segundo lugar, não penso que a hermenêutica epocal heideggeriana, formulada a partir dos anos 40, constitua um procedimento de sacralização dos textos poéticos, de sorte que o privilégio concedido à poesia no contexto do pensamento tardio de Heidegger mereceria ser mais bem caracterizado. Creio, finalmente, ainda que eu não possa desenvolver esse argumento no presente texto, ser possível demonstrar que tal hermenêutica epocal não implica a elisão da esfera ôntica e de suas misérias por meio de abstrações especulativas eivadas de conservadorismo político e econômico. Antes, ela nos permitiria compreender a raiz ontológica subjacente a manifestações técnicas violentas da modernidade, como a Guerra Mundial, na qual se confrontaram comunismo, fascismo e democracia liberal.

Heidegger procura considerar a essência da pobreza e da necessidade em seu caráter não metafísico e, para tanto, busca amparo no dito poético de Hölderlin, suplementando os silêncios do poeta com sua própria meditação, de maneira que se estabeleça uma correlação entre pobreza, riqueza e espírito. Ao determinar tal correlação, Heidegger pensa a pobreza, a riqueza e a necessidade de maneira para-doxal, o que, ao menos num primeiro sentido, significa que sua meditação situa-se para além e mesmo contrariamente àquilo que a opinião comum acredita saber sobre tais fenômenos. Por certo, isto não é o mesmo que negar a pobreza e a necessidade em seu aspecto premente e empírico. Por outro lado, o que estava em jogo ali era assumir aquele instante da história mundial como oportunidade privilegiada para pensar a pobreza e a necessidade segundo um registro teórico distinto do das ciências ônticas e do registro filosófico em vista do qual, por exemplo, a necessidade pode ser vista como determinação metafísica oposta à liberdade. Em 1945, tratava-se para Heidegger de pensar a pobreza e a necessidade segundo o registro historial do pensamento do ser, que então começava a conquistar suas primeiras formulações públicas, depois de anos de secretas germinações confinadas aos cadernos do filósofo.

Vejamos, primeiramente, por que é questionável o argumento de Lacoue-Labarthe a respeito de uma suposta persistência do nacional-espiritualismo, em seu caráter geoetnopolítico, na reflexão ontológica tardia de Heidegger. Como vimos, em sua conferência Heidegger toma como ponto de partida um dito poético de Hölderlin: "Entre nós tudo se concentra no espiritual, nos tornamos pobres para chegarmos a ser ricos". Para Heidegger, o "nós" ao qual Hölderlin endereçara suas palavras não se restringia nem a si mesmo nem aos seus contemporâneos imediatos, mas diria respeito ao campo aberto, ao qual pertencem de antemão todos os que porventura venham a ser interpelados por tais palavras. Na interpretação heideggeriana, o dito de Hölderlin não se referia a um "nós" e a um "agora" datáveis e localizáveis, não se referia a "nenhuma pessoa historicamente determinável", pois transpunha o limiar de seu próprio tempo na direção de tempos vindouros, mirando "algo de oculto que acontece na história ocidental" (was sich im Verborgenen der abendländischen Geschichte ereignet) (Heidegger, 1945/2006, p. 92; 1945/1994, p. 5). Para Heidegger, é como se Hölderlin houvesse lançado ao mar, em uma garrafa, uma mensagem cifrada, uma mensagem que o próprio Heidegger recolheria e tentaria decifrar. Assim, dá o que pensar o fato de que Heidegger tenha anotado à mão, à margem de sua conferência, a seguinte observação introdutória: "O motivo pelo qual escolhi comentar essa sentença para nós, no instante atual da história do mundo, deve se tornar claro por meio do próprio comentário"2. A quem se dirige Heidegger? Aos alemães que o escutam? Aos alemães que um dia porventura viessem a ler sua conferência? A quem quer que um dia se dedicasse a interpretar sua meditação? Dadas as circunstâncias em que o texto foi elaborado e apresentado, o mais provável é que Heidegger não o tenha destinado apenas a seus ouvintes imediatos, nem apenas aos alemães. Como Hölderlin, também Heidegger parece dirigir sua meditação para o campo aberto em que habitam os povos ocidentais, cuja comum pertença poderia delimitar o horizonte de um possível "diálogo entre os povos" (Gespräch der Völker miteinander) (Heidegger, 1945/2006, p. 118; 1945/1994, p. 10). Tal consideração permanece indeterminada na conferência, mas, de todo modo, parece oferecer uma forte objeção ao argumento de Lacoue-Labarthe acerca do nacional-espiritualismo constitutivo do pensamento heideggeriano. Seja o que for que Heidegger tivesse em mente ao propor esse diálogo entre os povos, o certo é que tal formulação marca o sinal de uma transformação importante no seu modo de pensar o ser, visto que uma consideração como essa não teria sido possível em textos dos anos 30.

