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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

DOSSIÊ

 

Intencionalidade e a transposição do pensamento

 

Intentionality and transposition of thought

 

 

Tito Marques Palmeiro*

UERJ

Endereço de correspondência

 

 


RESUMO

Contrariando a ideia geralmente aceita de que a noção de intencionalidade seria importante para o jovem Heidegger, nosso estudo procura mostrar que ela jamais foi integrada em seu pensamento. A intencionalidade promete uma nova investigação em filosofia, mas isso permanecerá uma simples e pura promessa porque ela tende a despojar o pensamento de suas possibilidades próprias. Para compreender a dificuldade e a promessa em jogo na intencionalidade, Heidegger se aproximará dela de maneira indireta e a pensará com auxílio de uma palavra que se encontra pouco discutida nos estudos sobre esse autor: transposição (Versetzung).

Palavras-chave: Heidegger; Intencionalidade; Transposição; Pensamento; Fenomenologia.


ABSTRACT

Contrary to the widespread idea that intentionality would be important for the young Heidegger, we will show that it was never integrated into his thinking. Intentionality promises a new philosophical investigation, but this possibility will remain a simple and pure promise because it tends to deprive thinking of its ownmost possibilities. To understand the difficulty and the promise at stake in intentionality, Heidegger will approach it indirectly for he will think it with the aid of a word that is not much discussed in the studies on this author: transposition (Versetzung).

Keywords: Heidegger; Intentionality; Transposition; Thinking; Phenomenology.


 

 

A integralidade dos cursos de Heidegger anteriores a "Ser e Tempo" está disponível desde 2002 e com isso se encontra franqueado o acesso a seus mais importantes textos sobre a fenomenologia1. Apesar da publicação de seus cursos iniciais e da diversidade de estudos a seu respeito, ainda não sabemos o suficientemente a respeito da relação de Heidegger com a fenomenologia. Essa relação é geralmente compreendida segundo o modelo da conquista da autonomia. A fase preparatória, iniciada com seus primeiros cursos de Friburgo, seria marcada pelo esforço de compreender as principais noções da fenomenologia husserliana e seguida, a partir de meados da década de 1920, por uma fase crítica na qual Heidegger transformaria radicalmente essas noções e estabeleceria a posição "madura" de "Ser e Tempo". O presente estudo considera que o problema da relação de Heidegger com a fenomenologia deve ser retomado desde o início, mas faz uma retomada bastante circunscrita, limitada a uma única noção: a intencionalidade. Essa limitação é necessária para que não nos percamos por entre as diversas afirmações de Heidegger sobre a fenomenologia, pois sua relação para com ela apenas pode ser compreendida ao seguirmos como ele procura fazer fenomenologia.

Mostraremos nas páginas que se seguem que jamais a investigação heideggeriana integrou a intencionalidade. A promessa que ela contém jamais teria sido outra coisa além de uma promessa, pois ela não contribui diretamente para a gênese de seu pensamento. Se contribui de algum modo só o faz ao dificultá-lo. É essa dificuldade que explica que Heidegger se aproxime da intencionalidade de maneira indireta, procurando contorná-la pelo emprego de uma estranha palavra: transposição (Versetzung). Esta não é uma palavra fundamental como, por exemplo, Dasein ou Ereignis, mas uma de nosso vocabulário cotidiano, que não tem nenhuma graça particular.

