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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.3 n.2 Fortaleza set. 2003

 

CONFERÊNCIAS

 

Espiritualidade: desejo de eternidade ou sinal de maturidade?

 

 

Teresa Creusa de Góes Monteiro Negreiros

Psicóloga clínica. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/RIO. Profa. do Depto. de Psicologia da PUC/RIO. End.: R. General Venâncio Flores, no 368, apto 202- Leblon - Rio de Janeiro - CEP 22441- 090 e-mail: teresagoes@openlink.com.br

 

 


RESUMO

Neste texto sobre a relação espiritualidade e envelhecimento, destacamos que, além deste tema ser passível de preconceito, com recente inserção na literatura científica e acadêmica, ainda permanece, em psicologia, a polêmica.- Será a espiritualidade um sinal de maturidade ou refere-se a um desejo infantil de eternizar-se, a ser superado? Apresentamos múltiplas concepções de espiritualidade e procuramos mostrar que há vários indicadores de que a busca de um sentido para a vida, a presença da fé, a prática de virtudes e a crença na transcendência, com o avançar da idade, atenua o impacto de novas formas de mal-estar contemporâneo vividos pelos idosos, bem como pode atuar como um recurso para melhoria de condições de saúde e prolongamento da vida.

Palavras-chave: espiritualidade, envelhecimento, sentido da vida, mal-estar contemporâneo, maturidade


ABSTRACT

In this essay about spirituality and aging we point out that, aside from the prejudice involving the theme and recently discussed in the scientific and academic literature, a controversial issue still remains in psychology: Is spirituality a sign of maturity or a child desire of eternity that should be surpassed ? Multiple conceptions of spirituality were presented. We also tried to show that there are several indicators that, in later years, the search for the meaning of life, faith, virtuosity and the belief in transcendence lessens the impact of new kinds of contemporary discontents encountered by elder people and may as well act as a resource to improve health conditions and the life span.

Keywords: spirituality, aging, meaning of life, contemporary discontents, maturity


 

 

PERDER A VIDA É UMA NINHARIA E TEREI CORAGEM QUANDO FOR PRECISO. MAS VER-SE DISSIPAR-SE O SENTIDO DA VIDA, DESAPARECER NOSSA RAZÃO DE EXISTIR, EIS O INSUPORTÁVEL.

ALBERT CAMUS

 

Introdução

Nosso interesse pelo tema da espiritualidade surgiu a partir de nossa prática clínica, tanto com idosos como com dependentes químicos. Em ambos os grupos (e seus familiares), verificamos que a espiritualidade constituiu-se em poderoso fator de suporte para enfrentar desafios, frustrações e sofrimentos, além de melhorar consideravelmente a saúde e a qualidade de vida. O que estes grupos teriam em comum?

Em princípio, uma resposta pode ser orientada pelo raciocínio do sociólogo Elias (2001) em seu ensaio sobre a solidão dos moribundos. Para ele, a adesão a crenças são mais fortes em grupos cujas vidas são menos controláveis, mais imponderáveis, mais ameaçadoras, com perigos iminentes e imprevisíveis, o que se aplica a ambos os casos. No grupo dos mais velhos, seria um modo de redimensionar receios e dores oriundos da fragilidade, da decadência, da vulnerabilidade e os sofrimentos pelas perdas num percurso maior de vida , além de se tentar ultrapassar e vencer a angústia diante da incógnita da extinção pela morte cada vez mais próxima.

De qualquer modo, aprofundando a questão, registramos que inúmeras pesquisas, desde várias décadas, vem comprovando o benefício desta relação: espiritualidade-envelhecimento. Embora ambos os termos sejam de difícil conceituação, pois são eivados de preconceito. Quanto ao envelhecimento, é minimizado e caricaturado por eufemismos tais como idoso, 3ª Idade, maturidade, nova-idade, melhor idade, idade do lobo, da loba, etc... para mascarar a representação social da palavra velho, indicando gasto, decadente, inútil, inativo, ultrapassado, deteriorado, etc... Ou seja, envelhecimento refere-se, quase sempre, a efeitos indesejáveis decorrentes da passagem do tempo. Raramente está relacionado a processo de amadurecimento ou aquisição de uma característica considerada positiva, como sabedoria, virtude.

