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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.18 no.1 São Paulo 2016
RESENHA
Ser y tiempo, singularización y comunidade, de Esteban Lythgoe e Luis Rossi
Lythgoe, E.; & Rossi, L. (2016). Ser y tiempo, singularización y comunidad. Buenos Aires: Editorial Biblios.
Marcelo Vieira Lopes*; Róbson Ramos dos Reis**
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Recém-lançado pela Editorial Biblios, Ser y tiempo, singularización y comunidad traz dois autores de língua espanhola empenhados em fornecer uma interpretação temática da obra de Martin Heidegger no período dos anos 1920. Seguindo diferentes hipóteses interpretativas, eles partilham, entretanto, uma meta implícita: percorrer o período que vai de pouco antes da redação de Ser e tempo até o último curso do filósofo na década de 1920, Os conceitos fundamentais da metafísica. Assim, o problema da continuidade ou ruptura do projeto da analítica existencial é o fio condutor que percorre o livro como um todo.
No intuito de investigar a ruptura ou continuidade da analítica existencial, Esteban Lythgoe, da Universidad de Buenos Aires, dá um enfoque especial aos estados de ânimo no desenvolvimento da obra heideggeriana. Passando pelo problema da temporalidade e da modalização existencial até a alteridade, ele sustenta a ideia de uma ruptura no projeto de Ser e tempo. Já Luis Rossi, da Universidad de Buenos Aires e da Universisad Nacional de Quilmes, apresenta uma leitura política da ontologia fundamental de Ser e tempo à luz da teoria sociológica alemã do início do século XX. A hipótese principal que permeia o trabalho de Rossi é a de que a "ontologia social" esboçada na analítica da existência é, em grande parte, dependente de concepções da teoria social florescente na Alemanha da época. Do ponto de vista conceitual, ambas as propostas criam um entrelaçamento na totalidade do livro, na medida em que investigam as temáticas social e afetiva presentes na obra de Heidegger. Essas questões são destacadas frente à problemática da modalização entre propriedade e impropriedade existenciais, objetivo que já é manifesto em parte do título do livro: "singularização e comunidade".
Assim, em Ser y tiempo, singularización y comunidade, Esteban Lythgoe dispõe-se a examinar as hipóteses de continuidade ou ruptura da analítica existencial. O problema da singularização surge de imediato com a comparação da abordagem dos estados de ânimo em Ser e tempo e em Os conceitos fundamentais da metafísica. Em primeiro lugar, é examinado o problema da angústia, relacionada com a existência autêntica, de caráter fundamentalmente singularizador. A seguir, é abordada a sintonia do tédio, tomada como atmosfera fundamental, imediatamente associada à cotidianidade e, portanto, ao modo impróprio de existir. É através da hipótese da predominância da impropriedade em Ser e tempo que Lythgoe dá ênfase ao existencial discurso. Assumindo que no fenômeno do chamado da consciência, tal como interpretado por Heidegger, opera-se a passagem da impropriedade à propriedade, Lythgoe reconhece o papel constitutivo do discurso no projeto da analítica existencial. Na medida em que se reconhece o papel fundamental da impropriedade e do discurso, revela-se conjuntamente o lugar da relação com outros seres humanos no marco da analítica do Dasein.
Outra premissa fundamental no exame de Lythgoe é a ideia de historicização dos estados de ânimo. No decorrer da década de 1920, Heidegger modifica a ênfase no fenômeno da angústia, e a primazia dada para o tédio assinala o caráter essencialmente histórico desse último estado de ânimo. Se em Ser e tempo a concepção ontológica fundamental era a de que o ser é acessível numa compreensão de ser, a partir da aula inaugural Que é metafísica? transita-se para o acesso atemático ao ser, ou seja, para a via dos estados de ânimo. Nesse sentido, segundo Lythgoe, a orientação do filosofar heideggeriano enfatiza gradativamente o caráter afetivo de acesso ao ser. Pois se em Ser e tempo o ser se desvela numa compreensão de ser, em Os conceitos fundamentais da metafísica esse acesso é tomado predominantemente via receptividade afetiva, e o "eu" angustiado é substituído pelo "nós" entediado. Assim, o tédio aparece como o estado de ânimo fundamental de uma época. A afetividade acaba por adquirir um caráter comunitário e epocal, mostrando a possibilidade de estados de ânimo fundamentais assumirem um papel de regulação de épocas históricas diferentes.
Com relação à caracterização do existencial do discurso como fenômeno originário, Lythgoe é explícito em situá-la num patamar tão significativo quanto o tratamento da temporalidade em Ser e tempo. A hipótese é a de que a passagem da impropriedade para a propriedade é inexplicável em termos temporais, e que somente através de existenciais derivados do fenômeno do discurso, tal como o chamado da consciência, é que se explicaria tal transformação.