Heidegger a emprega em diversos textos, o que é aliás inteiramente normal, pois se trata de uma palavra corriqueira. Todos a empregamos sem nos darmos conta e, em muitos casos, é o que se dá também nos textos de Heidegger. Isso ocorre, por exemplo, em uma breve passagem de sua tese de doutorado2. Ao seguir uma hipótese que terminou por se revelar infrutífera, Heidegger termina por dizer "[...] nos vemos de volta ao ponto de partida". Literalmente: "[...] nos vemos transpostos-de-volta [zurückversetzt] ao ponto de partida"3. Como se vê, a palavra "transposição" é usada nessa passagem com o sentido de sair de um lugar para outro. Desse modo, ela será frequentemente empregada em seus escritos: como termo filosoficamente neutro que serve, junto com outros, para caracterizar as questões estudadas. Esse é o caso de seu emprego na discussão acerca de como se poderia "transpor" a filosofia de Nietzsche para sua posição metafísica fundamental4; ou para falar da possibilidade de "transpormos" o mero nós em direção à unidade essencial de um povo5; ou então para marcar a impossibilidade de nos "transpormos" plenamente para a experiência que o animal tem de seu mundo circundante6. Não é difícil perceber que nada há em comum entre esses três exemplos nos quais a palavra transposição é empregada: para situar metafisicamente a filosofia de Nietzsche; assumir uma tarefa para o Ocidente enquanto um povo historial; ou afirmar a impossibilidade de compartilharmos plenamente o mundo com os animais, do mesmo modo como sempre já o compartilhamos em nosso "ser-com" os outros. Por esse motivo, não discutiremos um pretenso problema geral da transposição em Heidegger, como se essa palavra tivesse um significado fundamental que se encontraria na base de todos seus usos. No entanto, seu caráter anódino guarda um problema central. Em seus cursos iniciais, ela desempenhará um papel singular, que será significativo para que Heidegger possa compreender as possibilidades do pensamento filosófico frente ao problema da intencionalidade.

Antes de entrarmos nesse problema, vejamos que possível relação existiria entre "pensamento" e "transposição". Um caso exemplar de tal relação ocorre na tentativa de interrogar a obra de um pensador passado em seus termos próprios. Heidegger levanta essa questão pela primeira vez em um curso de 1920 ao perguntar acerca da possibilidade de compreendermos as Epístolas de Paulo de Tarso. Ora, parece impossível pensá-las de maneira conveniente, porque nos encontramos em um contexto inteiramente distinto daquele que as envolvia, o do cristianismo nascente:

Devemos considerar ainda outra dificuldade metodológica. Poderíamos dizer que é impossível — ou possível apenas de modo limitado — nos transpormos (versetzen) para a exata situação de Paulo. De fato, não conhecemos de modo algum seu mundo ambiente (Umwelt)7.

Talvez se diga que a problemática relativa à possibilidade de nos transpormos para a posição de Paulo seria interessante, mas não se vê bem em que isso diria respeito à intencionalidade. A rigor, não há nada nessa noção que evoque a ideia de um movimento pelo qual sairíamos de uma posição para outra, uma vez que isso constitui justamente o que ela nega: a ideia tradicional de que nossa relação com o mundo é o resultado do ato pelo qual a consciência sai "de" sua esfera íntima "para" o domínio exterior da objetividade. O que se encontra em jogo na intencionalidade é que nossa relação com o mundo antecede todo esforço de conquistá-la, uma vez que estamos desde sempre no mundo. No entanto, talvez se diga que a ideia de transposição não deve ser simplesmente descartada, porque essa palavra já aparece em Husserl, mesmo se geralmente empregada para nomear um movimento negativo e secundário em relação à abertura intencional ao mundo. Esse é o movimento fantasioso que se dá como resposta a um encontro com o objeto intencional na qual somos transpostos para a esfera da subjetividade:

De modo geral, o jogo da fantasia pode se colocar em ação de tal modo que ficamos imersos no mundo do sujeito, como quando, ao vermos as pinturas de Paolo Veronese, nos sentimos transpostos (versetzt) para a vida e a atividade esplendidamente suntuosas dos grandes venezianos do século XVI8.

Nesse jogo imaginário, não visamos a Veneza renascentista, apenas jogamos com fantásticas possibilidades acerca dos grandes homens desse momento do mundo. Veremos a seguir que a transposição do pensamento em Heidegger não é da ordem de um deslocamento imaginário produzido a partir do pano de fundo da intencionalidade. Para que possamos compreendê-la em seu sentido próprio, discutiremos o encontro do jovem Heidegger com a noção husserliana de intencionalidade. A partir disso, procuraremos mostrar que nesse encontro teria vindo à luz a transposição como a palavra com a qual ele procurará pensar a promessa e a dificuldade da intencionalidade para o pensamento.

