Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.14 no.2 São Paulo 2012
Artigos
O retraimento e a agressividade infantil: como proteger-se da ameaça familiar?
Childhood retreat and aggressiveness: how to protect yourself from the threat family?
Stéfani Zanovello DezanI; Fernanda Kimie Tavares Mishima-GomesII
IAluna de graduação do Departamento de Psicologia da FFCLRP-USP
e-mail: szd_teti@hotmail.com
II Doutora e psicóloga do Serviço de Triagem Infantil e Familiar do Departamento de Psicologia da FFCLRP-USP
e-mail: fktmishima@ffclrp.usp.br
Resumo
A influência do ambiente na sintomatologia da criança deve ser considerada no contexto de atendimento psicológico em clínica-escola. As ideias do desenvolvimento emocional descritas por Winnicott são de extrema relevância na compreensão da dinâmica infantil e familiar. Apresenta-se um caso clínico de um menino de 10 anos, atendido em uma universidade pública devido a queixa de agressividade, tristeza e retraimento desde a morte do avô. Realizaram-se dez sessões: três de entrevista, duas lúdicas, uma familiar, uma para aplicação do procedimento de Desenhos-Estória e três devolutivas. Percebeu-se uma dinâmica familiar conflituosa: a criança não confiava no ambiente, sentia-se sozinha, retraindo-se para proteger-se da ameaça do mundo externo, com prejuízos na expressão da criatividade e no estilo de ser pessoal. Com o atendimento psicológico será fornecido cuidado afetivo para auxiliar a criança na retomada de seu desenvolvimento emocional.
Palavras-chave: Provisão ambiental, desenvolvimento emocional, Winnicott, família, criança, psicoterapia
Abstract
The influence of environment on the child's symptomatology should be considered in the context of psychological care in clinical school. The ideas of Winnicott about emotional development are of extreme importance in understanding the child and family dynamics. It presents a clinical case of a boy of 10 years old, attended in a public university to his aggressiveness, sadness and withdrawal since the death of his grandfather. There were ten sessions: three interviews, two playful, one family, and one for application ofStory-Drawing Procedure, three for fed back. It was noticed a dynamic family conflict: child did not have confidence in the environment, he felt alone, retracting to protect against the threat of the environment, with lack in the expression of creativity and his style to be personal. By means of the psychological therapy will be provided affective care to assist the child in continuing his emotional development.
Keywords: Ambient provision, emotional development, Winnicott, family, child, psychotherapy.
1. Introdução
Na sintomatologia infantil é de suma importância que o ambiente em que a criança está inserida seja considerado. O pediatra e psicanalista inglês Donald W. Winnicott (1945d/2000) enfatiza essa influência ambiental para a saúde psíquica do indivíduo, destacando que a mãe constitui o primeiro ambiente para o bebê. É esta figura quem fornece holding suficiente para que as necessidades físicas e afetivas da criança sejam supridas, permitindo que haja um desenvolvimento emocional, possibilitando experiências referentes aos estágios de dependência absoluta e relativa.
No primeiro estágio, de dependência absoluta, estão envolvidos três processos: a integração, a personalização e a realização. Tais processos permitem que o bebê sinta que tem um corpo próprio, que ocupa um espaço e que há uma realidade externa a ele (Winnicott, 1945d/2000; Dias 2003). Para que eles aconteçam, é preciso que haja a presença de uma mãe suficientemente boa, capaz de identificar as necessidades do bebê sem se confundir com ele, oferecer suporte emocional suficiente e, assim, possibilita seu desenvolvimento. A confiança se inicia com o holding materno, que vai além da mera estabilidade, inclui "a capacidade da mãe de estabelecer uma relação harmônica e ritmada, em que ela pode ser "inventada" pelo bebê e, ao mesmo tempo, ser ela mesma" (Figueiredo, 2007, p. 77). Portanto, a mãe suficientemente boa permite que o bebê crie o mundo e viva a ilusão de onipotência, características deste estágio de dependência.
Winnicott (1955c[1954]/2000; 1984a/1999) afirma que antes da integração da personalidade já há agressão, que, na sua origem, é quase um sinônimo de atividade, uma questão de função parcial, que vai sendo organizada à medida que a criança amadurece. No início a agressão, que será considerada posteriormente comportamento agressivo, reflete um impulso que acarreta movimento e o começo do ato exploratório. Nesse sentido, a agressão se relaciona ao estabelecimento da diferenciação entre eu – não-eu.
Além disso, a agressão faz parte da expressão primitiva do amor. Nesse sentido, é importante destacar que, para Winnicott (1955c[1954]/2000), a agressividade do homem não é o problema, e sim a repressão à agressividade pessoal dos indivíduos.
Crianças comumente boas e amáveis atuarão de forma inadequada e farão coisas agressivas a pessoas que amam, sem se sentir inteiramente responsáveis por suas ações. Se a agressão é perdida nesse estádio do desenvolvimento emocional, haverá também algum grau de perda da capacidade de amor, isto é, de relacionar-se com objetos. (Winnicott, 1955c[1954]/2000, p. 358)
A quantidade do potencial agressivo que um bebê carrega depende da quantidade de oposição até então encontrada. Um potencial agressivo massivo, que é ativado pela perseguição como reação à invasão, não depende de fatores biológicos, mas sim do acaso das invasões iniciais do meio ambiente e, portanto, das anormalidades psiquiátricas da mãe e do estado do meio ambiente emocional da mãe (Winnicott, 1984a/1999).
A mãe que é capaz de adaptar-se às necessidades do bebê permite que ele vivencie experiências de ilusão, nas quais ele acredita que tudo aquilo que ele deseja, acaba por aparecer, como se ele fosse capaz de criar o objeto de desejo. Com isso, torna-se possível o desenvolvimento de sua criatividade primária, além do sentimento de self e de continuidade de ser. Após este período de ilusão, é importante que aconteça a desilusão, em que a mãe frustra a criança de maneira gradual, assim, o bebê vai sendo capaz de reter na memória a experiência satisfatória vivida, até que aconteça novamente. Neste momento, há a inserção da realidade externa à criança, o que possibilita que ela sinta, diferencie e reconheça suas próprias necessidades, fortalecendo a expressão de seu self verdadeiro (Abram, 1996/2000; Winnicott, 1971a/1975).
O termo self está relacionado à maneira pela qual o indivíduo se sente subjetivamente, o "sentir-se real" (Abram, 1996/2000). Para Winnicott (1989a/1994), inicialmente há um self potencial, que, com o favorecimento do ambiente, permitirá o sentido de continuidade de ser. Este sentido de self, vivenciado como ação, gesto espontâneo, é fortalecido por meio das experiências vividas nos estágios de dependência absoluta e relativa.
Ao ingressar no estágio de dependência relativa, o bebê é capaz de fazer a distinção entre eu e não-eu e, deste modo, fazer uso de um objeto transicional, permitindo que haja experiências de ilusão, dos símbolos e de um objeto objetivamente percebido. Nesse sentido, o objeto transicional possibilita, por meio da expressão criativa da criança, a construção de um mundo com o outro. Portanto, a criatividade permite o contato com a realidade, em que o indivíduo sente-se vivo e real, capaz de vivenciar experiências no mundo compartilhado. Segundo Winnicott (1953c[1951]/2000), na passagem pela transicionalidade o bebê já tem alguma capacidade de simbolizar, ingressando no campo do faz-de-conta, ele foi capaz de vivenciar experiências que não dependem nem da realidade interna nem da externa, mas encontram-se entre as duas, ou seja, experiências localizadas em um espaço em que se encontram a cultura, o ser e a criatividade.
Uma das maneiras de demonstrar o sentir-se real é por meio do brincar, pois a criança adquire experiência com a brincadeira, desenvolve sua personalidade e se enriquece. Mais ainda, o brincar permite uma unificação e integração geral da personalidade, funcionando como elo entre a relação do indivíduo com a realidade interior e com a realidade compartilhada. Destaca-se que o brincar fornece uma organização para dar início às relações emocionais (Winnicott, 1971a/1975, 1989vt[1968]/1994).
