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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.7 n.2 Fortaleza set. 2007
ARTIGOS
Abrigo para crianças de 0 a 6 anos: um olhar sobre as diferentes concepções e suas interfaces
Lília Iêda Chaves CavalcanteI; Celina Maria Colino MagalhãesII; Fernando Augusto Ramos PontesIII
IProfessora do Departamento de Políticas e Trabalhos Sociais. Doutoranda pelo Programa de Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. End.: Av. Magalhães Barata, 1027, apt. 1601, São Brás. Belém, PA. CEP: 66063-240. E-mail: lilia.cavalcante@uol.com.br
IIProfessora Doutora do Departamento de Psicologia Experimental e do Programa de Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. E-mail: celina.magalhaes@pesquisador.cnpq.br
IIIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia Experimental e do Programa de Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. End.: Rua Farias Rodrigues, 16, Curió-Utinga. Belém, PA. CEP: 66610-530. E-mail: fernando.pontes@pesquisador.cnpq.br
RESUMO
Este artigo procura sistematizar referenciais e concepções presentes na literatura que têm orientado a discussão sobre o que são e como funcionam os abrigos para crianças na faixa-etária de 0 a 6 anos. Nesse sentido, apresenta e discute concepções que definem o abrigo enquanto 1) instrumento da política de proteção social à infância, 2) instituição asilar infantil, 3) ambiente coletivo de cuidado e 4) contexto ecológico do desenvolvimento humano. O tom paradoxal que marca a relação entre proteção e risco em estudos sobre a qualidade do ambiente físico e social em instituições de abrigo é discutido em função da natureza complexa dessa modalidade de cuidado infantil e as implicações de suas características contextuais para o desenvolvimento da criança institucionalizada.
Palavras-chave: infância, criança institucionalizada, abrigo para crianças, desenvolvimento infantil, cuidado infantil.
ABSTRACT
This article systematizes the conceptions in literature that have been guiding the discussion on what are and how operate shelters for children in the age from zero to six years old. In this way, it presents and discusses conceptions that define shelter as: 1) an instrument of social politics for childhood protection; 2) an institution for sheltering children; 3) a collective environment for care; and 4) an ecological context for human development. The paradoxical tone that marks the relationship between protection and risk in many studies about quality of physical and social environment in shelters is discussed in function of the complex nature of that kind of infantile care and the implications of their contextual characteristics for institutionalized child development.
Keywords: childhood, institutionalized child, shelter for children, infantile development, child care.
Introdução
Em todo o país, crianças são privadas do cuidado parental e vivem em instituições de abrigo por longos períodos de tempo, configurando o que especialistas definem como infância de risco (Silva et al, 1998).
Em 2004, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) solicitou ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a realização de um estudo que pudesse oferecer dados sobre a situação nacional dos abrigos para crianças e adolescentes. A pesquisa envolveu instituições de abrigo mantidas com recursos públicos do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e vinculadas à Rede de Serviços de Ação Continuada (SAC). O objetivo era construir um perfil atualizado dessas instituições para subsidiar o processo de reordenamento dos abrigos nas capitais e em diversos municípios brasileiros e, desse modo, promover a adequação das práticas institucionais aos princípios previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a partir da identificação de medidas institucionais que segregam, confinam e dificultam a preservação dos vínculos familiares. O levantamento envolveu 589 abrigos públicos e filantrópicos nas cinco regiões do país e quase 20.000 abrigados.
Embora não se saiba ao certo quantas e quais são as instituições destinadas a acolher crianças e adolescentes, tais como abrigos, internatos, orfanatos e centros de educação social, os resultados dessa pesquisa mostram que quase a metade delas está concentrada no Sudeste (49,1%), principalmente no interior do estado de São Paulo (34,1%). Em contrapartida, segundo IPEA (2004), o Norte do país apresenta o menor percentual de abrigos por região - algo em torno de 4,2%. Em Belém, existem hoje, pelo menos, seis instituições destinadas a crianças e adolescentes afastados de seus pais e/ou impedidos judicialmente de estar em seu convívio, sendo que apenas uma funciona como abrigo infantil e atende a faixa-etária de 0 a 6 anos de idade.
Com o propósito de contribuir com esse debate, este artigo resgata referenciais teóricos, autores e concepções que têm norteado a discussão sobre características que são próprias dos abrigos para crianças nos primeiros seis anos de vida e, nesse contexto, destaca a natureza complexa dessa modalidade de cuidado infantil e suas implicações para o desenvolvimento físico, psicológico e social da criança institucionalizada. Este estudo pretende, assim, identificar diferentes concepções de abrigo e suas interfaces conceituais, com a perspectiva de que a sistematização proposta possa ampliar o foco de compreensão das particularidades desse debate em distintos contextos da infância brasileira.
O que é Abrigo?
Nas acepções mais comuns, o termo abrigo é definido como asilo, esconderijo, recanto, albergue, refúgio, moradia, ninho ou acolhida. Nessas definições, se faz presente a noção de recolhimento, confinamento e isolamento social. No caso específico dos abrigos infantis, sua presença na história remete quase sempre à intenção política de afastar do olhar público aquilo que atenta contra a ordem social e a dignidade humana - o abandono de crianças e os maus-tratos na família.
