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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.3 Fortaleza set. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O jogo do morto no corpo: introjeção e mortificação

 

 

José Waldemar Thiesen TurnaI; Manoel Tosta BerlinckII

IPsicólogo, Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, Brasil, Coordenador Técnico dos serviços multidisciplinares da Casa de Saúde de São João de Deus, São Paulo, Brasil, Professor do Centro de Estudos Psicanalíticos - CEP, São Paulo, Brasil. End.: R. Conselheiro Brotero, 717, Apto 41. São Paulo-SP. CEP: 01232-011. E-mail: jturna@uol.com.br
IISociólogo, psicanalista, Ph.D. (Cornell University, Ithaca, N.Y., USA), Professor do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/Br); Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/Br.), onde dirige, desde 1992, o Laboratório de Psicopatologia Fundamental, membro da World Association of Medical Editors - WAME (Associação Mundial de Editores Médicos), autor de Psicopatologia Fundamental (2000) e de Erotomania com German E. Berrios (2009). End.: R. Tupi, 397, 10° andar, sala 103. São Paulo-SP. CEP: 01233-001. E-mail: mtberlin@uol.com.br

 

 


RESUMO

Os problemas em torno do alcoolismo questionam as ordenações de etiologia, diagnóstico e tratamento deste grave sintoma clínico. O álcool, para além de seu entorno histórico, mítico e prosaico, vem estabelecendo um conjunto de fenômenos evolutivos de estado mórbido oferecendo ao sujeito condições de sustentação imaginária de suas relações objetais circunscritas ao dever fálico ao mesmo tempo em que cobra seu preço com a instalação de uma cronificação corporal e psíquica ante esse estado.
Percorremos um caminho que visa discutir as origens dessa relação interrogando as fundações e funções mais arcaicas dos objetos parentais, as vicissitudes decorrentes dessas relações e a impossibilidade do luto. Funções estas que, para além de seus encarnantes, ou seja, o paterno e o materno deverão constituir as bases de uma organização libidinal e suas dimensões de gozo, culpa e castigo. Estas vicissitudes se manifestam em estados de afetação através de um pathos que encontra nos distúrbios da oralidade alcoólica manifestações extremamente agressivas.
Este trabalho revê e discute uma analogia entre duas conceitualizações fundamentais na constituição das relações de objeto a partir do discurso presente na clínica de alcoolistas internados em ambientes para tratamento de seu sintoma. O discurso do alcoolista, a princípio, não propõe o objeto álcool como objeto de troca. Em sua suposta dialética discursiva este mesmo objeto serve para uma anulação do sujeito. O ego se narra fora da condição de senhor neste processo e as palavras os conduzem a situações de disrupção e agressividade, imposição de um gozo que convoca estes sujeitos ao eterno retorno da recaída alcoólica.
Os conceitos de Introjeção e Incorporação estabelecem uma conexão entre as primeiras relações de objeto e organização corporal e nos orientam sobre as condições de intervenções simbólicas que auxiliariam o sujeito alcoólico a constituir um sentido para seu sintoma e com isso conseguir controlar ou mesmo modificar o mesmo.

Palavras-chave: Alcoolismo. Distúrbios da oralidade. Incorporação. Introjeção. Psicopatologia Fundamental.


ABSTRACT

Problems related to alcoholism bring up questions as to the etiology, diagnosis and treatment of this very serious clinical symptom. Beyond its historical, mythical and prosaic aspects, alcohol causes a number of evolving phenomena related to the morbid state of alcoholism that provide the subject with imaginary props for his object relations related to phallic expectations. In the process, it results in serious chronic physical and mental consequences.
Go through a way which discuss the origins of this relationship by questioning the earliest foundations and functions of the parental objects, problems resulting from these relationships and the impossibility of mourning. These functions that beyond the paternal and maternal must constitute the bases of a libidinal organization and its dimensions of jouissance, guilt and punishment. This problems manifest such states consist of affective pathos which results in extremely aggressive manifestations in disorders of alcoholic orality.
This paper review and discusses an analogy between two fundamental conceptualizations in establishing object relations. The analysis was base on the speech of alcohol-addicted patients hospitalized in a clinic to treat their symptons. The alcoholic's discourse does not propose the object alcohol as an object of exchange. In its supposed discursive dialectic, this very object serves for an invalidation of the subject. The ego narrates itself outside of the condition of master in this process and the words conduce them towards disruptive and aggressive situations. It is the jouissances' imposition that summons these subjects to the eternal return of the alcoholic reinsidence.
The concept of Introjection and Incorporation establish a connection between the first object relations and the body organization, and help us understand the conditions of symbolic interventions, which will help the alcoholic subject find a sense in their symptoms and with it monitor or even modify it.

Keywords: Alcoholism. Orality disorders. Incorporation. Introjection. Fundamental Psychopathology.


 

 

O jogo do morto no corpo: introjeção e mortificação

O trabalho com alcoolistas internados na Casa de Saúde de São João de Deus - hospital psiquiátrico situado nos arredores de São Paulo, Brasil - tem como intenção e direção terapêutica de tratamento a possibilidade de parada e reflexão sobre a tóxica ingesta alcoólica por meio de grupos de atendimento terapêutico monotemático e acompanhamento individual psicológico, além de ampla gama de cuidados básicos e clínicos em ambiente protegido.

Os reiterados retornos ao centro de tratamento; o discurso repetido à exaustão sobre os motivos da recaída; a dificuldade encontrada pelos terapeutas - quer sejam médicos, psicólogos ou assistentes sociais - para a continuidade de tratamento externo ao ambiente hospitalar oferecido (continuidade esta que conta com o auxílio de grupos de auto-ajuda, acompanhamento psicológico individual e ingesta medicamentosa), nos faz refletir sobre as bases constituintes das relações de objeto presentes neste jogo de forças em que o corpo, sustentáculo dos impulsos bem como domínio das pulsões encontra barreira intransponível para lidar com este distúrbio da oralidade diagnosticado como alcoolismo.