Winnicott (1984a/1999) destaca que no desenvolvimento saudável, o interesse da criança volta-se tanto para a realidade externa, quanto para o mundo interno, mantendo pontes entre um mundo e outro (sonhos, jogos etc.). Em contrapartida, quando não há saúde, pode haver uma rearticulação das relações, concentrando o bom dentro de si e a projeção do mau. Com isso, a criança passa a viver em seu mundo interno, caracterizando a introversão. Um estado de introversão consiste em uma fonte importante e comum da agressão real, pois, na medida em que o mundo externo aparece como cheio de perseguidores, o voltar-se para fora ocorre comumente de forma agressiva. A agressão, então, pode ser compreendida como um sintoma de medo.
Winnicott (1965b/1982) afirma que, além do brincar por prazer, as crianças também brincam para dominar as angústias, ou seja, no intuito de controlar as ideias ou os impulsos. Quando este controle não se mostra suficiente, contudo, o brincar pode mostrar-se compulsivo ou repetitivo, ou ainda a criança pode buscar exageradamente os prazeres da brincadeira, que se torna pura exploração da gratificação sensorial.
Nesses casos é possível pensar que o ambiente oferecido à criança não foi suficientemente bom. De acordo com Winnicott (1965vc[1962]/1982), isto ocorre por ter havido uma experiência de intrusão: ou a frustração (desilusão) ocorreu por um tempo longo demais ou as mensagens enviadas foram ambíguas (ora ilusão, ora desilusão). Assim, se as circunstâncias desenvolveram-se de maneira desfavorável, a capacidade de ser criativo pode tornar-se ausente ou precária, pois o bebê, sentindo-se pouco protegido, perde a capacidade de brincar e o símbolo significativo que se constitui por meio da experiência com objetos transicionais (Zanetti & Gomes, 2011).
Caso a intrusão seja intensa, pode haver o bloqueio da continuidade de ser da criança, restando-lhe somente o reagir, ocultando a expressão do verdadeiro self (Abadi, 1996/1998; Abram, 1996/2000). Nas palavras de Abadi (1996/1998, p. 13): "diante da dificuldade de existir, a alternativa é reagir".
Uma maneira de reagir é por meio do recolhimento em si mesmo, traduzindo a necessidade de proteger uma relação de objeto subjetiva constituída – precariamente – de um ambiente imprevisível e, por isso mesmo, ameaçador. As possíveis intrusões ambientais tornam-se ainda mais temidas quanto mais os processos de integração do self do bebê, em curso, possam gerar angústias de tipo paranoide, conforme Winnicott (1965m[1960]/1982) descreveu. Recolher-se significa, pois, proteger-se de qualquer possível ataque vindo do exterior, característica de um funcionamento esquizoide (Neto, 2010).
Outra forma de reação é a manifestação agressiva. Algumas crianças tendem a ver seus impulsos agressivos controlados (reprimidos) na agressão de outros, o que pode evoluir de modo não sadio, uma vez que o suprimento da perseguição poderá esgotar-se e terá de ser fornecido por ilusões. São características de crianças que estão sempre na expectativa de perseguição e tornam-se agressivas, talvez por autodefesa contra ataques imaginados. Criança que mantém a agressividade "dentro dela" torna-se tensa, excessivamente controladora e séria, seguindo-se certo grau de inibição de todos os impulsos, sobretudo da capacidade criativa. Não obstante, o autocontrole excessivo pode ocasionar surtos periódicos de sentimentos e conduta agressivos (Winnicott, 1984a/1999).
De acordo com Winnicott (1955c[1954]/2000), a culpa relaciona-se à agressividade na medida em que se refere ao dano que se sente ter feito ao objeto amado durante a excitação. Quando saudável, a criança pode sustentar a culpa e, com a ajuda de uma mãe pessoal e viva, é capaz de descobrir seu próprio ímpeto pessoal de dar, construir e reparar. Com isso, a agressão transforma-se, em grande parte, em funções sociais. No entanto, quando não se tem quem reconheça a reparação, essa transformação social da agressão se desfaz, e esta, então, reaparece apenas de formas destrutivas.
Nesse ponto, reitera-se a importância de que a criança só é capaz de perceber o mundo como um campo a ser explorado, quando sente que ocupa um lugar em seu corpo e no interior de sua mãe. Caso contrário, a criança não adquire a ideia de que há um espaço que pode ser habitado por ela, fazendo com que ela precise lutar incessantemente para encontrar um lugar que a acolha (Winnicott, 1953a[1952]/2000).
Abram (1996/2000) destaca que essa interrupção no sentido de ser do indivíduo pode fazer com que ocorra a desintegração, isto é, uma defesa contra a ausência de suporte egoico materno, devido à deficiência do holding. Portanto, as falhas de maternagem, em um momento primitivo do amadurecimento, prejudicam o indivíduo justamente em seu sentimento de ser, na constituição de um si mesmo que se reconheça como tal. Este sentimento de descontinuidade dos cuidados do meio ambiente pode levar a um "abismo" entre eu-mundo e um sentimento de descrença e desesperança, já que neste mundo não se pode ter as necessidades atendidas (Winnicott, 1953a[1952]/2000; Barbieri, 2002). Aiello-Vaisberg (2002/2004) assinala que Winnicott enunciou o sofrimento psicótico como o aspecto mais sensível do ser humano, ou seja, a impossibilidade de o indivíduo sentir-se real: "o indivíduo segue ausente de si mesmo, excluído da própria vida" (Aiello-Vaisberg, 2002/2004, p. 16).
Diante da dificuldade em ser espontâneo, o retraimento surge como possibilidade de existir, já que há uma retirada da relação consciente vivida com a realidade externa. O indivíduo dissocia-se de seu relacionamento com o mundo, por haver um sentimento de desesperança em relação ao acolhimento de sua espontaneidade; assim, ele passa a buscar na dimensão da fantasia uma sustentação para seu verdadeiro si mesmo, por não a encontrar no ambiente (Winnicott, 1955c[1954]/2000).
Para que a mãe seja capaz de oferecer holding suficiente ao filho, é importante que ela reconheça as necessidades da criança, além de ter tido um suporte para exercer suas funções maternas; é necessário que ela se sinta segura e amada também na relação com o pai da criança e com a própria família, além de sentir-se acolhida socialmente (Winnicott, 1965vc[1962]/1982). Nesse sentido, Winnicott (1965b/1982; 1965vc[1962]/1982) destaca que o envolvimento da mãe com seu bebê depende da sua autoimagem e da relação estabelecida com aqueles com quem convive. Assim, o amor dos pais por seus filhos permite que eles possam ser vistos como pessoas com personalidade rica e estável, capazes de adaptar-se ao mundo. Mesmo que as experiências iniciais sejam consideradas boas, é preciso, contudo, que aquilo que foi conquistado seja consolidado no decorrer do tempo (Winnicott, 1965b/1982).
O papel da família é dar continuidade ao cuidado materno e paterno, possibilitando a maturidade afetiva da criança. Esta maturidade pode ser percebida no terceiro estágio (rumo à independência), quando a criança é capaz de se preocupar e de sentir responsabilidade. Neste momento, ela consegue fazer a distinção entre o que é seu e o que é do outro, reconhecendo suas limitações e suas possibilidades, o que permite que haja experiências vividas no mundo compartilhado por meio da expressão do verdadeiro self. Assim, a criança é capaz de identificar-se com a sociedade, já que esta é representativa de seu próprio mundo pessoal, com possibilidades de viver uma existência particular satisfatória (Winnicott, 1965r[1963]/1982).
Mais uma vez, corrobora-se a relevância do ambiente que circunda a criança, formado pelas figuras parentais e outras pessoas de seu convívio, para seu desenvolvimento emocional. Considerando as ideias acerca do desenvolvimento emocional, propostas por Winnicott, este trabalho buscou compreender o funcionamento psicodinâmico de uma criança atendida no Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar da clínica-escola de uma universidade pública, no intuito de fornecer cuidados específicos de acordo com a necessidade apresentada.
