Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva
versão impressa ISSN 1517-5545
Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.11 no.2 São Paulo dez. 2009
ARTIGOS
Estudo de caso: treino cognitivo de controle da raiva em paciente com hipertensão leve
Case study: anger management training of a hypertensive patient
Marilda Emmanuel Novaes Lipp1,2; Ana Carolina Cabral3; Taísa Borges Grün4
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é apresentar o estudo de caso de um participante do grupo de Treino Cognitivo de Controle da Raiva desenvolvido por Lipp. Foi testada a hipótese de que o TCCR reduziria o stress das relações interpessoais e também a reatividade cardiovascular durante momentos de stress. Instrumentos utilizados: Inventário de Expressão de Raiva Traço e Estado - STAXI; Inventário de Sintomas de Stress para Adultos ISSL; monitor de pressão contínua e de freqüência cardíaca FINAPRES. Os resultados indicaram diminuição da raiva estado e traço, temperamento e reação, raiva para fora, controle e expressão da raiva; diminuição do percentual de stress e pressão arterial apresentados pelo participante durante as sessões experimentais; diminuição dos comportamentos de raiva e aumento dos comportamentos de ação responsável ao longo das intervenções. Conclui-se que a modificação dos comportamentos alvos do participante indica a efetividade do TCCR para o controle da raiva e do stress.
Palavras-chave: Treino Cognitivo do Controle da Raiva; Stress; Raiva; Hipertensão arterial; Estudo de caso.
ABSTRACT
The objective of the present work is to present a case study of one of the participants of the Anger Management Training program developed by Lipp. The hypothesis tested was that anger management training would reduce interpersonal stress as well as cardiovascular reactivity during moments of stress. The psychological evaluation used the State-Trait Anger Inventory and the Lipp Stress Symptom Inventory. Finger blood pressure and heart rate were monitored continuously during the laboratory session using the Finapress methodology. Results indicated a significant decrease in several of the anger sub-scales, such as state, trait, temperament, reaction, anger-out, control and expression of anger. They also showed decreases in stress levels and blood pressure reactivity during the experimental sessions. Analyses of the transcript of the anger management sessions revealed a decrease in anger behavior and an increase in appropriate actions. It was concluded that the changes in target behavior shown by the participant indicate the effectiveness of the training in reducing stress and anger.
Keywords: Anger Management Training program; Stress; Anger; Hypertension; Case study.
Segundo Hans Selye (citado por Lambert & Kinsley, 2006; Lipp, 1996), o stress envolve uma série de sintomas que o indivíduo apresenta quando submetido a situações que exijam uma importante adaptação do organismo para enfrentálas e se divide em três fases: alerta (quando o indivíduo entra em contato com sua fonte de stress e ocorre a perda da homeostase); resistência (o indivíduo tenta se recuperar do desequilíbrio sofrido na primeira fase, gerando desgaste); exaustão (o indivíduo não consegue retomar a homeostase, os sintomas aparecem agravados, há um maior comprometimento físico em forma de doenças).
Lipp (2003) apontou a existência de uma quarta fase do stress, a fase de quase-exaustão. Nessa fase, embora a pessoa apresente desgaste e outros sintomas, ainda consegue trabalhar e atuar na sociedade até certo ponto, porém, os problemas não são tão graves quanto em exaustão. Essa quarta fase veio de encontro à dificuldade encontrada na classificação da fase de resistência, proposta por Selye, que era muito extensa e apresentava momentos distintos.
O stress pode ser um dos maiores fatores de risco para a vida e para a qualidade de viver. A pessoa estressada não se sente bem, não consegue trabalhar de acordo com seu potencial, não se relaciona adequadamente com os outros, não tem a motivação necessária para alcançar seus objetivos e corre um grande risco de adoecer. Alguns dos distúrbios freqüentemente mencionados como tendo associação com altos e contínuos níveis de stress são: gastrite/ úlcera, problemas dermatológicos (herpes, dermatite, urticária, psoríase e vitiligo), variações da pressão arterial, ansiedade, depressão, dificuldades sexuais, dentre outros (Lipp, Malagris & Novais, 2007).