Assim, parece-me que, quando Lacoue-Labarthe acusa a permanência de uma lógica etnogeopolítica no pensamento tardio de Heidegger, ele impõe à conferência de 1945 considerações críticas que talvez fossem pertinentes a alguns textos do início e meados dos anos 30, como o Discurso do reitorado e a Introdução à metafísica. Ao proceder desta maneira, Lacoue-Labarthe encobre as profundas transformações operadas na reflexão heideggeriana entre um momento e outro. De fato, no Discurso do reitorado Heidegger propusera uma reflexão sobre o espírito marcada pelo ideário de uma "missão espiritual" (geistigen Auftrag), em vista da qual caberia ao Dasein do povo alemão a tarefa de conduzir a Alemanha e o Ocidente para além das fronteiras da modernidade. Para o Heidegger de 1933, aceitar a posição de condutor (Führer) da universidade alemã implicava ser conduzido por uma missão espiritual que imprimiria no destino (Schicksal) do povo alemão a marca de sua história. Para que tal missão espiritual pudesse ser levada a cabo, isto é, para que a universidade tivesse força (Kraft) suficiente para cunhar o destino do Dasein do povo alemão, tudo dependeria de que a própria comunidade universitária quisesse a fundo tal essência ("dieses Wesen von Grunde aus wollen") (Heidegger, 2000, p. 107). A "autoafirmação" da universidade alemã era, portanto, o resultado da vontade originária e em comum de sua essência, conquistada na autorreflexão a respeito de "quem somos nós" enquanto povo em seu Estado. Assim, desde que a universidade alemã efetivamente quisesse sua essência, então a "ciência" e o "destino alemão" conquistariam sua máxima "potência" (Macht). A conquista de tal potência, por sua vez, só poderia ocorrer na medida em que a comunidade universitária expusesse a ciência à sua "necessidade" interna (Notwendigkeit), e na medida em que o próprio povo suportasse tal destino em sua penúria(Not) mais extrema. Para o Heidegger de 1933, portanto, somente se pondo novamente "sob o poder do começo do nosso ser-aí histórico-espiritual" a nova universidade alemã se exporia ao rigor da necessidade da filosofia, entendida como ciência originária do ser (Heidegger, 2000, p. 108).

À primeira vista, o recurso à terminologia da "necessidade" e da "penúria", vinculados a uma reflexão sobre o espírito, pareceria estabelecer clara vinculação com as análises desenvolvidas na conferência de 1945, o que daria razão a Lacoue-Labarthe quanto à persistência do nacional-espiritualismo heideggeriano. No entanto, não se pode esquecer que a reflexão do Discurso do reitorado, contrariamente ao que ocorre na conferência sobre "A pobreza", aparece enquadrada pela metafísica voluntarista que então envolvia seu projeto filosófico-político de transformação do mundo moderno com base na renovação da universidade. Com tal projeto, Heidegger visava justamente a reconquistar a "força" e a "potência" do destino histórico do povo alemão. Assim, em 1933, Heidegger pensava que a "vontade de essência cria[schafft] para nosso povo um mundo seu, o mundo do perigo mais íntimo e mais extremo, isto é, seu mundo verdadeiramente espiritual" (Heidegger, 2000, pp. 111-112). No contexto do Discurso do reitorado, Heidegger afirmava que o mundo espiritual de um povo não é uma superestrutura cultural, como o pensa o marxismo, nem tampouco qualquer conjunto de valores e conhecimentos disponíveis para seu pronto emprego, como os define a tradição liberal, mas a "potência [Macht] da mais profunda preservação [Bewahrung] de suas forças [Kräfte] de terra e sangue, como potência da mais íntima excitação [Erregung] e mais ampla comoção [Erschütterung] de seu Dasein" (Heidegger, 2000, p. 112). Apenas tal mundo espiritual poderia garantir a grandeza do povo, pois ele o constrangeria à "constante decisão [ständige Entscheidung] entre a vontade de grandeza [Willen zur Grösse] e a condescendência no decair [Gewähren-lassen des Verfalls]" (Heidegger, 2000, p. 112). Nessa decisão estaria em jogo o essencial para o povo alemão e para o próprio Ocidente, pois o acontecimento catastrófico da ruptura da "força espiritual do Ocidente" (Heidegger, 2000, p. 117) viria ou não a acontecer na dependência "unicamente de que, como povo espiritual e historial, ainda nos queiramos e de novo nos queiramos; ou, então, que já não nos queiramos" (Heidegger, 2000, p. 117). De maneira consequente com tal voluntarismo, o Heidegger do Discurso do reitorado pensava a tarefa da filosofia como o esforço obstinado e contínuo, sem o qual o conhecimento não poderia sustentar-se contra a "potência da ocultação do ente" (Macht der Verborgenheit des Seienden). Portanto, o que a filosofia deveria ensinar às débeis ciências modernas é que o ente somente se abre em sua inalterabilidade insondável por meio da obstinação que o arranca do ocultamento, atividade que os gregos entenderam sob o nome de theoría, atividade totalmente distinta da mera contemplação que repousa sobre si esquecida de si. Em 1933, a meta de Heidegger era reconquistar o poder e a força do começo filosófico, cabendo à filosofia ser novamente uma potência de agudização e de apreensão do ente na totalidade.