2. Método
A triagem interventiva foi realizada com uma criança, Mateus1, de 10 anos, cuja família era composta por: avó Elvira (madrasta da mãe), mãe Lilian e irmã (8 anos). O processo foi feito em 10 sessões: três de anamnese (uma apenas com a mãe e duas com a mãe e com a avó da criança), duas sessões lúdicas, uma sessão familiar, uma sessão para aplicação do procedimento de Desenhos-Estórias e três sessões de devolutiva (com a avó, com a mãe e com a criança).
Durante a triagem, a mãe mostrou-se bastante confusa, faltou em três sessões, mesmo com a terapeuta ligando para confirmar sua presença. Ela sempre se justificativa dizendo que havia esquecido o combinado, além de ter aparecido por três vezes em horários diferentes do que foi agendado. Teve bastante dificuldade em comprometer-se com a triagem, e, por fim, foi a avó quem se responsabilizou por levar a criança.
3. Caso clínico
Mateus, 10 anos, chegou ao atendimento psicológico na clínica-escola de uma universidade pública, com a queixa de que sentia falta do avô, falecido recentemente e com quem conviveu desde seus 8 meses de vida. A mãe do garoto, Lilian, de 34 anos, buscou o serviço por recomendação da avó de Mateus, com quem ele sempre morou. De acordo com o relato da mãe e da avó, após o falecimento do avô, o menino apresentou mudanças em seu comportamento, mostrando-se mais triste, quieto e angustiado; além de um medo recorrente de perder as pessoas que amava, não conseguindo mais dormir sozinho, tendo medo do escuro.
Na primeira entrevista somente Lilian compareceu. Ela relatou, além da queixa já apresentada, que, devido ao fato de o garoto estar entrando na puberdade, seus comportamentos estavam "estranhos", pois ele se mostrava mais nervoso e agressivo. Fora isso, a mãe contou que o filho também sentia muito ciúme de sua irmã, de 8 anos, uma vez que esta morava com a mãe e ele não, e por diversas vezes disse que o garoto era "revoltado", mesmo ela estando "sempre" presente na vida deste.
Mateus já tinha sido atendido na clínica-escola, havia cinco anos, por um ano, junto de acompanhamento psiquiátrico. Nessa época, suas queixas eram relativas à morte do pai, tema que era recorrente em suas falas e pensamentos sobre matar e morrer.
Ainda de acordo com Lilian, o relacionamento dela com o pai da criança sempre fora conturbado. Decidiram casar-se, pois ambos tinham o sonho de ir para o Japão, tentar a vida lá, porém, todo o dinheiro que juntaram com este intuito fora roubado por um amigo; e, a partir daí, contou que "as coisas começaram a piorar" (sic). Seu marido começou a traí-la, os dois viviam brigando, e, mesmo assim, após cinco anos de casada, ela decidiu engravidar. A gravidez de Mateus foi "mais ou menos" (sic) planejada pela mãe, mas não pelo pai, o que aumentou as discordâncias entre o casal, tornando o relacionamento insustentável. Lilian contou que queria ser mãe, mas que o marido já não "ligava" (sic) para ela. No finalzinho da gestação ela colocou todos os pertences do marido no carro e o expulsou de casa. Nessa época ela estava com 24 anos, e relatou que o pai de Mateus não aceitava muito a ideia da paternidade, já que ele possuía uma filha de outro relacionamento.
A mãe contou que não teve nenhum apoio nesse momento, sentiu-se muito sozinha e desamparada, logo, não pôde curtir sua gravidez. Também passou muito mal durante a gestação, com fortes enjoos, podendo comer apenas pão e beber leite gelado. Com 42 semanas de gestação a criança nasceu de cesárea, teve um quadro de icterícia e baixa glicemia, ficando uma semana internado para poder ganhar peso e sair do hospital. Três semanas após o nascimento do filho, seu pai sofreu um acidente de carro com a amante e veio a falecer. Nessa época Lilian foi morar na casa de seu pai e da madrasta, que a ajudaram com o bebê. Ela voltou a estudar e, após oito meses, conheceu seu atual namorado, Roberto. Neste contexto, o pai e a madrasta não permitiam suas "aventuras", o que fez com que Lilian saísse da casa deles, levando consigo seu filho. Passou a morar com sua mãe, mas, quando a criança estava com 8 meses, percebeu que não conseguia cuidar do menino e decidiu "dá-lo" a seu pai e a sua madrasta, passando a estes a guarda definitiva.
Quando Mateus estava com 2 anos, Lilian engravidou de Roberto e teve uma filha, e, apesar de estarem juntos até hoje, eles não moram na mesma casa. Relatou ainda que, após um tempo, começou a traí-lo e virou "putona" (sic).
Durante todo o seu relato, Lilian falou em tom de brincadeira e sorrindo, mostrando-se distante do sentimento que as situações evocavam, por exemplo, quando contava rindo algo que parecia profundamente sofrido. O único momento em que mostrou contato afetivo foi ao dizer, com tristeza, que em sua "vidinha" ela ficou "parada como uma árvore" (sic), desperdiçando oportunidades e perdendo tempo, demonstrando bastante infelicidade e arrependimento pelo que era e por aquilo que não conseguiu ser.
Depois da entrevista com a mãe, a madrasta, dona Elvira (avó de Mateus), passou a ir junto, já que poderia oferecer mais informações sobre a criança, por cuidar dela desde seu nascimento. Quando as duas estavam juntas, contudo, Elvira mostrava-se bastante invasiva, quase não dando espaço para as falas de Lilian.
A avó contou que Mateus fora amamentado até os 5 meses, e Lilian ressaltou que nesses momentos ele ficava bem quietinho, pegava o peito de um jeito esfomeado que até engasgava ("ia leite até no cérebro do jeito que ele sugava" – fala da mãe). Após esse período, contudo, a criança passou a rejeitar o peito, tinha ânsias de vômito, ao que a mãe lembrou com bastante ressentimento ("Muleque ingrato! Rejeita as coisa da gente! Eu cheia de leite, e ele não querendo, então parei de dar"), ainda contou que tinha tanto leite, que o doava para o hospital, até que os seios começaram a secar.
Elvira dominou a entrevista; contou que percebia que o neto comia muito por ansiedade, o que a preocupava. Disse que ele era muito ansioso com provas escolares e que sempre o levava à Igreja, como se esta fosse um apoio para ambos. No meio de suas falas fazia algumas criticas a Lilian: "Mãe sou eu, né? Porque ela, bem dizer, só passa lá para ver o Mateus". Nesses momentos, a avó deixava transparecer um ar de cansaço como se estivesse cumprindo uma responsabilidade que não era sua, entretanto, Lilian apenas ouvia e não se manifestava, abaixando a cabeça em tom de concordância.
A avó manteve o discurso de que tinha de cuidar do neto para que ele não virasse um "marginal" (sic), para que ele se tornasse uma pessoa boa, e que, por isso, não o deixava assistir ou jogar jogos de violência, nem falar palavrão, sinalizando que ele era uma criança bem educada e bem diferente do que seria se estivesse morando com a mãe, já que esta não conseguia impor limites ou educá-lo.
Ela também apontou para a personalidade autêntica de Mateus, dizendo que ele era muito direto para falar. No entanto, deixou transparecer certo receio quanto à "normalidade" do neto, mostrando-se preocupada com alguns comportamentos da criança, como o de falar sozinho, ficar gesticulando muito e brincar com os dedos. Ela contou que sempre ficava brava com o garoto para que ele parasse com essas manias, dizendo que os outros iriam achá-lo "retardado".
A avó ainda disse que o menino sofria muito com a morte do avô, que ele estava com medo de perder as pessoas e, com isso, passou a dormir com ela. Relatou que o avô era o melhor amigo de Mateus, o seu companheiro, era ele quem o ajudava em seus estudos e que brincava, participando do seu mundo. Ainda acrescentou que o menino, devido ao sentimento de solidão, falava constantemente em casar-se para constituir uma família e em ser construtor para arquitetar uma casa para todos.