Lambert e Kinsley (2006) colocam que quando a resposta ao stress não pode ser eliminada, o sistema imune é suprimido, o que leva à maior vulnerabilidade a doenças. Além disso, os autores apontam que o sistema cardiovascular é ameaçado pelo stress crônico, pois a pressão elevada e a freqüência cardíaca acelerada por longos períodos desgastam o músculo cardíaco.
Vários estudos que se referem à pressão arterial encontraram que hipertensos apresentam aumento significativo da pressão arterial em resposta ao stress. Alguns autores (Lipp, Malagris e Novais, 2007; Lovallo, 1997; Ribeiro e Brunini, 2003) sugerem que se esses aumentos ocorrerem com muita freqüência, as pessoas com uma predisposição genética à hipertensão correriam alto risco de desenvolverem hipertensão no futuro, ou seja, a reatividade cardiovascular exagerada teria como conseqüência um aumento do risco de doença cardiovascular no futuro.
Muitos são os fatores capazes de produzir reatividade cardiovascular excessiva, tais como a desregulação emocional produzida pelo sentimento de raiva. Por exemplo, McKay, Rogers e McKay (2001) mostraram que o stress gerado pela experiência da raiva produz uma reação hormonal que inclui elevados níveis de testosterona (nos homens), epinefrina, norepinefrina e cortisol. A produção crônica desses hormônios aumenta o risco de aterosclerose e deprime o sistema imunológico, deixando o organismo mais sujeito ao adoecimento.
A raiva tem sido muito estudada nos últimos tempos principalmente por acarretar grandes problemas no campo social, além do impacto que tem na saúde. No campo social a raiva aparece muito associada a relacionamentos conturbados, violência na família, altos índices de divórcio e perda de emprego. Já no que se refere à saúde, ela é um fator de risco para depressão, doença coronariana, úlceras, morte prematura e suicídio (Lipp, 2005).
Já em 1939, Franz Alexander (apud McKay et al., 2001) observou que os hipertensos parecem estar sempre em conflito quanto ao sentimento de raiva e têm dificuldade em expressá-la, havendo, no momento de raiva, uma correspondente ativação crônica do sistema nervoso simpático capaz de causar uma elevação da pressão arterial. Outros pesquisadores têm mostrado que pessoas com comportamentos mais agressivos e que demonstram mais hostilidade têm pressão mais alta do que pessoas que guardam a raiva ou que têm uma atitude de reflexão frente a esse sentimento (Lambert & Kinsley, 2006; McKay et al., 2001).
Nesse sentido, Lipp (2005) também verificou em suas pesquisas que a raiva é um traço marcante na população de hipertensos. Verifica-se que vários estudos têm apontado a raiva como um fator de risco para o desenvolvimento da hipertensão (Jorgensen, Johnson, Kolodziej & Schreer, 1996), doença coronariana (Houston, Chesney, Black, Cates & Hecker, 1992) e morte prematura (Barefoot, Dodge, Peterson, Dahlstrom & Williams, 1989).
Segundo Spielberger e Biaggio (1992), a raiva é o estado emocional que abrange sentimentos que variam desde aborrecimento leve até fúria e cólera intensas, acompanhados por estimulação do sistema nervoso autônomo. Ela ocorre quando uma pessoa se sente ameaçada em seu poder, injustiçada, acuada ou frustrada em algo que lhe seja importante. Nesse sentido, a raiva tem a função de proteção.
Spielberger e Biaggio (1992) distinguem dois tipos de raiva: a raivaestado e a raiva-traço. A raiva-estado é transitória, mas a raiva-traço é definida como a tendência a perceber freqüentemente situações como desagradáveis ou desafiadoras, gerando elevações no estado de raiva nesses momentos. Segundo esses autores, existem dois sentidos para expressão da raiva: para dentro e para fora. A raiva para dentro é retida, contida e a pessoa pode chegar a não experienciar diretamente o sentimento de raiva em função da supressão total da mesma. Já a raiva para fora envolve a experiência da raiva-estado e geralmente está associada à manifestação de comportamentos agressivos, podendo incluir atos físicos (agredir pessoas, destruir objetos etc.) ou verbais (críticas, insultos, ameaças).
Segundo estudos de Lipp (2005), a raiva desenvolve-se a partir do seguinte processo:
1) Ocorrência de um evento desencadeador, real ou imaginário.
2) Interpretação: a pessoa avalia negativamente a situação como ameaçadora.
