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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.4 n.2 Fortaleza set. 2004

 

ARTIGOS

 

Tempo do sujeito, tempo do mundo, tempo da clínica*

 

 

José Newton Garcia de Araújo

Psicólogo, mestre em Filosofia pela UFMG, doutor em Psicologia Social e Clínica, pela Universidade de Paris 7, professor da PUC Minas. Rua Grão-Pará - 1060, Ap. 101 - Funcionários, CEP: 30.250-341, Belo Horizonte - Minas Gerais, e-mail: jinga@uol.com.br

 

 


RESUMO

Ao comparar as concepções do tempo clássico da física e do tempo da subjetividade, o texto coloca em questão, na dimensão do "tempo vivido", a tese da primazia do futuro, e na dimensão do "tempo do mundo", a tese da primazia do presente. Algumas considerações complementares dizem respeito ao sentido do tempo na psicanálise, em especial no trauma e no trabalho analítico.

Palavras-chave: tempo; tempo vivido; primazia do futuro; primazia do presente; tempo e psicanálise.


ABSTRACT

Comparing the conceptions of the classical time of physics and the time of subjectivity, the text discusses, in the "lived time" dimension, the thesis of the future primacy and, in the "time of world" dimension, the thesis of present primacy. Some complementary considerations concern the meaning of time in the psychoanalysis, specially in trauma and in analytical work.

Keywords: time; lived time; primacy of future; primacy of present; time and psychoanalysis.


 

 

O ponto de partida desta exposição é um rápido percurso sobre algumas concepções do tempo que apontam para importantes diferenças, quando tentamos defini-lo. A primeira delas vem do olhar clássico da física que vê o tempo como um objeto independente do sujeito. Tomemos duas definições bastante conhecidas. A primeira é de Aristóteles (1995), para quem "o tempo é o número ou a medida do movimento, segundo um antes e um depois"1.

Muito tempo depois dele, Newton (1687/1990, p. 6) dizia que "(...) o tempo absoluto, verdadeiro e matemático por si mesmo e por sua própria natureza, flui uniformemente, sem nenhuma relação com as coisas exteriores a ele e é chamado duração."

Nestas definições, como se vê, o tempo é independente das coisas e da consciência. Cada segundo, minuto ou dia seriam absolutamente iguais um ao outro, em seu passar e em sua "medida". As mudanças aconteceriam no tempo tal como os corpos se distribuem no espaço, nenhum instante sendo qualitativamente diferente do outro. Enfim, o tempo seria um dado, um objeto absolutamente independente do sujeito.

Deixando de lado outros importantes autores, clássicos e contemporâneos, oriundos da filosofia, da física, da psiquiatria, da história, coloco Santo Agostinho (1970) e Heidegger (1927/1960), na outra vertente. Em Ser e Tempo, o filósofo alemão considera a definição de Aristóteles como uma "concepção vulgar" do tempo. Suponho, aliás, que tal definição deve ser também insatisfatória para nós que temos a realidade psíquica como nossa matéria temporal privilegiada. Com efeito, podemos tomar o tempo como uma "experiência vivida", na esteira daquilo que Santo Agostinho, em sua concepção intimista, denominava "tempo da alma". Dele conhecemos bem a célebre pergunta: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada." (Agostinho, 1970, Livro XI, cap. XIV). No entanto, mais importante, em suas Confissões, é a afirmação segundo a qual o tempo é o movimento do espírito, o espírito se distendendo (ou distendendo o tempo) na duração, se manifestando como passado, presente e futuro.

Num vocabulário atual, estaríamos colocando o tempo no terreno da subjetividade. E de duas maneiras: em primeiro lugar, saímos da homogeneidade, na qual cada instante é igual ao anterior e ao posterior. Ou seja: subjetivamente, o tempo pode ser distendido, vivido como muito lento ou muito rápido, dependendo da situação. Por exemplo: numa partida de futebol, ele parece se esgotar muito depressa, para o time que está perdendo por uma diferença mínima, e muito lentamente para o que está vencendo sob forte pressão do adversário. O mesmo sentimento de um tempo que escoa muito depressa pode ocorrer quando, no caso de um acidente ou um adoecimento súbito, corremos aflitos atrás dos cuidados médicos, a fim de que o paciente possa ser atendido "a tempo".