Elvira salientou que não permitia que Mateus ficasse muito tempo com a mãe, pois acreditava que esta o deseducava e que sempre que o neto ia visitá-la, ele retornava apresentando "maus costumes" (sic) e até com machucados, reafirmando que "tudo de ruim" (sic) acontecia na casa de Lilian.
Ao relatar o desenvolvimento da criança, a avó e a mãe disseram que nunca foram de segurar Mateus no colo, pois ele não gostava; de acordo com a avó, "ele gostava de ficar observando", por isso o puseram logo no andador. Elvira contou também que nunca foi de preocupar-se demais, deixando a criança bem livre ("pessoas dependentes sofrem"), e que, por isso, ele sempre fora muito esperto.
Quanto ao desenvolvimento emocional do menino, a avó contou que ele estava muito bem até o avô falecer e que, a partir de então, tornou-se mais triste e fechado. Apesar disso, ressaltou que, se dependesse dele, sua vida seria uma brincadeira, que ele era um garoto intenso e adorava brincar com mais crianças. Gostava de futebol, carrinho, Homem-Aranha, brincar com espadinha, videogame, e que vivia num mundo imaginário.
Elvira destacou que, em relação à escolaridade, o garoto apresentava bom rendimento, sendo muito exigente consigo mesmo e bastante disciplinado. Fazia a lição sozinho, e, quando precisava de ajuda, era a avó quem o auxiliava. A maior dificuldade apontada por Elvira referiu-se a como lidar com assuntos ligados a sexualidade; quando Mateus questionava sobre tais aspectos, ela ficava encabulada, disfarçava e mudava de assunto, por não saber o que responder. Apesar disso, contou que os dois tinham o costume de se verem nus, mas que achava que já estava na hora de ele ter sua privacidade
4. Análise da entrevista
De acordo com o relato das entrevistas, foi possível perceber alguns aspectos do psicodinamismo da mãe e da avó em relação à criança, caracterizando um ambiente familiar extremamente confuso e ambivalente, o que pode prejudicar o desenvolvimento emocional da criança (Winnicott, 1945d/2000; 1965vc[1962]/1982).
Lilian, em suas falas, mostrou-se distante afetivamente, como se vivesse uma história tumultuada, porém, desafetada; ao invés de demonstrar sofrimento pelos acontecimentos de sua vida, pareceu percorrer o caminho oposto, rindo bastante, semelhantemente a uma atitude maníaca. Percebeu-se um desenvolvimento psíquico imaturo, caracterizado por ausência de ação no mundo, o que faz com que ela se sinta estagnada, "como uma árvore". Além disso, ela demonstrou insuficiência de recursos para exercer sua função de mãe e pessoa, concordando com as críticas feitas por sua madrasta. As dificuldades para estar junto do outro, apoiando-o e oferecendo cuidados, também se estendem ao estar junto de si mesma, como se ela também se abandonasse, refletindo uma postura de descaso à vida como um todo.
Esse vazio afetivo pareceu não ser preenchido com nada daquilo que busca, seja em seus relacionamentos familiares, seja nos amorosos, o que faz com que essa procura se torne constante, mas ao mesmo tempo fugaz. Nesse sentido, ao não ter suas necessidades afetivas satisfeitas, ela não se mostrou capaz de perceber as necessidades vindas do outro, como as de Mateus. Neste aspecto, Winnicott (1965vc[1962]/1982) destaca que a mãe insuficientemente boa não propicia o desenvolvimento da capacidade criativa do bebê, que acaba por sentir-se desprotegido e desfavorecido em sua capacidade de brincar.
Já a avó evidenciou uma postura autoritária e severa, e, por muitas vezes, invasiva, tomando todo o espaço para si, desmerecendo tudo aquilo que vem do outro e esforçando-se por mostrar-se perfeita. Nessa tentativa de não errar, torna-se extremamente rígida e não consegue perceber, nem tolerar nada de diferente que venha do outro; com isso, Mateus não pode mostrar nenhum sinal de agressividade ou qualquer comportamento que seja diferente daquilo que ela espera. Portanto, também houve prejuízos em perceber o outro, pois, apesar de acreditar que esta é uma forma de proteção, ela faz com que o menino perca sua espontaneidade, tornando-se um objeto narcísico.
Além disso, o fato de Elvira mostrar que sempre teve que dar conta, sozinha, de cuidar das pessoas ao seu redor, trouxe intensa sobrecarga, muitas vezes fazendo com que ela se mostrasse cansada. Apesar de buscar auxílio no cuidado com a criança, ela acredita que o outro não é capaz de fazê-lo, desmerecendo tudo aquilo que ele pode oferecer, como ela faz com a mãe da criança.
Assim, Mateus parece não ter encontrado um ambiente que fosse capaz de acolher suas angústias, suprir suas necessidades ou permitir a espontaneidade, até mesmo de seus aspectos agressivos. Destaca-se que, quando há um controle exacerbado (rigidez excessiva), a criança pode evoluir de modo não sadio, pois não houve amparo para seus aspectos agressivos e, assim, não suporta senti-los, mas acaba por agir agressivamente no ambiente, como forma de defender-se contra ataques imaginados (Winnicott, 1964a/1982). Assim, o autocontrole excessivo pode acarretar surtos periódicos de sentimentos e conduta agressivos (conduta manifesta de Mateus).
Os cuidados, ora vindos da mãe, ora da avó, não se mostraram suficientes, fazendo com que a criança se sinta sozinha e desprotegida, o que a leva a pensar na possibilidade de formar uma nova família, um novo ambiente em que poderá receber sustentação afetiva ou, ainda, refugiar-se em seu mundo de fantasia, além da possibilidade de testá-lo sem sentir que o destruiu.
5. Sessão lúdica
Na primeira sessão com a criança, devido ao atraso de 40 minutos, a terapeuta conversou com Mateus e marcou outra sessão. Neste contato, ele mostrou um caderninho que havia levado, em que escrevia as coisas que tinha vontade, ou o que ele iria fazer, como se fosse um diário. Também explorou a caixa lúdica, mostrando-se surpreso com a quantidade de brinquedos. Pegou a espada e disse que não tinha com quem conversar e que, por isso, escrevia em seu caderno. Ao ler o caderno, a terapeuta percebeu que ele escrevia de si mesmo na terceira pessoa ("o Mateus quer um irmão"). Ele disse que queria ter um irmão, com quem pudesse brincar, que fosse seu companheiro, fizesse as coisas que ele quisesse, não o achasse chato, e que ele também iria fazer tudo o que o irmão quisesse.
Mateus mostrou-se bastante agitado, falando de forma rápida e confusa. Suas frases pareciam sem sentido. O tempo todo ele fazia brincadeiras, pronunciando nomes e dando golpes, manuseando a espada. Ao notar sinais de agressividade, a terapeuta os apontava para Mateus, na tentativa de encontrar um espaço para conversar sobre eles, no entanto, o menino assustava-se, dizendo frases prontas, como "violência não é de deus" (sic), e que ele não poderia mostrar-se violento, porque era "pecado"; além disso, dizia que sua avó não permitia que ele tivesse brincadeiras violentas. Em outro momento, contou à terapeuta sobre o falecimento do avô e que agora ele era o homem da casa, tinha que cuidar da avó, e que, por isso, não morava com a mãe. Foi contando que o avô fazia tudo para ele, diferentemente da avó, da mãe e da irmã, que não brincavam daquilo que ele queria.
Na segunda sessão lúdica, novamente a mãe chegou atrasada, trazendo consigo, além de Mateus, a irmã e uma prima da criança. Logo que entrou na sala, ele abriu a caixa e pegou o dominó. Contou que a diretora de sua escola estava com seu caderninho e que por isso não o havia levado. Logo em seguida propôs que acertassem as pecinhas do dominó dentro de uma bacia, como se estivessem matando algo. A cada peça que jogava, ele dizia "morre! morre!", além de pronunciar alguns nomes de golpes. Posteriormente, ele desenhou um alvo na lousa, onde teriam que acertar as pecinhas. Mateus mostrou-se bastante agitado, mas um pouco mais calmo que da primeira vez; suas falas continuaram confusas, em especial, ao tratar-se de conteúdos agressivos.