3) Stress: manifestações físicas e psicológicas ocorrem.
4) Um comportamento de raiva ocorre
5) Reavaliação do que está ocorrendo sob a ótica do forte sentimento de raiva.
6) Escalonamento da raiva.
Esses mesmos estudos mostraram diferença na expressão da raiva de homens e mulheres. Os homens tendem a manifestar esse sentimento mais intensa e freqüentemente do que as mulheres, provavelmente por ser um dos poucos sentimentos que nossa cultura aprova e incentiva os homens a demonstrar (Lipp, 2005).
Considerando-se que um número significativo de hipertensos apresenta stress e dificuldades no manejo da raiva associadas a uma grande reatividade cardiovascular em momentos de stress, torna-se importante desenvolver estudos mais profundos que visem entender os mecanismos neuropsicofisiológicos presentes a fim de que se possa promover a prevenção e aperfeiçoar o tratamento da pessoa com hipertensão arterial. Lipp (2005) propõe um tratamento do stress e da raiva, o treino cognitivo de controle da raiva (TCCR) que utiliza estratégias cognitivas, além das técnicas comportamentais (respiração profunda, relaxamento, dieta anti-stress, prática de exercícios físicos). O TCCR objetiva levar o paciente a adotar uma ação responsável no seu modo de lidar com a raiva e o stress. Por ação responsável entende-se o comportamento que resolva total ou parcialmente a situação estressante, em curto prazo, sem, no entanto, dar origem a uma outra ainda mais estressante em longo prazo. Para tal, além da reestruturação cognitiva e reinterpretação dos estressores, o paciente aprende estratégias de coping centradas na resolução do problema. Parte fundamental do tratamento é a prática de técnicas visando reduzir a excitabilidade emocional e orgânica frente a situações provocadoras, por meio de exercícios de respiração profunda e relaxamento.Considerando-se que um número significativo de hipertensos apresenta stress e dificuldades no manejo da raiva associadas a uma grande reatividade cardiovascular em momentos de stress, torna-se importante desenvolver estudos mais profundos que visem entender os mecanismos neuropsicofisiológicos presentes a fim de que se possa promover a prevenção e aperfeiçoar o tratamento da pessoa com hipertensão arterial. Lipp (2005) propõe um tratamento do stress e da raiva, o treino cognitivo de controle da raiva (TCCR) que utiliza estratégias cognitivas, além das técnicas comportamentais (respiração profunda, relaxamento, dieta anti-stress, prática de exercícios físicos). O TCCR objetiva levar o paciente a adotar uma ação responsável no seu modo de lidar com a raiva e o stress. Por ação responsável entende-se o comportamento que resolva total ou parcialmente a situação estressante, em curto prazo, sem, no entanto, dar origem a uma outra ainda mais estressante em longo prazo. Para tal, além da reestruturação cognitiva e reinterpretação dos estressores, o paciente aprende estratégias de coping centradas na resolução do problema. Parte fundamental do tratamento é a prática de técnicas visando reduzir a excitabilidade emocional e orgânica frente a situações provocadoras, por meio de exercícios de respiração profunda e relaxamento.
O presente estudo de caso refere-se a um participante de um dos grupos de Treino Cognitivo de Controle da Raiva desenvolvido no Laboratório de Estudos Psicofisiológicos do Stress da Pontifícia Universidade Católica de Campinas em 2007.
O Treino Cognitivo de Controle da Raiva (TCCR) foi elaborado e aplicado a quatro grupos de intervenção com o objetivo de testar sua eficácia na redução da reatividade cardiovascular durante momentos de stress emocional. Os objetivos específicos desse projeto foram: elaborar o treino cognitivocomportamental de controle de raiva; testar sua eficácia na redução da raiva para fora e para dentro; verificar se havia diferença significativa nas médias de reatividade cardiovascular aferidas antes e após o TCCR em cada grupo; analisar se havia correlação significativa entre notas no Inventário de Expressão de Raiva com Estado e Traço - STAXI (Spielberger & Biaggio, 1992) e a magnitude da reatividade cardiovascular nas horas de stress experimental antes do TCCR; analisar se havia correlação significativa entre notas no Inventário de Expressão de Raiva com Estado e Traço - STAXI (Spielberger & Biaggio, 1992) e a magnitude da reatividade cardiovascular nas horas de stress experimental após o TCCR; verificar se o nível de stress fora da sessão experimental é reduzido em participantes que adotem um estilo construtivo de expressão de raiva.
