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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.3 Fortaleza set. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Da angústia ao suicídio

 

 

Maria Virgínia F. CremascoI; Marcos Vinícius BrunhariII

IProfessora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Doutora em Saúde Mental (Unicamp - 2002), pós-doutorado na Université Paris 7 (2009-2010). Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. End.: Praça Santos Andrade, 50, 2º andar, sala 211. Centro. Curitiba, PR. CEP: 80060-240. E-mail: mavicremasco@hotmail.com
IIPsicólogo, Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e Membro do Laboratório de Psicanálise da UFPR. End.: Praça Santos Andrade, 50, 1º andar, sala 115. Centro. Curitiba, PR. CEP: 80060-240. E-mail: mvb_marcos@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Sob o título "Da angústia ao suicídio" este trabalho se propõe, a partir de uma revisão de textos psicanalíticos, a examinar a articulação entre a angústia e o suicídio. A angústia será detalhada de acordo com a teoria psicanalítica enquanto o suicídio será definido como escolha pelo término da própria existência, isto é, uma ação contra a própria existência, consistindo uma tentativa ou um ato suicida. Serão pontuadas as reflexões de Freud e o desenvolvimento de seu pensamento sobre a angústia, um afeto que surge do fato do eu se esforçar pelo prazer e buscar evitar o desprazer e, com um aumento de desprazer, emitir um sinal de angústia. A partir das reflexões de Freud, será destacado como Lacan postula a angústia desde considerações sobre a falta estrutural. Para Lacan, na angústia o que está em pauta é que essa falta pode faltar. O surgimento da angústia se produziria no momento em que o lugar da falta, (-φ), fosse ocupado pela intervenção flagrante do objeto a. É na relação do sujeito com o objeto a que Lacan indica a passagem ao ato como um momento em que o sujeito se precipita fora da cena, ou seja, o sujeito sai da cena, na qual constitui-se como tal, como portador da fala e retorna à exclusão fundamental. Também sobre a relação do sujeito com o objeto a será feita referência ao acting out. Desta forma, tanto a passagem ao ato quanto o acting out podem ser vistos como ações frente a angústia.

Palavras-chave: angústia, suicídio, objeto a, passagem ao ato, acting out.


ABSTRACT

Having the title "from anguish to suicide" this article proposes, based on a review of psychoanalytical articles, to exam the articulation between anguish and suicide. While the anguish will be detailed according to the psychoanalysis theory, suicide will be defined as a choice for ending its own existence, or also, an action against its own existence, whether it is only an attempt or a suicide act itself. Freud's reflections and the development of his thoughts about anguish will be exploited, an affection that appears from the fact that the ego make efforts for the pleasure and try to avoid the displeasure and, with the raise of displeasure, sends an anguish sign. Upon Freud's reflections, information about Lacan, who understand that anguish comes from a structure lack, will be highlighted. To Lacan, in anguish, what matters is what this absence can lack. The anguish sprouting would be produced at the moment when the lack gap, (-φ), is occupied by the instant intervention of object a. It is out of the subject's relation with object a that Lacan indicates the passage to the act as a moment when the subject precipitates out of the scene, meaning, the subject leaves the scene, on which constitutes itself as that, as a speech carrier and returns to the fundamental exclusion. Also about the relation of the subject with object a, the acting out will be referred. By doing that, not only the passage to the act but also the acting out can be seen as actions forwarders to anguish.

Keywords: anguish, suicide, object a, passage to the act, acting out.


 

 

Este artigo1 centra-se sobre dois termos, angústia2 e suicídio. Pretende-se uma articulação entre ambos a partir da questão: qual a relação da angústia com o suicídio? O termo suicídio pode ser compreendido como "1. Ato ou efeito de suicidar-se. 2. Fig. Desgraça ou ruína procurada de livre vontade ou por falta de discernimento" (Ferreira, 1999, p.1900). Ambas as formas de entendimento podem ser nomeadas como suicídio, contudo, o que aqui se pretende focalizar é a escolha pelo término da própria existência, uma ação contra a própria existência, seja como uma tentativa ou como um ato suicida.

A articulação teórica sobre o suicídio sustenta-se em textos psicanalíticos. É assim que o termo "angústia" será examinado em suas possíveis articulações com o suicídio; iniciando-se pelo tema da melancolia, pretende-se um percurso indicador do sofrimento do eu que siga em direção às conclusões freudianas acerca da angústia para então se chegar ao tema do suicídio. Também serão utilizadas duas entrevistas ilustrativas do tema3, nas quais são relatadas tentativas de suicídio, juntamente com trechos de bilhetes de adeus e cartas4 deixados por pessoas que cometeram suicídio. O entrelaçamento entre angústia e suicídio será tecido após uma retomada de conceitos que auxiliam a compreensão de cada um segundo a ótica psicanalítica. Cabe explicitar que não será esgotada a questão acerca dessa articulação, mas sim, apresentada uma perspectiva para se refletir sobre.

Os relatos e escritos evidenciam características sobre o sofrimento anterior à tentativa ou ao ato suicida, sobre a ação perante este sofrimento e o caráter de endereçamento. Contudo, não se realiza um estudo de caso propriamente analítico. Os discursos aqui utilizados em forma de vinhetas terão a função de ilustrar o tema do trabalho sem qualquer intenção de validação diagnóstica. Desta forma, a tentativa e o ato suicida são focalizados como 'ações' produzidas diante da angústia.

A começar pela melancolia, tendo em vista as proposições de Freud referentes ao suicídio na melancolia, em Luto e melancolia (1917 [1915]/1996a) o autor reconhece uma perda de natureza mais ideal que não se pode perceber conscientemente, a perda está relacionada com algo inconsciente. Por sua vez, no luto o eu encontra-se absorvido em um processo de trabalho, mas não há relação com uma perda desconhecida. Freud aponta que "no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu" (Freud, 1917 [1915]/1996a, p.278). Sendo o eu desvalorizado e passível de punição haverá um desapego à vida. Contudo, Freud afirma que isto é "secundário; trata-se do efeito do trabalho interno que lhe consome o eu - trabalho que, nos sendo desconhecido, é, porém, comparável ao do luto" (Freud, 1917 [1915] /1996a p.280). Nesse ponto a analogia com o trabalho do luto é reforçada, pois há uma perda relativa a um objeto, mas, a melancolia aponta para uma perda relativa ao eu. Percebe-se que na melancolia o paciente apresenta uma perda relativa ao eu, porém o caráter objetal que a especifica distingue essa perda daquela acontecida no luto.

Freud diz que na melancolia as autorecriminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o eu. A retirada dessas acusações do objeto amado e direcionadas para o eu é pilar na reflexão psicanalítica acerca da melancolia e para a construção de considerações sobre o suicídio. Há uma identificação do eu com o objeto abandonado. Dessa forma, a "sombra do objeto caiu sobre o eu, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial" (Freud, 1917 [1915] /1996a p.280). Estabelece-se uma identificação do eu com o objeto que fora abandonado, a partir de então é julgado como se fosse o objeto perdido, a perda deste objeto culminou em uma perda do eu.

Segundo Freud, se o amor pelo objeto se instalar na identificação narcisista, o ódio também se dirige a esse objeto substitutivo (eu) atacando-o de forma tirânica e sádica, buscando seu sofrimento. A catexia, calcada narcisicamente, quando rompida com o objeto original, sofre uma dupla vicissitude: uma parte volta-se à identificação narcísica, enquanto a outra, devido a ambivalência, é encaminhada à etapa de sadismo. E é esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio - fundada no encaminhamento do ódio pertencente à catexia objetal abandonada.