Muitos outros exemplos caberiam aqui, relativamente às maneiras distintas de experimentarmos o passar do tempo. Assim, se tomarmos as ditas etapas do desenvolvimento biológico e psicossocial, sabemos que ele é sentido de formas distintas na infância, na adolescência e na idade adulta, observadas aqui suas singularidades sócio-culturais e históricas. Um ano numa prisão ou num leito de hospital tem um sabor temporal diverso de um ano vivido no livre exercício da cidadania, no trabalho ou no lazer. Quem não sonhou paralisar ou eternizar um momento de êxtase amoroso, de suposta felicidade? (Lembremos os versos da música "Olê, olá", de Chico Buarque,: "um sonho tão imenso / que eu às vezes penso / que o próprio tempo / vai parar para ouvir."). Ou quem não desejou apressá-lo, para escapar de uma situação cuja seqüência se tornaria insuportável?

Nesses exemplos, o tempo se distende qualitativamente. Nós o experimentamos como inimigo ou aliado, monótono ou prazeroso, tempo de alegria ou de tédio, de esperança ou desespero. Enfim, ele se desenrola em seqüências bastante distintas umas das outras. Por isso, cabe afirmar que, em nosso cotidiano, vivemos uma nítida falta de "con-seqüência" temporal.

A homogeneidade temporal estaria descartada, aliás, até em nossa percepção de fenômenos naturais. Assim, falamos do tempo do inverno e do verão, tempo do florescer e do amadurecer, do plantio e da colheita, de seca ou de chuva, tempo da gestação, do desenvolvimento, do envelhecer. E destes deslizamos para os fatos sociais e culturais, também inscritos numa temporalização qualitativa, como: tempo de guerra ou de paz, tempo de destruição ou reconstrução, tempo de vacas magras ou gordas que, na economia, se juntam a expressões como "década perdida", "trinta anos gloriosos" e assim por diante.

Em todos esses casos, resta uma evidência: quem fala do tempo, quem o qualifica, quem o sente lento ou rápido, socialmente mortífero ou renovador, é o olhar ou a alma humana, a consciência, a tonalidade afetiva que nos rodeia, enfim, é o sujeito individual ou coletivo. Nesta ótica, o tempo não existe como uma realidade do mundo, externa ou separada do sujeito.

Heidegger (1927/1960) retomou, de maneira definitiva e com ressonâncias decisivas na psicologia existencial e na psicanálise, a distensão agostiniana do tempo. Ao colocar a "pergunta sobre o ser" (die Frage nach dem Sein), é no tempo que ele vai buscar o horizonte de toda compreensão do "ser", no caso, o Dasein,2 o ser-aí (que é o ser humano, mas que o filósofo evita chamar de homem, consciência ou sujeito). Ao compreender o tempo como "horizonte do ser", ele o situa numa trama em que o agora está estruturalmente entrelaçado com um antes e um depois. Assim, o tempo se desenvolve na unidade de seus três momentos, numa trama que, na ontologia heideggeriana, escapa ao sentido ordinário de futuro, passado e presente.