Contou que iria namorar com 18 anos, casar e ser arquiteto, além de ter um "carrão", para que as meninas gostassem dele. Nas brincadeiras, mostrava-se perseguido, dizendo que queria ter muitos poderes para dominar o mundo. Disse que não poderia revelar seus pontos fracos, senão os inimigos iriam destruí-lo. No entanto, algum tempo depois, revelou que seu ponto fraco era "chocolate", mas que ele não podia comer muito, senão iria engordar, e, assim, ninguém iria gostar dele. Ao final, Mateus disse que havia gostado muito de estar ali, já que a terapeuta o entendia.
6. Análise da sessão lúdica
De acordo com o relato das sessões, percebeu-se que Mateus parecia estar alerta e assustado, como se precisasse constantemente defender-se de algo, demonstrando seus aspectos mais persecutórios, o que corrobora a ideia de conduta agressiva no ambiente em defesa dos ataques imaginados. Houve grande dificuldade em lidar com conteúdos próprios de agressividade, os quais, apesar de recorrentes, ao serem sinalizados pela terapeuta, não podiam aparecer; assim, a criança protegia-se de forma maníaca, desprezando, controlando e triunfando diante dessas formulações (com frases prontas e discurso da não violência e do pecado). Ele mostrava seu medo de que pensar na violência pudesse torná-lo agressivo, o que denota uma fragilidade egoica, com pouca distinção entre fantasia e realidade, além do prejuízo na discriminação eu/não-eu. Mais uma vez, a dificuldade de vivenciar a agressão como simples impulso motor não favoreceu a exploração do ambiente compartilhado, com conhecimento do que é seu e do que é do outro (Winnicott, 1953c[1951]/2000; 1964a/1982).
Essa dificuldade para discriminar e integrar os conteúdos agressivos impedia-o de pensar. A defesa principal usada, contra a mobilização afetiva advinda do contato com tais conteúdos, foi o acting-out, fazendo com que suas brincadeiras fossem meras ações de busca de gratificação sensorial (Winnicott, 1971a/1975). Tal funcionamento psíquico assemelhou-se ao apresentado pela mãe, por ser mais regredido, com traços paranoicos, prevalecendo uma sensação de descarga emocional, e não de elaboração.
Ao agir no mundo e fazer uso dos objetos, Mateus demonstrou dificuldade em ser espontâneo, com prejuízos para satisfazer suas necessidades afetivas. Suas falas foram desconexas e confusas, dificultando o estabelecimento de um diálogo compreensível; assim, foi preciso que a terapeuta fizesse parte de seu mundo fantasioso para conseguir comunicar-se com ele. O garoto também demonstrou sentimento de abandono, desamparo e solidão, com os quais tentava lidar imaginando a possibilidade de ter um irmão que fizesse tudo por ele, além da vontade de namorar e casar-se, para constituir uma família que o acolhesse. Tais anseios refletem ainda a ideia de que Mateus foi capaz de incorporar algo bom, que ficou retido e que pode aparecer na presença de figuras que possam oferecer suporte emocional, como sinal de esperança (Winnicott, 1964a/1982; 1989a/1994).
7. Sessão familiar
Na sessão familiar compareceram Lilian, Mateus e a irmã. Todos pareciam bem agitados já na sala de espera. Logo no início, Lilian explicou que a avó não pôde comparecer, e Mateus questionou se não seria apenas com ele.
Lilian chamou a atenção do filho desde o início, apontando tudo o que ele fazia com críticas, como andar na frente de todos para entrar na sala ("Espera, muleque! Você não sabe onde é!"). Mateus mostrou à terapeuta um DVD com um joguinho, dizendo que ele havia criado (referindo-se ao desenho da capa). A irmã mostrou-se bem quieta, falando baixo e por poucas vezes. Já a mãe pareceu tensa e um pouco incomodada com a situação, forçando algumas atitudes e brincadeiras com os filhos, não agindo de forma espontânea.
As crianças abriram a caixa e Mateus pegou os bloquinhos de madeira. A irmã foi escrever na lousa e desenhou uma forca, convidando a mãe para brincar. Lilian chamou o filho e a terapeuta para brincarem também. Durante essa atividade, Lilian ficava dando "broncas" em Mateus disfarçadas de brincadeiras ("muleque, escreve direito!") e, ao mesmo tempo, pareceu forçar atitudes de carinho (apertava a bunda dele dizendo "meu negão gostoso"). Os carinhos eram realizados por meio de apertões e cosquinhas com o filho; já com a filha, a mãe era mais delicada e por diversas vezes a elogiava. Depois de um tempo, Lilian cansou da brincadeira e mandou que as crianças brincassem sozinhas, dizendo que ela iria conversar com a terapeuta.
As crianças começaram a construir usando as pecinhas de madeira, enquanto Lilian contou que havia saído do emprego, mas que estava à procura de "qualquer coisa"; disse que sua irmã estava se formando para aeromoça e que ia viajar o mundo, e que, com isso, poderia trazer brinquedos para seus filhos. Neste momento, Mateus lembrou-se de um jogo que queria e começou a pedi-lo à mãe, incessantemente, até o final da sessão. Seu pedido era em forma de ameaças, ele xingava a mãe, dizendo que não iria parar de xingar até que ela o desse ("veia, feia, desgraça"). Lilian mandou que ele parasse de "encher o saco" e recorreu à terapeuta para que a ajudasse a decidir se ela comprava ou não. Depois relatou que seu sonho era ir para o exterior, mas que não poderia por causa dos filhos; ainda salientou que para ela não haveria problema em ficar distante deles, mas sabia que estes iriam sofrer, temendo que eles pudessem apresentar "problemas" por causa disso.
Enquanto isso, a menina foi até a lousa e desenhou a mãe com a língua para fora, e começou a chamá-la para que ela olhasse. Ambos os filhos ficaram rindo da mãe, e a própria começou a rir de si mesma. Mateus continuou agressivo na maneira de tratar a mãe, ameaçando destruir o castelinho da irmã se a mãe não lhe desse o jogo que pedia. Lilian, para sair da situação, mandou os dois fazerem um desenho e pararem de atormentá-la. A menina logo obedeceu, e Mateus continuou irritando-a, o que fez com que a mãe o pegasse e começasse a lhe fazer cócegas, apertando-o, dizendo que ele estava muito desobediente e que, se ele se comportasse direitinho, ela lhe daria o jogo. Nesse momento, Mateus sentou-se à mesa e foi desenhar, reclamando que a mãe dava presentes para a irmã, e não para ele. Ao conversarem sobre os jogos, Lilian ameaçou contar à avó sobre os joguinhos de violência de Mateus, pois esta ficaria muito brava; ele afirmou que não era sobre violência, que apenas gostava "de lutinha", mas não de "sangue e morte". Ao final, Mateus conseguiu convencer a mãe a lhe dar o jogo, afirmando que pagaria a metade, caso fosse caro. Ao ser sinalizado o fim da sessão, Lilian mostrou-se aliviada, Mateus também parecia querer ir embora, e a irmã queria terminar seu desenho. Antes de sair, a menina escreveu na lousa "obrigada moça".
8. Análise da sessão familiar
Nessa sessão foi possível observar o quanto Lilian e seus filhos encontram-se em uma dinâmica familiar confusa e ambígua. A mãe pareceu não se aproximar verdadeiramente das crianças em nenhum momento, demonstrando que estar ali junto delas foi de grande angústia. Além disso, demonstrou dificuldade em perceber os filhos como diferentes dela, com necessidades próprias, não sendo capaz de mostrar-se empática e, por diversas vezes, foi incapaz de manter uma comunicação afetiva com eles. Nesse sentido, os sinais emitidos pela mãe eram ambivalentes; ao agir com carinho, fazia-o de forma agressiva, o que prejudicava a compreensão das crianças acerca do que se passava com ela (confusão entre sentimentos de amor e de ódio). Winnicott (1965b/1982; 1964a/1982) destaca a relevância da autoimagem materna no cuidado infantil e do meio ambiente emocional da mãe, para que, assim, a criança possa sentir que ocupa um lugar seguro e que pode explorar o mundo. Caso contrário, ela poderá apresentar uma busca incessante por este lugar que lhe falta, de acolhimento e segurança (Winnicott, 1953a[1952]/2000).