Mas como o eu consente com a própria destruição? O eu só pode se matar se puder tratar a si mesmo como um objeto, dirigindo contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto. Observa-se na melancolia que o eu apenas se destrói quando trata a si próprio como um objeto, a destrutividade é uma reação do eu para com objetos pertencentes ao mundo externo. Note-se que o ódio, em um primeiro momento, era dirigido ao objeto pertencente ao mundo externo, apenas após a ruptura da catexia deste objeto é que o ódio volta-se para o eu.

A temática do suicídio é especulada e aprofundada na medida em que a conceituação freudiana não se dá por encerrada. Por exemplo, em Luto e melancolia (1917 [1915]/1996a), o autor distingue uma parte do eu que se coloca contra a outra, ocasionando o julgamento crítico. No dito momento da obra essa secção é nomeada "agente crítico" e participa daquele processo em que o sadismo é dirigido ao eu. Adiante, na obra de Freud, o caráter sádico voltado para o eu adquire algumas nuances, uma vez que esse "agente crítico" será alvo de maiores especulações em O Eu e o Isso (1923/1996b), por exemplo. Neste trabalho o agente será nomeado de supereu. É desde uma tensão entre o eu e o supereu que Freud (1923) aponta o sentimento de culpa consciente. Nessa tensão, quando na melancolia, o eu submete-se e não se opõe ao castigo, admitindo sua culpa. A fúria do supereu, na melancolia, dirige-se ao objeto incluído no eu mediante identificação. O supereu assume para si o sadismo dirigido para o eu.

Grandes contribuições surgem a partir do estudo sobre o que é antagônico semanticamente ao sadismo: o masoquismo. Em O problema econômico do masoquismo (1924/1996c) Freud diferencia três formas de masoquismo: erógeno, feminino e moral. Acerca do masoquismo moral, encontra-se que foi identificado como um sentimento de culpa inconsciente em grande parte, e que é de grande relevância para a psicanálise (Freud, 1924/1996c, p.202). Entretanto, antes de maiores considerações sobre o masoquismo moral, é necessária uma apuração do masoquismo erógeno com o objetivo de aprofundar a questão do retorno sadio ao eu. Quando em Além do princípio de prazer (1920/1996d) Freud relata que "o objetivo da vida é a morte, e voltando o olhar para trás, que as coisas inanimadas existiram antes das vivas" (Freud, 1920/1996d, p.49), sua hipótese é que a meta da vida é a morte e, sendo assim, há um movimento do orgânico em direção ao inorgânico. Nesse momento da teoria psicanalítica Freud introduz mudanças postulando a pulsão de morte: "nos organismos (multicelulares), a libido enfrenta a pulsão de morte ou destruição neles dominante e procura desintegrar o organismo celular e conduzir cada organismo unicelular separado [que o compõe] para um estado de estabilidade inorgânica (por mais relativa que essa possa ser)." (Freud, 1924/1996c, p.204). Freud diz de uma oposição entre a libido e a pulsão de morte na medida em que esta tende à redução total das tensões, reconduzindo o ser vivo ao estado inanimado. E como o masoquismo erógeno se relaciona com essa pulsão? Freud aponta: "A libido tem a missão de tornar inócua a pulsão destruidora e a realiza desviando essa pulsão, em grande parte, para fora - e em breve com o auxílio de um sistema orgânico especial, o aparelho muscular - no sentido de objetos do mundo externo." (Freud, 1924/1996c, p.204). Dessa forma, a pulsão de morte adquire a qualidade de destrutividade. Já outra parte da pulsão é colocada a serviço da função sexual. Esse é o sadismo propriamente dito. Por fim, outra porção é transposta para fora, "permanece dentro do organismo e, com o auxílio da excitação sexual acompanhante acima descrita, lá fica libidinalmente presa. É nessa porção que temos de identificar o masoquismo original, erógeno" (Freud, 1924/1996c, p.204). Essa outra parte, que não é direcionada para fora pela libido, permanece dentro do eu, é aqui que se apresenta o masoquismo erógeno.

Segundo Freud, "a pulsão de morte operante no organismo - sadismo primário - é idêntica ao masoquismo" (Freud, 1924/1996c, p.205). Quando grande parte da pulsão de morte é encaminhada sob a forma de destrutividade para o mundo externo, dentro resta o masoquismo erógeno propriamente dito, que se tornou componente da libido, e o será por todas as formas de organização dessa, e também, tem o eu como seu objeto. O sadismo, antes dirigido para fora, pode ser mais uma vez introjetado, regredindo assim à situação anterior. Se tal acontece, produz-se um masoquismo secundário, que é acrescentado ao masoquismo original.

Retomando o masoquismo moral que, neste artigo, fora identificado como um sentimento de culpa, em grande parte, inconsciente. Em O Eu e o Isso (1923/1996b) Freud diferencia um sentimento de culpa consciente e outro inconsciente. E em O problema econômico do masoquismo (1924/1996c) Freud substituirá o termo sentimento inconsciente de culpa por necessidade de punição por considerar mais abrangente e apropriado: "o termo 'sentimento inconsciente de culpa' que, de qualquer modo, é psicologicamente incorreto, e falarmos, em vez disso, de uma 'necessidade de punição', que abrange o estado de coisas observado de modo igualmente apropriado" (Freud, 1924/1996c, p.208). Sendo o masoquismo moral uma necessidade de punição, chega-se à conclusão de que, diferentemente de uma extensão inconsciente da moralidade à qual o supereu sobrepõe-se sadicamente ao eu, neste masoquismo é o eu que se encontra em destaque, buscando punição. Desta forma, o próprio eu é considerado masoquista. Tendo como finalidade provocar a punição, o masoquista faz o que é desaconselhável, tomando um rumo danoso que pode "arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência real" (Freud, 1924/1996c, p.211).

Quanto à possibilidade daquela destrutividade, antes dirigida para o exterior com a ajuda da libido, retornar contra o eu (masoquismo secundário) há algumas considerações a serem feitas. Essa volta sádica sobre o eu acontece devido uma supressão cultural das pulsões; é dessa forma que componentes pulsionais destrutivos do sujeito são impedidos de expressão na vida real. Em que forma esse sadismo retorna ao eu? Freud responde a esta questão ao término de O problema econômico do masoquismo (1924/1996c): a parte da pulsão que se retirou "aparece no eu como uma intensificação do masoquismo. (...) A destrutividade que retorna do mundo externo é também assumida pelo supereu, (...), e aumenta seu sadismo contra o eu." (Freud, 1924/1996, p.212). Assim, o sadismo do supereu e o masoquismo do eu estão mutuamente unidos com a mesma finalidade destrutiva. Posteriormente, em Esboço de psicanálise (1938/1996e), Freud aponta para uma porção de destrutividade que permanece interna. O fato de ela estar presente marca a presença de determinada nocividade.

Juntamente com o sadismo, dirigido ao eu após a ruptura da catexia objetal, o masoquismo do eu e a necessidade de punição pode-se focalizar a angústia, a qual tem sede no eu, visto este encontrar-se em constante perigo (pulsional) para encontrar-se nessa situação. Sobre a angústia, é importante saber que "é, em primeiro lugar, algo que se sente. Denominamo-la de estado afetivo" (Freud, 1926 [1925] /1996f, p.155). E "a análise dos estados de angústia, portanto, revela a existência de (1) um caráter de desprazer, (2) atos de descarga e (3) percepções destes atos." (Freud, 1926 [1925] /1996f, p.156). Sendo a angústia um afeto marcado pelo desprazer, surgindo atos de descarga, poderia a tentativa ou o ato suicida ser um ato de descarga? A angústia poderia ser articulada ao suicídio desde esta afirmativa?