Temos então três dimensões temporais: a) o por-vir (Zukunft), compreende as possibilidades que abrem ao inacabado, ao que vulgarmente chamamos de futuro. No entanto, esse por-vir não é aquilo que "ainda não é", ele "já é", enquanto perspectiva, enquanto parte de minhas expectativas atuais. É uma antecipação, no presente, pela qual o Dasein se refere às suas possibilidades próximas ou remotas. Como antecipação, eu já "sou" o que "serei" amanhã (ou daqui a vinte ou cinqüenta anos), já estou "precursando" minhas possibilidades; b) o ser-sido (Gewesenheit), não é propriamente o passado, mas a maneira pela qual o Dasein se volta a ele. Ele não é aquilo que "já não é mais", é nossa capacidade de voltar-nos, no agora, a experiências anteriores. Posso ter noventa anos, mas toda a minha história passada "é" presente para mim, faz parte do meu hoje. É no agora que olho para o primeiro dia em que fui à escola e aquele dia de meus sete anos se tornam "presente" para mim. Então eu sou, no presente, todo o meu ser-sido, que vulgarmente chamamos de passado; c) o "estar em situação" (Gegenwart), refere-se à dimensão do presente. Mas esse não se confunde com o puro "agora" ou com uma série homogênea de "agoras", independentes e sempre iguais um ao outro. Isto porque cada momento só tem sentido como presente, porque o Dasein captura, numa mesma visada, o conjunto de nossas possibilidades (o por-vir) e de tudo que constitui nosso ser-sido. Um exemplo corriqueiro, em "tempo de olimpíadas": quando o atleta salta na piscina olímpica, ele tem presente, em perspectiva, todos os anos (o ser-sido) de sua aprendizagem de nadador, ao mesmo tempo que se imagina no pódio ou fora dele, na próxima olimpíada, ou, por hipótese, como treinador de novos atletas, quando deixar de nadar ou, mais ainda, sua aposentadoria, sua velhice e sua morte.

É importante observar que, em cada uma dessas formas de encontrar-se-aí (Befindlichkeit), o sujeito não pensa, não se focaliza reflexivamente no presente, no passado ou no futuro, mas ele "sabe" irreflexivamente essas dimensões. Na linguagem heideggeriana, o Dasein "está em situação" (presente) no movimento de ad-vir (ao pódio, à próxima olimpíada, à idade adulta) retro-vindo (ao passado, aos anos do aprendizado de natação). Ou seja, é estando "em situação" (presente), que o Dasein vislumbra, num movimento unitário, o por-vir (futuro) e o ser-sido (passado). Daí a fórmula que nos serve como síntese: o Dasein só se faz presente a si mesmo, enquanto se antecipa em seu passado.

Lembremos aqui, de passagem, que Santo Agostinho, ainda nas Confissões (cap. XX), escrevia que não se pode dizer que há três tempos chamados passado, presente e futuro. Estes deveriam se chamar "o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro". E quase ao mesmo tempo de Heidegger, Husserl (1928/1959), ao propor uma fenomenologia da consciência do tempo, evoca também três momentos: a "retenção" do evento que acabou de passar, o "agora" que retém este passado e se antecipa, pela "protenção", no evento que está por vir. Tais momentos são também apreendidos por uma só visada, também não reflexiva, que ele chama de "síntese passiva" do tempo.

Em Heidegger (1927/1960), as três dimensões do tempo constituem os ek-stases, a exteriorização do tempo, uma triplicidade unitária e não três momentos fragmentados e independentes um do outro. Segundo Merleau-Ponty (1945/1985), o exteriorizar-se do tempo não significa que ele é um objeto fora da consciência, pois é a consciência que o remete para frente e para trás. Por ela, caminhamos pelo passado ou pelo futuro, por ela experimentamos que o agora é o presente, distinto do passado e do futuro. Esta é uma outra forma de dizer que os "ek-stases" revelam a dimensão unitária da temporalidade. O tempo não é, pois, uma sucessão de eventos exteriores que registramos ou contemplamos "lá fora". Ele nasce de minha relação com as coisas. Desse modo, mesmo quando um acontecimento se torna passado, ele "não deixa de ser". Afinal, o tempo conserva, mais do que na simples lembrança, aquilo que ele fez existir, no momento mesmo em que ele o retira do existir (do agora). Mesmo quando Merleau-Ponty escreve que o tempo não passa, que ele está sempre aí, em seu devir, que a única coisa que não passa no tempo é o seu passar - afinal, quem passa mesmo somos nós - entendamos que este passar é algo que ocorre na consciência, não fora dela. Assim, a temporalidade não é um atributo exterior à existência, é a existência mesma.