Espiritualidade, por sua vez, além de ser uma noção complexa, passa pela objeção de ser considerada um conceito metafísico, não passível de inserção na literatura científica, isto é, sem as credenciais do rigor científico para legitimar o termo. Embora as atuais evidências sejam tão expressivas e numerosas que já não há possibilidades de ignorar nem o termo, nem sua relação com o envelhecimento (Goldestein & Sommerhalder, 2002). De qualquer forma, não se trata de um tema sobre o qual profissionais se sentem confortáveis em tratar, até porque se costuma associá-lo a confissão religiosa, crendice. E, freqüentemente, ele é percebido como uma abordagem falsa, enganosa, sectária, calcada na necessidade de se apontar mesmo um descaminho na vã tentativa de buscar eternidade. Ou seja: ainda se confunde uma discussão a respeito do tema com ingenuidade ou charlatanismo. Mas o fato é que o espírito do tempo - zeitgeist - já nos permite falar a respeito de uma questão ainda tabu em congresso científico de Geriatria e Gerontologia, o que consideramos um avanço...

 

Espiritualidade e envelhecimento - pesquisas e polêmicas

Muitas pesquisas vem sendo desenvolvidas sobre a relação entre espiritualidade e envelhecimento, em diversos contextos, incluindo-se desde aquelas direcionadas a melhoria de condições de vida e de saúde - pelo auto-conhecimento, prática de virtudes, adaptação a condições adversas, interação social, devoção religiosa, etc. - até a aceitação e preparação para a morte - crença na manutenção do espírito, apesar da decadência corporal; transcendência a si próprio, ao tempo e ao espaço; desapego, etc.

Dentre diversas opções, em primeiro lugar mencionamos o não tão recente mas esclarecedor estudo de Moberg e Brusek (1978), que destaca duas dimensões de espiritualidade: a horizontal, representada como um recurso interno e subjetivo, mobilizado pela experiência de doação de si, de fraternidade, através do contato mais íntimo consigo próprio, com a natureza, arte, poesia, ou quaisquer ideais visando ao bem-estar social, a solidariedade, o cuidado, a tolerância, entre outros. E a vertente vertical que caracterizaria um movimento em direção a Deus, a um Poder Superior, ao grande Outro. De qualquer modo, ambas as dimensões não seriam excludentes entre si e cada uma, a seu modo, estaria ligada a alteridade.

Um outro aspecto que nos parece relevante é que diversas pesquisas sobre o tema têm sido realizadas por médicos, profissionais comprometidos, por excelência, com a saúde do corpo. Uma delas foi citada, entre outras, pelo cardiologista Puppin (2002) em seu recente livro sobre verdades e mitos nas doenças cardiovasculares. Foi o chamado fenômeno de Roseto, núcleo fundado por imigrantes italianos, na Pensilvânia, cuja comunidade foi estudada na década de 60, onde se verificou que o índice de doenças cardio-vasculares era 50% inferior à média americana. As hipóteses plausíveis quanto a aspectos climáticos (clima não diferia de muitas localidades próximas pesquisadas), dietas pouco calóricas (a ingestão de gordura era farta e de origem animal) e explicação de ordem genética foram descartadas. Sobre esta última, o pesquisador localizou filhos de imigrantes que se fixaram em outras cidades e adotaram o estilo de vida americano (aquisição de valores materialistas, hábitos de competição, stress, disputa, ambição, além de menor nível de religiosidade e espírito comunitário) e, comparando-os com demais sujeitos da mesma geração, observou idênticos índices de doenças cardio-vasculares. Uma maior longevidade e saúde estava, pois, relacionada à constituição e manutenção, por um grupo, de uma sociedade mais igualitária, com menor tensão psicológica e uma maior rede de apoios solidários, onde se compartilhavam alimentos, músicas, costumes, tradições, religião.

Além de médicos, a conhecida enfermeira Kubbler Ross (1996; 2000) nos esclarece, em seus livros, baseados em observações com pacientes terminais, entre os quais muitos idosos, a importância da fé nos derradeiros momentos de vida. Ela atestou, ao longo de sua carreira, já como professora de psiquiatria, que, na fase final, quando nada mais há a ser feito do ponto de vista clínico e o doente pressente e aceita o seu fim, ele pede, então, para ser atendido por um religioso e não mais pelo staff hospitalar (médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, nutricionistas e demais) em seus momentos derradeiros. Para a autora, esta preferência se dá, ao menos parcialmente, em razão da dificuldade dos profissionais de entrar em contato com as perdas, o sofrimento, a finitude. Os religiosos estariam mais aptos para lidar com a renúncia à vida nesse mundo, desmistificando o medo da morte.