Lilian também não foi capaz de exercer a autoridade, portando-se como outra criança nas brincadeiras e na forma de lidar com os filhos. Com isso, as crianças não sabiam o que poderia vir da mãe, não sabiam o que esperar, e pareciam estar "armadas", como forma de se proteger. Uma das maneiras de proteção foi demonstrar desprezo pela mãe, rindo do jeito dela e do que fazia (como o desenho feito pela filha na lousa). Lilian, com esse funcionamento mais primitivo, demonstrou fragilidade e imaturidade no contato com as crianças, o que dificulta o oferecimento de holding.
Mais uma vez, Lilian e Mateus pareceram funcionar de forma bastante semelhante, com inquietude, em uma tentativa constante de conter a agressividade, que acaba por se transformar em uma violência interna, em desprezo e destruição, que só conseguem eclodir na forma de atuações (destruir o castelo da irmã, xingamentos, cosquinhas). Mãe e filho demonstraram prejuízo na passagem pela transicionalidade, com dificuldades para brincar e simbolizar (Winnicott, 1953c[1951]/2000; Zanetti & Gomes, 2011). No contato com o outro pareceu não haver conquistas, ou seja, aquilo que se deseja deve ser suprido imediatamente, sem pensar nas consequências, assim, os desejos são expostos por meio de ameaças e agressividade, com uma frustração que não pode acontecer por não se conseguir elaborar (Winnicott, 1955c[1954]/2000; 1964a/1982).
Mateus mostrou-se bem agitado e, por diversas vezes, portou-se de forma desconexa (ao mesmo tempo em que estava conversando, ele também brincava gesticulando golpes e nomeando-os), como na sessão lúdica, ele confundia fantasia e a realidade. Este aspecto remete ao retraimento tido como possibilidade de "retirada do relacionamento consciente com a realidade externa" (Winnicott, 1955c[1954]/2000, p. 347), devido a certa incapacidade de demonstrar espontaneidade no contato com o outro. Por outro lado, a irmã mostrou um funcionamento mais preservado que sua mãe e Mateus, pois foi capaz de expressar pensamentos e sentimentos, por meio de representações, como a mãe que desenhou na lousa e, ao final da sessão, com o agradecimento à terapeuta.
9. Procedimento de Desenhos-Estória (D-E)
No início da sessão, Mateus mostrou à terapeuta dois cadernos que sua avó havia lhe dado: um era para escrever aquilo que sentia ou algo que iria fazer e o outro era para desenhar. Quando a terapeuta explicou-lhe sobre o procedimento que realizariam naquele dia, ele ficou desapontado, dizendo que preferia brincar; no entanto, iniciou a atividade. Começou a desenhar e a falar ao mesmo tempo, dizendo que estava sentindo muito a falta do avô. Mateus contou que tinha três desejos: o primeiro, e o que ele mais queria, era ter uma família reunida. Neste momento não relatou os outros desejos de maneira clara, mas passou a contar que sua mãe, a avó materna e as tias haviam brigado e agora estava uma confusão, com isso, ele nem podia ver a irmã; então, para sanar essa ausência, ele queria um irmãozinho, com quem pudesse brincar, conversar e compartilhar. Disse ainda que, quando falava sobre isso com a avó, esta gritava com ele, chamando-o de louco, e tornou a dizer que queria o avô de volta, pois este era seu único amigo.
Diferentemente de todos os outros encontros, neste Mateus mostrou-se triste e quieto, sem fazer muitas brincadeiras e reclamando bastante da solidão e da falta do avô. Diante disso, a terapeuta optou por deixar a atividade proposta inicialmente e permitir que este se expressasse mais livremente, conversando com ele sobre o que estava sentindo.
Mateus contou que queria ser um construtor quando crescesse, pois seu desejo era fazer uma casa para seus familiares, em que todos vivessem bem. Relatou ainda que às vezes sentia dor de cabeça e, logo em seguida, disse que gostaria que a terapeuta conversasse com sua avó sobre tudo o que ele estava contando, pois muitas vezes ele não conseguia dizer o que sentia e, mesmo quando tentava, ela não o escutava, ficando "tudo guardado" dentro dele ("eu guardo tudo aqui dentro, sabe, e não consigo dizer, fica tudo aqui doendo").
Novamente disse que se sentia muito sozinho, mas logo afirmava que a avó era sua companheira e que ele tinha de cuidar dela, por isso não podia falar o que queria para a avó, pois tinha medo de que esta ficasse chateada e o abandonasse. Depois, justificou tal atitude da avó dizendo que esta só queria o melhor para ele, que ele fosse um bom menino e que sua mãe não conseguiria cuidar dele, por isso era a avó quem o fazia, para que ele não se tornasse um "traficante" ou um "ladrão", mas uma boa pessoa.
Continuando a produção gráfica, Mateus desenhou a si mesmo, contando que o avô fazia tudo por ele e com ele, e que agora não tinha mais com quem brincar. Disse ainda que as crianças o achavam estranho porque ele só falava de joguinhos, elas ficavam com medo e se afastavam dele. Neste momento, como em outros, ele emitia sons de golpes e lutas, enquanto conversava. Também falou de seu medo de perder o controle só de pensar em alguma coisa, por exemplo, disse que se pegasse uma arma, ele achava que iria atirar.
Ao ser solicitado a contar uma estória de seu desenho, Mateus negou-se a fazê-lo, e, então, passaram a conversar sobre o que havia sido desenhado. Disse que o carro colorido era seu e de seu avô, para eles viajarem para qualquer lugar do mundo, acrescentando, posteriormente, que a avó também iria. Relatou que o avô e ele sempre iam tomar sorvete e que o preferido do avô era de milho verde, contou sorrindo sobre um episódio em que a avó foi à sorveteria com eles de pijama e sem pentear o cabelo.
Mateus continuou a desenhar, fez uma árvore com uma casinha em cima e uma casa maior do lado. Disse que a casinha da árvore havia sido construída pelo avô e que lá tinha várias "coisas legais, como brinquedos, videogame, TV, gibis", para que ele pudesse brincar quando quisesse. A casa maior era dele e dos avós; quando questionado sobre a mãe, disse que gostaria que ela morasse junto com eles, mas que ela estava morando com Roberto e que este não era uma boa pessoa, acrescentando que a avó ficava muito chateada com sua mãe, por ela fazer tantas coisas erradas. Ao final, desenhou um sol e umas nuvens, dando o seguinte título à estória: "Casa nova do Mateus".
10. Análise da produção
De acordo com os aspectos formais do desenho, a casa foi feita de cor preta e desprovida de teto, o que denota sentimento de desproteção e insegurança da criança diante do mundo sentido como ameaçador. A árvore desenhada com um buraco no centro sinaliza a experiência vivida de episódios traumáticos, como a perda recente do avô e a perda do pai, além da pouca proximidade afetiva com a figura materna. Nesse sentido, assinala-se a presença de um ambiente insuficientemente bom, com figuras que não foram capazes de suprir as necessidades da criança (Winnicott, 1965vc[1962]/1982; 1953a[1952]/2000).
A casa desenhada apresenta muitas semelhanças com a face de uma pessoa, em especial, pela sua estrutura, como se as janelas fossem olhos, e a porta, uma boca, que aparece bem fechada, como se ele também não pudesse expressar o que sente, guardando tudo para si. No geral, o desenho é muito pequeno, contido, sinalizando sentimento de inferioridade e repressão dos conteúdos internos. Como assinalado por Winnicott (1953a[1952]/2000), o mundo externo pode ser visto como permeado por perseguidores, que fazem com que a criança volte-se para si em um estado de introversão.