Estudo de caso: João, A raiva gerando stress
Identificação do paciente: O participante escolhido para o presente estudo de caso será chamado de João. Ele fez parte do quarto grupo de intervenção e foi escolhido por ter participado do grupo com a maior assiduidade e por ter relatado mudanças comportamentais e cognitivas ocorridas nas interações com os outros participantes do grupo, a partir das intervenções propostas.
João tem 67 anos, nível superior completo, e está no terceiro casamento. É natural de São Paulo e mora na cidade onde o estudo foi realizado há 22 anos. Tem três filhos e três netos. Trabalha em empresa própria. Alega ter feito terapia por alguns meses há muitos anos atrás. Procurou o LEPS e concordou em participar do estudo, por ter muita dificuldade em controlar suas emoções frente a algumas interações com a família e com amigos. Sua pressão arterial chega a 180x110 mmHz quando se aborrece ou quando discordam dele em assuntos importantes para ele. Está preocupado com a possibilidade de ter um enfarte caso não aprenda a controlar o stress das interações com outras pessoas. Diz que muitas vezes tenta se controlar, mas acaba discutindo e brigando.
O grupo no qual João foi inserido tinha as características descritas a seguir.
Participantes do grupo de João: Fizeram parte do grupo oito adultos na faixa etária entre 35 e 50 anos, diagnosticados como hipertensos do Nível 1, de acordo com os critérios do V Consenso Brasileiro de Hipertensão Arterial (2006). Todos foram identificados como tendo um nível de raiva para fora ou para dentro acima da média no Inventário de Expressão de Raiva como Estado e Traço - STAXI (Spielberger & Biaggio, 1992).
Materiais: Os instrumentos utilizados para coleta de dados foram: Inventário de Expressão de Raiva Traço e Estado - STAXI (Spielberger & Biaggio, 1992); Inventário de Sintomas de Stress para Adultos (Lipp, 2000); Inventário de Qualidade de Vida (Lipp & Rocha 2008); roteiro de entrevista visando averiguar o nível de preocupação da pessoa com seu estilo típico de expressar raiva e a presença de culpa gerada por tal estilo; monitor de pressão contínua e de freqüência cardíaca - FINAPRES.
Procedimento: Após a avaliação inicial e verificação do preenchimento dos critérios de inclusão para participação na pesquisa, o Treino Cognitivo de Controle de Raiva (TCCR) foi realizado, em grupo, em oito sessões semanais de duas horas. As sessões foram conduzidas pela primeira autora, como terapeuta, e a segunda autora, como co-terapeuta. As sessões foram gravadas em áudio.
A primeira sessão consistiu na apresentação do trabalho a ser desenvolvido durante os encontros, informações sobre raiva e hipertensão, apresentação dos participantes, discussão dos dados coletados durante o período de pré-intervenção. As sessões seguintes apresentavam um tema a ser discutido e seguiam a ordem: discussão inicial sobre os registros de raiva feitos pelos participantes ao longo da semana; discussão com o grupo sobre o manejo de tais situações; treino de estratégias específicas para manejo da raiva; orientações da coordenadora e finalização. A última sessão consistiu na apresentação dos gráficos sobre os comportamentos de raiva dos participantes que foram por esses registrados entre as sessões; discussão desses dados; feedback dos participantes sobre os resultados alcançados no grupo; agradecimentos; orientações sobre coleta de dados pós-intervenção.
Método de análise dos dados: Foram analisados os resultados obtidos nos testes aplicados antes e após a participação no grupo, bem como dados retirados e analisados a partir das transcrições das sessões do grupo realizadas. Os comportamentos de João, durante as sessões de grupo foram categorizadas como comportamentos de raiva ou ação responsável. Por comportamentos de raiva considerou-se: relatar pensamentos de agressão verbal ou física; relatar sentimentos de raiva exacerbados; falar agressivamente com os outros membros do grupo. Quanto aos comportamentos de ação responsável, considerou-se: relatar pensamentos adequados sobre o manejo da raiva; utilizar técnicas para manejo adequado da raiva e do stress propostas no grupo.