 

1. A intencionalidade

O jovem assistente que Husserl designara para desenvolver estudos visando o estabelecimento do campo regional da fenomenologia da religião iniciou essa tarefa com o auxílio das noções centrais de sua fenomenologia. No entanto, ele não se contentou com esse papel limitado porque procurou compreender que novas possibilidades se encontrariam abertas com a fenomenologia. É por isso que, se apenas o curso "Fenomenologia da vida religiosa" utiliza a palavra "religião" em seu título, praticamente a metade dos cursos de 1919 a 1927 (7 dentre 15) emprega a palavra "fenomenologia". Nesses cursos, Heidegger dirá, por exemplo, que a fenomenologia promete uma "transformação genuína" da filosofia9; que ela realiza uma "intervenção transformadora" na ideia de ciência10; ou que permite uma "nova fundação radical da filosofia"11. No primeiro curso que ministrou em Marburgo, "Introdução à pesquisa fenomenológica", Heidegger afirmou que a principal promessa da fenomenologia foi tornada possível pela intencionalidade: "Com essa descoberta da intencionalidade, pela primeira vez em toda história da filosofia o caminho para uma pesquisa ontológica radical se encontra explicitamente dado"12.

Mais adiante nesse curso, Heidegger explicará por que a intencionalidade abriria o caminho para uma pesquisa ontológica radical:

A determinação da intencionalidade é o que primeiramente possibilita o método de pesquisa fenomenológico; pois este é possível se, junto com a reflexão, o ato, no qual se reflete, se encontra presente, <assim como> aquilo para que a reflexão se dirige, não o objeto natural, mas o objeto no como de seu ser-intencionado13.

Heidegger parece estar apenas repetindo a definição husserliana da intencionalidade. Ele, de fato, concorda com Husserl em que ela escaparia à compreensão que guia o senso-comum, a ciência e toda postura insuficientemente filosófica, os quais tomam por guia para nossa relação com o mundo a questão de como a esfera íntima da subjetividade poderia sair de si para chegar a uma objetividade exterior. Ele continuará a dizer textualmente o mesmo que Husserl ao afirmar que não nos dirigimos meramente a objetos enquanto objetos, mas a objetos no como de seu ser-intencionado. O caminho para uma "pesquisa ontológica radical" fora aberto pela fenomenologia husserliana e Heidegger procurará apenas aprofundá-lo. No entanto, não acompanharemos esse passo suplementar porque interrogaremos algo que parecia constituir, à primeira vista, um mero detalhe frente ao projeto heideggeriano nascente. Apesar de a intencionalidade prometer uma interrogação ontológica radical, essa passagem mostra que ela determina uma limitação do pensamento, já que ele deve permanecer inscrito no "para-que" (worauf) se dirige o ato. Essa é uma possibilidade que interessa ao jovem Heidegger em sua procura por uma nova posição em filosofia que escape ao intelectualismo e é talvez por isso que, em seu primeiro encontro com a intencionalidade, ele não tenha sido crítico em relação a essa limitação, a qual se resume ao fato de o pensamento não ficar fechado em uma esfera própria porque, por definição, ele deveria se esgotar inteiramente no que se trata de pensar.

Talvez não se veja claramente em que medida isso seria problemático para as possibilidades do pensamento, parecendo que esse começo de crítica ignora levianamente o elemento decisivo, que é o desenvolvimento da fenomenologia em um sentido ontológico radical. Uma vez que a grandeza e a originalidade do caminho de Heidegger foram tornadas possíveis pela interrogação das noções da fenomenologia husserliana, e em particular da intencionalidade, a associação do pensamento com o ato no qual ele reflete constituiria menos um problema que a "promessa do novo" em filosofia. Diversas passagens de sua obra parecem poder ser invocadas em favor da necessidade de recusar essa crítica, mas talvez nada seja mais determinante que a importância atribuída continuamente por Heidegger ao Fragmento 3 do "Poema" de Parmênides, que fala do "mesmo" como relacionando "ser" e "pensar". Isso parece indicar que pensar é pensar-algo, que o pensar é tornado possível pela intencionalidade. No entanto, a importância desse fragmento constitui justamente um testemunho do problema colocado pela intencionalidade. O fato de Heidegger ter retornado continuamente a esse fragmento, desde 1922,14 mostra, sem sombra de dúvidas, que a relação entre ser e pensar não se encontra resolvida de uma vez por todas com resposta dada pela intencionalidade desde 1919.