Nesta concepção fenomenológica, evidencia-se uma premissa que certamente é respaldada pela prática clínica: o horizonte do tempo desfaz ou subverte a ordem cronológica da física, do relógio ou do calendário. No entanto, enquanto elaborava o presente texto, cismei de me interrogar sobre uma outra proposição diretamente ligada a esta perspectiva. Trata-se da hipótese, segundo a qual, na abordagem do tempo vivido, o futuro tem primazia ou anterioridade sobre o presente e o passado. Tomemos, por exemplo, a analítica do Dasein, em Ser e Tempo, na qual Heidegger apreende o ser-aí como "ser para a morte" (Sein zum Tode). Nesse horizonte, é a antevisão de próprio fim (futuro) que determina o modo pelo qual o Dasein se compreende (presente) como "lançado" (passado) no mundo. Isso equivaleria a dizer: é o futuro que nos move ou "dá sentido" ao presente (sentido como uma seta, como o curso de um rio). Até aqui, nada a refutar. Aliás, sempre acolhi esta hipótese original, quando ela remete ao "tempo vivido". No entanto, voltei a me perguntar, enquanto escrevia este texto, sobre a pertinência deste ponto de vista.

E qual foi a minha pergunta? É a seguinte: haveria mesmo uma primazia do futuro? Ou então: não deveriam os três ek-stases da temporalidade ser assumidos como tendo uma mesma pregnância, uma mesma valia ou "peso"? Em outras palavras: se é a antecipação de meu fim que dá sentido ao meu "pro-jeto" ou que orienta minha presente "decisão" (Entschlossenheit), isso só ocorre porque, ao jogar-me lá na frente, eu o faço voltando-me ao passado, num mesmo "piscar de olhos". Ou seja, no movimento mesmo de me antecipar, vou "pedir licença" ao passado, nele buscando o fundamento ou a coerência de minha ação ou de minha "decisão" (presente) que dá curso ao meu "pro-jeto". Aqui torna-se imperativo relembrarmos a fórmula: "o Dasein se antecipa em seu passado". Isso quer dizer: ele só está "lá na frente", porque está também e num só olhar, mergulhado no "lá atrás". Em resumo: se compreendemos a temporalidade em sua triplicidade unitária, não há como privilegiar um de seus momentos (o futuro), em relação ao presente e ao passado. Aliás, não se trata também de propor que tal primazia seja revertida ora ao presente ora ao passado. Trata-se tão somente de considerar a temporalidade no entrelaçamento estrutural de seus três momentos.

Essa concepção fenomenológica do tempo, no entanto, não é consensual, esbarrando ainda hoje em sólidas argumentações de autores como Comte-Sponville (2000) que propõe, por exemplo, uma distinção entre as noções de tempo e de temporalidade, ou seja, entre "tempo real" ou "tempo do mundo", de um lado, e 'tempo da consciência" ou da alma, de outro lado. Ele escreve:

Mas esse tempo não é o tempo real, não é o tempo do mundo, não é o tempo da natureza; é o tempo da alma, é o tempo do espírito, e o que chamaríamos melhor de temporalidade, entendendo por isso a unidade - na consciência, por ela, para ela - do passado, do presente e do futuro. (Comte-Sponville, 2000, p.31).

Em uma rigorosa argumentação, o autor nega a tese fenomenológica segundo a qual o tempo só existe para o sujeito, na consciência. Dizendo levar a física e a biologia mais a sério do que a fenomenologia, o autor afirma, então, a primazia do presente sobre o passado e o futuro. Na verdade, não se trataria nem mesmo de uma primazia, mas de uma exclusividade do presente, quando o assunto é o "tempo do mundo". Para ele, "o presente é o único tempo disponível, o único tempo real" (Comte-Sponville, 2000, p. 47). Assim, o tempo do mundo precede a temporalidade.