A respeito dos religiosos, a pesquisa da psicóloga Sobreira Leal (1999), sobre a vida em uma instituição religiosa feminina, revela que longevidade e boas condições de saúde estão relacionadas não somente ao regime disciplinado e moderado; a uma maior proteção do stress pelo afastamento de estímulos externos; ao amparo de uma identificação grupal, pautada por regras e tradições; à obtenção do respeito pela condição de freiras, como também pela adoção da fé e da prece que orienta o cotidiano de forma solidária e esperançosa.

Uma outra questão a considerar é que, embora especialistas diversos da área de saúde endossem a premissa da Organização Mundial de Saúde de que "saúde é um estado de bem-estar total, corporal, espiritual e social e não apenas inexistência de doença e fraqueza" e o código de ética da American Psychological Association inclua a religião como um aspecto significativo da diversidade humana, na história da psicologia o tema tem sido tratado de forma polêmica (Goldestein & Sommerhalder, 2002).

Na abordagem psicanalítica, em geral, compreende-se a espiritualidade no escopo da religiosidade (ainda que não estejam presentes crenças ligadas a instituições, dogmas ou rituais), pois explica-se que o que se deseja, em última instância, é fazer frente ao desamparo, através da crença numa vida eterna, na salvação, numa proteção, numa espécie de parto às avessas em direção de um útero paradisíaco. O desejo de imortalidade seria tecido na trama inconsciente da vivência das primeiras satisfações do lactente, nos primórdios da vida humana e seria considerado uma atitude infantil a ser superada. No nível individual, no curso do desenvolvimento pelo gradual declínio da onipotência nos estágios posteriores à infância, através da educação para a realidade. No nível social, pela evolução da civilização, por meio dos avanços do conhecimento, pois a história evolutiva compreenderia três estágios: o animista, o religioso e o científico.

Freud destacou, ainda, em vários momentos de sua obra (1912-1913; 1927;1929-1930) a culpa e seu resgate envolvendo a figura paterna. Deus, divindades, ideais de cultura, além de outros possíveis avalistas do desamparo humano - leis, regras, normas, definições, contratos, e, por extensão, princípios morais, fundamentos, enfim, de algum modo, quaisquer referências buscadas, representariam um complexo centrado na figura paterna significativa de ameaça e garantia, um desejo ambivalente do homem em relação ao pai. Para o fundador da psicanálise, se não houvesse a crença em um Deus justo e todo poderoso e numa vida eterna, os homens se sentiriam isentos de seguir os preceitos civilizatórios e provavelmente adviria o caos. Mas, embora admitindo que a religião tenha prestado serviços no controle de pulsões anti-sociais e tenha representado um conforto esperançoso, a abordagem freudiana vê a dimensão espiritual-religiosa como uma ilusão derivada dos desejos humanos. Esta, em seu entender, deveria ser abandonada, embora reconheça a dificuldade de descartá-la, pois no percurso da existência ainda que caminhemos com a consciência de nossa mortalidade, no inconsciente não haveria representação da própria morte.

Em contraste, a psicologia analítica jungiana pondera que o processo de amadurecimento está estreitamente ligado a uma reorientação da consciência espiritual. O impulso para a espiritualidade não seria, para Jung, um simples reflexo da angústia da morte, nem dos conflitos da vida, nem do desamparo, mas uma expressão inerente ao ser humano: "a morte não é uma mera cessão de sentidos, sem sentido, mas a realização plena do sentido da vida e sua verdadeira meta" (Jung, 1987, p.143).