Durante séculos, essa idéia influenciou a formulação das políticas de atenção à infância desvalida - sobretudo pobres, órfãos e abandonados. Mas também contribui para manter viva a crença de que o acolhimento de crianças em instituições é a medida social mais adequada em situações reconhecidas como de risco ao desenvolvimento infantil - estilo parental permissivo, indiferente ou autoritário (Weber, Prado, Viezzer e Brandenburg, 2004), acontecimentos estressantes especiais na família (Cole e Cole, 2004), ausência de rede social de apoio à família (Barker e Rizzini, 2002).
Em consulta à literatura sobre o tema, foram identificadas várias concepções de abrigo, que, à primeira vista, se diferenciam entre si, de acordo com a perspectiva teórica adotada pelos autores em pesquisas atuais ou experimentos clássicos. No entanto, considera-se que o importante para esse debate não é exatamente destacar contradições entre concepções que estão presentes na literatura sobre o tema, mas, sim, entender as diferenças existentes entre os pontos de vista dos autores como ênfases que revelam aspectos particulares da constituição dos abrigos, ontem e hoje. Nesse sentido, trata-se de compreender as interfaces possíveis entre concepções que pensam o abrigo enquanto instrumento da política de proteção social à infância, instituição de natureza asilar, ambiente coletivo de cuidado e contexto de desenvolvimento humano.
O abrigo como política social e medida de proteção especial à infância.
Trabalhos publicados por IPEA (2004), Rizzini & Rizzini (2004), SAS (2004) e UNICEF (2005) consideram que o abrigo funciona como instrumento da política social, quando oferece assistência à criança que se encontra sem os meios necessários à sobrevivência (moradia, alimentação, atenção à saúde e educação), ou mesmo diante da incapacidade dos pais e/ou responsáveis para cumprir com as obrigações de guarda e sustento dos filhos, por um tempo determinado ou de maneira definitiva.
No que se refere à sociedade brasileira, observa-se que a trajetória das políticas sociais de assistência à infância vulnerável se confunde com o processo de construção histórica de uma cultura política que, desde o período colonial, mantém viva a tradição de internar crianças e jovens brasileiros em instituições. De acordo com estudos realizados por Rizzini & Rizzini (2004), até o século XIX, os filhos de famílias pobres freqüentemente cresciam em instituições como colégios internos, seminários, asilos, escolas de aprendizes de ofício, educandários e reformatórios.
Rizzini & Rizzini (2004) consideram que o abrigo representa uma medida de proteção à criança que experimenta situações cotidianas de grave risco à sua integridade física, psicológica e sexual. Nesse contexto, os autores entendem que o atendimento em abrigo precisa ser reconhecido efetivamente como uma medida de proteção especial à infância vulnerável ao abandono e à violência, ou seja, em situações nas quais há ameaça ou violação a qualquer um de seus direitos fundamentais.
No Brasil, assim como em outros países, a colocação de crianças em instituições de abrigo tem sido considerada uma medida de proteção social legítima, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas que deve ficar restrita a situações excepcionais, quando, por razões diversas, as condições postas para a convivência familiar forem inadequadas ou mesmo inexistentes. Em outras palavras, a permanência da criança em instituição de abrigo, ainda que de modo provisório, é recomendada somente em situações reconhecidas como de abandono material (precárias condições de moradia, alimentação, higiene e saúde da criança) e/ou abandono moral (processos de socialização sem qualquer forma de orientação e apoio responsivo dos pais e outros familiares).
Em várias publicações recentes, a institucionalização de crianças é reconhecida como uma prática recorrente na história da sociedade brasileira e que contribuiu em muito para consolidar uma cultura política que valoriza o cuidado e a educação dos filhos por terceiros, conforme demonstram Bernal (2004), Carvalho (2002), Marcílio (1998), Motta (2001), Parreira & Justo (2005), Rizzini & Rizzini (2004), Trindade (1999), Venâncio (1999) e Weber & Kossobudzki (1996).
Nos dias atuais, a afirmação do abrigo como medida de proteção especial à criança que está em situação de vulnerabilidade social se faz presente em grande parte dos trabalhos desenvolvidos e/ou publicados sobre o assunto. Na verdade, a cada dia, mais especialistas chamam atenção para o fato de que não há como negar que o abrigo tem funcionado como uma medida social com evidentes vantagens para criança do ponto de vista da sua segurança e bem-estar, uma vez que oferece, a um só tempo, acolhimento, moradia e cuidados diários.
Nas situações em que for constatado o abandono e/ou os maus-tratos, o acolhimento institucional deve oferecer, então, formas de atenção e apoio que poderão ser decisivas para a criança privada do convívio familiar. Desse modo, por sua abrangência e complexidade, entende-se que o abrigo deve ser visto como parte integrante da chamada Política de Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente, por reunir um conjunto ações e serviços especialmente destinados à infância em contextos de privação material e emocional.
O abrigo enquanto instituição que reproduz traços das instituições totais ou fechadas
A literatura examinada, além de enfatizar a colocação em abrigo como práticas e políticas sociais presentes na história das sociedades humanas, na qual se inclui o exemplo brasileiro, valoriza a concepção de abrigo como uma instituição que reproduz, ainda hoje, características próprias das instituições totais (prisões, conventos, manicômios, colégios internos), uma vez que oferece medidas de proteção à infância que se encontra vulnerável à pobreza, à violência, ao abandono, mas expõe inúmeras crianças a outras tantas situações de riscos, como a segregação social e a ruptura dos vínculos familiares, segundo analisam Morais, Leitão, Koller & Campos (2004), Parreira & Justo (2005), Rizzini & Rizzini (2004), Rotondaro (2002) e Silva (1997).