(...) fica claro, pois, que o tempo (o tempo objetivo: o tempo do mundo) precede a temporalidade (o tempo subjetivo: o tempo da alma) e, por conseguinte, não poderia se reduzir a ela, nem mesmo depender dela. (Comte-Sponville, 2000, p. 39)

Assim, ele não só preconiza a existência de um tempo cósmico ou da natureza, mas ainda a anterioridade deste sobre o tempo subjetivo: "se o tempo só viesse ao mundo por nosso intermédio, como nós poderíamos ter vindo ao mundo?" (Comte-Sponville, 2000, p. 38).

No entanto, o autor nos deixa algumas pistas para discutirmos a divergência entre os fenomenólogos e os físicos. Por exemplo: ele cita Marcel Conche3, para quem a natureza é "a onipresente", uma vez que, para ela e nela, tudo que é "é agora", sem futuro e sem passado. Logo em seguida, relata a objeção que um físico lhe faz: "tudo o que conhecemos da natureza já é passado (...) já que é preciso de tempo para tomar consciência disso (...)" (Comte-Sponville, 2000, p. 46)

Aí está: se tudo que conhecemos da natureza é passado, esse passado só o é para o sujeito que conhece, não para a natureza mesma, pois ela, em sua onipresença, nem "se sabe" nem tem consciência de si, não se projeta num antes ou num depois. E aqui voltamos a uma tese tão cara à fenomenologia: o mundo só é mundo para uma consciência, mesmo que ele exista antes ou depois da consciência. Com efeito, só esta é capaz de nomeá-lo. Em outras palavras: o tempo do mundo só é passado para o cientista, assim como o seu futuro (sabemos, por exemplo, que a Terra chegará ao tempo de sua morte cósmica. Isso ainda não aconteceu, mas esse futuro já é presente na consciência do cientista). E quando diz que "o presente é o único tempo real", este filósofo parece retirar justamente a essência do tempo, pois se dele retiramos as dimensões de passado e futuro, ele deixaria de ser tempo, para se tornar um eterno presente. Aliás, é nessa trilha que ele propõe sete teses sobre o tempo, entre as quais "o tempo é o presente", "o tempo é a eternidade", "o tempo é matéria", além de outras que não cabe discutir aqui. Tomemos apenas mais uma citação na qual ele situa sua posição epistemológica: "Digamos que o que eu chamo de presente pertence a essa sucessão pura, sem memória nem projeto, como o perpétuo um da natureza. Será tempo?" (Comte-Sponville, 2000, p. 67)

Será? Parece que o próprio autor está respondendo "não", pois a sucessão pura é ausência de memória (passado) e de possibilidades (futuro), ou seja, é esse um homogêneo, informe e vazio. Se evocamos a linguagem mítica da criação do mundo, encontramos um "vazio sem tempo", pois anterior à própria criação, anterior ou fora da História. E quando não havia tempo nem História, como nas primeiras linhas do Gênesis (1,2), "a terra (...) estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo". Com efeito, o mundo só começa a ser mundo quando ele é objeto de uma narrativa. E essa narrativa seria o fóton originário do "faça-se a luz" que inaugura a História e o tempo humano (claro, a História também não existe fora da consciência). Enfim, o mundo não existia antes de ser narrado, assim como um corpo celeste não existe antes de ser descoberto, antes que o cientista lhe dê um nome. O mundo e o tempo foram criados pelo verbo, pela descoberta, pelo saber, pela narrativa. Ou seja, se o homem nunca chegasse a existir, na escala da evolução biológica, nunca haveria mundo. Neste sentido, também cai por terra a distinção feita por Comte-Sponville (2000, p. 91) entre insistir (atributo das coisas) e existir (atributo do homem, da consciência).

Não cabe aqui polemizar mais longamente com o autor, cuja argumentação, rigorosa e fundada numa invejável erudição filosófica, merece toda admiração. Trata-se apenas de marcar uma posição: não existe tempo que não seja o "tempo do sujeito", posição esta evidentemente contestada pelas abordagens "naturalistas".