 

2. O que se pode com a intencionalidade?

Heidegger jamais tomou a intencionalidade como um ponto de partida que servisse para construir uma nova posição em filosofia. Ele a interrogou desde seus primeiros cursos de maneira crítica, e essa crítica é bastante radical. Aqui se trata de seguir apenas uma das alterações que realizou com relação à sua compreensão em Husserl: Heidegger se recusará a associar a intencionalidade a qualquer forma de subjetividade. Contrariamente ao que se poderia esperar, ao recusar a subjetividade, ele não fundará a intencionalidade no Dasein. Isso é de todo impossível porque será apenas a partir de 1923 e, sobretudo, de 192415 que ele passará a interrogar a noção de Dasein. Então, se a intencionalidade não se encontra fundada em nós, em que se encontraria fundada? O curso de 1919, "Para a determinação da filosofia", dá uma resposta bastante interessante ao descrever um ato intencional específico, o ato de questionar, como sendo independente do "eu": "O que é decisivo é que a simples inspeção não descobre "nesse caso" algo como um "eu". Vejo que isso vive (es lebt), e mais, que isso vive dirigido a algo"16.

Questionar não é ficar fechado em representações e impulsos subjetivos, mas é uma forma de viver: é um "viver em direção a algo". Isso significa que em seu encontro inicial com a intencionalidade, Heidegger compreendeu que ela não se encontra situada na subjetividade, mas na vida. A vida é o contexto pré-objetivo que nos envolve, não nos sendo exterior por se desenvolver como uma série de movimentos intencionais da qual todos os viventes participam. Nos "Prolegômenos à história do conceito de tempo", Heidegger afirmará que a intencionalidade apenas "constitui a estrutura do comportamento"17 — isto é, ela apenas pode nos dizer respeito — porque "todas as relações da vida são determinadas intrinsecamente por essa estrutura"18. A vida é uma sequência de remissões intencionais que nos envolvem e nas quais tem lugar nosso comportamento específico.

A investigação heideggeriana se inicia pela compreensão de que a vida constitui a sede da intencionalidade. Isso permite estudos sobre diversos movimentos intencionais da vida, mas em nada garante as novas possibilidades prometidas para o pensamento: o mero fato de tomar a vida por ponto de partida não nos dá acesso a uma atitude propriamente filosófica. Essa atitude deve ser o desenvolvimento das tendências da vida, pois vimos que o questionamento não é um ato fundado no "eu", mas uma forma de viver. Heidegger chamará por isso a atitude filosófica de "hábito", no sentido medieval de um traço característico (habitus, hexis), de "hábito primal do fenomenólogo". No entanto, isso não significa que o questionar da atitude fenomenológica seria imediatamente acessível. Heidegger dirá nesse curso de 1919 que esse "hábito primal do fenomenólogo não se deixa apropriar do dia para a noite, como se vestíssemos um uniforme"19.

Se nos detivermos nessa afirmação, temos que perguntar, pura e simplesmente: por quê? Com a intencionalidade da vida, o acesso a tal "hábito primal" não deveria estar franqueado? Dizendo de outro modo: o pensamento não deveria estar desde sempre relacionado com o que se trata de pensar? É verdade que a intencionalidade nega que o "objeto" seja o mero fenômeno mental imanente do psicologismo ou algo transcendente, mas o que se pode dizer, de maneira positiva, que ela permite ao pensar? Não se pode considerar que ela estabeleceria magicamente a possibilidade de que tudo se torne pensável, como se com ela pudéssemos compreender, de maneira imediata e sem esforços, o caráter excepcional do mundo e seus problemas em profundidade. Se esse fosse o caso, então, e apenas então, o pensamento poderia nela se esgotar.

Nos "Prolegômenos para a história do conceito de tempo", Heidegger afirmará algo importante acerca da intencionalidade em seu caráter intuitivo e imediato:

A intuição em sentido fenomenológico não implica nenhuma capacidade particular, nenhum modo excepcional de se transpor (versetzen) para domínios e profundidades do mundo que de outro modo permaneceriam fechados20.