 

Da angústia

Em seus primeiros trabalhos, Freud analisa a angústia por um referencial fisiológico, reconhecendo a origem da mesma em uma esfera física. Suas observações acerca das neuroses atuais o fizeram estabelecer considerações sobre a problemática da angústia. Freud expõe suas primeiras concepções a respeito do tema em um memorando que envia a Fliess:

Logo ficou claro para mim que a angústia de meus pacientes neuróticos tinha muito a ver com a sexualidade; e me chamou especialmente a atenção a certeza com que o coitus interruptus praticado numa mulher conduz à neurose de angústia. (...) A neurose de angústia afeta tanto as mulheres que são frígidas no coito como as que têm sensibilidade. (Freud, 1894/1996g, p.261).

O coitus interruptus é sugerido por Freud como um estímulo à neurose de angústia, o fato de ser observado em mulheres que são frígidas e em mulheres que possuem sensibilidade indica a Freud que a origem da angústia pertence ao que é físico, sendo o fator físico da vida sexual o responsável pela produção da angústia. Freud compreende a questão da angústia sob aspectos físicos que implicam um escoamento energético.

O evitamento da descarga da tensão sexual gera uma acumulação, que pode ser observada na mulher sujeita ao coitus interruptus. (Freud, 1894"1996g, p. 264). Contudo, não é neste "acumulado" que se presentifica a angústia, mas sim, a angústia surge de uma transformação da tensão sexual acumulada. Após um percurso em que a angústia é destacada e relacionada a determinações nosográficas, Freud, em A Interpretação dos Sonhos (1900/1996h), defende que "a angústia é um impulso libidinal que tem sua origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente." (Freud, 1900/1996h, p.358). Utilizando-se de um esquema quantitativo, Freud reconhece uma origem sexual para a angústia estratificada no inconsciente.

A angústia não deixa de ser objeto de estudo de Freud. Em Inibição, sintoma e angústia (1926 [1925]/1996f), em comparação com a fuga perante um perigo externo, Freud faz considerações de grande importância para a questão da angústia na psicanálise determinando o recalque como um equivalente interno desta tentativa de fuga. O eu retira sua catexia (pré-consciente) do representante pulsional, que deve ser recalcado e utiliza esta catexia para a finalidade de liberar desprazer (angústia). O desprazer associado à angústia tem sua catexia retirada do representante pulsional recalcado. O eu é visto, a partir de então, como sede real desta angústia.

Tomando como referência o caso do Homem dos Lobos (1918 [1914] /1996) e o caso Pequeno Hans (1909/1996), onde Freud reconhece o medo da castração como força motriz do recalque, as ideias de conteúdo fóbico, contidas na angústia, nada mais eram que uma distorção do medo de castração por parte do pai, e, justamente esse medo de castração é que fora recalcado. Porém, e aqui está o divisor de águas, a essência da fobia que é a angústia, um afeto, não se origina do recalque e nem das catexias libidinais recalcadas, mas a angústia é responsável pelo recalque. A angústia é um derivante do medo de castração (recalcado), efeito de um perigo iminente. Freud pontua que a angústia produz o recalque, nesses casos, e não o contrário quando o que era recalcado pelo pré-consciente e impedido de escoamento produziria a angústia.

A angústia é tida então como primária e como força a favor deste recalque, que é o secundário, e não como tendo surgido a partir da tensão sexual de ordem física que fora recalcada. A angústia é angústia de castração e, na medida em que é um afeto, reproduz um evento antigo que representou uma ameaça de perigo, o qual traz consigo a experiência do desamparo e a ausência de representantes psíquicos (segunda teoria sobre a angústia).

Compartilhando da mesma postura, Lacan pontua que o afeto "se desprende, fica à deriva. (...) O que está recalcado são os significantes que o amarram" (Lacan, 1962-63, p.23). Lacan concorda com Freud no que se refere ao fato de que um afeto, angústia por exemplo, não possa ser recalcado, ele está à deriva, podendo encontrar-se deslocado ou até invertido. O que realmente está recalcado são os significantes que atam esse afeto. Na citação seguinte, Besset faz algumas considerações importantes sobre o resgate que Lacan faz da teoria da angústia em Freud:

Lacan (1962-63) resgata a ideia de resto, que Freud concebeu como de energia, sob a forma de menos phi (- Æ). (...) Ao abordar a questão da angústia, Lacan (1962-63) busca circunscrever suas relações com o real. De início, o faz sob a égide do objeto a, que toma como objeto do desejo, configurando-o, em seguida, como objeto causa dele. (Besset, 2002, p. 20)

Baseado na problematização e nas propostas de Freud acerca da angústia, anteriores a Inibição, sintoma e angústia (1926 [1925] /1996f), Lacan reafirma o resto que fora denominado por Freud como sendo um acumulado de energia libidinal impedida de escoamento. Na citação anterior, a autora se refere a dois conceitos: o "-Æ" e o objeto a, que estão diretamente ligados à angústia conforme proposta por Lacan em seu Seminário 10 - a angústia (1962-63). É nessa relação que se baseiam os posteriores exames sobre a angústia traçados neste artigo. O objeto a, tem papel central no que Lacan pontua sobre o tema:

O a que é o resto, o resíduo, o objeto cujo status escapa ao status do objeto derivado da imagem especular, isto é, às leis da estética transcendental. Seu status é tão difícil de articular, que foi por aí que entraram todas as confusões na teoria analítica. Esse objeto a, do qual só fizemos esboçar suas características constitutivas, e que hoje pomos aqui na ordem do dia, é sempre dele que se trata toda vez que Freud fala de objeto a propósito da angústia. (Lacan, 1962-63, p.50)

A angústia, no trabalho de Lacan, possui um objeto que não é de fácil descrição - o objeto a. Esse objeto a não é passível de vinculações a qualquer tipo de representação e, segundo Lacan, esse objeto, em sua relação com "-Æ", figura entre toda a especulação freudiana acerca da angústia: "entendendo a angústia a partir de uma falta postulada como estrutural para o sujeito, (...), diz Lacan, o que está em jogo é que a falta pode faltar" (Besset, 2002, p.20-21). A partir dessa citação, pode-se verificar que Lacan especifica uma falta inerente ao sujeito, essa falta está na base do afeto de angústia. Freud, por sua vez, localiza a angústia como tendo raízes na ameaça de perda de um objeto, quando se refere ao caso Homem dos Lobos (1918 [1914] /1996) e ao caso Pequeno Hans (1909/1996), nos quais a ameaça de perda é a ameaça de castração, sendo que do temor a esta ameaça surge, de forma transformada, a angústia. Que objeto é este que Freud designa como ameaçado de ser perdido? E em Lacan, que falta seria essa que pode faltar e ocasionar a angústia?

Lacan observa o desenvolver que Freud produz a respeito dos primórdios da angústia quando da perda de um objeto, seja a perda do meio intrauterino, com o nascimento, a eventual perda da mãe considerada como objeto, a do amor. Freud especifica quando um sinal de angústia, devido à perda eminente de um objeto, faz-se presente. Lacan aponta "que a angústia não é o sinal de uma falta, senão de algo que é preciso conceber em nível redobrado de ser a carência do apoio da falta" (Lacan, 1962-63, p.64), sustentando a importância da falta como sendo algo necessário. É da carência de falta que nasce a angústia.

