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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Freud e a destrutividade humana: todos os demônios pelas ruas

 

Freud and the human destructivity: all the demons on the streets

 

 

Eduardo R. da Fonseca

Docente e pesquisador da PUC-PR. E-mail: eduardorfonseca@uol.com.br

 

 


RESUMO

A pandemia e o isolamento social nos recolocaram velhas questões filosóficas e psicanalíticas ligadas à destrutividade humana e ao significado da cultura no conjunto da natureza. O negacionismo alimentado por informações falsas, especialmente, força-nos a pensar o papel da racionalidade nesse contexto e as razões pela quais as pessoas agem contra si mesmas, apesar de toda informação disponível que recomenda o isolamento como única alternativa à propagação do COVID-19. O objetivo deste artigo é refletir sobre essas questões e o que está no fundo destas, a saber, a irracionalidade inerente à existência e à vida dos impulsos do ponto de vista de Freud.

Palavras-chave: Repetição; Pulsão; Pandemia; Isolamento social; Destrutividade.


ABSTRACT

The pandemic and the social isolation brought us back to old philosophical and psychoanalytic issues linked to human destructiveness and the meaning of culture in nature as a whole. Denialism fueled by false information, especially, forces us to think about the role of rationality in this context and the reasons why people act against themselves, despite all available information that recommends isolation as the only alternative to the spread of COVID-19. The purpose of this article is to reflect on these issues and what lies behind them, namely, the irrationality inherent to the existence and to the life of impulses from Freud's point of view.

Keywords: Repetition; Drive; Pandemic; Social isolation; Destructivity.


 

 

"No homem tudo é natural e tudo é fabricado"

Maurice Merleau-Ponty

A pandemia e o isolamento social nos recolocaram velhas questões filosóficas e psicanalíticas ligadas à destrutividade humana e ao significado da cultura no conjunto da natureza, temas que, como sabemos, foram abordados por Freud em seu tempo. O negacionismo alimentado por informações falsas, especialmente, força-nos a pensar o papel da racionalidade nesse contexto e as razões pelas quais as pessoas agem contra si mesmas, expondo-se ao vírus, apesar de toda informação disponível que recomenda o isolamento social como única alternativa à propagação do COVID-19. Se existem milhões de pessoas que vivem em precária situação socioeconômica, apresentando dificuldade de efetivar o isolamento social, ainda que o quisessem, há também outras que, pura e simplesmente, não acreditam na gravidade do problema e nos riscos inerentes a ele, arriscando-se e arriscando a vida de outras pessoas com as quais insistem em conviver socialmente.

Meu objetivo é falar sobre esses fatos do ponto de vista freudiano, partindo de um comentário de Lacan no seminário 7, sobre a Ética (Lacan, 1988, p. 259), no qual ele diz que a pulsão, como tal, é pulsão de destruição e, por conta disso, vai além do retorno ao inanimado, é um querer destruir, uma vontade de destruição direta. "Vontade de recomeçar com novos custos", "vontade de outra coisa" (Lacan, 1988, p. 259), na medida em que tudo pode ser posto em causa pela função do significante. Mas ela é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar. Essa interpretação de Lacan, um tanto imprecisa, parece ter forte acento nietzschiano, do ponto de vista da Wille zur Macht, além de fazer a Bergson, do ponto de vista do élan vital, e a Schopenhauer, do ponto de vista do querer viver. Há, nessa concepção, portanto, certo vitalismo proveniente de discussões mais antigas e nem sempre vinculadas diretamente à psicanálise freudiana.

Em Freud, essa ambiguidade do pulsional precisa ser pensada de modo mais preciso, em seus diversos planos de concepção. Freud quer entender não apenas a dinâmica pulsional, mas também aquilo que se articula ao fundo dessa dinâmica e, nesse sentido, encontra a tendência de retorno ao inorgânico. Isso nos conduz ao terreno da especulação filosófica mais profunda acerca da vida e de uma possível entropia ao fundo de todo o processo, que nos conduziria a dois resultados possíveis, um de caráter teleológico, no sentido histórico, e outro de caráter intemporal, cíclico. De um ponto de vista teleológico, o alvo da vida seria a morte. E não se fala aqui da morte individual, mas, se considerarmos a sério essa hipótese, a vida poderia ser entendida como uma simples forma de resistência à tendência à desordem e de exaustão dos recursos energéticos que acomete o mundo físico. Nesse sentido, o impulso mais recente, o impulso à vida, trazido à luz por forças inimagináveis, seria meramente um volteio inútil, cuja significação seria fazer e manter por tempo determinado a oposição à indiferença e à inércia. Toda a normatividade da vida se daria no âmbito dessa tendência de retorno ao estado inorgânico da matéria. Do ponto de vista cíclico, dado em um âmbito mais próximo, o âmbito da existência, tanto há vida quanto há morte. Ao final dos ciclos vitais, o inorgânico recuperaria os seus direitos, retomando as rédeas do processo vital, conduziria o organismo à morte. Na verdade, nesse sentido, o inorgânico aparece como um estado originário, a partir do qual se iniciaria o circuito da existência orgânica, depois disso perpetuado através dos ciclos perenes entre vida e morte no âmbito da natureza.