O fracasso do reitorado levou Heidegger a repensar o primado metafísico da vontade e da decisão, que a partir de meados dos anos 30 passou a conduzir sua reflexão. Não por acaso, no Discurso do reitorado Heidegger ainda via em Nietzsche a figura do "último filósofo alemão" (Heidegger, 2000, p. 111). Em "A pobreza", por outro lado, a afinação de humor subjacente à sua terminologia abre mão do pathos impetuoso da vontade de essência a favor da "serenidade que se habituou a distorcer toda necessidade" (Gelassenheit, die alles Nothafte zu verwinden gewohnt ist) (Heidegger, 1945/2006, p. 114; 1945/1994, p. 10). Daí por que existam diferenças fundamentais no modo pelo qual Heidegger define o espírito em 1933 e em 1945. No Discurso do reitorado, o espírito era definido como a "resolução sapiente [wissende Entschlossenheit] determinada originariamente pela essência do ser [Wesen des Seins]" (Heidegger, 2000, p. 112). Por outro lado, em "A pobreza", após apresentar diversas concepções históricas do espírito, Heidegger finalmente o define com base naquela "relação sublime" entre homem e Seer (Seyn), com base na qual as diversas concepções históricas do espírito tornaram-se possíveis. Diz Heidegger: "No Aberto dessa relação do Seer para com a essência do homem experimentamos 'o espírito' – ele é aquilo que prevalece a partir do Seer e possivelmente para o Seer" (Heidegger, 1945/2006, p. 104; 1945/1994, p. 7). O espiritual ao qual Hölderlin faz menção, tal como Heidegger procura agora decifrá-lo em sua meditação, não se confundiria com qualquer definição histórica do espírito, nem tampouco dependeria de uma resolução ou decisão do Dasein do povo alemão, determinada por sua vontade essencial, mas seria apenas "a nomeação poético-meditativa de um acontecimento oculto no próprio Seer, que avança muito adiante no que está por vir" (Heidegger, 1945/2006, p. 104; 1945/1994, p. 8). Em uma palavra, o espírito agora é a região do Aberto (Offen), consumada no acontecimento-apropriativo no qual o Seer vem à linguagem, condição epocal ou historial da constituição das diversas definições históricas possíveis do ser e do espírito, acessíveis à historiografia. Para Heidegger, a poesia de Hölderlin franquearia o acesso ao pensamento do Seer, isto é, ao pensamento dessa região do Aberto que é pura retração e abandono de todo ente em favor da raiz historial-ontológica de todo acontecimento histórico e de toda nomeação enquanto tal.

Se agora recorrermos a algumas formulações de Introdução à metafísica, veremos que as mesmas diferenças repõem-se entre o pensamento meditativo desenvolvido em "A pobreza" e a pretensão, ainda metafísica, de saltar para fora da metafísica, presente na preleção de 1935. Ao final da primeira preleção, Heidegger introduzia o problema do "obscurecimento do mundo" moderno, manifesto em "acontecimentos essenciais"como "a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a primazia da mediocridade" (Heidegger, 1935/1998, p. 34). Como o mundo é sempre um mundo espiritual, tratava-se aí do problema da "despotenciação do espírito" na modernidade, entendida como perda ou ruptura da relação essencial entre homem e ser. Em Introdução à metafísica, a posição central conferida à Alemanha e aos alemães, entendidos como o "povo metafísico" por excelência, tinha que ver com o fato de que Heidegger então pensava que apenas com base na Alemanha, isto é, com base no centro da Europa, se poderia tomar uma decisão fundamental quanto ao futuro do Ocidente e da Terra (Heidegger, 1935/1998, p. 29). Bem se vê que, em 1935, algo como um entendimento ou "diálogo entre os povos" mostrava-se impossível aos olhos do filósofo, ou, ao menos, teria de ser "conduzido" pelos alemães, Heidegger à frente. Em 1935, a despeito de já pôr em dúvida algumas das hipóteses que haviam mobilizado seu engajamento filosófico-político em 1933, Heidegger ainda considerava a repetição genuína da questão do ser como uma alternativa para a radical transformação do tempo presente, pensando-a em termos voluntaristas ou decisionistas: "precisamente se a grande decisão sobre a Europa não cair no caminho da aniquilação, então ela somente poderá cair no desdobramento de novas forças espirituais-históricas a partir do centro" (Heidegger, 1935/1998, p. 29). Tal alternativa ficaria na dependência de os alemães assumirem seu destino metafísico e elaborarem uma relação criativa com a tradição. Situando-se entre as tenazes da técnica desenfreada a serviço da democracia liberal de massas e do comunismo soviético, Heidegger ainda esperava da Alemanha o advento de uma verdadeira opção pelo centro, entre direita e esquerda. Em 1935, tudo dependeria de que "esse povo, como povo histórico, se projete, a partir do meio de seu acontecimento futural, para o campo originário das potências do ser, e com isso também projete a história do Ocidente" (Heidegger, 1935/1998, p. 29).