As formas em que se modaliza a existência também parecem apontar para o fenômeno de ruptura em Os conceitos fundamentais da metafísica. Dado que o tédio é caracterizado desde o ponto de vista de um "nós", estaria implícita a ideia de que o estado de ânimo fundamental com que opera Heidegger nessa preleção parte da modalidade imprópria e social, logo, não singularizada. Desde sempre o tédio aparece associado a características atribuídas ao impessoal. A elucidação do caráter social dos estados afetivos leva Lythgoe imediatamente ao tema da alteridade na obra de Heidegger. Ainda que de forma tangencial, o tema da alteridade foi tratado ao longo de todo o texto de Lythgoe, por meio do exame das modalidades de ser, dos estados de ânimo ou da relação entre discurso e temporalidade. De qualquer forma, esses temas apontam para a problemática do comportamento para com outros entes que também são Dasein. Lythgoe procura mostrar o caráter essencialmente negativo do outro na obra de 1927. Na medida em que o contato com outro Dasein se dá na cotidianidade, a impropriedade parece reger normativamente o vínculo do "ser-com". A despeito do modo de solicitude "antecipativo-liberadora", reconhecido por Heidegger, a propriedade do Dasein é formada a partir da decisão, da antecipação da morte e do isolamento do Dasein. É no antecipar a própria morte que o Dasein torna-se singular, rompendo o vínculo com a normatividade impessoal e, por conseguinte, com os demais. Lythgoe identifica uma espécie de "curto-circuito" no interior da analítica existencial, em que, guardadas as devidas proporções, o Dasein resoluto e próprio equiparar-se-ia a uma variação do ego transcendental isolado, alvo da própria crítica heideggeriana em Ser e tempo.
Posto em termos gerais, o modo de solicitude "antecipativo-liberadora" é tomado por Lythgoe como "subdesenvolvido" em Ser e tempo, estando diretamente ligado às limitações impostas pelo discurso. Dessa forma, o autor pretende mostrar a relação equiprimordial entre discurso e temporalidade. Se os sentidos de ser são sempre a cada vez relativos ao Dasein e ao sentido do seu próprio ser (a temporalidade), então seria preciso recorrer ao discurso para explicar a passagem entre impropriedade e propriedade.
Lythgoe enfatiza ainda a função conscientizadora da filosofia, reconhecida por Heidegger no texto de 1929, pois a filosofia aparece como uma tarefa de liberação do Dasein para sua própria existência. Isso implica que a filosofia desenvolvida na preleção de 1929/1930 teria um aspecto transformador. Porém, diferentemente do chamado da consciência e da angústia (Ser e tempo), Heidegger não assumiria a tarefa messiânica de modificar a modalidade da existência contemporânea, mas visaria colocar seus ouvintes em um estado de ânimo fundamental, de tal modo que eles mesmos seriam os agentes da mudança.
O ensaio é concluído com a retomada da tese da mudança na analítica existencial no percurso que vai de Ser e tempo até Os conceitos fundamentais da metafisica. Além disso, a crescente prioridade dada aos estados afetivos do Dasein frente a uma consciência marca o distanciamento da filosofia de Heidegger da filosofia de Husserl, caracterizada pela transformação de uma fenomenologia da consciência pura em uma fenomenologia hermenêutica, esta apoiada não mais na atividade consciente, mas na recepção passiva característica das tonalidades afetivas.
Já o trabalho de Luis Rossi, El problema de la comunidade em Ser y tiempo, apresenta no interior da problemática da comunidade uma leitura política de Ser e tempo. Embora não haja menção a temas clássicos da filosofia política na obra magna de Heidegger, Rossi afirma que é possível encontrar traços políticos e ideológicos do próprio autor sob o manto de uma ontologia formal. A questão, tal qual aparece no trabalho de Lythgoe, toma a forma da pergunta acerca da possibilidade da formação de uma comunidade no interior da experiência singular do Dasein resoluto. O problema propriamente político no interior de Ser e tempo estaria ligado ao acontecimento do povo enquanto comunidade. Esse acontecimento seria a modalização própria do "ser-com". Essa questão é problematizada a partir da dicotomia comunidade/sociedade introduzida por Ferdinand Tönnies, tendo em vista a apropriação do termo no cenário público da Alemanha de começos dos anos 1920. O trabalho de Rossi gira em torno do aparecimento do termo "comunidade" em Ser e tempo e sua ligação com os existenciais do Dasein. Estabelecendo esse pano de fundo conceitual, de maneira a conceber a comunidade como o acontecimento de um povo, Heidegger se desvincula, segundo Rossi, de uma concepção atomista e fragmentada do modelo social.