Não há nada de excepcional na diretividade intencional da vida nem em nossa capacidade de nos dirigirmos aos fenômenos à nossa volta. Excepcional, no entanto, e muito significativo, é que Heidegger se refira à intencionalidade como uma forma de transposição. Uma forma simples, que não permite compreender aquilo que, para o pensamento, é decisivo: o excepcional e o profundo.

 

3. A intencionalidade contra o pensamento

Pelo que vimos, ao mesmo tempo que a intencionalidade promete uma nova investigação filosófica ela se coloca como um empecilho contra o qual Heidegger terá que se posicionar ao final desse período preparatório. A relação para com as coisas mesmas, que pareceria garantida pela intencionalidade em sua diretividade, intuitividade e imediaticidade, é, na verdade, algo que ainda deve ser conquistado para as novas possibilidades do pensamento. Para exemplificarmos o que a intencionalidade permite e o que ela nega, sabemos que todo ser vivo pode se afastar do fogo ou a ele se dirigir; no entanto, essa imediaticidade não garante a possibilidade da principal diretividade que interessa em filosofia: pensar o fogo. O exemplo de Heráclito mostra que isso é mesmo extremamente raro. Assim, a ideia de que com a intencionalidade o pensamento se descobre aberto ao que procura pensar não é de nenhum auxílio para compreendermos por que, ao longo de seus cursos iniciais, Heidegger continuou a interrogar a intencionalidade para desenvolver a promessa de transformação da fenomenologia. Na verdade, ele procurou levar em conta a dificuldade que ela coloca para o pensamento pela tentativa de pensá-la enquanto uma forma de "transposição". No início deste estudo, fizemos referência ao curso "Fenomenologia da vida religiosa" para evocar a dificuldade de nos transpormos para a posição de Paulo de Tarso.

A dificuldade da compreensão reside em sua realização mesma; essa dificuldade cresce constantemente com a aproximação do fenômeno concreto. Ela é a dificuldade do transpor-se-para (Sich-hinein-Versetzens) <para a posição de Paulo>, que não pode ser substituída por nenhum fantasiar-se-de (Sich-hinein-Phantasieren), por nenhuma compreensão aproximativa (Anverstehen); o que se pede é uma realização (Vollziehen) genuína21.

É curioso que Heidegger reescreva aqui a famosa passagem do segundo volume das "Investigações lógicas", na qual Husserl introduz o motto da fenomenologia. Enquanto Husserl começa afirmando que "[s]ignificações que seriam vivificadas apenas por intuições longínquas, imprecisas, inautênticas, não podem nos interessar", Heidegger diz que a transposição não deve ser tomada por uma "fantasia" (como na transposição imaginária de Husserl perante um quadro de Veronese) ou uma "compreensão aproximativa". Husserl termina afirmando que "[...] nós queremos voltar às 'coisas mesmas'", enquanto Heidegger diz: "[...] o que se pede é uma realização genuína. "22 Mas o importante é compreender o que difere na reescrita heideggeriana. Enquanto que o slogan "de volta às coisas mesmas" promete um acesso pleno ao que se trata de pensar, Heidegger sublinha antes a dificuldade dessa tarefa. Os possíveis problemas para a efetivação do ideal da fenomenologia são, na frase de Husserl, exteriores à promessa de um retorno possível e necessário, enquanto que, em Heidegger, eles lhe são intrínsecos por crescerem "[...] com a aproximação do fenômeno concreto". Além disso, ele não emprega o termo "retornar", mas, "transpor". Isso não ocorre unicamente nessa passagem, pois, na imensa maioria das vezes em que se refere explicitamente ao motto da fenomenologia, Heidegger não emprega a expressão "de volta às coisas mesmas" ("auf die Sachen selbst zurückgehen"), mas dirá antes "às coisas mesmas" ("zu den Sachen selbst").