As discussões acima têm certamente ressonâncias nos debates que envolvem as relações entre o tempo e as práticas clínicas. Em primeiro lugar, considero que há razoável convergência, respeitadas as distâncias teóricas, entre as perspectivas fenomenológico-existencial e a psicanalítica. Tais distâncias e aproximações não serão discutidas nesta exposição. Mas basta lembrar que, para ambas, o tempo é irreverente ou avesso à lógica aristotélica ou newtoniana do antes e do depois. Sobre o tempo na psicanálise, teríamos extensa matéria de debates e estudos, basta evocar a fecundidade teórica das relações entre tempo (ou atemporalidade?) e inconsciente. E daí viriam tantas outras: tempo e sonho (e/ou devaneio, que é "sonho diurno" ou de vigília), tempo e recalcamento, tempo dos fantasmas (originários, conscientes e inconscientes), tempo e imaginário, tempos do gozo, da perversão, e assim por diante. Como esta temática não será discutida aqui, queria apenas lembrar a proposta de Le Poulichet (1996), no sentido de que falta elaborar um conceito que Freud deixou de tematizar, ou seja, o trabalho do tempo, uma vez que ele nos legou importantes elaborações sobre outros "trabalhos", como o trabalho do sonho, o trabalho do luto, a per-labor-ação, etc.

Ainda dentro das relações entre tempo e psicanálise, gostaria de evocar, também sucintamente, as relações entre o tempo e o trauma, uma vez que é em torno da temática do trauma que estamos reunidos neste congresso. Meu ponto de partida foi uma pergunta sobre a apropriação que o senso comum faz da noção de trauma. Lembrei-me então de uma mãe que, recentemente, me falava do "trauma' de seu filho de sete anos: "ele não quer voltar mais à escola porque se sentiu humilhado pelos coleguinhas, acho que ele ficou traumatizado". Tentemos entender a linguagem dessa mãe: um evento (passado) supostamente traumático, a humilhação, é a causa da reação (presente) da criança, o que compromete a continuidade (futuro) de seus estudos. Para nós, evidentemente, seria temeroso atribuir a um episódio pontual o estatuto de trauma, pois o termo parece bastante banalizado, na linguagem corrente. Além disso, esse relato ligeiro da mãe não nos fornece nenhum dado que permita, por exemplo, localizarmos um evento-fonte, cujo excesso de excitação se tornou intolerável para o filho; nem localizarmos uma "cena anterior" despertada a posteriori; nem falarmos de uma angústia automática, cujo "sinal" remeteria aos "perigos" interno e externo. Além disso, o relato da mãe supõe a relação causa-efeito, na qual o tempo é tomado como uma sucessão linear de eventos. Ora, a economia psíquica se desenrola no além da "cena manifesta" e da causalidade linear, nos convidando a perguntar sobre a "outra cena" ou sobre "outro tempo", como aquele das origens ou do fantasma, por exemplo.

Em contraponto a essa apropriação vulgarizada do termo, tomemos uma outra abordagem que se afasta da lógica causalista e linear, na análise das relações entre o tempo e o trauma. Faço-o apenas de passagem, a fim de apontar para a distância entre as duas perspectivas. Refiro-me ao trabalho de Knobloch (1998), no qual a autora postula uma "outra temporalidade" para se pensar o trauma. Ela se baseia na hipótese segundo a qual o trauma estaria no registro daqueles eventos que não se encontram no sistema de representações, de modo que o sujeito, em vez de sofrer de reminiscências, como queria Freud para a histeria, sofre justamente da ausência de reminiscências, sua dor sendo, portanto, irrepresentável. Diz a autora:

Nessa mesma linha, fala-se de "doenças" que teriam a ver com o fato de que o trauma não pôde se inscrever - ou seja, parte-se da idéia de que o trauma deve ser inscrito, e que a análise visaria essa inscrição (...) Mas se o trauma não pôde se inscrever, como se poderia tratar, na clínica, de lembrar o que não pôde ser esquecido, exatamente por não ter sido inscrito? (...) Nesse caso, se trataria de permitir que esse impossível se anuncie e, para isso, seria necessário buscar meios que possibilitem o que eu chamaria de "trabalho" do traumático. (Knobloch, 1988, 116).