Rossi apresenta o primeiro traço da problemática da comunidade em Ser e tempo a partir do projeto da destruição da história da ontologia. Segundo o autor, o antecedente da noção de destruição estaria em Lutero, através da crítica à teologia escolástica. Também em Heidegger a destruição operaria da mesma forma, aplicada, porém, à herança da ontologia grega e sua recepção latina. Esse esquema aparece então como uma operação metodológica na obra de 1927, na qual, em vez de esquecida e abandonada, a tradição herdada deve ser repetida e assumida como destino. E, segundo a observação de Rossi, o termo "destino" possui ampla ressonância política. Ao recusar o universalismo da tradição e sustentar que a verdade existencial se dá sempre a partir de uma instância singularizadora, a aceitação da própria finitude, a resolução individual transmuta-se para o nível social na propriedade do "ser-com" enquanto comunidade. Segundo Rossi, esse ideal de "revolução" no modo de ser com outros – que é próprio do Dasein – buscado na ideia de comunidade tem uma finalidade política explícita e possivelmente explicaria o compromisso de Heidegger com o nacional-socialismo alguns anos mais tarde.
A temática do "ser-com" conduz, então, à sua possível modalização própria. A questão paradoxal da comunidade já aparece em certa medida no ensaio de Lythgoe: como conciliar a individualização do Dasein com a formação de uma comunidade em "união verdadeira"? A "dimensão política" de Ser e tempo surge do exame da esfera pública em que o Dasein habita, por intermédio da tematização do encontro do Dasein com seu semelhante. Há, assim, uma camada mais básica de compartilhamento que permeia todo comportamento do existente. No entanto, apontar essa camada de compartilhamento básico não implica qualquer teoria da sociedade ou do estado, o que, na visão heideggeriana, implicaria recair em uma ontologia regional. Assim, a fenomenologia do "ser-com" parece implicar, ainda que de forma derivada, uma "ontologia social", que não deve confundida com uma ontologia regional das relações políticas.
Ao esboçar os contornos de uma "ontologia social", Rossi identifica a descrição heideggeriana do "ser-com" com a teoria da ação recíproca de Georg Simmel. Desse modo, surge no tratamento heideggeriano do encontro com o outro uma aparente abertura da ontologia rumo a questões da sociologia nascente na Alemanha da época. Tal abertura mostraria como alguns conceitos sociológicos foram abarcados e ganharam sistematicamente um caráter ontológico no texto de Ser e tempo.
Talvez a contribuição mais relevante do trabalho de Rossi seja a introdução da teoria de Ferdinand Tönnies e sua comparação com o aparecimento do termo "comunidade" no texto de Heidegger. Tönnies fornece uma dicotomia básica entre os modos de agrupamento social. Essa dicotomia baseia-se na distinção entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft). O termo "comunidade" descreve uma concepção orgânica do conjunto social formado através de laços de parentesco, fundados em ligação com a terra, e no qual a autonomia individual frente à coletiva é irrelevante. Comunidade é a forma de agrupamento social nos moldes da solidariedade em um sentido amplo, com relativa estabilidade social e afetiva. A sociedade, por outro lado, permite a autonomia crescente do indivíduo frente aos costumes tradicionais, é regida por intercâmbios livres da chancela da tradição e é mediada por contratos. A sociedade tem como nota característica a busca racional de um interesse sempre individualizado, exigindo, por conseguinte, a regulação do Estado.
Rossi mostra que na noção de comunidade esboçada em Ser e tempo está operando de forma implícita a dicotomia introduzida na obra do sociólogo. Na medida em que Heidegger interpreta as categorias sociológicas de Tönnies sub specie ontologiae, comunidade e sociedade adquirem, no escopo da ontologia fundamental, o status de modalizações possíveis do "ser-com". Nesse sentido, a busca por uma ontologia social no marco da analítica existencial deve guiar-se pelas modalizações do "ser-com" nas formas da comunidade e sociedade.
Na leitura de Rossi, contudo, segue sendo problemático conciliar a exigência singularizadora do Dasein – e seu consequente atomismo – com a concepção da comunidade, tomada como modificação própria do "ser-com". Para além do reconhecimento da dualidade de comunidade e sociedade no plano da estrutura do ser-com, Rossi sustenta que até mesmo as categorias esboçadas em Ser e tempo apresentam-se como dotadas de notas características do par comunidade-sociedade. Assim, por um lado, o modo de ser do utensílio poderia ser interpretado em proximidade àquelas características assumidas por Heidegger como pertencentes à comunidade e, por outro, o modo de ser da subsistência, enquanto objeto de investigação teórica, poderia ser aproximado da esfera da sociedade e de seu anseio por racionalização. Essa última hipótese ganha respaldo na apresentação da distinção de Simmel entre "metrópole" e "vida rural", que também teria sido assumida implicitamente nas modalizações do "ser-com". O que Rossi mostra nesses dois casos é a absorção em Ser e tempo de temáticas sociológicas na formulação de uma teoria ontológica do acontecer de um povo.