Pode-se especular que a noção de retorno enfatiza o direito de acesso aos fenômenos e a certeza de sua possível completude caso eliminemos impedimentos meramente exteriores, ao passo que na transposição temos um movimento que não se encontra previamente garantido de sua possibilidade nem de seu sentido. Heidegger não está empregando a noção de transposição em seu uso corrente de "sair de um lugar para outro", mas como um movimento aventuroso e indeterminado. Transposição é empregada, portanto, em contraste com a noção de um retorno previamente garantido. É justamente por isso que Heidegger enfatiza, nessa passagem, o problema de sua realização. Ele a compreende como algo que escapa ao modelo epistêmico que guia a fenomenologia husserliana da presença plena do fenômeno no ideal de uma visão em carne-e-osso.

Como a noção de transposição afeta o problema que a intencionalidade coloca para o pensamento? Isto é: como afeta a possibilidade do pensamento intencional se dissolver nas diversas tendências que passa a acompanhar? Para compreender isso, faremos uma breve comparação. Em nossa tradição, o problema que se coloca para o pensamento é justamente o oposto do colocado para a intencionalidade, pois a autorreferência do pensamento tende a tornar problemática sua relação com os objetos. É isso que Heidegger sublinhará a respeito de Kant no curso de 1925-1926, "Lógica, a questão da verdade": "O problema é: como pode o pensamento permanecer consigo mesmo em suas ações e, com isso, também se relacionar com objetos [...]?"23.

Essa passagem fornece uma espécie de demonstração de que a novidade possibilitada pela intencionalidade se opõe à tradicional proximidade a si do pensamento. Quanto mais se tem uma dessas tendências (retorno a si/abertura às coisas), mais dificilmente se tem a outra. A dificuldade que se coloca tradicionalmente para a filosofia é a de ter acesso aos objetos, pois, como mostra o paradigma do pensamento no livro Lambda 9 da "Metafísica" de Aristóteles, o retorno-a-si do pensamento tende à completude, tornando-o indiferente ao mundo. Por outro lado, a intencionalidade introduz a tendência oposta, pela qual ele se esgota no que procura pensar. O exemplo aqui não é mais Aristóteles, mas Sartre, que deduziu logicamente que a consciência não seria nada além daquilo que lhe é dado nos atos intencionais: que a consciência, portanto, é Nada. Frente a essas duas tendências, a transposição surge como uma qualificação do caráter tentativo de um pensamento que procura se aproximar do que se trata de pensar sem nele se perder, justamente porque o que deve ser pensado resiste.

 

4. Conclusão: por que transposição?

Como indicamos no início de nosso estudo, a palavra "transposição" não tem um sentido unívoco em Heidegger. Ela significa correntemente um deslocamento, um daqui para lá. No entanto, não é desse modo que Heidegger a emprega para tratar da intencionalidade. Ele jamais dissolverá inteiramente sua indeterminação e o máximo que podemos dizer a seu respeito é que ela surge em contraste com o ideal de um movimento seguro de seu resultado e de seu sentido.

Ora, se é assim, parece então que não se deveria empregá-la para falar acerca de uma questão tão precisa quanto a da intencionalidade. Seguimos esse caminho porque nas passagens que lemos, e em outras ainda, Heidegger pensa a intencionalidade a partir de uma transposição que guarda em si a questão de sua realização. Isso significa que a nova posição em filosofia prometida pela intencionalidade não tende a estabelecer o mundo como algo garantido. O fato de sua existência não estar mais em questão, como em momentos anteriores da filosofia, explica que podemos nos conduzir nele em uma série de movimentos felizes, bem-sucedidos e concordantes; mas não se deve negar que essa orientação também se faça pelo desvio, perda, erro e aporia. Com isso, se compreende que pensar seria dar continuidade ao caráter venturoso de nossa situação no mundo.

A ausência de discussão por Heidegger da palavra "transposição" talvez signifique que tenhamos nela uma espécie de limite de seu pensamento. Em certa medida, isso significa que nos movemos em torno de algo que não lhe é essencial, o que explicaria o fato de essa palavra não ter o estatuto de uma palavra fundamental de seu pensamento. É por esse motivo que esse problema foi discutido como constituindo um detalhe frente ao projeto heideggeriano. Mas, se considerarmos que seu projeto se realiza apesar da ausência de discussão dessa palavra, então temos que dizer que se temos aqui um limite este não é negativo, mas produtivo. E produtivo não apenas para Heidegger, mas também para quem queira se aprofundar em nossa situação.