Resultados e Discussão
Os dados coletados antes e após a participação de João no grupo de intervenção foram analisados e comparados. A Tabela 1 apresenta as medidas de pressão arterial e freqüência cardíaca na linha de base (antes de qualquer intervenção), a reatividade do participante ao experimento antes da participação no grupo de intervenção e a reatividade após a participação no TCCR.
Os resultados apresentados na Tabela 1 indicam a diminuição das medidas de reatividade da pressão arterial após a participação de João no TCCR.
Na Tabela 2 percebe-se a redução de sintomas de stress apresentados por João após a participação no grupo de TCCR, antes do tratamento este paciente apresentava 50% dos possíveis sintomas de stress cobertos pelo teste e após o TCCR, este índice foi reduzido para 25%.
A Tabela 3 mostra a diminuição da pontuação em 7 dos 8 componentes da raiva avaliados no STAXI, sendo que os componentes estado e expressão da raiva apresentaram a maior diferença após a participação de João no grupo do TCCR.
No que se refere à qualidade de vida, os resultados do IQV, aplicado antes e após o TCCR, permaneceram inalterados em todos os componentes avaliados (social, afetivo, profissional e saúde). Este resultado talvez possa ser explicado devido ao fato de que o TCCR ocorreu em somente oito semanas, período este muito curto para que mudanças significativas pudessem ser registradas em níveis de qualidade de vida.
Dados obtidos a partir das transcrições das sessões:
Os resultados descritos a seguir foram retirados das transcrições das sessões do grupo de Treino Cognitivo de Controle de Raiva, das quais João participou. Foram computados os comportamentos de raiva e ação responsável apresentados pelo participante. Esses comportamentos ficaram distribuídos ao longo das sessões como mostra a Tabela 4 na qual podemse verificar os diversos tipos de comportamentos de raiva e de ação responsável apresentados por ele ao longo das sessões do grupo de Treino Cognitivo de Controle de Raiva.
Percebe-se que o comportamento de falar sobre sentimentos de raiva exacerbados foi o comportamento de raiva mais emitido ao longo das sessões (1ª e 2ª sessões). Quanto aos comportamentos de ação responsável apresentados por João, os mais emitidos foram comportamentos de falar sobre pensamentos adequados sobre o manejo da raiva (6ª sessão).
A Tabela 5 apresenta o número de comportamentos de raiva e ação responsável apresentados por João ao longo das sessões do grupo de Treino Cognitivo de Controle de Raiva. Verificase que comportamentos ligados à ação responsável aumentam com o passar das sessões, chegando a 20 comportamentos emitidos nas quatro últimas sessões, quando nas primeiras quatro sessões somente dois desses comportamentos foram registrados. Concomitantemente, verificou-se uma queda nos comportamentos de raiva nas duas metades do tratamento, passando sua freqüência de nove para seis. Além disto, os comportamentos de raiva diminuíram na 7ª e 8ª sessões.
Os dados indicam a modificação dos comportamentos de João, aumentando respostas relacionadas a ações responsáveis e diminuindo respostas de raiva, o que pode indicar a efetividade das estratégias e intervenções utilizadas no grupo de TCCR. Esses dados são corroborados pelos registros feitos por João sobre seus sentimentos de raiva percebidos ao longo das sessões.
A Figura 1 mostra os registros de raiva feitos por João ao longo das sessões do grupo de TCCR. É possível verificar uma diminuição dos sentimentos de raiva registrados por João ao longo das sessões.
Esses dados ganham profundidade quando se analisam as falas específicas apresentadas por João ao longo das sessões. Na primeira sessão, João relatou como se via em situações de raiva: Sou um animal selvagem domesticado. Morei na Inglaterra e tinha que me controlar. Aqui dentro tem um vulcão a explodir. Minhas crises começaram há 27 anos. Sei que meu temperamento causa as crises hipertensivas.
Na segunda sessão relatou sua percepção sobre sentimentos de raiva: Senti raiva 63 vezes. Esta semana foi muito difícil. Cheguei a sentir raiva alta. Nessa sessão João também relatou que os sentimentos de raiva voltavam horas ou dias após o evento se ele conversava sobre o acontecimento eliciador da raiva para alguém: Às vezes você age com raiva. Passados alguns dias, você conta para o outro. Percebi que quando isso ocorria, sentia tudo de novo. Era melhor não contar.