Apenas ocorre que a morte é relativa, pois a vida persevera através das diferentes formas de reprodução. Uma vez iniciado o processo, este não teria mais nem fim nem começo, pelo que a vida se oporia à entropia crescente e, sob a marca de uma tal condição, os seres vivos se veriam diante da necessidade inconsciente de resistir à morte e à entropia do mundo físico através do estratagema da renovação da vida por meio da reprodução. Poderíamos entender esse estratagema como uma imortalidade potencial no âmbito da Humanidade e não a partir da simples individualidade, que está submetida à transitoriedade e à finitude. Então fica claro que a tendência pulsional a recomeçar a vida, a pagar o custo pela renovação da existência, dá-se em Freud de uma perspectiva determinada, ainda que ela interesse de modo especial à clínica proporcionando-lhe todo o seu significado que, no entanto, não pode desconsiderar por nenhum momento a tendência humana à destrutividade. A questão política que nos interessa sobremaneira ser pensada aqui é essa tendência que está sob a cadência da repetição, melhor dizendo, do automatismo de repetição, além do princípio de prazer, para além dos liames da existência, portanto, para além dos motivos conscientes e dos sentimentos que nos são acessíveis e que ecoam essa tendência à destrutividade em sua dupla via, de retorno ao inorgânico, vontade de pura e simples destrutividade, para além da significação. Um lugar onde a vida só pensa em morrer.

A psicanálise de Freud nos permite pensar a sociedade e as questões políticas a partir do tema do efeito civilizatório produzido pelas limitações que nos são impostas pela sociedade, senão para resolver nossos problemas no contexto político, ao menos para compreender melhor em que bases eles se dão, em que se fundamentam e tentarmos conceber, por conseguinte, nossas melhores possibilidades no âmbito da existência, tanto como existência pessoal objetiva, quanto como corpo social.

Além disso, no âmbito específico dos impulsos à vida como concebidos em Além do princípio de prazer (Freud, 1920), (Freud, 2010, p. 272) ainda que os guardiões da vida sejam também, originariamente, os serviçais da morte (Freud, SA III, p. 249.), podemos ainda assim organizarmo-nos provisoriamente de alguma forma para promover a vida, especialmente no que concerne às possibilidades do efeito sublimatório no contexto da clínica e da vida social comum. Mas, até mesmo o efeito sublimatório nos fala de uma renúncia à satisfação que nos cobra elevado preço em termos culturais, pois está fundada na renúncia pulsional que nos leva ao mal-estar e, novamente, à destrutividade. Seja no âmbito individual, seja no âmbito do coletivo.

A multidão, a massa, a técnica, a influência da propaganda, a manipulação, a conservação do humano por meios artificiais são temas que se relacionam intimamente uns com os outros no âmbito da psicologia de massas, em contraste com a psicologia individual. Ao fundo do comportamento das massas está um mundo psíquico originário que se mantém no inconsciente individual como uma camada especialmente antiga, um mundo de tendências pulsionais que representa, por decorrência, como que uma população primitiva no íntimo também da sociedade contemporânea, que nos reconduz a tendências afirmativas as quais se renovam e (re)tomam de assalto a realidade política mediante a mínima oportunidade. Tais são os temas do retorno da intolerância, a nova ascensão do fascismo no mundo atual, dos ideais autoritários e antidemocráticos, da manipulação das massas mediante as redes sociais de Internet e aplicativos de celular de comunicação multimídia instantânea. Disseminação de notícias falsas, contágio emocional, capilarização de influências através de formas sofisticadas de sugestão, formação e manipulação de opinião pública, a transformação da massa em entidade política atuante e definidora dos rumos da sociedade.

 

1. O problema da melhoria da sociedade

Não se pode resumir o problema político da sociedade à relação entre indivíduos, entre indivíduos e grupos ou entre grupos sociais. Para a psicanálise de Freud, o que define melhor as ações humanas são tendências inconscientes, o que, de um ponto de vista metapsicológico, são tendências pulsionais, estando entre elas a destrutividade que, por assim dizer, contradiz o otimismo em questões políticas. Em Die Zukunft einer Illusion (O futuro de uma ilusão), de 1927, Freud alude à cultura ou civilização (curiosamente não distinguindo as duas coisas) (Freud, 2010, p. 140) notadamente a partir de duas características, o conhecimento e a capacidade de regular o mundo pulsional. É isso o que torna possível o processo civilizatório e, por conseguinte, a cultura. Vemos que, para Freud, a renúncia pulsional impulsiona o processo civilizatório, por um lado, e as enfermidades psíquicas, por outro. Freud escreve que com o conhecimento se aprimora o processo de satisfação das necessidades, de extração de riquezas do mundo natural e, especialmente, da distribuição notadamente injusta das riquezas disponíveis. A desigualdade torna fundamentais "[...] todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros" (Freud, 2010, p. 141) e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível. A interdependência entre conhecimento e capacidade regulatória por leis e regulamentos é considerada pelo psicanalista porque as relações mútuas entre os homens são profundamente influenciadas pela quantidade de satisfação pulsional que a riqueza existente torna possível. Mas, há ainda outros fatores considerados por ele. Os homens podem ser eles mesmos fonte de riqueza para outros homens, seja ela de natureza econômica ou sexual. Além disso, para Freud, todo indivíduo é consciente ou inconscientemente um inimigo da civilização, ainda que também ame o que ela proporciona. Mesmo os homens sendo essencialmente seres gregários, esse gregarismo que nos é típico se torna um fardo para cada um, como está expresso na parábola dos porcos-espinhos de Schopenhauer (1844), citada pelo psicanalista vienense em Psicologia de massas e análise do eu (1920).