Acerca da relação mãe-criança, é justamente a ausência que assegura a presença. O mais angustiante para a criança é que esta relação sobre a qual se institui, pela falta, o desejar, é mais perturbada em seu resultado quando não há possibilidade de falta. Lacan refuta a ideia5 de que o ritmo da presença/ausência da mãe é o que provoca a angústia, pois a possibilidade de existência da ausência assegura a existência da presença. Na angústia o que está em jogo é que a falta pode faltar. O objeto a está envolvido nesta questão da falta, e isso sob a égide do Outro, ou melhor, do desejo do Outro, já que este é marcado, por Lacan, como portador de uma falta que em iminência ao sujeito o torna objeto, objeto do desejo do Outro.

Sobre o objeto a, Lacan propõe:

Em relação ao Outro, o sujeito dependente desse Outro inscreve-se como cociente. É marcado pelo traço unário do significante no campo do Outro. (...) Há um sentido da divisão, um resto, um resíduo. Esse resto, esse Outro derradeiro, este irracional, essa prova e garantia única, afinal da alteridade do Outro, é o a. (Lacan, 1962-63, p.36)

Lacan expressa a relação do sujeito com o Outro de maneira matemática. Uma vez que é o sujeito o cociente da divisão na qual é marcado pelo traço unário do significante. Nessa divisão há um resto, o qual garante a alteridade do Outro, este resto é o a. Quando o sujeito é marcado pelo traço unário do significante, processo no qual o Outro é o cociente, há um resto que Lacan aponta como o objeto da angústia na teoria de Freud. É dessa relação matematizável entre o sujeito e o Outro que emerge o objeto derradeiro.

Sobre a constituição do objeto a, existem dois tipos de objetos - os que podem ser partilhados e os que não podem. Dentre os que não podem ser divididos está o falo: "ilustre, em decorrência da castração, mas há também os equivalentes desse falo, entre os quais vocês conhecem os que o precedem - o cíbalo e o mamilo." (Lacan, 1962-63, p.103), porém são equivalentes a ele, pois também são impartilháveis. Em determinada situação esses objetos impartilháveis aparecem no campo dos partilháveis, tornam-se reconhecíveis e relacionam-se com a angústia. De qual relação se trata? "Com efeito, são objetos anteriores à constituição do status do objeto comum, comunicável, socializado. Eis do que se trata no a" (Lacan, 1962-63, p.103). O objeto a é anterior à constituição do objeto comum e partilhável.

Contudo, Lacan propõe uma questão: "Em todo advento do a como tal, a angústia aparece em função de sua relação com o desejo do Outro, mas qual é sua relação com o desejo do sujeito?" (Lacan, 1962-63, p.304). O objeto a possui mais caracterizações dada sua funcionalidade e não deve ser situado em coisa alguma que seja análoga à intencionalidade fenomenológica (noese). Na intencionalidade do desejo, por exemplo, o objeto deve ser concebido como a causa do desejo. Para Lacan (1962-63, p. 114-15) o mesmo não acontece com o objeto a, pois ele é a causa do desejo.

Por se tratar de causa e desejo, Lacan afirma: "o desejo e a lei são a mesma coisa no sentido de que seu objeto lhes é comum" (Lacan, 1962-63, p. 119). Quando há um objeto em comum o desejo e a lei podem ser igualados. É sempre dessa maneira? Para responder, Lacan faz menção ao mito de Édipo: "na origem, o desejo, como desejo do pai, e a lei são uma e a mesma coisa. A relação da lei com o desejo é tão estreita que somente a função da lei traça o caminho do desejo. O desejo, como desejo pela mãe, é idêntico à função da lei." (Lacan, 1962-63, p. 120). Nessa origem, a lei indica o caminho do desejo, de forma que essa lei se iguala ao desejo do pai, ou seja, o desejo pela mãe tem a mesma função da lei. Segundo Lacan, é na medida em que proíbe esse desejo que a lei impõe o desejá-la. Assim, o mito de Édipo significa que o desejo do pai é o que cria a lei, é na origem que a lei indica o caminho do desejo, desejo pela mãe que é enaltecido pela lei no momento em que é proibido. Portanto, o objeto a mantém relações estreitas com o desejo e com a lei, desde a relação entre sujeito e Outro, a qual apenas é possível por intermédio de um operacionalizador, o (-Æ).

O falo aparece como fazendo furo, um branco, um menos, como algo que não se representa no espelho, que falta ali onde deveria estar. A demarcação imaginária possui limite. Fora desse limite está o falo de forma negativizada. Muito embora o falo seja uma reserva libidinal, ele é cortado da imagem especular. "O próprio falo é caracterizado em termos de reserva libidinal, o falo sob a forma do (-Æ), do falo imaginário negativizado, tal como opera na castração" (Rabinovich, 2005, p.68). Simbolizado por (-Æ), o falo negativizado, uma reserva libidinal, remete à castração. Objeto a e (-Æ) têm a mesma posição, mas não estão no mesmo lugar na esquematização lacaniana. O (-Æ) é uma marca que o sujeito recebe do Outro, o inserindo no campo do desejo e barrando o gozo. É do barrar que resta o a, marca da alteridade.

Munidos de uma breve explicação sobre o objeto a e sobre o (-Æ) pode-se acompanhar o esclarecimento de Lacan de que "a angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei, para me fazer entender, de natural, ou seja, o lugar (-Æ). (...) Eu disse alguma coisa - entendam alguma coisa qualquer." (Lacan, 1962-63, p.51). A angústia é quando há um reposicionamento. Segundo Harari, "o perímetro percorrido em torno do objeto a, como eventual obturador desse buraco, não é senão o (-Æ) da castração que, no caso da obturação, falta como falta." (Harari, 1997, p.72). O objeto a pode ocupar o lugar da falta (-Æ), Lacan afirma que a angústia se dá quando algo ocupa o lugar deste (-Æ). Então, algo se sobrepõe à castração, uma vez que o (-Æ) refere-se à castração. Que "alguma coisa" é essa? Segundo Lacan, "a Unheimlichket6 é aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos-phi. (...) Quando aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar." (Lacan, 1962-63, p.52). Isso é o que Lacan chama de "alguma coisa" e que desencadeia a angústia quando ocupa o lugar do (-Æ). Sendo essa reserva libidinal desprovida de reflexo, ou seja, não há uma imagem da falta, esta reserva é assinalada como castração imaginária. Caracterizado por uma falta, quando a Unheimlichket surge neste lugar significa que a falta pode faltar. Eis a angústia. Segundo Harari, é na Unheimlichket que "encontram-se os elementos mais aptos para apreender, então, em que consiste a falta da falta." (Harari, 1997, p. 64).

Antes de continuar, é indispensável fazer algumas considerações sobre isso que Lacan chama de Unheimlichket. O termo foi utilizado por Freud, que se propõe a um exame linguístico. Segundo Freud "a palavra alemã 'unheimlich' é obviamente o oposto de 'heimlich' ['doméstico'], 'heimisch' ['nativo'] - o oposto do que é familiar." (Freud, 1919/1996i, p.277), ou seja, unheimlich é algo estranho. Contudo, "a palavra 'heimlich' (...) pertence a dois conjuntos de ideias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora de vista" (Freud, 1919/1996i, p.282). A palavra heimlich possui dois significados, sendo que unheimlich é o antônimo apenas daquele que diz de algo familiar e agradável. A seguir Freud afirma "Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich" (Freud, 1919/1996i, p.283). Na medida em que heimlich possui dois significados, sendo um deles compatível ao de unheimlich, pode-se afirmar que este é uma subespécie daquele.