Na perspectiva desta autora, o trauma é tomado numa radicalidade que retira o sujeito de seu tempo histórico, ou seja, se o trauma não se inscreveu, o tempo do sujeito pode ser congelado num "presente absoluto", sem memória e, conseqüentemente, sem por-vir. A autora se refere, pois, a uma patologia da experiência temporal.

Fica aqui uma pergunta: até que ponto toda experiência traumática supõe essa radicalidade? Seria ela sempre absolutamente intolerável, a ponto de "não se inscrever" ou a ponto de provocar necessariamente uma patologia da temporalidade? Teria ela, sempre, o poder de anular a experiência do tempo como um horizonte no qual presente, passado e futuro caminham entre si, se entrelaçam, de modo que o sujeito possa se representar em sua totalidade temporal e histórica? Coloco tais perguntas sem o propósito de respondê-las aqui.

Volto, então, ao propósito primeiro deste texto, o que supõe duas hipóteses de trabalho: a primeira, quer falemos de eventos traumáticos ou não, sustenta que, na dinâmica psíquica, entram em jogo, com forças quase sempre imponderáveis, as instâncias desejantes, o imaginário, o fantasma, o recalque, o trauma etc; a segunda considera ingênuo afirmar que algumas dessas instâncias remetem apenas ao futuro, como o desejo, enquanto outras são devedoras apenas do passado, como o recalque. Com efeito, na abordagem da temporalidade, tal como aqui discutida, nenhuma dessas instâncias remete apenas a um momento do tempo, uma vez que cada qual penetra, a seu modo, no passado, no presente e no futuro, subvertendo, como já se disse, a linearidade temporal.

É tal subversão, aliás, que provoca algo extraordinário, quando falamos de tempo: ele é capaz mesmo de transformar aquilo que já é passado. Mas como? Pode-se intervir naquilo que é passado, naquilo que já ocorreu? Aqui voltamos à relação íntima e necessária entre o tempo e a subjetividade. Em outras palavras, no "tempo da alma" (não no "tempo do mundo") é possível ressignificar uma experiência passada, seja ela traumática ou não. Nesse caso, aquilo que "era" (vivido como) não o "é" mais. Nesse caso, aliás, haveria lugar para a realização daquilo que Knobloch chama de "trabalho" do traumático.

Evidentemente, é importante precisar aqui a natureza do objeto transformado "em seu passado". Estamos no terreno da subjetividade. Só assim é possível discutir o modo como retínhamos "tal objeto" no psiquismo e como foi possível lhe atribuir, no presente, um outro sentido. Ou como se pode remover a dimensão paralizante do trauma.

A este respeito, ajunto duas observações. A primeira tem a ver com a não-exclusividade do trabalho analítico ou psicoterapêutico, no processo de ressignificação de um evento x ou y. Este processo pode ser deslanchado a partir de inúmeros eventos que nos afetam, inesperadamente ou não, na vida cotidiana. A segunda, no entanto, diz respeito à especificidade do trabalho analítico. Nesse caso, lembro aqui a pergunta feita por Le Poulichet (1996, p. 8): "o que faz o tempo na análise?", principalmente em relação à repetição de experiências dolorosas. A autora entende, então, que "os" tempos acionados pela análise não se regulam pelo relógio, mas pela transferência, situando aí os "tempos de transposição e de transformação", ou seja, tempos nos quais a repetição dá lugar à perlaboração, tempos nos quais redesenhamos o futuro, reconstruindo o passado.

Então voltemos à pergunta: haveria mesmo uma primazia, uma prioridade do futuro sobre o passado? Para responder, coloquemos na balança psíquica as seguintes ponderações: de um lado, é verdade que somos como que puxados "de lá da frente", enquanto o sentido do futuro determina nosso presente. De outro lado, podemos ser puxados ou paralizados "de lá de trás", quando um evento passado nos paraliza no presente da repetição. Ora, o tempo psíquico é uma trama na qual os conflitos se desenrolam numa dinâmica que confirma justamente o entrelaçamento dos três momentos temporais. Se assim não fosse, não poderíamos falar de uma triplicidade unitária, na qual cada dimensão do tempo remete, sem cessar, a cada outra. A hipótese da primazia de uma ou outra dimensão "ek-stática" remeteria, antes, a uma patologia da experiência temporal, ora quando o passado nos paraliza, anulando toda possibilidade de um projeto, ora quando o futuro é por demais fantasioso, denegando aquilo que "somos sido", ora quando o presente se torna um eterno agora ou pura circularidade, anulando os horizontes passado e futuro.