As pessoas tendem a buscar, desse modo, uma distância intermediária em relação às outras, o que é obtido por intermédio das leis e regulamentos, permitindo certa satisfação pulsional, por um lado, enquanto, por outro, exige renúncia e, infelizmente, na verdade, uma taxa de renúncia excessiva e incrementada pelas exigências supergoicas (o que evoca, filosoficamente, o nome de Nietzsche e de sua Genealogia da moral). Mas, enquanto alguns se restringem em demasia, ou são restringidos, outros gozam na abundância. Nesse caso, diante dessas limitações do processo, a civilização precisa também ser defendida contra o próprio indivíduo normalmente oprimido por ela. Esse é outro objetivo de seus regulamentos, instituições e ordens: "Visam não apenas efetuar certa distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade, têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da natureza e a produção de riqueza" (Freud, 2010, p. 115). Nesse sentido, há uma lembrança do caráter transitório dessas conquistas: "As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação" (Freud, 2010, p. 115). Essa é a base de sua argumentação também em outros pontos de sua obra. Por exemplo, em Transitoriedade, talvez seu mais belo texto.

O aperfeiçoamento das instituições humanas por intermédio da regulação do que é possível e do que é preciso reprimir não é o mesmo do que o que ocorre no âmbito do progresso tecnológico. Enquanto o primeiro é incerto, irregular e pode retroceder, o progresso tecnológico avança de modo irrefreável, pelo que a destrutividade se torna sempre mais e mais destrutiva por meios tecnológicos. Se fosse possível o fim da discórdia entre as pessoas, chegaríamos a uma era de ouro , mas tal coisa não lhe parece possível: "Acho que é preciso considerar o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, antissociais e anticulturais", e que, de modo geral, "essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana" (Freud, 2010, p. 141). Com isso, muito do que é empreendido ou é francamente fruto de ódio e ressentimento ou se baseia em ressentimento e autodestrutividade, mesmo quando aparentemente visa a melhoria da própria sociedade. Para o Freud de O futuro de uma ilusão, a questão política fundamental é de cunho psíquico. Trata-se de saber até que ponto é possível diminuir o ônus dos sacrifícios pulsionais impostos às pessoas, reconciliando-os com os líderes através das compensações recebidas pelos sacrifícios impostos. Controle e coerção seriam então essenciais ao processo civilizatório e, no caso das lideranças, isso deveria ser autoimposto. Trata-se da educação pelo exemplo, já que as pessoas tendem a perverter as leis e regulamentos e se apoiarem mutuamente nesse esforço de satisfação irrestrita. Mas, infelizmente, os próprios líderes cedem demais ao que é inapropriado no comportamento das massas, a fim de manter a sua influência e posição. Freud recusa a possibilidade de que corrigindo o tratamento dado às massas tudo se resolveria. Para ele, poder-se-ia perguntar de onde viriam os líderes superiores, inabaláveis e desinteressados, exigidos para educar as gerações futuras. E, mais ainda, seria talvez "[...] alarmante pensar na imensa quantidade de coerção que inevitavelmente será exigida antes que tais intenções possam ser postas em prática" (Freud, 2010, p. 142). Para ele, "[...] a grandiosidade do plano e sua importância para o futuro da civilização humana não podem ser discutidas" (Freud, 2010, p. 142). Seria, inclusive, algo alicerçado na descoberta psicológica segundo a qual o homem se acha aparelhado com as mais variadas disposições pulsionais, "[...] cujo curso definitivo é determinado pelas experiências da primeira infância" (Freud, 2010, p. 142). Mas, por outro lado, "[...] as limitações da capacidade de educação do homem estabelecem limites à efetividade de uma transformação desse tipo em sua cultura" (Freud, 2010, p. 142).

Em outro de seus textos, a famosa carta a Einstein que responde à questão "Por que a guerra?" ("Warum Krieg?"), Freud expõe que os impulsos de vida e de morte aparecem amalgamados nas ações humanas. E ressalta o quanto de agressividade se esconde no fundo dos impulsos altruístas.

Quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de desculpa para os desejos destrutivos; e, às vezes - por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição - é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente (Freud, 2010, p. 282).

Para Freud, ambos os impulsos apresentam um lado da verdade sobre as motivações humanas e há ainda o agravante de extração nietzschiana, que adverte sobre a agressividade que não se dirige ao exterior como deveria, mas sim para o íntimo de uma pessoa, alojando-se no torvelinho do peito. O nome dado a isso por ambos, Nietzsche e Freud, é ressentimento. O paradoxo da situação é o de que se a agressividade puder ser dirigida para fora isso seria em grande medida benéfico, pois o ressentimento é facilmente manipulado pelos inescrupulosos, desde que logrem oferecer um sacrifício à multidão. O ressentimento é o combustível que incendeia a sociedade e promove os tiranos, os quais direcionam esse ressentimento contra os supostos inimigos do povo que, na verdade, são meramente seus adversários.

Retomando a questão do ideal em política aludido na citação acima, não seria valioso coibir o poder bravio da Humanidade ou, dito à maneira freudiana, eliminar a agressividade das pessoas. Para Freud, o objetivo de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a igualdade e a satisfação das necessidades materiais dependeria de cuidadosa coerção e o ódio contra qualquer pessoa que não compartilhe da mesma forma de encarar as coisas. Tal coisa parece, aliás, bastante manifesta na cultura das redes sociais atuais, mas não é isenta de contradições.

Conclui-se de tudo isso que as conquistas culturais e civilizatórias se dão mediante coerção e legalidade, o que implica em pesados tributos em termos de satisfação de nossas necessidades pulsionais. E que esses tributos são derivados da capacidade simbólica dessa sociedade de se impor como legalidade frente ao indivíduo e que, desse modo, é apenas a "eficácia simbólica" (Lévi-Strauss, 1963, p. 186- 205) das palavras e imagens (leia-se, o seu poder de sugestão), o que permite, ao lado da força bruta, a regulação do desejo.