Assim como as instituições totais, o abrigo serve como local de moradia para a população de internos e, por vezes, concentra em um mesmo espaço práticas de lazer e atividades de cunho formativo, educativo, correcional ou terapêutico, nos moldes em que analisou Goffman (1961/1974). Além disso, os abrigos infantis podem apresentar outra característica típica das chamadas instituições totais: a existência de um numeroso grupo de internos que fica submetido à autoridade exercida por uma equipe dirigente que gerencia inteiramente a dinâmica da vida institucional.
Benelli (2003), concordando com Goffman (1961/1974), destaca que as instituições totais não apenas realizam os objetivos oficiais para os quais foram criadas, mas promovem a segregação, a estratificação social e a modelagem da subjetividade por meio de mecanismos que alternam punições e recompensas, assim como reduzem a identidade do sujeito a um atributo estigmatizante (desvalido, rejeitado, incapaz, doente) e a um único e exclusivo papel social. Em outras palavras: a subjetividade é modelada de acordo com o status que o sujeito (no caso, o interno) possui na hierarquia institucional e os dispositivos utilizados pelos dirigentes que contribuem para imprimir a marca da inferioridade em seus subordinados.
No horizonte dessas preocupações, Silva (1997) considera que o abrigo pode reproduzir traços típicos das instituições totalitárias, quando a dinâmica da institucionalização suprime a noção de intimidade, promove a segregação social, desconsidera as características peculiares de cada criança, limita as chances de escolhas e decisões pessoais, ou, ainda, controla as variáveis do ambiente social de acordo com a conveniência da instituição.
Estudos que concebem o abrigo como uma instituição capaz de reeditar características que são próprias do modo de vida presente em instituições fechadas, como os antigos orfanatos, internatos e instituições do gênero, com alguma insistência colocam em questão um padrão de cuidado infantil que pode ser bastante nocivo ao desenvolvimento humano. E, nesses termos, contribuem no sentido de se buscarem caminhos possíveis para a humanização das instituições destinadas ao acolhimento de crianças nos primeiros anos de vida, como recomendam Rizzini & Rizzini (2004) e UNICEF (1987).
É interessante destacar que o tom paradoxal que marca a relação entre proteção e risco, no cotidiano das instituições de abrigo, vem se constituindo em um convite à realização de pesquisas institucionais e acadêmicas em diferentes áreas do conhecimento (psicologia, psicanálise, educação, história, medicina, sociologia, serviço social, fonaudiologia, terapia ocupacional). Desse modo, percebe-se que vários trabalhos presentes na literatura não ficam alheios ao debate sobre os diferentes aspectos da constituição dos abrigos para crianças no Brasil, ainda que seus autores privilegiem a abordagem desse ou daquele elemento no plano da discussão teórico-conceitual.
Pelo exposto, considera-se que o debate acerca das diferentes concepções de abrigo pode fomentar a realização de novos estudos que investiguem em particular as características ambientais e a qualidade do cuidado infantil que possam ser reconhecidas como favoráveis a uma trajetória de desenvolvimento rico em possibilidades humanas, isto é, que enfatizem a dimensão protetiva dessa modalidade de atendimento à infância em situação de vulnerabilidade.
O abrigo como ambiente coletivo de cuidado infantil
Em quinze anos de existência dos abrigos para crianças no Brasil, instituições e pesquisadores, aos poucos, voltam a sua atenção para as práticas de acolhimento institucional e a condição psicossocial da criança institucionalizada. Estudos desenvolvidos, nos últimos anos, dão a noção exata do despertar do interesse de pesquisadores pelo tema e indicam as múltiplas possibilidades de investigação acerca do universo dos abrigos no contexto brasileiro, como discutem Arola (2000), Alexandre & Vieira (2004), Bernal (2004), Boff (2002), Cavalcante, Brito & Magalhães (2005), Carvalho (2002), Castanho (2003), Nogueira (2004) e Prada (2002).
Entretanto, pode-se afirmar que estudos que avaliam a qualidade do abrigo como ambiente coletivo de cuidado infantil praticamente não existem na literatura sobre o tema. O mesmo não acontece em relação às pesquisas que envolvem unidades de educação infantil (creches, pré-escolas, escolas), na medida em que a produção nacional e internacional sobre esses ambientes é vasta e com freqüência surgem estudos inéditos, como ressaltam Amorim, Yazlle e Rosseti-Ferreira (2001).
Estudos sobre instituições de educação infantil ganham, aqui, relevo por entendê-los como especialmente úteis à discussão de aspectos relacionados à qualidade do ambiente físico e social dos abrigos. Isso porque, embora o abrigo não deva ser tomado por creche ou pré-escola, ao ser definido como de ambiente coletivo de cuidado, é possível buscar semelhanças essenciais entre essas instituições de cuidado infantil: estruturação não-familiar, convivência intensa entre coetâneos e ausência de espaço individualizado (Carvalho, 2002).