A casa feita na árvore pode significar a representação de seu mundo mental, de suas fantasias, de um lugar ideal, distante da realidade, em que tudo pode ser satisfeito e não há frustração. Tal funcionamento psíquico, mais voltado para o ideal de ego, torna as expectativas muito grandiosas, o que acaba prejudicando a adaptação à realidade. O ideal de ego dominante e destoante do real sinaliza um modo de funcionamento psicótico, com prejuízo no processo do pensar – como vai coordenar tudo o que deseja e tudo o que tem? Como vai conseguir seus ideais?
Essa pouca discriminação entre idealização e realidade também pode ser percebida quando Mateus emitiu sons de golpes e lutas no meio de suas frases, com dificuldade de coordenar os pensamentos, expressar seus desejos e consumar necessidades. Além disso, essa fragilidade na intermediação entre mundo interno e externo explicita o medo que a criança sente de perder o controle só por pensar nas coisas (quando fala do medo de pegar uma arma e atirar). Daí a tentativa de, a todo momento, controlar a expressão de seus impulsos, em especial da agressividade, tentando amenizá-la a tal ponto, que não pode sentir raiva de ninguém, pois, se isso acontecer, ele poderá destruir o outro e ser abandonado.
Há a presença de um ego fragilizado que, além da dificuldade em diferenciar real e fantasia, também acaba incorporando todos os discursos da avó como pura verdade, sem conseguir compreendê-los. Nesse sentido, verbaliza que agora ele é o homem da casa, que deve cuidar da avó, sentindo-se responsável por ela e que, por isso, não pode magoá-la, abandonando seu desejo de morar com a mãe e a irmã. Por outro lado, a avó parece formular essa ideia de forma ameaçadora, fazendo com que ele se sinta culpado por pensar ou sentir diferente, como se com isso a avó fosse abandoná-lo, e ninguém pudesse cuidar dele como ela.
Ao sinalizar seu desejo de ser construtor, Mateus mostra, ainda, a necessidade de ter um espaço para si, que ele possa aproveitar de seu jeito, já que acredita que em sua vida ele não tem uma casa, um lugar para si no mundo, nem na vida da mãe, nem na vida de ninguém. Essa necessidade é um sinal de esperança, da busca da criança por proteção e segurança, em uma sustentação vivenciada no ambiente, em que ele pode demonstrar agressividade sem precisar recorrer ao retraimento (Winnicott, 1955c[1954]/2000).
11. Sessões de devolutiva
11.1 Com a avó
Elvira disse que havia achado "muito bom" o processo de triagem e que, como Mateus estava passando por um período muito ruim, devido à morte do avô e a toda a situação com a mãe, ela achava que o atendimento ajudaria muito a criança. Tornou a falar com muito ressentimento da família de Lilian, contando sobre o conflito que estavam vivenciando. Disse achar muito errado a maneira com que eles viviam, por isso não estava mais deixando que Mateus frequentasse a casa da mãe e da avó materna. A terapeuta mostrou compreensão pelo sofrimento da avó, permitindo que ela também falasse de si, desabafando e chorando. Além disso, foi apontado o quanto Elvira era importante na vida do neto, por oferecer ao garoto o que a mãe não conseguia dar. A avó demonstrou cansaço em cuidar do menino, consciente de que estava realizando uma responsabilidade que não era sua; disse ainda não o devolver à mãe, porque sentia "pena" dele e receio de que ele se tornasse má pessoa ao conviver com a família materna.
É importante destacar que, devido ao receio de Elvira de que o neto pudesse tornar-se "mau-caráter", percebeu-se que ela se excedia na maneira de educar a criança, reprimindo sua espontaneidade e não permitindo que houvesse espaço para extravasar a agressividade, os medos e as angústias. A severidade de Elvira também se refletiu durante todo o contato com a terapeuta, uma vez que foi difícil dialogar com ela, visto que ela não permitia que o outro participasse de seu monólogo.
Ao falar de Mateus, a terapeuta apontou para o quanto ele era um menino inteligente, mas que estava se sentindo só. Disse que, apesar de a avó estar representando seu porto seguro, a criança havia perdido alguém muito importante, que ele tinha como amigo. Mateus precisava de alguém que o escutasse, aspecto que muitas vezes ele reclamou de não conseguir ter com a avó, porquanto sentia medo de dizer, temendo que ela ficasse brava, ou muitas vezes não dizendo, porque ela não respondia. Nesse momento, a avó mostrou-se defensiva, tentando rebater os assinalamentos e enfatizando que ela ouvia o neto. No entanto, complementou que iria tentar escutá-lo mais, tranquilizando-se pelo fato de que ele teria um espaço terapêutico também. Por fim foi explicado sobre o processo do atendimento, conversaram sobre a disponibilidade de horários e, ainda, foi oferecido um espaço para ela, em que ela pudesse dar um pouco de atenção para si mesma. Ela agradeceu bastante e disse que iria pensar a respeito.
11.2 Com a mãe
Lilian havia chegado um pouco atrasada e, como de costume, desculpou-se pelo atraso e contou sobre a confusão de sua vida, a inconstância de seus empregos e de seu humor. A terapeuta demonstrou compreensão e explicou o motivo da conversa. Falou sobre a importância da mãe na vida de Mateus e o quanto ele sentia a falta dela. Assinalou que, por conta de toda a situação vivida por Lilian com o pai de Mateus, não deveria ter sido fácil aceitar a criança e cuidar dela, mas que era importante sua presença na vida do menino, uma vez que este se sentia angustiado por não conviver com ela e com a irmã, destacando-se também a importância da menina na vida do garoto.
Lilian ouviu atenta e demonstrou entender tudo o que lhe era dito, no entanto, parecia concordar sem realmente compreender. Por fim, também lhe foi oferecido um espaço terapêutico; ela demonstrou interesse, aceitando o encaminhamento proposto. Disse que iria tentar ajudar mais o filho, mas, mais uma vez, suas formulações pareciam frágeis.
É importante ressaltar o quanto durante todo o processo de triagem Lilian deixou transparecer sua dificuldade quanto à estabilidade, no sentido de inconstância e falta de firmeza em tudo em sua vida, o que também se refletia nas experiências psíquicas do filho. Além disso, demonstrou insegurança no cuidado com os filhos, ressentimento e conflitos com sua madrasta.
11.3 Com a criança
Primeiramente, a terapeuta contou à criança sobre a conversa que havia tido com sua mãe e sua avó, relatando seu sentimento de solidão e a necessidade de ter alguém que o compreendesse. Mateus ficou feliz, pois, na sessão anterior, havia sido esse o seu pedido. Depois de conversarem um pouco, ele quis brincar de jogar as pecinhas de dominó, como na sessão lúdica, em uma tentativa de liberar sua agressividade e, como numa descarga, Mateus parecia extravasar toda a raiva, tristeza, angústia, medo, sentimentos muito grandiosos que estavam guardados em um espaço tão pequenininho, em seu peito.
Conforme brincavam, a terapeuta assinalou aspectos do que tinham vivenciado ali, ressaltando que aquele era o último encontro. Nesse momento, Mateus ficou bem impactado, dizendo não entender por que não iria mais encontrá-la, e prosseguiu insistindo que queria que fosse ela quem o atendesse, dizendo que havia gostado muito. A terapeuta destacou que também havia gostado dele, e que agora ele teria um espaço para usar como quisesse, com outro terapeuta que estaria junto dele.
A partir desse momento Mateus começou a direcionar as pecinhas do dominó para a terapeuta, como se quisesse agredi-la por ter sido frustrado. Dessa forma, ela pegou a tampa da caixa lúdica para usá-la como escudo, apontando para Mateus a raiva que ele estava sentindo por estar pensando que ela iria abandoná-lo; e, cada vez mais, o menino jogava as pecinhas com força, vendo que a terapeuta havia entrado na brincadeira, possibilitando-lhe sentir sua raiva, poder expressá-la e ver que, ainda assim, esta não a destruía.
Ao final, a terapeuta tornou a dizer que havia gostado muito de estar ali com ele, ressaltando suas qualidades, falando sobre sua criatividade, sensibilidade e inteligência, e ressaltou novamente que agora ele teria um espaço e alguém com quem dividir tudo o que sentia. Nesse momento Mateus correu em sua direção e deu-lhe um forte abraço, como se conferisse se ela estava mesmo inteira, apesar de toda a sua agressividade. Seu abraço foi correspondido, e eles saíram da sala.