Ao propor o diagnóstico filosófico da despotenciação do espírito na modernidade, Heidegger propunha-se a pensar a carência de relação do homem contemporâneo com o que não seja ente , isto é, com as coisas e objetos do mundo. A despotenciação do espírito era, portanto, a expressão então conquistada para nomear o fato de que no presente tecnológico o homem abisma-se na caça e controle dos entes e já não se abre em pensamento para o ser. Assim, ao retomar a definição do espírito apresentada no Discurso do reitorado, segundo a qual o espírito é "a ex-posição sapiente, originariamente disposta, à essencialização do ser", Heidegger atribuía à filosofia, entendida como o perguntar fundamental da questão do ser, a tarefa de tornar os entes mais entes, contornando, deste modo, sua massificação e planejamento tecnológicos (Heidegger, 1935/1998, pp. 37-38). Somente assim se ressaltaria o próprio mistério de que o ente enquanto tal seja, e não antes o nada. Donde a conclusão heideggeriana de que o "Espírito é a potenciação das potências do ente como tal, na totalidade. Ali onde o espírito domina [herrscht], o ente enquanto tal torna-se sempre e cada vez mais entitativo [seiender]"(Heidegger, 1935/1998, p. 38).

Ora, como não perceber, entre as afirmações de 1935 e a conferência de 1945, uma mutação na afinação de humor subjacente ao léxico e à maneira de pensar de Heidegger? Tratava-se ainda, como sempre, de pensar o ser, e, se os termos empregados são ainda mais ou menos os mesmos, agora seu sentido será outro. Os textos de meados dos anos 30 lançavam-se, voluntariosos, rumo à tarefa filosófica da repotenciação do espírito, que deveria ser conquistada no salto de volta para a força do primeiro começo da metafísica, em vista do qual o ente se tornaria mais ente. Por outro lado, a conferência sobre a pobreza abre mão de qualquer missão ou projeto filosófico-político determinado ao empreender a crítica da linguagem metafísica da vontade de potência. Em 1945, Heidegger medita sobre a pobreza essencial e já não pretende restituir a força originária da filosofia e da metafísica; antes, trata-se de superar a filosofia e a metafísica ao revertê-las ou convertê-las a sua raiz fundamental, a correspondência silenciosa do homem para com o Seer. Do mesmo modo, se em Introdução à metafísica Heidegger ainda identificava o centro à Alemanha e ao povo metafísico por excelência, os alemães, comprimidos entre as tenazes do liberalismo e do comunismo, na conferência de 1945 o centro se desregionaliza, deixa de ser a "constatação histórica de uma realidade factual", na medida em que agora o espiritual, em torno ao qual tudo se concentra "entre nós", não diz respeito a um povo determinado, mas aos povos ocidentais em sua comum proveniência:

Isto agora quer dizer: Uma concentração acontece propriamente, isto é, uma reunião sobre a relação do Seer para com nossa essência, uma relação que é o centro, o meio, que está em todas as partes, como o centro do círculo não está em nenhuma (Heidegger, 1945/2006, p. 104; 1945/1994, p. 7).

Vejamos agora, sucintamente, em que sentido é questionável a crítica de que Heidegger teria transformado o dizer poético de Hölderlin em texto sagrado, atribuindo-se a si mesmo o papel de profeta dos acontecimentos por vir. A conferência "A pobreza" provém do mesmo impulso meditativo que se tornou mundialmente conhecido com a Carta sobre o humanismo (Heidegger, 1947/1994). Em seus ensaios tardios, Heidegger acolhe a história da filosofia para dela melhor se desembaraçar, no sentido de que, agora, a filosofia e a metafísica serão revertidas ao horizonte hermenêutico da história do ser, em vista do qual se pode compreender a proveniência das distintas categorias pelas quais a metafísica, ao nomear o ser, lançou-o no esquecimento. No âmbito dessa forma particular de meditação, o recurso heideggeriano ao dito poético ou, por vezes, ao dizer místico-religioso opera como via privilegiada de acesso à essência – da linguagem, da técnica ou da pobreza. Isto nada tem que ver com a sacralização religiosa dos textos poéticos ou com qualquer recaída no misticismo e no irracionalismo, os quais são entendidos por Heidegger como o verso ainda metafísico da própria tradição filosófica, aquela que seu pensamento agora procurava superar numa meditação rememorativa (Andenken). Eis por que Hölderlin, poeta sobre o qual Heidegger já conduzira inúmeros seminários desde 1934-1935, finalmente assume a posição de fonte privilegiada na incitação ao pensar, desbancando a anterior prevalência de Nietzsche. Para melhor caracterizar a importância crescente que o poeta ocupará no pensamento de Heidegger a partir da segunda metade dos anos 40, recorde-se a advertência da nota XII de "Ultrapassamento da metafísica", na qual Heidegger afirmava que

Com a metafísica de Nietzsche a filosofia chega ao acabamento. Isto quer dizer que ela já percorreu o circuito das possibilidades que lhe foram pré-designadas. A metafísica acabada, que é o fundamento da forma planetária de pensar, fornece a estrutura para uma ordem da Terra que provavelmente durará por muito tempo. Esta ordem já não precisa da filosofia, pois de há muito ela já sucumbiu. Mas com o fim da filosofia o pensamento ainda não chegou ao fim, mas, antes, se encontra na passagem para um outro começo (Heidegger, 1954/1994, p. 79).