 

5. Bibliografia

Heidegger, Martin. Die Grundbegriffe der Metaphysik, GA 29-30 (1929-1930). Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1983. (Conceitos fundamentais da metafísica. Tradução Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003).         [ Links ]

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Husserl, Edmund. Logische Untersuchungen II (1901), HUA 19. Tübingen: Max Niemeyer, 1968.         [ Links ]

________________. Phantasie und Bildbewusstsein. Phantasie, Bildbewusstsein, Erinnerung. Zur Phänomenologie der anschaulichen Vergegenwärtigungen, HUA 23 (1904-1905). Haia: Martinus Nijhoff, 1980.         [ Links ]

 

 

Endereço de correspondência
Tito Marques Palmeiro
E-mail: tito22mp@gmail.com

 

 

* Professor do departamento de filosofia da UERJ.
1 A publicação desses cursos foi iniciada em 1975, com "Os problemas fundamentais da fenomenologia" (1927, GA 25), e completada em 2002, com "Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica" (1924, GA 18).
2 Frühe Schriften (GA 1, 1913, p. 183): "Assim, insatisfeitos com a inclusão do "não" no predicado, nos vemos de volta ao ponto de partida." ("So sehen wir uns, unbefriedigt mit der Hineinnahme des "nicht" in das Prädikat, wieder auf den Ausgangspunkt zurückversetzt"). Todas as traduções para o português são de responsabilidade do autor.
3 Grifo do autor.
4 Nietzsche I (GA 06.1, 1936, p. 463): "Isto significa ao mesmo tempo que a filosofia de Nietzsche será expressamente (eigens) transposta para da única posição a partir da qual pode e deve desdobrar suas próprias forças de pensamento em uma confrontação que se tornou inevitável com a filosofia Ocidental anterior como um todo." ("Dies bedeutet zugleich: Nietzsches Philosophie wird damit eigens in diejenige Stellung versetzt, aus der heraus sie bei der unumgänglich gewordenen Auseinandersetzung mit der bisherigen abendländischen Philosophie im Ganzen allein ihre eigensten den- kerischen Kräfte entfalten kann und entfalten muss.")
5 Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache (GA 38, 1934, p. 58): "O pequeno e estreito nós do momento desta lição nos transpôs de um só golpe no povo; ou melhor, tornou claro que e como estamos transpostos no povo." ("Das kleine und enge Wir des Augenblicks der Vorlesung hat uns mit einem Schlag in das Volk versetzt, besser: uns klargemacht, daß und wie wir in das Volk versetzt sind.")
6 Conceitos fundamentais da metafísica (GA 29-30, 1929-1930, p. 309): "O que expressamos de modo formal até aqui, o fato de junto ao animal se dar em certa medida um ter-mundo, e, uma vez mais, um não-ter, mostra-se agora como um poder-conceder; e, em verdade, essencialmente como um poder-conceder a transposição, que segue junto com um precisar vedar o acompanhamento. Apenas onde se dá um ter dá-se um não-ter. E o não-ter no poder-ter é justamente a privação, a pobreza." Die Grundbegriffe der Metaphysik, p. 270: "Was wir bisher ganz formalistisch ausdrückten: beim Tier sei in gewisser Weise ein Haben von Welt und wieder ein Nichthaben, zeigt sich jetzt als ein Gewähren-können, und zwar wesenhaft ein Gewähren-können der Versetztheit, die mit einem Versagenmüssen eines Mitgehens zusammengeht. Nur wo Haben, da ein Nichthaben. Und das Nichthaben im Habenkönnen ist gerade das Entbehren, die Armut."
7
Phänomenologie des Religiosens Lebens (GA 60, 1920-1921, p. 88): "Wir haben noch einer methodischen Schwierigkeit zu gedenken. Man könnte sagen: Es ist unmöglich bzw. nur beschränkt möglich, sich in die genaue Situation des Paulus zu versetzen. Wir kennen ja gar nicht seine Umwelt."