Prosseguindo, como fora destacado anteriormente, o Outro exerce sobre a angústia uma função de suma relevância na medida em que lhe falta algo. Portanto, em que consiste essa função do Outro naquele mecanismo de falta da falta? Segundo Lacan: "O que pode, como lhes disse da última vez, vir assinalar-se no lugar aqui designado pelo (-Æ) é a angústia de castração, em sua relação com o Outro" (Lacan, 1962-63, p.55). A angústia, que surge do mecanismo de ocupação do lugar (-Æ) é de castração a partir da relação com o Outro. É por meio do fenômeno Unheimlichket que a falta vem a faltar, constituindo assim o mecanismo da angústia, o qual tem como base o objeto a que, em sua relação com o sujeito, permite uma articulação entre a angústia e a ação suicida.

 

Ao suicídio

Lacan reconhece no suicídio uma singularidade, "é precisamente a partir do momento em que o sujeito morre que ele se torna, para os outros, um signo eterno, e os suicidas mais que os outros." (Lacan, 1957-58, p.254). A morte faz do sujeito um signo para os demais, no caso do suicídio esta característica é exacerbada e isso fica claro a partir de uma beleza horrenda e contagiosa ao mesmo tempo. Há beleza no cair, no tornar-se um signo. Lacan desenvolve o tema da queda afirmando que "não basta lembrar a analogia com o parto para esgotar o sentido dessa palavra. O niederkommen7 é essencial para qualquer relacionamento súbito do sujeito com o que ele é como a" (Lacan, 1962-63, p.124). Sobre o niederkommen e a situação enquanto objeto a Lacan faz referência ao ato suicida de um sujeito:

Não é à toa que o sujeito melancólico tem tamanha propensão, e sempre realizada com rapidez fulgurante, desconcertante, a se atirar pela janela. Com efeito, na medida em que nos lembra o limite entre a cena e o mundo, a janela nos indica o que significa esse ato - o sujeito como que retorna à exclusão fundamental em que se sente. O salto é dado no exato momento em que se consuma, no absoluto de um sujeito de quem somente nós, os analistas, podemos ter uma ideia, a conjunção do desejo com a lei. (Lacan, 1962-63, p.124)

Lacan expressa a importância do niederkommen para com o relacionamento entre o sujeito e o que ele é como objeto a, emprega o ato do melancólico que, com muita rapidez, deixa-se cair pela janela. Ao jogar-se da janela apregoa-se o limite entre a cena e o mundo, uma vez que esse sujeito retorna à sua exclusão fundamental. O sujeito salta por entre o limite da cena e do mundo quando há uma conjunção entre o desejo e a lei.

É exatamente essa conjunção que Lacan procura evidenciar no caso da Jovem Homossexual, em A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (Freud, 1920/1996j). O olhar enfurecido do pai dirigido à filha teve um significado para ela. Logo após esse olhar a jovem tenta se matar atirando-se de uma pequena ponte. Segundo Freud, a jovem não morreu, mas ficou impossibilitada durante algum tempo. Há também outro fato importante que acontece logo antes da jovem tentar matar-se. Segundo Freud, ela confessara à dama que o homem que lhes dirigira aquele olhar era seu pai, e que ele proibira a amizade entre elas. A dama ordenara à jovem que o caso tinha que terminar ali mesmo. "Desesperada por haver dessa forma perdido para sempre sua bem-amada, quis pôr termo à sua própria vida" (Freud, 1920/1969j, p.201). A partir de então, Freud reconhece nessa tentativa de suicídio a realização de um desejo que "significava a consecução do próprio desejo que, quando frustrado, a impelira ao homossexualismo: o desejo de ter um filho do pai, pois agora ela 'caíra' por culpa do pai" (Freud, 1920/1969j, p.201). O desejo de ter um filho do pai se reaviva nessa tentativa de suicídio, quando a jovem se arremessa, deixa-se cair. Segundo Freud, esse desejo a levou a "cair". Quando Freud afirma em seu artigo, "pois agora ela 'caíra' por culpa do pai" (Freud, 1920/1969j, p.201) ele se utiliza de um jogo de palavras com o verbo 'niederkommen'. Segundo Lacan, quando a jovem cai da pequena ponte, ela faz um ato simbólico, que não é outra coisa senão o niederkommen de uma criança no parto. A jovem põe-se abaixo num ato que simboliza o nascimento de uma criança, a criança que o pai não lhe dera.

Segundo Lacan, a moça "empenhara-se, portanto, em fazer de sua castração de mulher o que faz o cavalheiro com sua Dama, isto é, oferecer-lhe precisamente o sacrifício de suas prerrogativas viris" (Lacan, 1962-63, p.124). A maneira como a jovem se comportava diante da mulher por quem se interessava era cortez e masculina, disso Lacan informa que, a partir do nascimento do filho de seu pai com sua mãe, a jovem faz de sua castração de mulher o cavalheirismo para com a mulher mais velha. Desta forma, a jovem "fazia dela o suporte do que faltava no campo do Outro, ou seja, a suprema garantia de que a lei é efetivamente o desejo do pai" (Lacan, 1962-63, p.124). A relação cavalheiresca com a mulher garantia a lei, o desejo do pai, o que traduz a supremacia do falo. Assim, nessa relação a mulher era um suporte do que faltava no campo do Outro. O olhar do pai para a jovem acompanhada da mulher, Lacan nomeia de cena: "essa cena, que tudo ganhara pelo assentimento do sujeito, perde todo seu valor, no entanto, com a desaprovação sentida naquele olhar. É nessa medida que então se produz o que poderíamos chamar de, (...), embaraço supremo." (Lacan, 1962-63, p.125). O olhar de desaprovação do pai desfaz o valor da cena. Perdido, o valor da cena emerge o que Lacan chama de embaraço supremo e que direciona a passagem ao ato.

Acerca do tema da passagem ao ato: "do lugar em que se encontra - ou seja, do lugar da cena em que, como sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito -, ele se precipita fora da cena" (Lacan, 1962-63, p.129). O embaraço maior e a emoção, enquanto distúrbio do movimento, definem o momento da passagem ao ato. Assim, o sujeito cai fora da cena em que se encontra. Segundo Lacan, o sujeito se encaminha para se evadir da cena, é isso que permite reconhecer a passagem ao ato em seu valor próprio e distingui-la do acting out.

É a saída da cena que caracteriza a passagem ao ato e que a diferencia do que Lacan virá a salientar, o acting out que é, "essencialmente, alguma coisa que se mostra na conduta do sujeito. A ênfase demonstrativa de todo acting out, sua orientação para o Outro, deve ser destacada." (Lacan, 1962-63, p.137). Na conduta do sujeito se mostra o que pode ser reconhecido como uma ênfase demonstrativa de orientação para o Outro. O acting out exibe. Porém, de forma oculta para o sujeito na medida em que isso diz algo. O acting out não é oculto em si, sendo invisível em um registro a partir do qual mostra sua causa. "O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra nessa história" (Lacan, 1962-63, p.139), ao mostrar sua causa, o acting out exibe o resto. Lacan define sua intenção afirmando que "ensino-os a reconhecer um acting out e o que isso quer dizer, ou seja, o que lhes designo como o pequeno a" (Lacan, 1962-63, p.139). A pontuação de que "a falta pode faltar" insere no pensamento sobre a angústia a interferência do objeto a. Já a relação do sujeito com este objeto se dá por meio do niederkommen que encontra na ação, seja passagem ao ato ou acting out, um posicionamento perante a angústia.