Em razão disso, entende-se que estudos que investigam o modo como são organizados e supervisionados os espaços, os equipamentos, o material e o mobiliário em unidades de educação infantil, assim como as atividades de rotina relacionadas ao bem-estar, à educação e à saúde de crianças cuidadas em creche, tal qual discutem Amorim, Yazlle e Rosseti-Ferreira (2001), podem oferecer subsídios à análise do abrigo como ambiente coletivo de cuidado, ainda que essa instituição apresente particularidades que precisam ser destacadas em estudos específicos.
O abrigo como contexto de desenvolvimento humano
Arola (2000), Carvalho (2002) e Lordelo (2002) discutem o abrigo enquanto contexto de desenvolvimento da criança. Nesses trabalhos, essa expressão faz referência às diferentes condições de vida em que as crianças podem nascer e se desenvolver como seres biológicos e sociais, como organismos vivos e interativos.
Nesse sentido, o abrigo pode ser reconhecido como contexto de desenvolvimento para a criança que se encontra institucionalizada, pois materializa as condições reais em que realiza o seu viver e desenvolve habilidades e competências decisivas para a formação de personalidade e sociabilidade próprias.
Esses autores, orientados por uma abordagem ecológica do desenvolvimento humano, conforme discute Bronfenbrenner (1994/1996), consideram que o contexto onde a criança cresce e se desenvolve não se limita a um ambiente único e imediato, mas inclui interconexões entre diferentes ambientes.
No caso específico da criança institucionalizada, é possível supor que quanto maior for a abertura do abrigo para o ambiente externo e mais freqüente as interfaces com outras instituições sociais, mais fluidas serão as fronteiras entre os diferentes contextos de desenvolvimento aos quais estará vinculada, tais como a família, a creche, a escola, a igreja, os grupos de pares, a vizinhança.
Outro aspecto interessante a ser observado nessa discussão diz respeito ao fato de que as crianças são pessoas que estão em permanente crescimento e formação, cujas mentes não devem ser descritas como tábulas rasas, além disso, são seres dotados da capacidade de penetrar no meio em que vivem e reestruturá-lo sob diferentes aspectos. Logo, a interação entre a criança e o meio ambiente deve ser vista sempre em uma perspectiva bidirecional, pautada pela reciprocidade e o estabelecimento de trocas que se sucedem no tempo. Em tese, essa característica é universal e está presente, potencialmente, em toda criança, qualquer que seja a sua condição social ou pessoal.
Entretanto, no que se refere à criança institucionalizada, a interação com o meio em que está inserida, não apenas é possível, como deve, inclusive, ser estimulada, uma vez que o abrigo como contexto de desenvolvimento envolve um campo de relações que abre espaço para trocas sociais e afetivas que são particularmente importantes para os bebês que estão privados do cuidado parental, por exemplo.
Arola (2000), Carvalho (2002) e Lordelo (2002) consideram que os abrigos para crianças e adolescentes, assim como todos os outros contextos de desenvolvimento na infância, são construções humanas e sociais, produto das relações sociais que se constroem em diferentes espaços e nas dinâmicas interativas que se estabelecem no tempo. Nesse sentido, o abrigo, como os demais contextos desenvolvimentais, quando analisados sob um prisma ecológico, incorporam elementos de natureza psicológica não espacial (lembranças de experiências anteriores, novos interesses dos sujeitos envolvidos), valorizam os comportamentos diários e cotidianos em um mesmo espaço e período de tempo e mantêm fluxos de influência recíproca entre a criança e o meio onde está inserida.
Nessa perspectiva, a análise do abrigo, como contexto de desenvolvimento da criança institucionalizada, requer a identificação e a percepção da dinâmica de funcionamento de três sistemas distintos, mas interligados de maneira inexorável: o ambiente físico e social (estruturas, espaços, equipamentos, rotinas, dinâmicas), a psicologia dos educadores (crenças e valores dos cuidadores habituais, professores e técnicos) e suas práticas cotidianas (atitudes e padrões de comportamento).
Ainda no contexto dessa discussão conceitual, entende-se que o abrigo também pode ser definido como instituição infantil, tal qual compreende Bronfenbrenner (1994/1996), pois, assim como o lar familiar, constitui-se em contexto abrangente para o desenvolvimento humano nos primeiros anos de vida. Em concordância com esse autor, considera-se que a realização de estudos sobre o desenvolvimento humano em instituições infantis deve ser estimulada, pois os resultados dessas investigações tornam possível estabelecer comparações analíticas entre ambientes definidos como primários, abrangentes e contrastantes do ponto de vista das necessidades essenciais da criança. Neste sentido, a realização de pesquisas que tomem como objeto de estudo as características ambientais das instituições infantis e suas implicações para o desenvolvimento das crianças que estão sob seus cuidados, pode despertar o interesse para a realização de estudos que investiguem semelhanças e diferenças entre instituições que cumprem funções relacionadas ao cuidado e à educação infantil, entre elas a família, a creche e o abrigo.
Entre as diferentes concepções apresentadas, entende-se que a perspectiva ecológica permite pensar de maneira privilegiada o abrigo como contexto de desenvolvimento infantil, o que possibilita a composição de uma visão mais ampla da dualidade proteção-risco que está presente nesse tipo de ambiente coletivo de cuidado. Isso significa aprofundar, aqui, o debate sobre duas perspectivas de análise - a saber, o abrigo como ambiente coletivo de cuidado e contexto de desenvolvimento da criança -, sem perder de vista a necessária intersecção com outras formas igualmente importantes de compreensão dessa realidade em sua totalidade.