Em uma sociedade como a nossa, organizada justamente em torno de promessas de felicidade, harmonia e bem-estar social mediante a satisfação das necessidades materiais e, por outro lado, pela formação de imensas hordas de indivíduos despersonalizados, parece lógico que a força do ressentimento seja amplificada em demasia, bem como prevaleçam no indivíduo a ausência de sentido comunitário e, no conjunto da sociedade, o egoísmo coletivo (expressão criada por Schopenhauer para designar as formas sociais e corporativas do egoísmo). O que é a fonte de formas variadas de unilateralidade, de desigualdade e de autoritarismo. Desse modo, a nossa vida política é determinada por inclinações pulsionais que lhe antecedem e a direcionam para propósitos altruístas e não-altruístas que estão sempre amalgamados nas realizações humanas. Mesmo na democracia, essa situação também prevalece, ainda que, nesse caso,

apresente-se a considerável vantagem de se poder alterar as leis por representação popular. Mas, essa representação pode privilegiar certos desejos ligados a inclinações que negam o próprio processo civilizatório, entrando em flagrante contradição com a própria democracia. Ou seja, a missão da Humanidade de educar a si mesma de acordo com o aprimoramento das instituições não é fácil, caso sejam levadas em consideração as questões metapsicológicas mencionadas acima em alusão à obra de Freud.

 

2. Os problemas da elasticidade pulsional e da sublimação no contexto da tendência regressiva dos impulsos de vida e de morte

No oitavo capítulo de sua obra tardia e inacabada intitulada Esboço de psicanálise, Freud sugere que o íntimo de nosso ser é formado pelo obscuro Isso (Es), que não tem comunicação direta com o mundo externo e só é acessível, mesmo para o conhecimento através da psicanálise, mediante outro agente. Dentro de id operam os Triebe orgânicos que são, eles próprios, compostos de fusões de duas forças originárias, complementares, concorrentes e cooperativas chamadas amor e destrutividade. Tais forças aparecem em proporções que variam e se diferenciam umas das outras por sua relação com órgãos ou sistemas de órgãos. O único e exclusivo impulso desses instintos é no sentido da satisfação, a qual se espera que surja de certas modificações nos órgãos com o auxílio de objetos do mundo externo. Mas a satisfação imediata e desregrada dos representantes psíquicos dos impulsos, tal como o Isso exige, nos conduz com frequência a perigosos conflitos com o mundo externo e nos coloca, individual e coletivamente, frente ao risco de extinção. Essa explicação tardia do funcionamento pulsional é interessante por ser como um sedimento de concepções desenvolvidas por Freud às quais se apegou até o fim de sua vida.

É preciso considerar nesse contexto uma espécie de sociologia da vida psíquica mais íntima, na medida em que não há um único impulso sob a égide do Id, mas uma miríade deles. Essa dimensão por assim dizer sociológica da divisão de trabalho dos impulsos não pressupõe, em qualquer caso ou grupo social, a eliminação de um certo mecanismo automatizado, já que isso tem função de apoio em qualquer hierarquia possível, inclusive aquela que é interna ao próprio psiquismo, especialmente quando consideramos a consciência e as resistências que fundamentam o recalque e fazem do recalcado algo descrito por Freud como um "inconsciente dinâmico".

O corpo orgânico e o psiquismo a ele associado são, nesse sentido, sociedades de impulsos que configuram, em última instância, uma visão íntima da fisiologia do poder, que pressupõe uma aristocracia no corpo e, a partir da realidade orgânica, configuram também uma realidade psíquica fisiologicamente organizada e hierarquizada, o que forma o pano de fundo do processo civilizatório. Em suma, há impulsos dominantes e outros escravizados (impulsos reduzidos, por exemplo, à simples funcionalidade) e eles são concebidos também no âmbito da luta entre tendências opostas no interior do próprio psiquismo.

Nesse sentido, podemos considerar também em que medida a forma de organização dos afetos favorece a vida e em que medida favorece a sua depreciação, tendo em vista a orientação das tendências psíquicas nos âmbitos coletivo e individual. Trata-se de uma questão política, mas também de saúde pública.

A questão é que os mesmos impulsos que favorecem a vida, os impulsos sexuais, são também fonte de prejuízos à conservação individual e também um risco coletivo, mediante o projeto humano de realização de desejos (o "programa" do princípio de prazer). Por outro lado, a repressão dos desejos, a repressão das tendências afirmativas do indivíduo, conduz aos sintomas psíquicos (bem como aos físicos), ao mal-estar na cultura, considerados por Freud os males inevitáveis que alimentam o ódio e o ressentimento contra a sociedade organizada, já mencionados anteriormente.

Essa realidade inerente aos impulsos de vida, que é a de estarem amalgamados aos de morte através da agressividade e unilateralidade de sua afirmação, impõe uma grande elasticidade de funcionamento às tendências primitivas de afirmação no íntimo do psiquismo. Para Freud, isso permitirá distinguir uma nova apreciação da dualidade dos impulsos fundamentais frente à característica regressiva universal dos impulsos nomeada a partir de Além do princípio de prazer (1920). Freud fala de um ritmo alternado na vida dos impulsos. O grupo dos impulsos de morte intensifica esforços no sentido de alcançar o mais breve possível o objetivo final da vida, a morte. Por outro lado, os impulsos de vida, após chegarem a um determinado ponto de sua trajetória, se apressam a buscar o objetivo de prolongar a duração do trajeto (Freud, SA III, p. 250). A conclusão de Freud a partir dessa concepção é a de que, a partir daquele mítico momento originário em que a substância inorgânica adquire a tensão que é peculiar à vida, o dualismo tenha se estabelecido e os impulsos de vida tenham entrado em ação, "ainda que no início da vida não tenha existido uma sexualidade e tampouco a diferença entre os sexos" (Freud, SA III, p. 251).