Na quarta sessão, João relatou sua percepção de que os valores familiares interferiam na sua interpretação dos fatos: No meu caso, o meu sobrenome é que era o peso. Aqui na cidade o nome da minha família é conhecido e por isso minha educação foi toda delineada. Tudo para satisfazer essa expectativa da sociedade. Isso cria ao longo da vida a sensação de que não pode nunca falhar. Eu jamais poderia falhar. (...) A gente percebe que por um motivo ou por outro, o pensamento, e então a interpretação que se dá é oriunda de uma escala de valores. Esse comportamento discriminativo ocorreu após o relato de outro participante com história semelhante sobre não poder errar e a intervenção da terapeuta sobre o valor do pensamento e da interpretação dos fatos nos sentimentos. Essa discriminação é importante por fazer parte do cerne do treino cognitivo: pensamentos/ interpretações geram sentimentos (Beck, 1964; Abreu, 2004).
Na quinta sessão João percebeu que utilizava outros nomes para o sentimento de raiva, o que dificultava sua identificação no momento em que ocorria: Na verdade até antes de vir aqui para mim era uma grande confusão essa situação. Então eu usava alguns outros nomes, porque raiva dá a impressão de algo muito grande, usava outras palavras, como irritado, aborrecido, usava vários subterfúgios, que de certa forma amenizavam. Raiva só era usada quando se atingia o ponto mais alto, o ódio. Percebi dessa forma que você pode autenticar o sentimento, sabendo classificar em 1, 2 ou 3, a raiva é a expressão do mesmo sentimento. Mais uma vez, o comportamento discriminativo apresentado por João é muito importante para o treino cognitivo da raiva, pois o primeiro passo para manejar a raiva é identificá-la (Lipp, 2005).
Nessa sessão, também descreve sua percepção de como a raiva ocorre: O que eu tenho percebido é que a raiva na maioria das pessoas ocorre quando há uma quebra de algo esperado, porque você avalia, imagina e tudo isso é quebrado, surge uma surpresa. Em seguida ele aponta como aprendeu a lidar com essa situação: (...) é assim que temos que fazer sempre, colocar um pouco mais, fazer um preparo. Esse comportamento torna-se adequado para lidar com a raiva uma vez que esperar situações inesperadas permite ao cliente flexibilizar sua forma de pensar sobre os acontecimentos e, conseqüentemente, minimizar a frustração, uma das situações eliciadoras do sentimento de raiva (Lipp, 2005).
Na sexta sessão João percebeu que sua maneira de falar tornava-se impositiva de sua vontade quando estava com raiva e referiu querer mudar esse comportamento: Eu descobri que, ao longo desses anos, quando estou com raiva, a maneira que eu falo... deixa de ser importante o conteúdo, mas a imposição. Pela forma como eu falo, acho que todos já devem ter percebido aqui, que por mais que eu me esforce tentando ser mais simpático, eu não consigo. Assim que eu saio do meu controle eu começo a me impor. João então fala sobre como se sentia em sua infância e sobre o modelo de seu pai: (...) descobri que era pobre, feio, burro e antipático. Foi o que quis mudar. Algumas coisas eu consegui suprir de outras maneiras, mas essa maneira de falar é algo de família. Meu pai já falava assim. Discriminando sobre as causas de falar impositivamente, João pode lidar com os sentimentos gerados de outra maneira e modificar sua forma de falar. Guilhardi (2001) aponta que as intervenções do terapeuta têm como objetivo levar o cliente à auto-observação e ao autoconhecimento (ser capaz de descrever as contingências às quais responde e influir nelas). Sendo a autoobservação a primeiro passo para ensinar ao cliente comportamentos mais adaptativos às suas contingências de vida (Delitti & Groberman, 2005).