 

Entrevistas, cartas e bilhetes de adeus

Para ilustrar a questão da angústia e das ações realizadas perante esse afeto são utilizadas duas entrevistas com pessoas que relatam tentativas de suicídio e bilhetes de adeus e cartas deixadas por outras que cometeram suicídio. Os relatos e os escritos se orientam na intenção de evidenciar características sobre o sofrimento anterior à tentativa ou ao ato suicida, sobre a ação perante o sofrimento e o caráter de endereçamento. Não se pretende um estudo de caso, mas sim uma incursão ilustrativa que não classifica essas ações como passagem ao ato ou acting out. Desta forma, a tentativa e o ato suicida permanecerão como descargas, sem demais especificações, produzidas diante da angústia. Sendo assim, uma questão ficará em suspenso: uma tentativa de suicídio e um suicídio realizado poderiam ser denominados como passagem ao ato ou acting out? Essa questão não será respondida nesse trabalho uma vez que, remetendo a qualquer forma de demarcação ou estratificação, o objetivo inicial de articulação entre angústia e suicídio seria desviado por uma nomeação da ação.

Nas entrevistas verificam-se descrições de um sofrimento insuportável que culmina na tentativa de suicídio. Quando relatam os motivos desse sofrimento as entrevistadas afirmam:

A separação dos meus pais foi uma coisa muito traumática. Eu tinha nove anos, quem saiu de casa foi a minha mãe. Até hoje lembro de coisas, lembro que fiquei com nojo dela. Ao mesmo tempo que eu precisava dela eu tinha nojo. (Ana, 24 anos);

Eu tinha uma raiva dentro de mim muito grande de tudo, da minha mãe, da minha família. E era, não sei se era, eu acho que era o principal motivo. (Alice, 20 anos)

Ambas descrevem como precipitador do motivo do sofrimento o ódio dirigido à família, principalmente à mãe nesses relatos. Começa a ficar claro o caráter de ambivalência dessas relações: à mãe é dirigido o nojo e, ao mesmo tempo, a necessidade; a mãe é o alvo da raiva, a qual era o principal motivo do sofrimento. A ambivalência destas relações será retomada, segue-se com as descrições do sofrimento.

Em uma descrição desse sofrimento, as entrevistadas apontam que:

Quando me dá essa... eu só quero sumir. Quero me esconder e não quero ver ninguém na minha frente. (Ana, 24 anos);

Eu era muito triste, todo dia eu chorava, chorava, chorava de noite. Tinha muita raiva das pessoas, das coisas. (...) E era uma tristeza que não saia de mim. (...) Mas era uma tristeza que vinha de dentro de você, e você não sabe o porquê e nem de onde... não sei, sabe? (Alice, 20 anos).

Portanto, mesmo sem palavra para definir, é algo que causa um sofrimento, um desconforto que impele ao afastamento. Sentimentos como o de tristeza e o de raiva são passíveis de descrição, contudo, são da ordem desse "algo" que vem de dentro ou de fora, pois "não saia de mim... vinha de dentro de você", permitindo diante dessa frase uma aproximação com a identificação melancólica descrita no início do artigo. Esse "algo" não pode ser descrito, como se percebe nos relatos. Segundo uma definição teórica da angústia, "a angústia provê, por conseguinte, certeza. (...) a certeza, no que aqui nos ocupa, é aquilo que, por mais significantes que se articulem a ela, não pode se tornar redutível." (Harari, 1997, p.47). Portanto, "não há possibilidade, por parte do sujeito, de convertê-las em um elemento deslizável, apreensível na, e pela, cadeia significante." (Harari, 1997, p. 47). Esse sofrimento relatado diz de algo muito próximo da angústia definida por Lacan a partir das considerações de Freud. Ainda sobre esse sofrimento:

Aí... aí teve um dia que essa tristeza foi maior e eu fiquei um dia inteiro chorando, mas eu não tinha um motivo real do tipo... não aconteceu alguma coisa que me fez ficar assim, sabe? (...) Tem horas que eu não sei de onde veio essa angústia toda, essa depressão toda. Mas era horrível, lembro que minha vida era horrível. (Alice, 20 anos).

Não há um motivo encontrado na realidade para o sofrimento, este apenas existe. Portanto, há um desconhecimento, um não saber sobre esse sofrimento. E é a partir desse sofrimento que fica claro, nos relatos das entrevistadas, um movimento perante esse desprazer:

Eu não lembro o que gerou, mas eu sei que a situação era essa. Eu estava bem de saco cheio com tudo e foi alguma coisa que meu pai falou. Que daí eu pensei: "Ui! não quero mais ficar aqui!". "E eu não quero mais ficar aqui, não quero ficar com minha mãe, não tenho pra onde ir e ninguém me escuta." E daí eu tomei um frasquinho de (...). (Ana, 24 anos);

O que me fazia parar de chorar era quando eu me cortava. Era uma forma de tirar, tirar toda a raiva de mim era eu me agredindo. (...) Na verdade eu não queria me matar, eu queria que acontecesse alguma coisa pra acabar com a minha vida, entendeu? Mas como não acontecia eu peguei e tomei os produtos. (Alice, 20 anos).

Há uma necessidade de ser escutada, há algo a ser dito. Como isso pode ser dito? Cortando-se? Tomando remédios e produtos perigosos? O movimento pode ser significado nesta relação com o sofrimento. Sobre o movimento, a certeza advém ao sujeito por meio da ação e esta subtrai a certeza da angústia, "apropriando-se dela." (Harari, 1997, p.48). A ação perante o sofrimento justifica a angústia no sentido em que essa ação proporciona a certeza. Nota-se nos relatos que a ação de autodestruição, seja uma tentativa de suicídio ou atos de mutilação, emerge como uma quebra da situação em que há o sofrimento, a angústia.

Também nas cartas e nos bilhetes deixados por suicidas, encontram-se apontamentos de um sofrimento:

Fiz isso porque/não suporto (Dias, 1991, p.199);

É difícil suportar o que estou suportando agora (Dias, 1991, p.202);

Gostaria que tudo fosse diferente. / Sou muito confuso / Não deu para segurar esta barra (Dias, 1991, p.214);

Não dava mais para segurar esta barra (Dias, 1991, p.214);

Estava sofrendo do coração, tinha falta de ar, muitas dores, me enforquei. (Dias, 1991, p.190);

Não vou sarar nunca. (Dias, 1991, p.193);

Deixe-me morrer em paz. (Dias, 1991, p.193);

Não so bixo pra ficar prezo. (sic) (Dias, 1991, p.189).

Sobre a ação frente ao sofrimento, as entrevistadas, e as cartas e bilhetes de adeus oferecem algumas características. O sofrimento, juntamente dos sentimentos de raiva e tristeza em grandes proporções, é indicado como imediatamente anterior às ações:

Eu costumo apagar, vou apagando, eliminando. Eu só lembro do fato, assim: de ter ficado com muita raiva, de ter pego uma caneca d'água e fui colocando de um e dois comprimidos e engolindo (Ana, 24 anos);

Aí teve um dia que eu estava muito triste e... aí eu peguei e fui na área de serviço e peguei todos os produtos, enfiei num copo e tomei. (...) Estava pior, mais forte. No dia em que... daí eu não lembro desse dia, do que aconteceu exatamente. Mas daí eu fui lá e falei: "chega, cansei de viver, tomara que me aconteça mil coisas." Aí eu peguei e tomei (Alice, 20 anos).