A hipótese central de Rossi é que Ser e tempo incorpora e assimila tais conceitos sociológicos no interior da ontologia fundamental para dar conta de fenômenos mais básicos da convivência, tais como aqueles descritos pelo "ser-com". Uma vez que a convivência é caracterizada pela queda, da mesma forma, a modalização própria do "ser-com" exige ser conquistada para que a comunidade aconteça. A maneira estilizada de descrição do acontecimento da comunidade dá-se sob a caracterização de um destino: a comunidade é o destino da sociedade.
Outro tema ligado ao acontecer da comunidade, igualmente identificado por Rossi, está na temática da "escolha de um herói". O tema do heroísmo no pensamento de Heidegger aparece já em 1923, segundo o relato de Gadamer, retornando em Ser e tempo como uma espécie de "heroísmo existencial". O heroísmo existencial estaria ligado à possibilidade da atualização de heranças de uma tradição. Esse tema controverso, presente já na correspondência entre Heidegger e Jaspers, é muito bem documentado por Rossi. Em tal correspondência, Heidegger refere-se ao herói como pertencente a uma "comunidade de luta" (Kampfgemeinschaft). Atrelado ao tema do heroísmo surge o motivo da luta, resultado sobretudo das leituras de Heidegger de Ernst Jünger.
Assim, a comunidade, a luta e o destino, temas constantes na obra de Jünger, encontram seus correlatos, segundo Rossi, na descrição heideggeriana da angústia. A angústia que Heidegger contrapõe ao medo diante da morte e que deve ser de pronto assumida equivale à imagem do soldado na trincheira, presente na temática jüngeriana.
A última seção do livro traz a análise da transformação dos estados de ânimo em conceitos crítico-culturais. A tese é a de que a inclusão de questões sociais e políticas na obra do autor alemão foram motivadas pela mudança dos estados de ânimo fundamentais de 1927 até 1929. É justamente no curso de 1929/1930 que Heidegger assume a possibilidade de um estado de ânimo social e historicamente condicionado, como é o caso do tédio. Rossi salienta a exaltação heideggeriana de valores marciais, tal como a coragem relacionada ao heroísmo, e explicita o desenvolvimento do conceito de angústia vinculado à serenidade em Que é metafísica?. No desenvolvimento de Os conceitos fundamentais da metafísica, por meio da tonalidade afetiva do tédio é que se forma a identidade de um sujeito coletivo, afastado do solipsismo existencial de Ser e tempo. Rossi conclui seu ensaio retornando ao tema já aparecido no ensaio de Lythgoe: mapeando as transformações do conceito de estados e suas implicações na ruptura que incidem sobre o projeto da analítica existencial.
Em resumo, o livro que apresenta os dois ensaios é denso e, portanto, destinado àqueles que já possuem alguma familiaridade com o vocabulário heideggeriano. Ainda que escrito a duas mãos e dividido por temas diferentes, o livro não deixa de ter uma unidade conceitual e os objetivos de ambos os ensaios acabam por alinhar-se do ponto de vista conclusivo. Mesmo quando os temas ganham contornos especulativos, suas análises são sempre bem documentadas, tanto no que diz respeito ao texto heideggeriano quanto à literatura secundária. Figura em ambos os ensaios um grande domínio dos textos de Heidegger, atrelados a teses extremamente fortes frente a algumas interpretações canônicas. Isso se reflete em uma leitura enriquecedora tanto para a análise das tonalidades afetivas na obra do autor como para a questão controversa da comunidade e suas implicações não menos controversas na biografia de Heidegger. Os dois textos convergem em suas conclusões para o problema da ruptura do projeto da analítica existencial. Trata-se de um livro cuja leitura fornece novas possibilidades de interpretação da obra heideggeriana e, por conseguinte, novas chaves para elucidação do período que engloba aquela que é a obra mais importante do filósofo alemão. Dessa forma, Ser y tiempo, singularización y comunidade traz dois trabalhos de fôlego no âmbito da interpretação heideggeriana em língua espanhola, o que sabemos só vem a contribuir para o estudo dos que se debruçam sobre a obra de Martin Heidegger, em especial, sobre Ser e tempo.
Marcelo Vieira Lopes
E-mail: nerofil@live.com
Róbson Ramos dos Reis
E-mail: robsonramosdosreis@gmail.com
* Mestrando na área de filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)