Em Freud, o corpo é não somente a fonte dos impulsos, cuja principal propriedade é a sua força constante, mas também a origem da tendência regressiva ou conservadora destes, impelindo-os a alcançar um fim antigo por caminhos tanto conhecidos quanto novos (Fonseca, 2012, p. 316.). Esse fim último de toda existência orgânica é indicado, essencialmente, como a tendência de retorno ao inorgânico. Os impulsos que visam à morte, visíveis na compulsão à repetição e na agressividade, buscam o fim antigo diretamente, enquanto seus derivados mais recentes lidam com o problema da vida, tentando conduzir o organismo ao estado inorgânico apenas após a afirmação provisória da vida individual.

Essa afirmação e o possível refinamento do processo de afirmação mediante o princípio de realidade que conduzem à sublimação sofrem com as vicissitudes inerentes ao fato de que os seres humanos apresentam capacidades muito desiguais no que concerne à sublimação, entendida aqui como uma forma de afirmação do desejo mediante a sua transformação que, à diferença do sintoma psíquico, não pressupõe resistência e por isso fura o bloqueio da repressão. A relação do sintoma com a sublimação é de tal natureza que, como em outras situações da análise freudiana da natureza do psiquismo, não está isenta de contradições. Pois, se um impulso é sublimado e permite individualmente a superação de uma resistência psíquica, construindo realidades psíquicas e realizações culturais elevadas, se tornam, por outro lado, um fardo para a Humanidade. Isso porque representam, muitas vezes, formas de existência incompatíveis com a capacidade de milhões de indivíduos menos capacitados para a sublimação, gerando infindáveis sintomas psíquicos por decorrência do efeito civilizatório da sublimação. O que para um liberta, para outro escraviza.

Freud percebe essa ironia em relação às possibilidades de sublimação dos impulsos do ponto de vista de sua insuficiência: "Talvez seja difícil para muitos de nós renunciar à crença de que o ser humano possua uma pulsão que busca o constante aperfeiçoamento" e que proporcionou à humanidade o seu atual "nível de produção intelectual e de sublimação ética" (Freud, SA III, p. 251). e da qual se espera que propicie a transformação do ser humano em um além-do-homem (Übermensch). Seu ponto de vista é comedido, pois diz não acreditar em um impulso interno dessa natureza, além de não considerar possível preservar essa ilusão consoladora. Isso porque ele compreende o progresso civilizatório como resultado das restrições autoimpostas pela humanidade:

A incansável necessidade de contínuo aperfeiçoamento que se observa em uma minoria de pessoas pode ser facilmente compreendida como consequência do recalque pulsional (Triebverdrängung) sobre o qual está edificado o que há de mais valioso na civilização" (Freud, SA III, p. 251).

Conclui-se que a sublimação não pode nunca ser suficiente para substituir as experiências diretas ou primárias de satisfação e com isso remover a tensão contínua à qual o psiquismo está submetido. É da diferença entre o prazer efetivo obtido pela satisfação e o prazer esperado que surge o fator que impulsiona o organismo e não permite que as pessoas estacionem jamais (Freud, SA III, p. 165).

A sublimação é considerada por Freud como um mecanismo psíquico originário ligado às modificações da substância viva, mas que só adquire sua relevância como processo de transformação em função das exigências civilizatórias relacionadas ao recalque. Se Freud admite a vantagem da sublimação e a flexibilidade dos deslocamentos que esta proporciona para o refinamento da experiência e o aperfeiçoamento dos padrões culturais em certas direções, sugere também, por outro lado, que elevados níveis de sublimação não são uma característica comum na maioria dos casos de seres humanos tomados do ponto de vista individual. A massa da humanidade está presa à tentativa de satisfação direta dos impulsos primitivos, o que entra em choque com a noção de aperfeiçoamento cultural e resulta, como foi dito anteriormente, em enfermidades psíquicas. É por isso que Freud considera a cultura como se fosse uma fina camada de civilização sobre o mundo primitivo dos impulsos originários. Isso certamente dificulta uma visão de progresso social a partir da lógica inerente à metapsicologia e, especialmente, à teoria dos impulsos e da sublimação como destino preferencial do mundo dito civilizado, que se choca contra as tendências egoístas de afirmação individual e coletiva. Se as condições dinâmicas que permitem a capacidade sublimatória estão presentes em todos nós, apenas em raros casos as condições econômicas favorecem esse fenômeno.

 

3. Política e psicologia de massas

Há duas outras questões interessantes a respeito de política e psicanálise freudiana. A primeira delas é a que interroga acerca da dissolução do indivíduo na massa e a segunda, correlata à primeira, a da necessária opressão da maioria pela minoria. Quanto à primeira questão, esta já aparece na obra de Freud em 1890, no texto Psychische Behandlung (Seelenbehandlung) [1890/ 1905], ou Tratamento psíquico(Tratamento anímico). Nesse texto, ele escreve que "[...] todas as afecções anímicas de cada ser humano podem ser imensamente ampliadas por esse efeito das massas (Massenwirkung)" (Freud, 2010, p. 24). Quanto à segunda questão, citamos como exemplo a 35ª de suas Novas conferências introdutórias. Nessa conferência, Freud, como em O Futuro de uma Ilusão, menciona que é impossível prescindir da coerção para educar as massas, da proibição contra o pensamento ou do emprego da força ao ponto de derramar sangue para estabelecer formas de controle social. Se não fossem despertadas ilusões nas pessoas, elas não concordariam com a coerção que contraria seus interesses pessoais. Nesse sentido, é interessante observar o conteúdo da crítica de Freud à revolução e ao regime comunista russo de sua época: "Embora o marxismo prático tenha varrido impiedosamente todos os sistemas idealísticos e as ilusões, ele próprio desenvolveu ilusões que não são menos questionáveis e merecedoras de desaprovação do que as anteriores" (Freud, 2010, p. 606). A crítica se baseia na expectativa desse "marxismo prático" de alterar a natureza humana, no curso de umas poucas gerações, de tal modo que as pessoas poderiam então viver juntas em harmonia na nova ordem da sociedade e que, dessa forma, poderiam assumir as tarefas do trabalho sem qualquer coerção. Para Freud, a estratégia consistiria em redirecionar as restrições pulsionais que são essenciais na sociedade: "[...] desvia para o exterior as tendências agressivas que ameaçam todas as comunidades humanas e apoia-se na hostilidade do pobre contra o rico e na hostilidade daquele que até então esteve impotente contra os governantes anteriores" (Freud, 2010, p. 607). Mas, escreve ele, uma transformação da natureza humana como essa seria altamente improvável.