Muitos fatos não são recordados e relatados com dificuldade, a raiva e a tristeza em grande escala estão presentes. É como se o sofrimento houvesse atingido um auge e a ação surgisse como um "basta". Apesar de a ação remeter à morte, nos relatos o que surge é um desgaste para com a vida. Segundo os relatos:

Era pra conseguir, mas eu tinha o medo de não conseguir. Eu já planejava todas as possibilidades (Ana, 24 anos); Não sei se isso é uma forma de chamar atenção de não sei o que, eu não sei por que eu fiz isso, entendeu? Na hora eu queria me machucar e não queria mais viver, não queria mesmo (Alice, 20 anos).

Mesmo não sabendo ao certo o porquê de tal ato ou deduzindo que possa ser uma forma de chamar a atenção, fica clara a ambiguidade dessa ação. Sobre esse fato: "a morte é vista como solução - não porque se deseje a morte, mas porque a vida se torna insuportável" (Cassorla, 1991, p.22). A vida adquire o peso da insuportabilidade e a morte é vista como solução. Também nas cartas e bilhetes de adeus encontram-se indicações da insuportabilidade da vida:

(...) Vim só para me matar mesmo (Dias, 1991, p.189);

(...) Foi melhor assim (Dias, 1991, p.214);

Há o indicativo de um sofrimento tamanho e que a própria morte será a melhor solução para este sofrimento. O sofrimento não é questionado, é resolvido. A ação está diante do sofrimento, como delimitado no objetivo desse artigo. Pela presença da função do objeto a em ambos os movimentos, pode-se obter uma articulação entre o tema do suicídio e a angústia. Apesar de localizar este sofrimento anterior ao movimento não se pretende uma relação de causalidade, como aponta Cassorla: "Não existe uma causa para o suicídio. (...) O que se chama 'causa' é, geralmente, o elo final dessa cadeia" (Cassorla, 1991, p.20). Os sentimentos de raiva e tristeza não são a causa da tentativa de suicídio. A causa remete a algo da ordem do desconhecido, o qual é desprovido de palavras, segundo os relatos das entrevistadas, quando pretendem definir o sofrimento ligado às relações familiares, em especial com a mãe, com a qual mantêm um vínculo de amor e ódio, de necessidade e nojo.

Apesar da inviabilidade de uma classificação dessas ações, determinados pontos podem ser assinalados. Por exemplo, o que há de comum entre ambas as ações? A resposta é que "nelas se pode apreciar uma relação do sujeito com o Outro" (Harari, 1997, p.49), ou seja, um ponto importante e comum entre a passagem ao ato e o acting out é a relação do sujeito com o Outro. Pontuada em uma seção a parte, a relação entre a angústia e o Outro, na teoria lacaniana, eleva-se, tendo como base o objeto a: "É a partir do Outro que o a assume seu isolamento, e é na relação do sujeito com o Outro que ele se constitui como resto" (Lacan, 1962-63, p.128), portanto, o objeto a emerge em sua constituição como resto e de forma isolada a partir do Outro. Na passagem ao ato, há uma identificação absoluta do sujeito com o a enquanto que no acting out esse resto é o essencial do que é mostrado. Sabendo-se disso, algumas informações podem ser colhidas nas entrevistas e nas cartas e bilhetes de adeus. Quais informações são essas? Podem ser encontrados endereçamentos nestas fontes de informação, não que caracterizem uma mostragem como no acting out, mas a ação também pode ser entendida como que direcionada, como um pedido:

Daí a gente discutiu, discutiu, discutiu e eu gritei muito. Eu pedi, "pelo amor de deus, me escutem! Entendam o que eu estou falando!". Aí meu pai começou a falar que... nem lembro, nem lembro o que ele disse que machucou. (Ana, 24 anos);

As coisas que ela falava pra mim... não existe mãe que fale pra filha. Não deveria ter, sabe? Ela já me xingou demais. E acho que era uma das principais causas da minha tristeza, assim... era escutar tudo. (Alice, 20 anos);

Retomando a questão da ambivalência das relações, aponta-se que uma relação conturbada com os pais é a base do motivo do sofrimento. Segundo os relatos, os pais não estão aptos a ouvirem e também são apontados como hostis. Lacan fala de um "irreversível pendor para o suicídio que se faz reconhecer nas derradeiras resistências com que lidamos nos sujeitos mais ou menos caracterizados pelo fato de terem sido filhos não desejados." (Lacan, 1957-58, p. 254). Sobre a relação familiar as entrevistadas relatam o que se segue:

Eu queria uma mãe, não queria aquela... o que ela era. (Ana, 24 anos);

Nós sabemos que nossa relação é de amor e ódio. Mas eu sei que ela é a única pessoa com quem eu posso contar. (...) Então, na verdade, eu não tive aquela base de família e carinho, sabe? (...) Então... não é uma relação mãe..., sabe? ...uma coisa fraternal, aquela coisa bonita. É meio de igual pra igual no meu caso, sabe? Então ela nunca teve aquele cuidado de mãe. (Alice, 20 anos);

Há queixas sobre a ausência de um carinho por parte dos pais, ao mesmo tempo em que se relata uma necessidade e um amor por eles. O sofrimento é localizado como tendo seus motivos nesta "desestrutura", nesta ausência de amor, nesta hostilidade por parte dos progenitores, ou seja, estes relatos indicam a inexistência de um lugar. Há um vazio na relação delas com as mães, pois estas não oferecem amor, apesar de serem necessárias. A ação mediante o sofrimento possui o caráter de direcionamento e de endereçamento no sentido de uma possibilidade de ser compreendido, ouvido a partir deste lugar vazio. Também, nas entrevistas, esse endereçamento é impedido diante de uma atitude maternal:

Quando eu estava indo pra corda eu olhei meu filho... (silêncio) Eu não podia mais, porque ele não merece (chora). Ele ia passar por tudo que eu passei, viver com a louca da minha mãe, ou ficar aguentando a mulher do meu pai. Falei: "eu não posso, ele não tem culpa". Daí eu desisti. (Ana, 24 anos);

Eu lembro que só não tinha feito isso antes por que gosto muito do meu irmãozinho. Porque a gente é muito apegado. Sou meio que mãe dele assim, sabe? (Alice, 20 anos).

Um vínculo maternal surge como um impedimento ao suicídio. As entrevistadas descrevem uma relação com suas mães como sendo desestruturada e localizam o sofrimento anterior às tentativas de suicídio como relativo à relação defasada. É uma relação maternal que as impede de se destruírem, neste momento existe um lugar de maternagem. Neste momento, pode ser retomado, apenas a título de ilustração, o caso clínico já utilizado nos capítulos anteriores em que Freud reconhece, na tentativa de suicídio de uma jovem, a realização de um desejo que "significava a consecução do próprio desejo e, quando frustrado, a impelira ao homossexualismo: o desejo de ter um filho do pai, pois agora ela 'caíra' por culpa do pai" (Freud, 1920/1996j, p.201). O desejo de ter um filho do pai fora frustrado, então a jovem foi impelida à homossexualidade. Porém, esse desejo se reaviva nessa tentativa de suicídio, quando a jovem se arremessa, deixa-se cair. O desejo reavivado fora frustrado e impeliu a jovem à queda. Encontra-se nos relatos das entrevistadas que o sentimento de maternagem delas para com o próprio filho ou irmão às impede de uma tentativa de suicídio.