Ora, na longa e indeterminada passagem para esse outro começo, a meditação de Heidegger libera-se da estrita fronteira da filosofia para escutar, na poesia de Hölderlin, assim como na palavra mística de Eckhart ou de Silesius, o acontecimento no qual vêm à linguagem um dizer e um pensamento que significam para além dos limites lógico-conceituais em que se move a filosofia. Esta nova tarefa do pensamento também constitui o marco teórico no interior do qual Heidegger libera seu pensamento da estrita fronteira da filosofia, aspecto que não pode ser negligenciado na interpretação dos ensaios tardios do pensador, sob pena de confundir-se o ultrapassamento filosófico da filosofia com qualquer mergulho no misticismo ou no irracionalismo. Nos textos publicados após 1945, Heidegger já não atribui ao pensamento quaisquer decisões ou tarefas, pois a ele já não cabe mais o ímpeto de transformar o curso do mundo, mas apenas preparar-se para um acontecimento que permanece indeterminado e indeterminável. A partir de 1945, Heidegger dedica-se continuamente a uma meditação sobre o ser da linguagem, na qual a discrição e os silêncios da palavra mística e da palavra poética sinalizam a via para outro pensar e para outra linguagem, liberados do domínio da lógica, do conceito e da representação. Trata-se de uma linguagem difícil, árida, que encontra no paradoxo poético uma instância privilegiada de pensamento.

Nessa linguagem e nesse pensamento que se lançam para além dos recursos da metafísica, os opostos não se excluem nem se resolvem por procedimentos lógicos, mas antes se reúnem e se iluminam reciprocamente. O próprio Lacoue-Labarthe chama a atenção para o emprego hölderliniano de uma "lógica paradoxal, que, para além da dialética", deixa-a "em suspensão": "Cheguei a chamar de 'hiperbólica' esta 'paradoxia' em que a mesmidade dos opostos ou contrários se estabelece até o infinito e, por isso mesmo, não se estabelece" (Lacoue-Labarthe, 2006, pp. 48-49). É pena que não tenha explorado tal comentário até suas últimas implicações, aplicando-o ao modo de pensar heideggeriano. Seguindo o rastro de Hölderlin, Heidegger pensa a riqueza e a pobreza muito além de seu "significado corriqueiro", ôntico, em vista do qual ambas se distinguem em função de sua dependência para com algo outro, o necessário. Nessa perspectiva, o ser pobre ou o ser rico permanecem relacionados com a posse ou com o estar desapossado do que é necessário, ou seja, as coisas ou objetos do mundo sem os quais não se pode viver. Por certo, tal definição não é incorreta, mas, para Heidegger, ela não alcança pensar o ser pobre ou rico em sua essência. Do ponto de vista do ser em seu essenciar, o que significam ser pobre ou ser rico? O que significam o carecer e o não carecer? O que significam o necessário e o desnecessário? Como é possível, enfim, que nos tornemos pobres para chegarmos a ser ricos, se não devemos entender nessa afirmação uma contradição lógica? Para responder a essas perguntas, Heidegger vale-se de um pensamento que reúne, converte e reverte os opostos, chegando a resultados surpreendentes.

Pensado em sua essência, ou seja, invertendo-se seu sentido ôntico e corriqueiro na linguagem, "ser verdadeiramente pobre significa: ser de tal modo, que de nada se carece, salvo do desnecessário [Unnötige]. Carecer verdadeiramente significa: não poder ser sem o desnecessário e assim pertencer unicamente ao desnecessário" (Heidegger, 1945/1994, p. 8)3. Nesse registro meditativo paradoxal, ser pobre é não estar coagido por quaisquer necessidades de que se necessite liberar-se para viver, mas carecer apenas do que não se necessita, de maneira que se esteja entregue e confiado ao desnecessário, estando, pois, liberto de toda coação: "O desnecessário é aquilo que não vem da necessidade, isto é, o que não vem da coação, mas antes do livre" (Heidegger, 1945/1994, p. 8). O livre, por sua vez, é aquilo que está "preservado" (schonen), aquilo que não é empregado e não possui utilidade, aquilo que repousa albergado e protegido em si mesmo, liberado e protegido em face da penúria (Not). Em sua meditação Heidegger efetua a reversão dos opostos, lançando seu pensamento além dos domínios da lógica e da dialética:

o liberador [Freiende] da liberdade contorna [abwenden] ou reverte [umwenden] previamente a penúria [Not]. A liberdade é o que revira [Wenden] a penúria. Apenas na liberdade e em seu liberar preservador predomina a necessidade [Notwendigkeit]. Quando assim pensamos a essência da liberdade e da necessidade, então a necessidade de modo algum é o oposto da liberdade, como pensa toda a metafísica, mas a liberdade é unicamente em si a necessidade (Heidegger, 1945/1994, p. 8).