Uma crise existencial, a partir da qual o homem se tornaria menos impulsivo e extrovertido, emergiria na meia idade. A partir de então, ele estaria habilitado a conquistar, para além do conhecimento, a sabedoria, reconhecendo sua própria finitude e fazendo uma revisão de sua vida: "O que foi grande na manhã, será pequeno ao anoitecer e o que de manhã era verdade irá tornar-se mentira ao anoitecer" (Jung, 1987, p.198). Ou seja, assim como a primeira metade da vida seria marcada pela introdução na realidade externa, a segunda seria caracterizada pela iniciação na realidade interna. O inicial vazio da crise da meia-idade seria indicativo do deslocamento da energia psíquica, o começo de uma transformação. Doravante, aspectos que foram reprimidos na luta pela sobrevivência emergiriam, vinculando-se o que era pessoal ao indivíduo à forma coletiva da humanidade, descobrindo-se um novo propósito. Assim, tal como Jung concebeu, o fim natural da vida não seria a senilidade, mas a sabedoria. E a transcendência se constituiria numa experiência universal, posto que os símbolos religiosos não seriam elaborações conscientes, mas adviriam da vida da psiquê inconsciente, dando-lhes um caráter de revelação.

De acordo com Palmer (2001), foi principalmente a discordância a respeito deste tema que provocou a ruptura do discípulo Jung com o mestre Freud, o qual manteve a posição de que a necessidade de ajuda da criança impotente e o complexo parental é que seriam as raízes do comportamento religioso. Jung, além de considerar um equívoco o repúdio freudiano à religião, reduzindo-a a uma ilusão infantil advinda do desejo, fadada a ser descartada na medida em que se amadurece, propõe que a disposição religiosa funciona como uma atividade da psiquê, gera uma energia peculiar nos estágios adultos do desenvolvimento e é uma atividade de expressão do nível mais profundo do inconsciente - arquetípico e universal. E, se para Freud, o processo terapêutico requer o desvelamento do reprimido em nosso passado edipiano, para seu discípulo e posterior dissidente, a terapia demanda que se unam partes distintas da psiquê - consciente e inconsciente - o que envolve o reconhecimento da religião, sendo a sua rejeição psicologicamente danosa.

Aliás, cabe lembrar que a concepção de ilusão oferece diferentes conotações - tanto pode se referir a falsas crenças, algo enganoso; como designar uma fuga para a fantasia; ou um movimento de afastamento da realidade pela necessidade de satisfazer desejos - visão da psicanálise; como pode, ainda, significar um estímulo que leva a avançar, a projetar, agindo como fonte vital de criatividade e realização.

Esta última é a perspectiva de Frankl (1989, 1999), pois, para ele, ao contrário de Freud, não há uma separação entre realidade e desejo, mas um constante intercâmbio entre os dois. A vida da imaginação, seja ou não da ordem do desejo, é parte vital da experiência humana. Para este autor, a espiritualidade é um eixo organizador da própria existência, revelando um paradigma que permite encarar a vida e a morte com uma nova compreensão libertária. A motivação fundamental humana não se resumiria em gratificar pulsões, ou reconciliar as forças instintivas (id), com a realidade (ego), e as leis internalizadas (superego). Ao contrário, o homem revela sua humanidade na busca do sentido da vida, na liberdade de querer um significado para o existir. Este psiquiatra, que passou uma experiência pessoal e dramática no campo de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, enfatiza a espiritualidade como um valor que dá rumo à vida e gera esperança, sendo um indício desejável de maturidade no curso vital. Segundo ele, os prisioneiros que tinham mais fortes ligações e motivações para voltar, os que mantinham um propósito para as suas vidas, foram os que tiveram mais chances de sobreviver. Logo, desejar cumprir uma missão, transmitir uma mensagem, partilhar, além de ajudar a superar a crise existencial da finitude, alimentaria o gosto pela vida. Ou seja, ter para quem e o que voltar, faria arranjar os meios para prosseguir, capacitando o indivíduo a elevar-se acima dos seus problemas imediatos, a transformar as dificuldades em desafios a serem transpostos, a relacionar-se com uma dimensão indestrutível e fundamental do seu ser. Nesta ótica, pois, ser capaz de investir no senso de significado existencial se constituiria num indicador de maturidade psicológica, entendendo-se que, somente com um compromisso para além de si próprio, o indivíduo caminharia para sua realização.

 

Espiritualidade: aumenta com o avançar da idade?