Abrigo para crianças: entre a proteção e o risco
Nos últimos cinqüenta anos, estudos sobre o desenvolvimento de crianças, adolescentes, jovens e adultos que viviam em instituições asilares têm dado ênfase aos efeitos da institucionalização para a saúde física e mental, principalmente quando essa experiência ocorreu nos primeiros anos de vida e por longo período de tempo. Nesse sentido, ainda são poucos os estudos sobre as atividades, os papéis e as relações que caracterizam amiúde esse tipo de ambiente institucional. A realização de estudos sobre instituições infantis em uma perspectiva ecológica segue, portanto, como um desafio a ser assumido por uma nova geração de pesquisadores, na medida em que a qualidade do ambiente e do cuidado institucional tem sido reconhecida como característica contextual realmente decisiva para o desenvolvimento humano.
Em razão disso, torna-se interessante discorrer sobre aspectos da conjuntura histórica em que surgem os primeiros estudos com crianças acolhidas em ambientes institucionais e quais as questões que estavam no centro desse debate inicial.
Em meados do século XX, o esforço para reconstruir as cidades e revitalizar as economias nacionais destruídas por uma série de conflitos armados em várias partes do mundo levou inúmeras mulheres ao trabalho fora do espaço doméstico, fazendo com que governos estruturassem redes de creches e escolas maternais como instituições que se especializaram no cuidado infantil. Na prática, consolidava-se uma tendência social já observada desde o início do século: muitas eram as mulheres que precisavam delegar o cuidado com a prole a terceiros, em razão de sua inserção em frentes de trabalho em regiões de conflito armado ou mesmo na emergente indústria bélica, conforme ressalta Forna (1988/1999). Mas não só a guerra havia mudado tão drasticamente a vida das mulheres àquela época. Na verdade, um conjunto de transformações que incluía um processo de urbanização acelerado e um desmantelamento gradual das redes sociais que serviam como base de apoio às mães (parentes, vizinhos, amigos) colocaram em cheque a competência da família para gerenciar as necessidades da criança e a adoção de medidas de proteção social à infância vulnerável (privadas dos cuidados parentais).
Nesse contexto, faz-se o devido destaque aos trabalhos de Spitz (1965/1998), que realizou estudo pioneiro envolvendo diferentes contextos de desenvolvimento por meio da observação do comportamento de crianças no primeiro ano de vida e da aplicação de testes psicométricos para aferir habilidades específicas (Teste Hetzer-Wolf para bebês).
Os contextos considerados por ele foram dois ambientes institucionais (em países diferentes) e dois ambientes familiares (com culturas semelhantes). A idéia original era comparar as diferenças e as semelhanças entre esses ambientes de cuidado infantil. O primeiro grupo de crianças institucionalizadas possuía características muito peculiares: eram oriundas de lares em que a mãe possuía bom background social e permaneceram em sua companhia até a idade de 4 meses, quando ocorreu o desmame. Na instituição, foram cuidadas por enfermeiras profissionais, mas não recebiam atenção individualizada, uma vez que a proporção entre crianças e adultos era pouco favorável a essa prática (8:1). Na maior parte do tempo, as crianças ficavam em berços separados por lençóis e cortinas que dificultavam a sua ligação com o mundo ou, então, permaneciam deitadas durante horas, quase inertes, sem receber estimulação sonora ou visual, principalmente por meio de situações lúdicas (havia menos brinquedos no asilo que em outras instituições). No entanto, recebiam boa alimentação e cuidados médicos adequados nesses espaços. Os resultados mostram que o coeficiente desenvolvimental foi sendo reduzido ao longo do tempo de permanência das crianças nesse tipo de ambiente. No primeiro teste, os escores apresentaram redução de 124 a 72 e, na avaliação seguinte, chegou a 45. Além disso, as crianças apresentaram formas graves de retardo, maior suscetibilidade a infecções e comportamentos considerados anormais (bizarros, agressivos).
O segundo grupo de crianças institucionalizadas permaneceu em um berçário infantil considerado à época de boa qualidade. Eram filhos de mães com menor background social, mas que estavam sempre presentes, ocupando-se pessoalmente dos cuidados com a prole, mas que, quando se distanciavam, providenciavam uma mãe substituta. Nesse ambiente, as crianças ficavam em cubículos individuais separados por paredes de vidro, porém, aos seis meses, eram transferidas para berçários coletivos que comportavam 4 a 6 leitos. Os resultados dos testes de avaliação do desenvolvimento demonstram que, com raras exceções, os coeficientes mantiveram-se estáveis desde o ingresso da criança na instituição e ficaram próximos dos números obtidos por crianças cuidadas, exclusivamente, em ambiente familiar.
Também a partir de observações feitas em uma instituição responsável pelo cuidado diário de bebês, esse pesquisador verificou que, na etiologia de transtornos psíquicos entre crianças institucionalizadas, estavam presentes vários fatores de riscos para doenças graves, como a depressão anaclítica, como o isolamento social e a perda dos laços familiares.