Nessa reviravolta (Umkehr) do pensamento essencial tudo se revira mais profundamente, de modo que a liberdade é em si mesma a necessidade, mas isto somente num sentido mais profundo, em vista do qual "aquilo que libera é o des-necessário [Un-nötige], aquilo que não é necessitado pela penúria" (Heidegger, 1945/1994, p. 9). Assim, segundo o passo do pensamento essencial, ser pobre é carecer apenas do desnecessário, isto é, "carecer do livre-liberador" (Heidegger, 1945/1994, p. 9). Por certo, aquilo de que se carece é algo que não nos pertence, é algo de que carecemos e, assim, algo que nos possui, algo a que pertencemos. Ora, se o ser pobre é o carecer do desnecessário, e se aquilo que libera é justamente o desnecessário, então aquilo de que carecemos é do livre-liberador, interpretado por Heidegger como o Seer que "deixa" todo ente ser tal qual é. Assim, "Quando a essência do homem permanece propriamente na relação com o liberante do Seer para com o homem, isto é, quando a essência humana carece do desnecessário, então o homem tornou-se pobre em sentido próprio" (Heidegger, 1945/1994, p. 9). A concentração em torno ao espiritual é a reunião em torno da relação do Seer para com o homem e o permanecer aí reunido. Deste modo, quando Hölderlin diz que somente nos tornando pobres chegamos a ser ricos, sua sentença não pode ser interpretada como se estivesse em jogo uma relação de causa e efeito entre ambas as coisas, o que a lançaria no domínio da contradição; antes, o "próprio ser pobre é em si o ser rico" (Heidegger, 1945/1994, p. 9). Recapitulemos. Segundo os passos do pensamento essencial, ser pobre é carecer somente daquilo que é desnecessário, isto é, carecer daquilo que está preservado e liberado de toda necessidade; ora, aquele que vive liberado da coação da necessidade é propriamente rico, pois habita a região livre-liberadora da "abundância do Seer" que doa todo ente, sem jamais se confundir com qualquer região de objetos dos quais o ser-aí possa estar em falta ou não (Heidegger, 1945/1994, p. 9).

A linguagem dos ensaios tardios de Heidegger põe-se no limite do dizível, na exata medida em que põe para si uma exigência que é também ela limítrofe, a exigência de dizer a verdade do acontecimento-apropriativo instaurador das épocas do ser, sem poder amparar-se em qualquer fundamento. Trata-se aí da linguagem ontologicamente compreendida, pensada como abertura ( Offenheit) ou clareira do ser ( Lichtung des Seins), na qual habitam pensadores e poetas fundamentais, aqueles cujo pensar e dizer revela e mostra o que "é", na medida de sua correspondência silenciosa com o Seer (Seyn) pensado no ultrapassamento e na reversão da metafísica. Após a viragem ( Kehre), Heidegger pensa que os filósofos e os poetas são os representantes privilegiados do caráter extático do Dasein, pois a eles corresponderia a guarda protetora do aberto da clareira do ser na qual o Dasein já se encontra sempre lançado. Tal proteção não se dá mais por meio de qualquer decisão essencial ou por qualquer vontade de essência do Dasein do povo alemão, mas por meio do cultivo do pensamento essencial e da linguagem poético-meditativa, avessos aos processos de objetificação intrínsecos à linguagem e ao pensamento calculador e representacional da metafísica, os quais sempre transformam o ser em um ente determinado. É no e pelo pensamento meditativo que se perfaz a relação do ser para com a essência do homem. Isto é o mesmo que afirmar que é apenas no e pelo pensamento meditativo, não calculador e não representacional, que o ser acede à linguagem, agora concebida como a casa do ser em que habitam os mortais.

Temos aí o exemplo de uma terminologia deliberadamente estranha e que dá margem à ideia de que Heidegger teria substituído os conceitos filosóficos pelo emprego idiossincrático de metáforas de duvidoso valor estético. De fato, a partir da segunda metade dos anos 40, observa-se um afastamento da linguagem heideggeriana com relação aos conceitos legados pela tradição filosófica, mas tal afastamento é ele mesmo reflexivamente medido, isto é, se dá por motivos relativos ao próprio exercício do "outro" pensar, nada tendo que ver com a queda no misticismo religioso ou com o emprego de metáforas. Por outro lado, Heidegger procura experimentar um pensamento pós-metafísico, desprovido de fundamento último, que já não se ampara em conceitos representacionais. Como afirmou Ernildo Stein, o Heidegger tardio não se vale de metáforas na medida em que destina seu pensamento e sua linguagem ao ultrapassamento da metafísica. Ora, é apenas no âmbito da metafísica que o emprego de metáforas está autorizado, visto que a transmissão de "significados não sensíveis para imagens" ou a remissão de "elementos sensíveis a esferas não sensíveis" pressupõe "que existem dois mundos. A distinção entre sensível e suprassensível tem uma história central na tradição metafísica" (Stein, 2004, p. 292 e ss.). Assim, quando Heidegger afirma que a linguagem é a casa do ser, isto não pode implicar nenhuma representação de objeto, não nos pode levar a pensar em qualquer habitação já dada na qual se poderia alojar o ser, que tampouco é um conceito genérico ou universal. A afirmação heideggeriana de que a linguagem é a casa do ser em que habitam os mortais concerne à essência da linguagem e não intenta produzir um conceito metafísico acerca da essência da linguagem e da essência do humano. A respeito da essência da linguagem só se podem encontrar indícios ou acenos ( Winke) que a manifestem de maneira enigmática, e não signos ou conceitos que a possam remeter a um significado já previamente estabelecido e fixado pela tradição. Como afirma novamente Stein,