Tal como identificaram estudos e revisões de literatura de Goldstein (2000); Goldstein & Neri (2000), Goldestein & Sommerhalder (2002), há vários indicadores de que crenças e fé ocupam um lugar mais central na vida dos idosos do que dos jovens, ou do que em qualquer etapa anterior de suas vidas:

- o grupo idoso freqüenta mais atividades religiosas organizadas;

- atitudes religiosas são mais expressas pelos mais velhos;

- práticas de devoção e orações são mais freqüentes na fase do envelhecimento;

- o engajamento em buscar um sentido para a vida aumenta com o passar dos anos;

- deposita-se mais, com o avançar da idade, num poder supremo, esperanças de transcendência da própria vulnerabilidade e limitação;

- a percepção de uma religiosidade intrínseca é mais admitida ao envelhecer; entre outros.

Porém, consideramos a questão - a espiritualidade aumenta com a idade? - sem respostas conclusivas, com dados ainda recentes e carentes de maior consistência. Em parte, pela dificuldade de estudos longitudinais esclarecedores e de metodologia adequada para verificação da evolução da espiritualidade nos sujeitos investigados ao longo de muitos anos. Em parte, porque nunca houve um contingente tão grande de idosos, nem tampouco um interesse maior sobre este tipo de investigação. Em parte, pela precariedade do dado retrospectivo dos estudos latitudinais. A memória e a busca de coerência traem uma reposta afirmativa à pergunta direta sobre a presença e aumento de espiritualidade com o decorrer dos anos, dirigida ao próprio sujeito. Em geral, uma pergunta projetiva esclarece melhor, tal como: - Você considera que as pessoas ficam mais espiritualizadas com o passar dos anos, com a idade? De qualquer forma, a resposta (em geral positiva) carece de total fidedignidade. Mas, especialmente, a complexidade da própria noção de espiritualidade dificulta a interpretação de resultados e a análise de dados.

Quanto à complexidade do conceito, em nossas investigações preliminares, para verificação da representação social do termo espiritualidade entre estudantes universitários, idosos e adultos de várias camadas sociais, obtivemos as seguintes categorias principais:

- espiritualidade ligada ao sobrenatural, opondo-se ao natural e diretamente observável, por crenças em doutrinas religiosas, divindade, poder superior, anjos, magia, esoterismo, etc.;

- antítese entre mente, intelecto, raciocínio, pensamento, parte incorpórea versus substância corpórea ou material;

- indicando presença de , esperança, confiança, religiosidade em contraste com descrença, dúvidas, desesperança, ceticismo, ateísmo;

- expressando um sentido ético, com conteúdos de afetos, sentimentos, ideais, virtudes, valores altruísticos, ecológicos, por oposição a instintos, sensações, prazeres mundanos, materialismo, racionalismo, egoísmo;

-significando interiorização, vida interna, essência, profundidade, privacidade, oposta ao mundo externo, público, de aparências ;

- e, finalmente, designando transcendência a objetivos materiais e individuais, eternidade, por contraste com imanência, transitoriedade.

Essas categorias não foram exclusivas entre si, nos depoimentos, e expressaram, muitas vezes, uma representação intimista, individualista, não eclesial, funcionando como uma espécie de espaço provedor de sentido. Tanto que, em todas as oposições apontadas, a espiritualidade mantinha uma conotação positiva e um status de superioridade. Premissa essa que constitui um dos fundamentos básicos de todas as religiões - o espírito (eterno, essencial, invulnerável) sendo superior ao corpo (perecível, sujeito à dor, à decadência e a desejos). O que nos remete à própria origem da palavra - spiritus - sopro e princípio da vida, essência, energia vital.

A maioria dos entrevistados entendeu a pergunta-estímulo: o que é espiritualidade para você? No entanto, muitas outras indagações ou depoimentos espontâneos, no decorrer da entrevistas, ofereceram pistas para a verificação do conceito conforme a concepção de cada um. Nas camadas sociais mais baixas, houve confusão, às vezes, com a religião espírita, pela semelhança de palavras.

Enquanto jovens e adultos apresentaram uma maior variedade de significações, para os idosos a noção de espiritualidade ficou, em geral, acoplada à idéia de religiosidade e às ligações afetivas. O que faz sentido, pois, segundo o filósofo e jurista italiano Bobbio (1997), em seus escritos autobiográficos, na velhice os afetos contam mais que os conceitos. Supomos, ainda, que esta diferença está relacionada, entre outros fatores, ao contexto em que se vive uma particular fase do desenvolvimento. Na atualidade, embora quase todos vivenciem, em alguma dimensão, o desencanto da pós-modernidade, o grupo mais velho experimenta dificuldades específicas, por nós examinadas anteriormente (Negreiros, 2002, 2003). Estas dizem respeito ao desafio de enfrentar as mudanças biológicas, psicológicas e as decorrentes da época em que se está vivendo o envelhecimento.