8 Husserl, "Phantasie, Bildbewusstsein, Erinnerung" (HUA 23, p. 37): "Überhaupt mag das Spiel der Phantasie in Bewegung gesetzt werden, so dass wir uns in die Welt des Sujets hineinleben, wie wenn wir uns beim Anblick der Bilder eines Paolo Veronese versetzt fühlen in das prächtig-üppige Leben und Treiben der vornehmen Venetianer des 16. Jahrhunderts".
9"Phänomenologie des Religiosens Lebens" (GA 60, 1920-1921, p. 11): "Die Philosophie selbst ist nur durch eine Umwendung jenes Weges zu erreichen; aber nicht durch eine einfache Umwendung, so daß das Erkennen dadurch lediglich auf andere Gegenstände gerichtet würde; sondern, radikaler, durch eine eigentliche Umwandlung."
10"Zur Bestimmung der Philosophie" (GA 56-57, 1919, p. 3).
11"Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks" (GA 59, 1920, p. 8).
12"Einfuhrung in die Phänomenologische Forschung" (GA 17, 1923, §46b, p. 260): "Mit dieser Entdeckung der Intentionalität ist zum ersten Mal in der ganzen Geschichte der Philosophie ausdrücklich der Weg für eine radikale ontologische Forschung gegeben".
13"Einfuhrung in die Phänomenologische Forschung" (GA 17, 1923, §46c, p. 263): "Die Bestimmung der Intentionalität ermöglicht erst die phänomenologische Forschungsmethode; denn diese ist möglich, wenn mit der Reflexion der Akt, auf den reflektiert wird, präsent ist, das, worauf die Reflexion sich richtet, nicht der natürliche Gegenstand, sondern der Gegenstand im Wie seines Gemeintseins".
14
Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (GA 62), §25.
15
Nos Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica (GA 18).
16 Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56-57, 1919, p. 66): "Entscheidend ist: Das schlichte Hinsehen findet nicht so etwas wie ein 'Ich'. Ich sehe: Es lebt, und weiter, es lebt auf etwas hin, und dieses 'Leben auf hin' ist ein 'fragend Leben auf etwas hin'".
17 Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (GA 20, 1925, p. 40": "die Intentionalität die Struktur des Verhaltens selbst ausmacht".
18
Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (GA 20, 1925, p. 47): "daß die ganzen Beziehungen des Lebens in sich selbst durch diese Struktur bestimmt sind".
19
Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56-57, 1919, p. 110): "Dieser Urhabitus des Phänomenologen lässt sich nicht von heute auf morgen aneignen, wie man eine Uniform Anzieht, und er wird zur Form und führt zur Verdeckung aller echter Probleme, wenn er bloss maschinell, in der Weise eine Routine, gehandhabt wird".
20
Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (GA 20, 1925, p. 64): "Mit Anschauung im phänomenologischen Sinne ist kein besonderes Vermögen gemeint, keine exzeptionelle Art, sich in sonst verschlossene Gebiete und Tiefen der Welt zu versetzen".
21
Phänomenologie des Religiosens Lebens (GA 60, 1920-1921, p. 100): "Das Verstehen hat seine Schwierigkeit in seinem Vollzug selbst; diese Schwierigkeit wächst ständig mit der Annäherung an das konkrete Phänomen. Es ist die Schwierigkeit des Sich-hinein-Versetzens, das durch kein Sich-hinein-Phantasieren, kein "Anverstehen" ersetzt werden kann; gefordert ist ein eigentliches Vollziehen".
22
Husserl, Logische Untersuchungen II, HUA 19, p. 5-6: "Bedeutungen, die nur von entfernten, verschwommenen, uneigentlichen Anschauungen - wenn überhaupt von irgendwelchen - belebt sind, können uns nicht genug tun. Wir wollen auf die 'Sachen selbst' zurückgehen".
23 Logik. Die Frage nach der Warheit (GA 21, 1925-1926, p. 318): "Das Problem ist: Wie kann das Denken bei sich selbst bleiben in seinen Handlungen und sich dabei auch auf Objekte beziehen, d. h. in seinen Begriffen und Sätzen sachhaltiges aussagen?"

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