Nas cartas e bilhetes de adeus esta característica de endereçamento também está presente:

Eu sinto muito não ter correspondido a vocês. (...) Eu não mereço nenhum de vocês. Sinto muito. (Dias, 1991, p.189);

Seu J. (masc.) me / desculpe essa / minha crueldade. (Dias, 1991, p.199)

Desculpem todos que me amam e que eu amo. (Dias, 1991, p.202)

Não se sintam culpados, por favor. (Dias, 1991, p.214)

Me perdoem / (...) Não se culpem / Os erros foram meus. Só meus (Dias, 1991, p.214)

São pedidos de desculpas e também uma desculpabilização, ou seja, alguns pedem para serem desculpados por esse ato e outros des-culpam aqueles que poderiam se culpar pelo ato. Portanto, estas palavras são dirigidas a alguém que de alguma forma estaria ligado a esta ação. Algumas cartas e bilhetes de adeus quando escritos são dirigidos especificamente a alguma pessoa:

O L. (masc.) é o culpado da minha morte. (Dias, 1991, p.193)

Querida mãe! / Este sacrifício é para a senhora! Não seja tão fraca quanto eu, muito pelo contrário: a senhora está quase conseguindo superar esta barreira / (...) Querido pai! / Todas as pessoas possuem o seu lado bom, puro, sem influências 'deste' mundo exterior. Conheço este seu lado... Mas o mundo corrompe e estraga as pessoas, quero dizer, você, foi muito egoísta... talvez este julgamento não seja digno de ser falado! (Dias, 1991, p.210-11)

A culpa é direcionada a alguém que está implicado no sofrimento. Desta forma, tanto nas entrevistas quanto nas cartas e bilhetes de adeus, podem ser encontrados endereçamentos da ação, ou seja, em virtude do sofrimento no qual estes outros estão envolvidos de forma a serem culpabilizados a ação é dirigida a eles. O endereçamento, portanto, seria um elo entre o sofrimento e a ação. Sobre esse ponto: "o suicida vinga-se de inimigos reais ou fantasiados. 'Visualiza' o sofrimento deles após a sua morte" (Cassorla, 1991, p.23). A ação seria uma vingança? Nas entrevistas percebe-se que a tentativa de suicídio marca um antes e um depois na vida das entrevistadas, por exemplo, a relação com os pais se torna um pouco melhor depois desta ação.

 

Para construir

Segundo Freud, "é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, (...) no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade" (Freud, 1915/1996k, p. 327). Essa citação de Freud aponta um desconhecimento sobre a própria morte, não há um registro de morte no inconsciente. No caso do suicídio, Cassorla afirma: "o suicida não quer morrer - na verdade ele não sabe o que é a morte". (Cassorla, 1991, p.22). A afirmação de que alguém que potencializa a própria morte não deseja morrer abre espaço para questionamentos. Já que aquele que age contra a própria vida não sabe o que é a própria morte e não a deseja, o que o leva a tal ação? Segundo Cassorla, ele "está tentando fugir de uma situação de sofrimento que chega às raias do insuportável. Esse é, geralmente, indescritível com o vocabulário que temos." (Cassorla, 1991, p.21). É o que vimos nos depoimentos e bilhetes aqui ilustrados.

Vimos que o que é indescritível desse sofrimento é a angústia. Procura-se escapar desse sofrimento colossal. Há angústia quando a vida é ameaçada, a partir disso Freud se pergunta sobre como o eu é capaz de se destruir dado seu grande amor por si e indica que, quando identificado ao objeto, o eu pode cometer delitos contra si próprio, até mesmo matar-se nessa anulação da alteridade. Freud aponta isto ao se referir à teoria pulsional e à identificação com o objeto quando se refere ao suicídio do melancólico: a melancolia se caracteriza por ser uma cultura pura de pulsão de morte, tendo êxito em impulsionar o eu à morte. Freud também propõe, de maneira topográfica, a questão melancólica quando afirma que "a apresentação [Dingvortellung] (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido" (Freud, 1917 [1915]/1996a, p.289). A representação da Coisa, do objeto, foi abandonada pela libido e se coloca sobre o eu. Tal objeto agora habita o eu, não há resto, não há causa de desejo. Como vimos com Lacan, a falta falta e o sujeito é tomado de angústia sem poder representá-la.

Dessa forma, tanto a passagem ao ato quanto o acting out podem ser vistos como um movimento perante a angústia, seja de uma saída de cena, um caminhar do sujeito em direção à evasão da cena, numa 'queda', como ato momentâneo que impede qualquer representação para o sujeito; seja por uma ênfase demonstrativa ao Outro, um clamar pela interpretação. Esse movimento se define como uma ação que possibilita o advento da certeza, como vimos nas ilustrações. Essa certeza é provida pela angústia na medida em que esta não é redutível à cadeia significante. Extrai-se disso que a relação do sujeito é com a linguagem, não com o mundo, daí sua constituição, e que a tentativa de suicídio revela a certeza. Algo de alguma forma faz sentido depois da tentativa e, talvez por isso, algumas relações se tornem melhores (mesmo que temporariamente). Essa é uma questão que se revelou a partir desse artigo, como necessitando de um melhor aprofundamento nos estudos sobre suicídio.

A partir do objetivo proposto de se analisar a articulação da angústia com o suicídio, podemos apontar a relação do sujeito com o Outro a partir do objeto a, relação essa que permite a compreensão sobre a angústia quando a falta vem a faltar. Portanto, a articulação proposta se dá por vias do objeto a, concebendo a tentativa ou o ato suicida como tentativas de descargas que se produzem diante do sofrimento, o qual não pode ser descrito com palavras.

Aquele que se en-caminha para suicídio assinala isto que está para além do que pode ser dito por palavras.

 

Notas

1. O presente artigo é fruto da monografia de conclusão de curso de Marcos Vinícius Brunhari, intitulada "Da angústia ao suicídio", orientada pela Doutora Professora Maria Virgínia Cremasco e apresentada no Departamento de Psicologia na Universidade Federal do Paraná em novembro de 2006.

2. Apesar da tradução do termo alemão Angst para Ansiedade será utilizado neste artigo o termo Angústia para Angst;

3. Foram realizadas duas entrevistas com duas jovens que relatam tentativas de suicídio. A entrevista foi aberta, ou seja, não foram formuladas questões anteriormente. Apenas fora solicitado que falassem sobre esse fato. As entrevistadas serão referidas pelos nomes fictícios "Ana, 24 anos" e "Alice, 20 anos".

4. Os bilhetes de adeus e cartas deixados por suicidas foram acessados por meio do livro "Suicídio: testemunhos de adeus" (1991) de Maria Luiza Dias, que realizou uma coleta de mensagens de suicidas durante os anos de 1986-87 no Instituto de Criminalística de São Paulo. A escolha dos bilhetes e das cartas utilizadas neste trabalho fora feita pelos autores. Nas citações de trechos destes bilhetes e na descrição do sexo e da idade será mantida a referência contida no livro de Maria Luiza Dias.

5. Um exemplo dessa ideia é encontrado na obra de René A. Spitz (1979) que, baseado no ritmo presença/ausência, aponta que a criança de idade entre seis e oito meses tem uma peculiar mudança de comportamento quando diante de estranhos. Há uma rejeição nesse contato com o desconhecido, respondendo a criança com desprazer por tratar-se da ausência da mãe. Spitz afirma que "denominei esse padrão de ansiedade dos oito meses e considero-o a primeira manifestação de ansiedade propriamente dita" (Spitz,1979, p.141)

6. "un.heim.lich ['unhaimli|] Adj 1 medonho, pavoroso, terrível. 2 inquietante. 3 estranho, misterioso." (Tochtpop, 1947, p.565)

7. niederkommen vi 1 dar à luz" (Tochtpop, 1947, p.356)

 

Referências

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Recebido em 16 de fevereiro de 2009
Aceito em 23 de março de 2009
Revisado em 26 de maio de 2009

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