 

Conclusão

Desde algumas décadas, vivemos numa sociedade crescentemente globalizada, consumista e marcada pelo que Lasch (1991) já denominava, desde os anos 70, de "cultura do narcisismo". Num mundo que adota a utopia do corpo e da saúde perfeitos, de viver intensas e mutáveis sensações, do fim da dor e da velhice e que proclama como índice de felicidade, atingir o sucesso e o poder como metas solitárias e não solidárias, indaga-se: - como vivem os excluídos deste "nirvana", pela idade avançada, saúde debilitada, pobreza? Se a sociedade de consumo fomenta idealizações - tudo pode e deve ser adquirido - gera conseqüentes frustrações e depressões.

Na época atual, os indivíduos estão ligados para além de crenças e fronteiras, mas, paradoxalmente, desligados de seus próximos. Os referenciais já não são locais nem particulares como no passado: a família, a comunidade, a cidade, nem sequer a pátria... Este girar do mundo numa sociedade descontínua, numa era tecnológica e impessoal torna passível transformar a experiência acumulada em "dois faróis voltados para trás", como disse o poeta e médico Pedro Nava.

Embora cada um viva uma trajetória única e peculiar, pode-se falar de um desencanto generalizado diante da desumanização do mundo, do abalo do ecossistema, do descuido com a natureza, do aumento da violência em todas as suas formas. E, portanto, num vazio de sentido diante das novas formas de mal-estar contemporâneo, onde as certezas se evaporam, os paradigmas se deslocam circunstancialmente e as redes de relações e seus significados se diluem e se transformam, sem cessar. A espiritualidade pode representar, assim, uma resposta aos impasses da atualidade em qualquer idade, diante deste cenário de fluidez, fragmentação e impessoalidade.

É provável, também que, com o avançar dos anos, procure-se, mais do que nunca, um núcleo de estabilidade, na esfera íntima. E, assim, tente-se olhar a própria vida em nova perspectiva, buscando dar-lhe um sentido, uma integração do longo passado com o fugaz presente e com um incerto e mais curto futuro. Ou, como nos adverte Bobbio (1997), é mais relevante, na velhice, empregar menos tempo em projetos para um futuro, ao qual já não pertencemos, e mais tempo e para tentar compreender o sentido (ou a falta dele) em nossas vidas. Ademais, através da consciência de que o próprio tempo de vida não é tão vasto quanto os ideais e pela tentativa de aproximação da vastidão das idealizações com as possibilidades das realizações, opera-se uma mudança na direção desses ideais e na expectativa de cumpri-los - valorizar cada momento, tentar viver mais e melhor, perdoar, orar, meditar, doar algo, deixar obras, mensagens e legados para as futuras gerações, etc... Enfim, praticar virtudes e aspirar à transcendência, ambas compreendidas em diversas significações. Quanto à virtude: tentar tornar real o que ainda é virtual, desenvolver o hábito de praticar o bem e exercitar a força para exercer essa prática. Em relação à transcendência: envolvendo-se com Deus (nível religioso), com a sociedade de forma mais ampla e vivenciando a integração de sua própria história de vida, como um elo entre gerações passadas e a continuidade da humanidade (nível psicossocial).

Vale destacar, ainda, a velhice pobre, quando o idoso doente e debilitado não pode mais produzir nem consumir como requer o sistema, e, conseqüentemente, sequer consegue manter suas atividades, suas decisões, suas opiniões, sua dignidade. Ser recursos financeiros, transforma-se num estorvo, sentindo-se humilhado na condição de fardo para os descendentes, aos quais está ligado afetivamente e não deseja importunar...É um retorno à infância às avessas, que gera muito sofrimento, pois, como lembra o dito popular: "quando o filho recebe do pai, os dois ficam sorrindo, mas quando o pai recebe do filho, os dois ficam chorando"... Assim sendo, desamparados, sem apoio de políticas públicas ou de relações privadas, os mais velhos às vezes buscam a religião como um último alento - "Deus nos acuda"; "Seja feita a vontade de Deus". Nesta entrega, muitas vezes, reúnem forças e esperanças para enfrentar difíceis e dolorosas passagens.