Na sétima sessão João relata seus progressos em discriminar e manejar a raiva: (...) Com as medições semanais percebi que não há juiz. Então, ou confrontamos com a pessoa, e isso me faz muito mal porque vai aumentando o meu grau de stress e eu sentimos todos os sintomas de stress, ou nos calamos e eu sinto também a mesma coisa e o que me incomoda. Não sei se todos perceberam, mas eu percebi que dependia de mim. A cada momento diminui mais como eu vou registrar. Aconteceu comigo o seguinte: quando tenho que validar eu reavalio minha raiva. Percebo que tem uma relação muito grande com o que foi discutido aqui, é como um pinheiro que quando cresce fica difícil de derrubar. Eu alimentava, adubava meu pinheiro, fazia de tudo até que ele se transformasse em uma sequóia. Hoje eu piso nele enquanto é pequeno. Não dou tanta importância para ele. Essa semana foi a melhor semana em dez anos. João percebeu que registrando seus sentimentos de raiva semanalmente foi capaz de discriminar as causas desse sentimento e, então, modificar sua forma de agir com relação a ele.
Na oitava e última sessão João relata ter passado por uma situação difícil, que considerou uma prova na qual conseguiu aplicar várias técnicas aprendidas no grupo, manejando adequadamente o sentimento de raiva: Eu estava numa festa na casa de alguns parentes e algumas pessoas beberam um pouco demais, o que parece comum nessas festas. Isso me irrita profundamente. (...) Começaram alguns comentários, aquilo foi me irritando e eu tive a oportunidade de aplicar duas das técnicas concomitantemente. Normalmente, naquele tipo de encontro com as pessoas alteradas pela bebida, teria me feito reagir de uma forma muito explícita. Eu obviamente nada fiz. Depois dessa série de sessões eu passei a ter um espaço que eu não tinha, pois agia muito prontamente à raiva. Deu para eu pensar, saí, respirei, analisei a situação e disse vou colocar as coisas nos devidos lugares. Num segundo momento pensei que não conseguiria nada. (...) E continuei tomando meu uísque tranqüilamente, a festa continuou sem nenhum problema e eu me senti muito bem. Com esse relato final, João demonstra o que aprendeu nas sessões do TCCR: perceber o sentimento de raiva assim que ele aparece analisar a situaçãoproblema, utilizar as técnicas para manejo do stress e da raiva e tomar uma ação responsável.
Conclusões
Através dos dados apresentados nesse estudo de caso, conclui-se que João - um hipertenso do nível 1, apresentando, no início do estudo, pressão sistólica de 140,53 mmHz, diastólica de 106,3 mmHz, freqüência cardíaca de 84,77, altos níveis de raiva para fora, sintomas significativos da fase de resistência do stress e demonstrando uma reatividade cardiovascular de 23,71 mmHz (pressão arterial sistólica) e 10,5 mmHz (pressão arterial diastólica) durante a primeira sessão experimental no laboratório indicou mudanças importantes ao fim do TCCR. Sua reatividade cardiovascular sofreu uma redução de 3,77mmHz na pressão sistólica e 10,5 mmHz na pressão diastólica. O Treino Cognitivo de Controle da Raiva alcançou seus objetivos tornando possível a João monitorar suas emoções, interpretar o mundo ao seu redor de modo menos estressante, tomar uma ação responsável em momentos de raiva e, conseqüentemente, reduzir a sua reatividade cardiovascular frente aos estressores interpessoais. Estudos de caso necessitam de validação posterior a fim de que seus achados possam ser generalizados para outras pessoas e situações, recomenda-se, portanto, que este estudo seja replicado com outras pessoas hipertensas, pois, se sua eficácia for devidamente comprovada, o TCCR poderá ser um procedimento de grande utilidade na redução de uma série de dificuldades ligadas aos aspectos emocionais, como a expressão inadequada da raiva, o stress emocional frente a interações interpessoais estressantes. Na área física, o TCCR poderá ser útil na redução da reatividade cardiovascular de pessoas vulneráveis aos estímulos emocionais precipitadores de alterações pressóricas.