Em seus trabalhos, Spitz (1965/1998) descreveu com precisão os sintomas da depressão anaclítica e a tornou conhecida como uma síndrome que afeta especialmente crianças institucionalizadas em berçários, orfanatos e instituições infantis. A depressão anaclítica foi reconhecida, a partir de então, como uma síndrome que se caracteriza pela perda gradual de interesse pelo meio que a cerca, mas, sobretudo, pelo estado de apatia, inapetência e debilidade física que atinge severamente a criança institucionalizada.
Bronfenbrenner (1994/1996) reconhece o pioneirismo dos trabalhos de Spitz (1965/1998), uma vez que em seus experimentos inovou ao chamar a atenção para características que são peculiares ao ambiente físico e social das instituições infantis, como também ao proceder a uma investigação rigorosa acerca dos papéis e atividades das díades primárias (cuidador/criança).
Para esse autor, deve-se considerar as controvérsias existentes quanto à natureza das condições ambientais reconhecidas como prejudiciais ao desenvolvimento humano. De um lado, conforme define Bronfenbrenner (1994/1996), estão psicanalistas como Bowlby (1976/1995, 1969/2002), para o qual as condições consideradas prejudiciais ao desenvolvimento estariam relacionadas à privação dos cuidados maternos, ou seja, reportar-se-iam às situações em que houve o rompimento ou até a ausência do vínculo primário (mãe/criança). Do outro lado, especialistas com larga experiência em estudos laboratoriais enfatizam a importância da presença de estímulos físicos na configuração das condições reconhecidas como críticas na trajetória do desenvolvimento humano, alegando, especialmente, que as instituições costumam oferecer à criança um ambiente empobrecido do ponto de vista do estímulo à aquisição de certas habilidades cognitivas e sociais. Nesse sentido, a privação de estímulos físicos oferecidos pelo ambiente institucional seria provavelmente mais nociva ao desenvolvimento da criança institucionalizada do que propriamente o rompimento dos laços sócio-afetivos entre mãe e filho, por exemplo.
Em que pese a polêmica gerada em torno dos métodos utilizados à época por esses pesquisadores, de maneira precursora, esses experimentos conferiram maior destaque à influência das características ambientais sobre o desenvolvimento da criança que está longe de casa, fazendo da instituição seu local de moradia, privada do convívio em um lar familiar.
Entende-se que o conjunto desses trabalhos lança as bases para a construção de uma análise ecológica das instituições infantis, mais especificamente do que hoje se denomina abrigo para crianças, valorizando em grande medida as relações entre a criança e seus cuidadores e o grupo de pares como importante aspecto do ambiente coletivo de cuidado e do contexto em que está crescendo e se desenvolvendo.
É possível afirmar que existe, hoje, um relativo consenso em torno da idéia de que a institucionalização em si mesma abre um campo favorável para a configuração de várias situações de risco (tratamento massificado, privação da convivência familiar, separação da figura de apego, confinamento social), mas que somente a combinação entre a natureza, a quantidade e a intensidade dos fatores de risco decorrentes dessa experiência de privação afetiva seriam capazes de definir o quão adversas e hostis podem ser as condições do ambiente físico e social para o desenvolvimento da criança que se encontra sob os cuidados do abrigo.
Sigal, Perry, Rossignol & Ouimet (2003), a partir de minuciosa revisão da literatura disponível sobre o tema, concluíram que existem alguns fatores que podem agravar ou minimizar os efeitos da institucionalização para o desenvolvimento do indivíduo, seja nos primeiros anos de vida ou ao longo da sua existência. De acordo com esses pesquisadores, estudos recentes mostram que crianças e adolescentes institucionalizados, mesmo expostos a fatores de risco, podem não ter dimensões importantes do seu desenvolvimento gravemente afetadas, em especial, o seu desempenho em testes de inteligência, a sua capacidade de ligar-se e apegar-se a figuras de referência na família e em outros contextos e a definição do seu senso de identidade.
De acordo com Sigal, Perry, Rossignol & Ouimet (2003), estudos recentes têm demonstrado que certas experiências podem contribuir para uma adaptação positiva dos indivíduos com vivência precoce e prolongada em instituições asilares: competência acadêmica ou atlética; presença de um adulto cuidador durante a adolescência; envolvimento com um companheiro estável no início da maioridade e amadurecimento de defesas psíquicas.
Para esses pesquisadores, em consonância com formulações defendidas anteriormente por Bowlby (1969/2002), alguns fatores podem agravar ou minimizar os efeitos da institucionalização para o desenvolvimento humano. Entre outros fatores que vêm sendo investigados, esses trabalhos destacam o temperamento, a natureza do vínculo e o padrão de apego com a figura de referência (a mãe, ou outro cuidador primário), a idade e o modo como ocorreu a institucionalização, o tempo de permanência na instituição, a qualidade do cuidado institucional, o ambiente no pós-institucionalização e as experiências posteriores na juventude e vida adulta.