Na prática psicoterápica, pois, é preciso levar em conta todas as dimensões do ser humano. É importante ter cuidado para não confundir neurose, rigidez, fanatismo, idéias messiânicas, com o fluxo de investimentos relacionados à espiritualidade. Segundo Seminério (1999), o desejo de imortalidade faz parte do imaginário social que criou mitos e religiões, cujo engajamento, em termos moderados e do ponto de vista de saúde mental, não deve ser considerado condenável ou sintomático, excetuando-se quando as fantasias funcionam em detrimento de efetivos programas de ação. Assinala que estes, para os mais velhos, não são comparáveis aos da criança, cujo programa de vida ainda está em aberto. Mas diz ele:

A vida humana nunca está fechada, a não ser que ela esteja realmente encerrada e entre condições físicas de total impotência para tudo, como as condições terminais. Exceto essa situação, programas existem sempre, e a possibilidade de os realizar é o antídoto contra a finitude. (Bobbio 1997, p.29)

Diante do exposto, embora cientes de que, como nos ensinou Morin (1997): "A maior certeza que nos tenha sido outorgada é a da ineliminabilidade da incerteza", através de nossa experiência clínica, estudos e reflexões, temos razões para supor que a espiritualidade secreta um otimismo que favorece a saúde física e mental, propiciando-a muitos idosos ultrapassarem sua angústia das perdas narcísicas e do confronto com a transitoriedade. Angústia, essa acelerada pelas mudanças bio-psíquicas num meio social distante, descontínuo e, muitas vezes, hostil; Confronto esse intensificado pela morte de parentes, amigos e contemporâneos que vão deixando os mais velhos mais solitários diante da própria extinção. E, desse modo, mais propensos a redimensionar seus valores e resignificar o sentido da existência.

Com efeito, ainda não podemos fazer afirmações mais consistentes sobre o binômio espiritualidade-envelhecimento. Nem sequer conseguimos responder se um possível acréscimo do nível de espiritualidade, com o avançar da idade corresponde a um desejo aumentado por uma vida eterna, já que se avizinha o fim, ou designa um nível de maturidade que permite solidificar o sentido da própria vida e aceitar a morte - polêmica que permanece entre diferentes concepções em psicologia. Talvez até uma hipótese possa se entrelaçar com a outra, pois o desejo de vida após a morte leva à esperança, a qual estimula abrir caminhos para se viver os anos mais tardios com motivação e com projetos, conduzindo a prováveis atitudes serenas, amadurecidas e equilibradas.

Por fim, ainda podemos nos inspirar em poetas e artistas que costumam intuir o que a ciência irá descobrir. Como diz Gilberto Gil: "a fé não costuma falhar (...)" Ou, ainda, como nos brinda o poeta Menotti del Picchia:

QUE SABES TU DO FIM?
SE TEMES QUE SEU MISTÉRIO SEJA UMA NOITE, ENCHE-A DE ESTRELAS.
CONSERVA A ILUSÃO DE QUE TEU VÔO TE LEVE SEMPRE MAIS PARA O ALTO.
NO DESLUMBRAMENTO DA ASCENSÃO,
SE PRESSENTIRES DE QUE AMANHÃ ESTARÁ MUDO,
ESGOTA COMO UM PÁSSARO, AS CANÇÕES QUE TENS NA GARGANTA.
CANTA! CANTA PARA CONSERVAR UMA ILUSÃO DE FESTA E DE VITÓRIA.
TALVEZ AS CANÇÕES ADORMEÇAM AS FERAS
QUE ESPERAM DEVORAR O PÁSSARO.
DESDE QUE NASCESTE NÃO ÉS MAIS QUE UM VÔO NO TEMPO.
RUMO AO CÉU?
QUE IMPORTA A ROTA!
VOA E CANTA ENQUANTO RESISTIREM AS ASAS.

 

Referências

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Recebido em 12 de maio de 2003
Aceito em 26 de maio de 2003
Revisado em 22 de julho de 2003

 

 

* Trabalho pautado para Mesa Redonda: Estimulando Competências e Recursos Espirituais, na qualidade de palestrante, no III Congresso de Geriatria e Gerontologia do Rio de Janeiro, de 28/8/2003 a 30/8/2003.

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