a tarefa da filosofia de Heidegger será, portanto, não simplesmente insistir em evitar o metafórico, mas estabelecer um modo de pensar e de dizer que precede e torna possível qualquer metáfora. [Trata-se aí de uma] linguagem de aceno, uma linguagem de aproximações. [...] É por isso que não existe em toda a obra heideggeriana um exemplo para o conceito de ser. Pois todo exemplo remete a um mundo metafórico que objetifica (Stein, 2004, p. 298 e p. 301).

Para pensar numa linguagem meditativa, Heidegger foi levado a provocar o estranhamento dos conceitos tradicionais, impondo-nos a exigência de nos desacostumar de apenas prestar atenção àquilo que já se expressou segundo a terminologia filosófica consagrada. Heidegger expôs seu pensamento a um domínio estranho e considerou que uma genuína experiência do pensamento e da linguagem dependeria desse estranhamento. Fazer ou sofrer uma experiência de pensamento com a linguagem não é o mesmo que obter conhecimento científico sobre ela ou sobre os entes, entendendo a palavra ou mesmo a linguagem como objeto do qual o homem pode dispor e que ele pode manipular à vontade, transformando-as, deste modo, em mais um item do fundo de reserva subsistente ( Bestand) à disposição dos mais variados agenciamentos tecnológicos. Para Heidegger, só é possível estar em casa no mundo moderno tecnocientífico por meio de um pensamento e de uma linguagem do estranhamento, os quais reconheçam que nosso pensamento calculador e nossa linguagem mais familiar, cotidiana e imediatamente compreensível, a linguagem da prestação de contas, já não fazem senão consolidar e agravar o esquecimento do ser. Apenas um "outro" pensamento, uma "outra" linguagem e uma "outra" escuta poderiam nos situar e esclarecer a respeito de nossa contemporânea ausência de pátria ( Heimatlosigkeit), isto é, nossa carência de pensamento e de linguagem. A linguagem essencial e o pensamento poético-meditativo são intrinsecamente estranhos ( Unheimlich), pois não se reduzem à prestação de informações sobre os entes, não procuram resolver nada nem dizer nada de importante para os negócios humanos, não pretendem causar nenhum efeito e, assim, também escapam a toda justificação teórica.

Tal pensamento e linguagem estranhos tentam experimentar e acolher o simples do acontecimento-apropriativo ( Ereignis) do ser. Para aceder à experiência de um pensamento e uma linguagem convenientes à escuta do apelo do ser ( Zuspruch), é preciso, portanto, superar a compreensão e o emprego técnicos do pensar, a fim de trazer à aparência o que nunca aparece, o que não é da ordem do ente, isto é, a clareira aberta e sem nome em que tudo se dá, assim como o próprio dar-se do que é em meio à retração daquilo que dá, o ser ele mesmo. Como argumenta Casanova, não se trata de forjar outra linguagem, nem tampouco de contentar-se com a linguagem gasta enquanto meio de comunicação corrente do cotidiano. Trata-se, antes, de tomar em consideração a linguagem do ente enquanto linguagem do seer (Seyn), e disto depende uma reconsideração da relação entre linguagem e silêncio: "o que temos no interior da linguagem do seer é realmente uma interpenetração plena entre dizer e escuta" (Casanova, 2002, p. 328). A meditação heideggeriana sobre a essência da linguagem, bem como seu exercício de um pensamento do ser, não constitui o testemunho de um pensador que se arrogou arbitrariamente a autoridade de antecipar o futuro e passar julgamento sobre o passado, nem confirmam um suposto abandono do pensar em nome da fé religiosa ou do puro irracionalismo místico ou poético. Antes, tal meditação é uma crítica do presente enquanto época metafísica da técnica, a qual fecha seus ouvidos para o ser da linguagem e, deste modo, fecha-se para a expectativa incerta de uma nova possibilidade epocal, de uma outra relação com o ser, menos violenta e predatória.