12. Considerações finais
De um modo geral, o processo de triagem foi bastante tumultuado e confuso, em especial, pela dificuldade de Lilian em comprometer-se com os horários estabelecidos e manter a responsabilidade de levar a criança às sessões. Este descompromisso denotou o quanto a mãe apresentava prejuízos no oferecimento de holding para o filho, bem como limites que o sustentassem e possibilitassem seu processo de integração (Winnicott, 1945d/2000; 1965b/1982).
Os acontecimentos vivenciados com a terapeuta, a desmotivação, o desinteresse e a confusão, refletiram a maneira pela qual Lilian relacionava-se com a criança, oferecendo um ambiente instável, inseguro e desprotegido. Ela também não se mostrou capaz de conter suas próprias angústias, sentindo-se, muitas vezes, "paralisada" diante do mundo, sem capacidade de agir de forma criativa e espontânea. Sua vivência pareceu permeada por sentimentos de estagnação, insegurança, incapacidade e fragilidade, o que a impedia de oferecer suporte afetivo aos filhos, compreender suas próprias necessidades e buscar satisfação (Winnicott, 1965b/1982, 1965vc[1962]/1982).
Em um funcionamento psicodinâmico semelhante, Mateus também se mostrou confuso e com poucos recursos para tolerar frustrações e, assim, superar conflitos, denotando prejuízo na aquisição da autonomia e um desenvolvimento emocional insatisfatório. O garoto não sentia confiança nem compreensão provindas das figuras que conviviam com ele, o que gerava insegurança nos relacionamentos interpessoais e prejuízo no contato social. Dessa maneira, a saída encontrada pareceu ser o retraimento, recolhendo-se do contato com o mundo, refugiando-se em suas fantasias, sinalizando uma necessidade de proteção do ambiente invasivo e ameaçador (Winnicott, 1955c[1954]/2000). De acordo com Winnicott (1965vc[1962]/1982), este tipo de funcionamento é característico dos esquizoides, em que a relação de objeto subjetiva constituída é precária e em que há prejuízo na relação com o mundo compartilhado. Esse comportamento demonstra que a criança teve uma experiência na qual predominou a deficiência de afeto, levando ao prejuízo da capacidade de brincar construtivamente, da simbolização e expressão de estilo de ser pessoal.
A figura que se mostrou mais presente na vida de Mateus foi a avó. Mesmo tendo a presença física de Elvira, contudo, o menino não podia expressar-se livremente nem se sentir compreendido por ela. A avó mostrou-se bastante preocupada em tentar fazer o melhor para o neto, mas suas tentativas foram permeadas por severa autoridade e intensa repressão, impossibilitando que Mateus tivesse seu espaço preservado e a confiança no ambiente, aspectos que prejudicam seu desenvolvimento psíquico saudável e a aquisição da independência.
O processo permitiu perceber a dinâmica familiar de Mateus, em que a autoridade da avó era sentida como invasão, a ausência da mãe como falta de sustentação emocional e, por consequência, levando à dificuldade da criança em brincar e ser criativa, portando-se de forma agressiva e introvertida. Diante disso, destaca-se a necessidade da presença do analista para que, para além do retraimento, a criança possa vivenciar a regressão, ou seja, experimentar situações em que ela pode testar o ambiente, agredir, sentir raiva sem destruir, ser acolhida em sua totalidade. O espaço terapêutico, portanto, é visto como uma possibilidade em que a criança vivencia experiências afetivas com oferecimento do holding. É um espaço potencial, um ambiente indestrutível, em que Mateus poderá demonstrar sua agressividade sem matar o outro, função que, segundo Winnicott (1989a/1994), seria exercida pelas figuras parentais.
Ao final, o encaminhamento terapêutico de Mateus foi aceito pela mãe e pela avó, como um espaço alternativo de cuidado e atenção, já que ambas se mostraram sobrecarregadas e sem recursos para oferecer suporte afetivo à criança.
Essa experiência vivenciada no encontro analítico permitirá que Mateus possa retomar seu desenvolvimento emocional, recuperando sua capacidade criativa, vista como a possibilidade de estar no mundo de maneira pessoal, por meio da expressão de seu self. De acordo com Safra (2005, p. 39), o self é tido "como uma organização dinâmica que possibilita a um indivíduo ser uma pessoa e ser ele mesmo [...] o 'eu' seria um campo representacional que possibilita ao indivíduo uma identidade nas dimensões do espaço e do tempo". Dessa forma, a criança poderá ter experiências que lhe deem um sentido para o self, acreditando que tem ação no mundo para transformá-lo de forma pessoal.
Referências
Abadi, S. (1998). Transições: o modelo terapêutico de D. W. Winnicott (L. Y. Massuh, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1996) [ Links ]
Abram, J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott (M. D. G. Silva, Trad.). Rio de Janeiro: Revinter. (Trabalho original publicado em 1996) [ Links ]
Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2004). Sofrimento humano e práticas clínicas diferenciadas. In T. M. J. Aiello-Vaisberg, Ser e fazer: enquadres diferenciados na clínica winnicottiana (pp. 9-22). Aparecida, SP: Ideias e Letras. (Trabalho original publicado em 2002) [ Links ]
Barbieri, V. (2002). A família e o psicodiagnóstico como recursos terapêuticos no tratamento dos transtornos de conduta infantis. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. [ Links ]
Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago Editora. [ Links ]
Figueiredo, L. C. M. (2007). Confiança: a experiência de confiar na clínica psicanalítica e no plano da cultura. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(3), 69-87. [ Links ]
Hjulmand, K. (1999). Lista completa das publicações de D. W. Winnicott. Natureza humana, 1(2), 459-517. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24301999000200012&lng=pt&nrm=iso> [ Links ].
Neto, A. N. (2010). Falso self e patologia borderline no pensamento de Winnicott: antecedentes históricos e desenvolvimentos subsequentes. Natureza humana, 12(2), 1-18. [ Links ]
Safra, G. (2005). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1971a) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1982). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1965b) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1982). Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In D. Winnicott (1982/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965[1963]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1965r[1963] [ Links ])
Winnicott, D. W. (1982). A distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In D. Winnicott (1982/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965[1960]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1965m[1960] [ Links ])
Winnicott, D. W. (1982). Provisão para a criança na saúde e na crise. In D. Winnicott (1982/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965[1962]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1965vc[1962] [ Links ])
Winnicott, D. W. (1982). A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Guanabara Koogans. (Trabalho original publicado em 1964; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1964a) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1982). Por que as crianças brincam. In D. Winnicott (1982/1964a), A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Guanabara Koogans. (Trabalho original publicado em 1942; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1942b) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1989a) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1994). Sobre as bases para o self no corpo [II – Dois outros exemplos clínicos]. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1989c)
Winnicott, D. W. (1994). Sobre O uso de um objeto [Comentários sobre o meu artigo "O uso de um objeto"]. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989[1968]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1989vt[1968] [ Links ])
Winnicott, Donald W. (1999). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1984, respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1984a) [ Links ]
Winnicott, D. W. (2000). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. (D. Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1958a) [ Links ]
Winnicott, D. W. (2000). Desenvolvimento emocional primitivo. In D. Winnicott (2000/1958a), Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 218-232). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1945; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1945d) [ Links ]
Winnicott, D. W. (2000). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. Winnicott (2000/1958a), Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1951; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1953c[1951] [ Links ])
Winnicott, D. W. (2000). A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. In D. Winnicott (2000/1958a), Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1955[1954]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1955c[1954])
Winnicott, D. W. (2000). Psicose e cuidados maternos. In D. Winnicott (2000/1958a), Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1953[1952]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1953a[1952] [ Links ])
Zanetti, S. A. S.; Gomes, I. C. (2011). Laços mal-atados como efeito de funcionamento falso-self em tempos de desconfiança. Psicologia Clínica, 23(1), 171-183. [ Links ]
Recebido em 29/08/2012
Aprovado em 25/03/2013
1 Todos os nomes usados neste trabalho são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.