De fato, entre a idealização do projeto e a sua execução, algo parece não ter dado certo. Em tempos de governo Putin, percebe-se a dificuldade inerente à transformação coletiva da humanidade. Talvez a mais veemente prova de que a vida pulsional é indômita reside na ironia contida no fato de que a Praça Vermelha abriga atualmente centros comerciais riquíssimos nos quais se localizam, por sua vez, as principais marcas do mais sofisticado comércio mundial. O entusiasmo com que a massa do povo seguia a "[...] instigação bolchevista", no tempo de Freud, "[...] enquanto a nova ordem estava incompleta e ameaçada de fora", não oferecia, é claro, "[...] nenhuma certeza para um futuro no qual estaria completamente construída e isenta de perigos" (Freud, 2010, p. 607). Para o psicanalista, exatamente da mesma forma como a religião, o "[...] bolchevismo" também precisou "[...] oferecer aos seus crentes determinadas compensações pelos sofrimentos e privações de sua vida atual, mediante promessas de um futuro melhor", onde não haveria mais qualquer necessidade insatisfeita. Nesse tipo de crença, no entanto, o paraíso precisaria se localizar nesta vida, "ser instituído sobre a terra e ser descerrado num tempo previsível" (Freud, 2010, p. 607). Ao final, restaram apenas os templos sagrados da voracidade no lugar dos ideais de transformação da humanidade. Não há dúvida quanto à maneira como o regime russo de Stalin respondeu a essas objeções. Se por enquanto a natureza dos homens ainda não se transformou, seria necessário empregar os meios que ele de fato utilizou para garantir seus resultados. Ao final, parece mesmo ser impossível prescindir da coerção e de ilusões para conduzir as pessoas, ainda que o resultado seja sempre incerto. Os homens comuns são influenciáveis e costumam preferir promessas de gozo imediato a construir a bem-aventurança futura, bem como costumam desprezar solenemente o caminho seguro que os levaria às luzes da racionalidade e da civilização:

Se não fossem despertadas neles as ilusões, não se poderia levá-los a concordar com a coerção. [...] Existem homens de ação, inabaláveis em suas convicções, inacessíveis à dúvida, destituídos de sentimentos pelo sofrer dos outros que se opõem às suas intenções. É a homens dessa espécie que temos de agradecer o fato de que o terrível experimento de produzir uma nova ordem desse tipo esteja sendo posto em prática, atualmente, na Rússia. Numa época em que as grandes nações anunciam que esperam a salvação apenas da manutenção da fé cristã, a revolução na Rússia - apesar de todos os seus detalhes desagradáveis - assemelha-se, não obstante, com uma mensagem de futuro melhor. Infelizmente nem o nosso ceticismo, nem a fé fanática do outro lado fornecem uma indicação de como será o desfecho desse experimento. O futuro nos dirá; talvez venha a mostrar-nos que o experimento foi empreendido prematuramente, que uma modificação radical da ordem social tem escassas perspectivas de êxito até o momento em que novas descobertas tiverem aumentado nosso controle sobre as forças da natureza e, dessa forma, tiverem tornado mais fácil a satisfação de nossas necessidades. Talvez somente então se tornaria possível que uma nova ordem social não só dê um fim às necessidades materiais das massas, como também se disponha a ouvir as exigências culturais do indivíduo. Mesmo então, na realidade ainda teremos de lutar, durante um tempo incalculável, com as dificuldades que o caráter indomável da natureza humana apresenta a qualquer espécie de comunidade social (Freud, 2010, p. 608).

Esses "Männer der Tat" aos quais Freud se refere às vezes são de fato grandes homens, ainda que não necessariamente homens mais civilizados. Mas é digno de nota a influência que exerce sobre a massa, a qual não se dá por coerção, mas desperta o entusiasmo arrebato mencionado acima.

Em seu Der Mann Moses und die monotheistische Religion: drei Abhandlungen (1938), ou simplesmente Moisés e o monoteísmo, Freud sugere que um grande homem influencia seus semelhantes de duas formas: "por sua personalidade e pela ideia que ele apresenta" Freud, 2010, p. 555). Essa inspiração por uma ideia pode acentuar alguma fantasia antiga das massas, apontar um novo objetivo para direcionar seu desejo ou "lançar de algum outro modo seu encantamento sobre as mesmas" (Freud, 2010, p. 555). Em certos casos, no entanto, a personalidade funciona por si só e a ideia desempenha um papel secundário.