Nessa perspectiva de análise, Cole & Cole (2003) recuperam experimento clássico realizado por Dennis (1973), na Inglaterra. Trata-se de uma pesquisa longitudinal realizada com um grupo de crianças que haviam sido entregues aos cuidados de instituições infantis, logo após o nascimento. O pesquisador e seus colaboradores verificaram que, no ambiente institucional, as crianças foram pouco estimuladas e raramente mantinham contato íntimo e afetuoso com seus cuidadores. Os cuidadores, entre outras atitudes negligentes, apresentavam os seguintes comportamentos no trato com as crianças: 1) demonstravam pouco interesse pelas necessidades e temperamentos individuais; 2) raramente conversavam com as crianças, não respondiam às suas raras vocalizações; 3) dificilmente brincavam com elas, enquanto as banhavam, vestiam-na, trocavam suas fraldas ou as alimentavam; 4) freqüentemente deixavam os bebês deitados de costas no berço o dia todo ou sentados em pequenos cercados, limitando a sua capacidade de locomoção e interação social. Anos mais tarde, quase todas essas crianças apresentaram dificuldades graves no campo do desenvolvimento sócio-afetivo.
Tizard & Rees (1974) observaram 65 crianças que permaneceram longo período em berçários considerados de alta qualidade (limpos, arejados, coloridos, confortáveis, com muitos brinquedos e livros disponíveis). No entanto, a alta rotatividade e o horário de trabalho dos funcionários não propiciavam a formação de relacionamentos íntimos e estáveis entre as crianças e seus cuidadores. Os pesquisadores decidiram trabalhar com três grupos de sujeitos: 1) crianças institucionalizadas que retornaram ao convívio com a família de origem (geralmente muito pobres, que foram reconstituídas ou onde só havia a presença de um dos cônjuges); 2) crianças institucionalizadas que foram adotadas por outras famílias (freqüentemente com boa situação financeira, casais com relação duradoura e sem filhos); 3) crianças que permaneceram no ambiente institucional. A equipe de pesquisadores aplicou a Escala Wechler de Inteligência, com o objetivo de promover a discussão de diferentes aspectos do desenvolvimento cognitivo desse contingente de crianças. Ao final, os resultados obtidos foram surpreendentes e colocaram no centro da discussão a importância da qualidade do ambiente do cuidado infantil.
Os resultados demonstram que as crianças que voltaram à família de origem foram entregues quase sempre à mãe biológica, após mais ou menos 4 anos e meio. Quando comparadas às crianças que permaneceram institucionalizadas, apresentaram resultados médios inferiores, provavelmente porque perderam algumas vantagens ambientais: fácil acesso a brinquedos, livros e passeios. Os estímulos ambientais não estavam presentes em seus lares, uma vez que a maioria das crianças era oriunda de famílias muito pobres e seus pais tinham poucos recursos educacionais. Já as crianças institucionalizadas, mas que foram adotadas, tiveram um outro destino. A maior parte passou a conviver em um ambiente familiar que apresentava características contextuais muito diferentes daquelas encontradas nas instituições infantis ou mesmo em sua família de origem. Por volta dos 4 anos e meio, essas crianças apresentaram escores mais elevados em todos os critérios de avaliação adotados pelos pesquisadores, inclusive em relação aos testes de inteligência, quando comparadas às que integravam os outros dois grupos. As razões que explicam o seu melhor desempenho, provavelmente, estão relacionadas ao fato de que passaram a receber cuidados maternos de modo sistemático e a conviver em um ambiente intelectualmente mais estimulante, com mais recursos financeiros, acesso garantido a ensino de qualidade e outras atividades que estimulam habilidades cognitivas. Por sua vez, as crianças que permaneceram privadas da convivência familiar e submetidas a tratamento massificado e despersonalizado, ainda que em um ambiente repleto de estímulos físicos (cores, sons, formas, texturas), apresentaram resultados inferiores, principalmente quando relacionadas aos egressos que haviam sido encaminhados para uma família adotiva. No entanto, as crianças que permaneceram institucionalizadas, quando comparadas àquelas que retornaram ao convívio com a família biológica, apresentaram escores ligeiramente inferiores.
Desse modo, Tizard & Rees (1974) concluem que qualquer que seja o ambiente institucional ou familiar onde a criança esteja crescendo e se desenvolvendo, desde os primeiros dias de vida precisa certamente receber estímulos variados para que possa aguçar o interesse pelo meio que a cerca e desenvolver diferentes habilidades e competências ao longo da vida. Ainda sobre os resultados obtidos pelos pesquisadores, mostram que a experiência da desinstitucionalização teve um efeito positivo mais evidente entre as crianças que deixaram a instituição e retornaram ao convívio familiar, sobretudo quando se avaliou o aspecto sócio-afetivo em sua trajetória de desenvolvimento. Quando os pesquisadores compararam os resultados dos grupos entre si, as crianças adotadas apresentaram rendimento melhor em testes de desempenho intelectual e em atividades com leitura de textos demonstraram maior fluência que as demais. Também, entre as crianças que foram adotadas, o percentual referente à presença de vínculos mútuos entre pais e filhos foi superior ao que foi encontrado nos integrantes dos dois outros grupos. Em razão dos resultados obtidos, Tizard & Rees (1974) concluíram que a qualidade do ambiente e do cuidado institucional é importante para impulsionar o desenvolvimento de crianças institucionalizadas.
Mais recentemente, trabalho elaborado por Sigal, Perry, Rossignol & Ouimet (2003) reconhece que a criança, quando permanece sob a responsabilidade de uma instituição de abrigo, via de regra, recebe cuidados físicos relativamente adequados (mais do que em décadas anteriores, há uma preocupação maior com a alimentação, a higiene, o tratamento e a prevenção de doenças, o lazer), mas emocionalmente indiferentes (a massificação, a despersonalização, a burocratização do atendimento social, mantêm a distância entre o cuidador habitual e a criança), o que pode gerar situações de deficiência cognitiva e danos emocionais que afetam de maneira decisiva o seu desenvolvimento.