O pensamento meditativo em que o ser vem à linguagem não está nunca a serviço do agir prático ou do fazer, não é uma forma de práxis ou de poiésis, nem pertence ao campo da teoria e do conhecimento, pois não produz efeitos nem causa nada, mas consiste apenas em corresponder ao apelo silencioso do próprio ser. Trata-se, portanto, de um pensamento e de uma linguagem que operam o descentramento radical da subjetividade e a superação de seus poderes de objetivação representacional, preparando, assim, o caminho para a experiência da verdade epocal do ser doador que tudo possibilita e que se retrai nesse mesmo possibilitar. Em síntese, a ação do pensamento consiste em trazer o ser à linguagem, mas tal ação apenas se dá na medida em que o próprio pensamento expõe-se ao apelo silencioso do ser, correspondendo ao ser quando diz e pensa sua verdade epocal. Pensar o ser é escutar não apenas aquele dizer por meio do qual os homens estabelecem o intercâmbio de suas informações e dados mais importantes, mas também e, sobretudo, escutar o apelo silencioso de uma linguagem que nada comunica e que não se encontra expressa em nenhum lugar deste mundo. Simultaneamente, tal pensar é um pôr-se à disposição da possibilidade epocal de outra relação linguística com o ser, de todo esquecido em sua retração constitutiva.

Nessa linguagem "outra", que se desvencilha da lógica, do conceito e da representação, e que, portanto, não concede à metáfora qualquer papel, o pensamento para-doxal assume especial importância, pois abre a via da consideração meditativa de um conjunto de falsas oposições que não se resolvem e que nem mesmo se instauram logicamente enquanto tais, pois tal meditação não opõe os opostos, mas, antes, faz com que eles se reúnam de maneira que possam iluminar-se reciprocamente naquilo que são. É assim que, seguindo o rastro do dito poético de Hölderlin, a dimensão do salvamento cresce ali onde é maior o perigo; é assim também que o pensamento pode cair para cima no mais profundo e abismal; que o próximo pode mostrar-se como o mais distante, e vice-versa; que a necessidade pode converter-se naquilo que libera, enquanto a maior pobreza mostra-se como a maior riqueza. Enquanto no interior do universo lógico e conceitual uma oposição ou antítese opõe e contrapõe os opostos, os quais são comparados ou justapostos, gerando-se então contradições que interrompem o pensamento, no plano da meditação incerta sobre o ser poético da linguagem o paradoxo parece ser a instância do reconhecimento de uma relação interna que une e reúne os opostos, esclarecendo-os mutuamente, isto é, dando-lhes uma nova e mais profunda dimensão de sentido, supostamente mais rica, ou, ao menos, de todo distinta daquela em que os opostos se veem encerrados em antinomias insolúveis, ou a própria oposição dissolve-se numa síntese dialética em que os opostos são suprassumidos e anulados enquanto tais.

A meditação heideggeriana sobre a pobreza e a necessidade é também paradoxal na medida em que não deixa de referir, direta ou indiretamente, a catástrofe e a necessidade imediatamente reconhecíveis por todos, ao mesmo tempo em que delas se distancia para melhor compreendê-las na proximidade de sua essência. Seguindo o fio condutor do motivo paradoxal que rege a reflexão poética de Hölderlin, no centro da qual encontramos o paradoxo de que a maior riqueza advém do supremo empobrecimento, Heidegger pensa que é no distanciamento do próximo que se consuma a aproximação do distante. É à luz desse motivo paradoxal que podemos compreender por que o reconhecimento da catástrofe imediata que assola a terra natal, por um lado, e o horizonte hermenêutico distante e oculto, à luz do qual esse acontecimento ôntico conquista seu significado particular, por outro lado, não constituem duas teses contrapostas e antitéticas. De fato, essas duas teses se complementam e se esclarecem mutuamente ao diferenciarem-se. Pensar a pobreza em sua essência não significa negar a pobreza e a necessidade enquanto tais em seu caráter imediato e empírico, nem tampouco implica considerar irrelevantes as diversas abordagens morais, políticas e econômicas da necessidade e da pobreza enquanto fenômenos correntes da vida social e política de um povo. A conferência de Heidegger sobre a pobreza não é o testemunho de sua insensibilidade moral e política enquanto pensador, nem tampouco um exercício de escapismo filosófico, isto é, um procedimento de abstração da pobreza e da necessidade reais por meio de sua indevida essencialização.

 

Referências

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Recebido em 13/09/2011
Aprovado em 20/10/2011.

 

 

1 As citações da conferência de Heidegger serão feitas tomando-se como referência a edição bilíngue espanhol-alemão (Heidegger, 1945/2006), acrescentando-se a página de referência da primeira edição alemã (1945/1994) As citações da apresentação de Philippe Lacoue-Labarthe baseiam-se na tradução espanhola. As traduções para o português das citações de Lacoue-Labarthe e das de Heidegger em meu texto são de minha autoria
2 Essa indicação consta na pequena nota introdutória do editor do texto, F. von Hermann, em apêndice ao texto de Heidegger publicado nos Heidegger Studien. A tradução e a ênfase são minhas.
3 Nesta e nas próximas citações omito a referência à tradução castelhana do texto de Heidegger, na medida em que a modifiquei totalmente.