Para o psicanalista, a importância do grande homem se dá porque na massa humana "existe uma poderosa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, perante a qual nos curvemos, por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados" (Freud, 2010, p. 556). Nesse sentido, Freud ressalta o pedido popular pela lei paterna, esse pai decidido, plenipotente, perfeitamente capaz de autonomia e independência, mas também "sua indiferença divina que pode transformar-se em crueldade. Tem-se de admirá-lo, pode-se confiar nele, mas não se pode deixar de temê-lo, também" (Freud, 2010, p. 556). Mesmo que possamos eventualmente não concordar com a importância que a ordem patriarcal tem para o modelo psíquico e social do freudismo, precisamos reconhecer que a ordem patriarcal em si mesma pode ser substituída, por exemplo, por uma ordem corporativa na qual a força não se concentra propriamente no grande homem em si, mas no poder que a própria corporação representa, satisfazendo igualmente ao desejo humano de se submeter a uma ordem superior que pareça poder oferecer proteção e segurança na longa noite do mundo. A adesão atual das pessoas comuns às ideologias da agonia e da crueldade com o mesmo entusiasmo com que no passado já abraçaram outras causas semelhantes, com resultados que provavelmente serão igualmente penosos e insuficientes, parece simplesmente confirmar a necessidade popular de submissão a uma ordem superior que pareça ser capaz de exercer seu poder contra seus inimigos e proteger seus aliados. No mesmo texto, de 1938, Freud (2010) faz também uma crítica a outros regimes totalitários, em especial ao fascismo italiano e ao nazismo germânico: "Com violência semelhante, o povo italiano está sendo treinado na organização e no sentido de dever". No caso do povo alemão, ele observa "uma recaída numa barbárie quase pré-histórica" que "não está ligada a quaisquer ideias progressistas" (Freud, 2010, p. 504). Tudo isso se baseia no mesmo poder ordenador que opera por coerção e por violência com apoio em ideais elevados, como no caso da Rússia, ou sem a necessidade desse apoio, como no caso do nazifascismo. Já no caso do consumismo contemporâneo, há outra forma de coerção e de violência que se anuncia.

É conveniente ressaltar a expressão mencionada acima: lançar um encantamento sobre as massas. Na verdade, isso é feito desde que o mundo é mundo, mas adquiriu grande requinte na Alemanha nazista que queimou os livros de Freud. Esse aspecto não pode ser negligenciado, pois, ao lado das formas violentas e explícitas de dominação, existem outras mais sutis, mais brandas, que não são facilmente percebidas como dominação, a saber, as formas estéticas e atraentes que, no tempo de Freud, estavam representadas exemplarmente pela máquina de propaganda de Hitler. Esta forneceu as imagens apropriadas para apoiar o culto ao nazismo, cujos efeitos reverberam até hoje, uma vez que toda propaganda feita atualmente segue o mesmo princípio e se mostra camuflada e charmosa por intermédio da tecnologia e suas seduções. Essa é uma arte sutil de coerção imperceptível que opera através do conhecimento psicológico e científico de um modo geral e que, por isso, funciona de modo ainda mais eficiente do que a dominação por coerção, fazendo com que as pessoas desejem a dominação e percebam o agressor como um benfeitor das massas. Mesmo a psicanálise foi e é estudada com o intuito de aperfeiçoar o aparato de dominação que hoje ultrapassou os recursos do cinema e da televisão e se baseia especialmente nos aplicativos de celular, na sua instantaneidade e poder viral. A violência agora aparece disfarçada, mas não deixa de ser violenta. Há algo nesse processo, por ser acumulativo, que excede o humano e as intenções humanas. Torna-se algo que poderíamos considerar verdadeiramente demoníaco, no sentido baudelairiano. Para o poeta francês, uma das artes do demônio seria a de convencer as pessoas de sua inexistência.

 

4. A lógica recorrente da vida política

De um ponto de vista freudiano, há uma circularidade nos processos fundamentais da vida. Os acontecimentos passados tendem a ser atualizados sob novas roupagens e, no mesmo sentido, os insucessos presentes determinam a regressão a estados anteriores de desenvolvimento da libido. As marcas afetivas tendem a se preservar e podem ser rastreadas no sentido histórico genealógico rumo a acontecimentos muito primitivos que se lastreiam na pré-história humana. Há toda uma "população primitiva" no inconsciente, impulsos antigos que sofreram repressão e vez por outra afloram à consciência e têm acesso à realidade. Logicamente isso se transfere à esfera pública, pois existem bilhões de seres humanos sobre a Terra, cada qual submetido à própria configuração psíquica e sofrendo a influência recíproca de todos os outros. E esse é um ponto fraco do indivíduo. A sua capacidade de, num certo sentido, perder a si mesmo. O poeta francês Charles Baudelaire escreveu que nem todos são capazes de tomar um banho de multidão. Para isso é preciso um certo distanciamento, é necessária uma apreciação estética, porém com relativa independência de espírito. Pelo menos a ponto de não esquecer a própria individualidade. Existem experimentos de conformidade feitos atualmente através dos quais se constata a mesma coisa: o ser humano tende a se perder na massa, esquecendo as suas crenças antigas e mesmo o que considera a verdade com a intenção de ser aceito pelo grupo a que deseja pertencer. Assim também acontece com o mecanismo de formação de seitas e o corporativismo. São sempre baseados nesse mesmo mecanismo pré-histórico. Na suposição de Freud, isso se dá porque o eu humano é apenas uma pobre entidade psíquica sujeita a toda sorte de vicissitudes, especialmente o retorno de sua agressividade, de sua raiva, de seu ódio, de sua vontade de poder, contra si mesmo1.