Considerações finais
Este artigo, ao se propor discutir concepções presentes na literatura sobre instituições destinadas ao acolhimento de crianças nos primeiros anos da infância, não apenas evidenciou as distintas formas de se pensar e se compreender essa modalidade de cuidado infantil, mas também as várias faces de uma realidade tão antiga quanto atual: desde o período colonial, crianças têm sido assistidas e cuidadas em instituições asilares, privadas da convivência familiar e comunitária, submetidas a atendimento massificado e despersonalizado.
Em razão disso, a partir da literatura, destacaram-se críticas que alimentam a discussão sobre a relação paradoxal entre proteção e risco nos processos de institucionalização de crianças. De um lado, o abrigo é visto como importante medida de proteção social à infância vulnerável ao abandono e à violência. Do outro, o acolhimento institucional é recomendado apenas em situações excepcionais e em caráter provisório, principalmente em função dos riscos colocados à construção e à preservação dos vínculos familiares na infância.
Nesse sentido, ampliar o foco para a compreensão dos aspectos teórico-conceituais presentes na constituição dos abrigos pode ser bastante útil, quando se tem em mente a prevenção e a minimização dos riscos e limites colocados ao desenvolvimento global da criança privada do convívio em família. Nos termos aqui considerados, significa investir na construção de uma perspectiva de análise mais abrangente, que valorize a realidade multifacetada dos abrigos para crianças, mas sem perder de vista o debate sobre aspectos específicos relacionados ao seu processo de gestão como instrumento da política social, ao enfrentamento de práticas que promovem segregação, confinamento e ruptura dos vínculos familiares, à valorização da dimensão protetiva dessa modalidade de cuidado realizada em ambiente coletivo.
No Brasil, percebe-se que os avanços e as conquistas na gestão das políticas de proteção especial, segundo princípios defendidos pelo ECA, provocaram, nos últimos anos, uma preocupação crescente com os aspectos arquitetônicos desse tipo de instituição infantil, assim como o aperfeiçoamento de medidas relacionadas à organização dos arranjos espaciais, à disponibilidade dos equipamentos e recursos tecnológicos, à oferta de produtos e serviços capazes de assegurar conforto, segurança e bem-estar às crianças.
Em razão disso, considera-se que a adoção de medidas simples, como a composição de arranjos espaciais que valorizem a convivência intensa entre grupos de pares, ou a criação de espaços lúdicos, como as brinquedotecas, podem promover melhorias nas condições gerais do ambiente, tornando o clima mais favorável à interação social e propiciando o contato íntimo e afetuoso da criança com seus cuidadores e coetâneos.
Desse modo, quando a colocação em abrigo parecer inevitável a algumas crianças, deve-se pensar, então, nos elementos dispostos no espaço físico e social que possam diminuir ou suavizar os efeitos provocados por sua longa permanência na instituição, a fim de que, nessas circunstâncias, consigam conviver em um ambiente que lhes desperta confortável sentimento de bem-estar, sensação de segurança física e emocional, mas que não lhes retira completamente o desejo de retornar à convivência familiar e comunitária. Entre as diversas medidas relacionadas à qualidade do cuidado institucional capazes de prevenir e/ou reparar danos ao desenvolvimento da criança institucionalizada, Rizzini & Rizzini (2004) e Cavalcante, Brito & Magalhães (2005) mencionam:
Garantir o atendimento em pequenas unidades residenciais, com capacidade para acolher, preferencialmente, 12 a 20 crianças, do sexo feminino e masculino;
Oferecer instalações em condições de higiene, salubridade e segurança;
Criar espaços de recreação, estudo e lazer, com estrutura e recursos que permitam às crianças brincar, estudar e se divertir, em companhia dos pais ou de outros familiares e pessoas da comunidade;
Estabelecer um Programa de Atendimento Personalizado (PPA), que respeite características, necessidades e interesses pessoais, com atividades que possam ser realizadas tanto no espaço da instituição (brinquedoteca, jardim, quintal) como no da comunidade (clubes, praças, igrejas, entre outros);
Assegurar o acesso a atividades psicopedagógicas e à escolarização, seja no espaço institucional ou em equipamentos comunitários (creches, escolas, etc);
Preservar registros com dados pessoais de cada criança e sua família, identificando claramente os motivos pelos quais ocorreu a institucionalização, os atendimentos e os serviços garantidos desde a sua entrada até o seu desligamento, com retorno à família de origem ou substituta;
Em consonância com a literatura sobre o tema, considera-se que, por mais atraente e confortável que o abrigo possa ser ou parecer à criança, será sempre um ambiente que possui características típicas de uma instituição e não propriamente de um lar. Logo, a permanência precoce e prolongada em uma instituição de abrigo pode limitar as chances de uma convivência íntima e afetuosa com seus cuidadores e pares, além de restringir a sensação de liberdade que torna possível o exercício de escolhas pessoais, entendida aqui como uma experiência que a vida em família comumente oferece à criança, principalmente nessa fase da vida e mesmo em condições de privação material e emocional.
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Recebido em 19 de outubro de 2006
Aceito em 16 de maio de 2007
Revisado em 2 de agosto de 2007