Para terminar, não poderia deixar de evocar uma questão que remete ao próprio título deste congresso que é a "Psicopatologia Fundamental", ou seja, evocar as relações entre tempo e pathos. Do ponto de vista clínico, teríamos alguns conceitos-chave que giram em torno destes. Se fôssemos falar apenas de tempo, uma tríade primeira seria Eros,Thanatos, Cronos - remeto aqui ao título do texto de Marie Bonaparte (1952/1973). Mas se o ponto de partida é pathos, proponho uma outra tríade, ao convocar o conceito de angústia, com base na analítica do Dasein. Com efeito, juntamente com tempo e pathos, a angústia compõe uma outra triplicidade que sintetiza a própria existência. E seria inútil perguntarmos se algum destes conceitos tem prioridade ontológica ou afetiva sobre os dois outros, pois cada qual seria apenas uma outra forma de nomearmos o mesmo "sem fundamento" da existência. Enfim, se dissermos, na trilha do pensamento heideggeriano, que a angústia é a condição original do tempo, isso significa que o Dasein se descobre "lançado no mundo", em uma estranheza que só pode ser vivida no registro de pathos.

Nesse mesmo sentido, é essencial lembrarmos a complexidade, a ambigüidade ou multivocidade das noções de pathos e de angústia, enquanto ambas remetem à imagem mitológica de Cronos, o deus-tempo que cria e devora os seus filhos. Ou seja, angústia, tempo e pathos devem ser compreendidos em sua ambivalente possibilidade de vida e de morte, de criação e destruição, de realização ou de malogro existencial. Assim, enquanto gerados no humus da angústia, somos afetados pelo pathos do tempo. Creio que os três conceitos desafiam a prática clínica, pois esta sempre teve e continua a ter com eles uma dívida impagável, em termos de investigação teórica.

 

Referências

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Comte-Sponville, A. (2000). O ser-tempo. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

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Husserl, E. (1959). Fenomenología de la conciencia del tiempo inmanente. Buenos Aires: Nova. (Originalmente publicado em 1928).         [ Links ]

Knobloch, F. (1998). O tempo do traumático. São Paulo: Educ/Fapesp.         [ Links ]

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Puente, F. R. (2001). Os sentidos do tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola.         [ Links ]

Newton, I. (1990). Principia: Princípios matemáticos de filosofia natural. São Paulo: Nova Stella/EDUSP. (Originalmente publicado em 1687).         [ Links ]

 

 

Recebido em 07 de junho de 2004
Aceito em 23 de junho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004

 

 

* Este texto, com algumas modificações posteriores, foi apresentado no VII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental e I Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, de 4 a 7 de setembro de 2004.

Notas

1 Esta definição de Aristóteles é certamente a mais conhecida. No entanto, a questão do tempo, para o filósofo, comportaria questões cruciais sobre as relações do homem com o tempo. Ao investigar, em Aristóteles, os diversos termos que remetem ao fenômeno temporal e seus múltiplos sentidos, Puente (2001) aí inclui não só sua dimensão cognitiva - percepção, pensamento, lembrança, memória -, mas questões outras como a verdade, a ética, a arte, a política, o afeto, as relações entre razão, desejo e impulso, entre outras.
2 Os demais termos em alemão que utilizaremos neste texto, entre parênteses, fazem parte da aparato conceitual construído por Heidegger para explicitar a estrutura da temporalidade em Ser e Tempo.
3 Ver: CONCHE, Marcel. (1992). Temps et destin. Paris: Presses Universitaires de France.

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