Referências Bibliográficas
Abreu, C. N. (2004). Introdução às terapias cognitivas. Em: C.N. Abreu & H.J Guilhardi (Orgs.). Terapia Comportamental e Cognitivo-comportamental: práticas clínicas. São Paulo: Roca. [ Links ]
Barefoot, J.C.; Dodge, K.A.; Peterson, B.L.; Dahlstrom, W.G. & Williams, R.B. (1989). The Cook-Medley Hostility Scale: Item content and ability to predict survival. Psychosomatic Medicine, 51, 46-57. [ Links ]
Beck, A. T. (1964). Thinking and depression: II. Theory and therapy. Archives of General Psychiatry, 10, 561-571. [ Links ]
Delitti, M. & Groberman, (2005). Skinner e terapia. Em: E.B. Borlotti; S.R.F.Enumo, M.L.P. Ribeiro (Orgs.). Análise do Comportamento: teorias e práticas. Santo André: Esetec. [ Links ]
García, E.; Restrepo, G.; Cubides, C. A.; Múnera, A. G.; Aristizábal, D. (2006). Miocardiopatía por estrés (miocardiopatía tipo takotsubo): presentación de un caso clínico y revisión de la literatura. Revista Colombiana de Cardiología, 13(1), 10-15. [ Links ]
Guilhardi, H. (2001). Com que contingências o terapeuta trabalha em sua atuação clínica? Em: R.A. Banaco (Org.). Sobre comportamento e cognição Vol. 1. Santo André: Esetec. [ Links ]
Houston, B.K.; Chesney, M.A.; Black, G.H.; Cates, D.S. & Hecker, M.H.L. (1992). Behavioral clusters and coronary heart disease patients. Health Psychology, 18(4), 416- 420. [ Links ]
Jorgensen, R.S.; Johnson, B.T.; Kolodziej, M.E. & Schreer, G.E. (1996). Elevated blood pressure and personality: A meta-analytic review. Psychological Bulletin, 120, 272-292. [ Links ]
Lambert, K. e Kinsley, C.H. (2006). Neurociência clínica: as bases neurobiológicas da saúde mental. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Lipp, M. N. (2000). Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de LIPP (ISSL). São Paulo: Editora da Casa do Psicólogo. [ Links ]
Lipp, M.E.N. (2003). O modelo quadrifásico do stress. Em M.N.E. Lipp (Org.). Mecanismos neurofisiológicos do stress: teoria e aplicações clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Lipp, M.E.N. (1996). Stress: mitos e verdades. São Paulo: Editora Contexto. [ Links ]
Lipp, M. E. N. (2005). Stress e o turbilhão da raiva. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Lipp, M.E.N., Malagris, L.E.N. & Novais, L.E. (2007). Stress ao Longo da Vida. SP: Ícone. [ Links ]
Lipp, M.E.N. & Rocha, J.C. (2008). Pressão alta e stress: o que fazer agora? Campinas:Papirus. [ Links ]
Lovallo, W. R. (1997). Stress and Health: biological and psychological interactions. Thousand Oaks: SAGE Publications. [ Links ]
McKay, M.; Rogers, P.D. & McKay, J. (2001). Quando a raiva dói. São Paulo: Summus Editorial. [ Links ]
Spielberger, C.D. & Biaggio, A. (1992). Manual do STAXI. São Paulo: Vetor. [ Links ]
Ribeiro, A.C.M. & Brunini, T.M.C. (2003). A via L-arginina-óxido nítrico e o stress em pacientes com hipertensão arterial sistêmica. Em M.E.N. Lipp (Org). Mecanismos neurofisiológicos do stress: teoria e aplicações clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Rice, P. L. (2007). O enfrentamento do estresse: estratégias cognitivo-comportamentais. Em: V. R. Caballo. Manual para o tratamento Cognitivo-Comportamental dos Transtornos Psicológicos da Atualidade. Livraria Santos Editora. [ Links ]
V Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial (2006). São Paulo: Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Brasileira de Hipertensão & Sociedade Brasileira de Nefrolog [ Links ]
Endereço para correspondência
Taísa Borges Grün
Rua Irmã Angélica Mazzarotto, 75, casa 02
82320-210, Santa Felicidade, Curitiba, PR, Brasil
E-mail: taisabg@hotmail.com
Recebido em: 23/03/2008
Aceito para publicação em: 19/07/2009
1 Professora, Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia, Pontificia Universidade Católica de Campinas. Campinas, SP, Brasil.
2 Financiamento: CNPq Processo: 301580/2005-7 (Bolsa de Produtividade do primeiro autor)
3 Mestre, Psicologia como Profissão e Ciência, Pontifica Universidade Católica de Campinas. Campinas, SP, Brasil.
4 Mestranda, Psicologia como Profissão e Ciência, Pontifica Universidade Católica de Campinas. Campinas, SP, Brasil.