Em vista desse estado de coisas, Freud vai considerar o Eu humano, em O Eu e o Isso (1923), um "pobre-coitado" (literalmente, uma "pobre coisa" ou, em alemão, armes Ding). O Eu humano não serve apenas a dois senhores, o "mundo externo" e o seu mundo interno indômito representado pelo Isso. Ao incluirmos o Supereu como variável, temos que considerar as coisas de outra maneira, e diremos então que oEuserve, na verdade, a três diferentes senhores (Freud, SA IIIp. 322). Freud fala literalmente em três servidões (dreierlei Dienstbarkeiten). Essas três servidões correspondem a três diferentes perigos (dreierlei Gefahren), a libido, o mundo externo e a severidade do Supereu. Correspondem também a três tipos de medo (dreierlei Arten von Angst), pois a cada vez que um desses senhores for privilegiado pela intermediação do Eu, os outros cobrarão seu tributo em dor e sofrimento. Por isso, em sua condição trágica entre o Isso, a realidade e a destrutividade do indivíduo que reflui contra o próprio indivíduo, o Eu acaba por "[...] ceder inúmeras vezes à tentação de se tornar servil, oportunista e mentiroso, tal como um político" que contraria o que conhece para ficar bem com a opinião pública (Freud, SA III, p. 322). Nisso se baseiam as experiências de conformidade que a psicologia faz hoje em dia, bem como o senso comum. O efeito prático são coisas como as que vemos ser potencializadas pela comunicação instantânea por meios digitais, que viralizam esse senso comum e achatam mais ainda a conformidade, despersonalizando o sujeito em níveis verdadeiramente pré-históricos. Isso abre contingência para que aflorem novos líderes tirânicos, a partir do estreitamento dos laços libidinais e da despersonalização das pobres entidades egoicas humanas.

Há um escrito de Freud que analisa extensamente o fenômeno da horda humana e a oposição que podemos supor existir baudelaireanamente entre massa e indivíduo. Trata-se de Massenpsychologie und ich-analyse (Psicologia de massas e análise do eu [1921]). Nesse texto, Freud escreve que o indivíduo absorvido pela massa tende a se submeter cegamente à emoção em meio à multidão e ter a sua capacidade intelectual reduzida por efeito de sua aproximação aos outros indivíduos e pela organização coletiva que prepondera sobre a sua individualidade. Nesse sentido, o que une a massa, como foi dito acima, são laços libidinais. Se comumente há sempre certa hostilidade nas relações humanas, mesmo entre as pessoas queridas, esta se dissolve completamente na adesão à massa que, na opinião de Freud, reproduz o comportamento gregário das comunidades totêmicas primitivas descritas em Totem e Tabu e em Psicologia de Massas. Nesse sentido, a Humanidade ainda responderia às mesmas tendências antigas que um dia prevaleceram na horda primitiva. Assim, para Freud tudo isso corresponde a um estado de regressão a uma atividade mental primitiva da mesma espécie que atribuía ao ser humano pré-histórico. Esse universo ligado ao poder e à sedução, mesmo que consideremos a narrativa do patriarca da horda primitiva como uma fantasia genealógica, certamente serve como metáfora para pensarmos a recorrência da vida social humana, que nos parece condizer com a noção de laços libidinais, regressão e esvaziamento das características individuais no âmbito das massas. Isso parece ser o mesmo que o jovem Nietzsche escreve em sua lição inaugural, Homero e a filologia clássica (1869). Nesse texto filológico, Nietzsche descreve os grandes Masseninstinkte e os Triebe populares inconscientes (Nietzsche, 2006, p. 169). Eles não cedem ao bom senso, mas arrastam as multidões para uma direção inconscientemente escolhida, para o mesmo futuro que já estava no passado. Nesse sentido, se pensarmos não no conteúdo das fantasias coletivas ou no esvaziamento dessas fantasias, mas na lógica pulsional inerente a elas, veremos sempre o mesmo drama sendo encenado em sua dantesca circularidade, sendo esta baseada, por um lado, na afirmação da vida e, por outro, na destrutividade. O indivíduo efêmero desaparece e, ao fundo dele, emerge o leviatã coletivo, seja ele racial, corporativo ou nacional. Também as questões morais e de gênero merecem ser pensadas sob essa perspectiva. A lei moral e um céu estrelado presos no torvelinho do peito. Nesse sentido, cada onda que surge na praia do psiquismo humano é ainda o grande oceano primitivo da alma coletiva, que de certa forma sempre esteve ali e permanecerá banhando a terra do espírito humano depois que partirmos.

 

Referências bibliográficas

Fonseca, E.R. (2012). Psiquismo e vida: Sobre a noção de Trieb nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche. Curitiba: Editora UFPR, 2012.         [ Links ]

Freud, S. (1999). Die S Freud-Studienausgabe [SA], 11 vols. 2a ed. Munique: DTV/ de Gruyter, 1999.         [ Links ]

Freud, S. (2010). Das Werk [DW]. Berlin: HeptagonVerlag (edição eletrônica). A paginação desta edição equivale à da Die S Freud-Studienausgabe.         [ Links ]

Freud, S. (2020). Moisés e o Monoteísmo. Cultura, Sociedade, Religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. (Coleção Obras incompletas de Sigmund Freud). Belo Horizonte: Autêntica, 2020.         [ Links ]

Freud, S. (1963). Psicologia das massas e análise do eu. Massenpsychologie und IchAnalyse. Studienausgabe. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1982. Band 9.         [ Links ]

Lévi-Strauss, C. Structural Anthropology. London: Basic Books, 1963.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2006). Homero e a filologia clássica. Trad. Juan Bonaccini (modificada). Princípios, Natal, v. 13, n. 19-20, jan./dez. 2006, p. 169-99.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2003). Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.         [ Links ]

 

 

Recebido em 10/10/2020
Aprovado em 13/11/2020

 

 

1 Para mais sobre o assunto, consultar Fonseca (2012, p. 122-6).

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