O termo alcoólico/alcoolista/alcoolismo é o preferido por médicos e entidades que tratam dessa doença (ao invés do termo alcoólatra) por uma razão etimológica. O sufixo latino "latria" significa adoração e, portanto, alcoólatra seria um idólatra do álcool, um admirador, um apreciador. Entendemos que se tomássemos o termo popularmente mais utilizado - alcoólatra - para designar o sujeito dependente do álcool, não só não separaríamos modos distintos de uso de substâncias, como colocaríamos em seu contexto uma parte significativa da humanidade, de forma pejorativa, provocando uma impressão errônea sobre o uso, o caráter da doença e a dependência.

O "clichê" alcoólico nos interessa do mesmo modo que a estereotipia, o lugar-comum e o chavão nos orientam sobre essa experiência. O termo alcoolista se sobressai justamente enquanto um "a mais" dessa relação do homem com o álcool. A opção pelo termo alcoolista serve para designar o caráter essencialmente sintomático desta relação de objeto. De modo específico Perrier comenta essa condição:

O que convém sublinhar nestas observações liminares é que, também, menos ou não mais impregnado de álcool que qualquer outro "bebedor habitual", tal sujeito não será alcoólatra senão a partir do momento em que um discurso sobre o alcoolismo venha concernir-lho singularmente. (Perrier, 1992, p. 333)

Os aspectos observados sobre a clínica do alcoolista internado subsidiaram as indagações sobre a constituição da subjetividade desse sujeito. Para tanto, foi necessário estabelecer um percurso em que as relações objetais indicassem um sentido sobre esse fenômeno sintomático.

Devemos iniciar nosso percurso situando um conceito fundamental para a psicanálise: do que se trata a noção de função, quando se refere aos encarnantes Pai e Mãe?

As funções desenvolvidas pelo casal parental na constituição da criança servem de esteio para a hipótese de relação objetal resultante dessa equação.

Devemos, portanto, nos orientar para além dos papéis representados pelos seres que ocupam esse lugar (como pais). Não há dúvida: o posicionamento de sujeitos cumprindo com esses papéis é da maior importância. Observa-se, entretanto, que esses sujeitos (pais) constituirão em si as vicissitudes dessa função como o "paterno" e o "materno". A perspectiva que queremos salientar é sobre a função mesma e não sobre seus "encarnantes".

Leclaire (1992) propõe que observemos do seguinte modo essa questão:

Ao renunciarmos à perspectiva teatral, resta algo que participa da violência, de uma ruptura radical, de uma organização que não é apenas vital, mas libidinal, ruptura decisiva ou irreversível; e resta também a dimensão do gozo, com seu correlato de culpabilidade, de sanção, de castigo. (p.38)

Sobre a função do Pai observamos que "Do modo mais abstrato, estruturalmente, a função paterna se situa entre a singularidade do corpo erógeno e a universalidade da lei" (ibid., p.38). Ou seja, é na função mesma dessa ordem que se orientarão os objetos que comporão a trilha de sentido em que se sustenta o desejo de um sujeito. Corpo e lei que o circunscreverão e, a partir daí, vão encontrando modos de sustentar e delimitar os encontros que se darão entre corpos.

Sobre a função de uma Mãe, também sustentamos a observação proposta por Leclaire (1992):

Para que o corpo da criança se torne corpo erógeno é preciso, por exemplo, que sua boca não seja entupida pela fartura orgânica, é preciso que haja um duplo aspecto na alimentação, quer dizer, que não seja fornecida nem como falo oral exclusivo, nem exclusivamente como farta relação. A mãe é que consegue assegurar no cotidiano esta justa dosagem, este duplo aspecto.

A função Mãe nada mais é que um corpo (nem continente, nem esférico) ao mesmo tempo orgânico e erógeno. É ela quem "assegura" concretamente essa justaposição de funções contraditórias: é preciso que seja plenamente esta superfície em que consiste o corpo. Em outras palavras, é preciso, em suma, que a Mãe seja muito mais a terra que suporta sem desfalecer, que o Mar que engloba e absorve (espaço marinho). (p. 69)

O corpo da criança é assim um terceiro apoiado em duas funções que precisam uma da outra para organizar de modo corporal esse ego. Jerusalinsky (2007) entrelaça essas duas funções:

Assim, a ligação entre o que chamamos de função paterna, de modo abreviado, é decisiva para o modo com que o objeto primordial faz sua apresentação na cena da vida infantil. A entrada desse objeto primordial aparece classicamente governada pelo desejo materno e supostamente limitada, barrada, já no sentido da divisão, pela incidência paterna. (p. 72-73)

É justamente a partir do lugar dessa Mãe que se pode instaurar o desejo. A ordenação da entrada da função do Pai atrelada à função da Mãe constituirá a relação possível entre o corpo do infans e o objeto, relação que ordena não só a organização simbólica do mesmo, mas também e por essa mesma operação, a possibilidade de ela se esgotar e se renovar a cada encontro, permitindo ao sujeito a condição de se constituir imaginária e representacionalmente.

Cabe notar que esse modo de entrada no corpo se dá por uma operação nomeada como "assassinato da função do Pai".

Operação que paradoxalmente separa o que estará sempre tentando se reagrupar. Encontro marcado por um ganho que permitirá - a partir de um estranhamento que garante ao eu uma sensação de controle - um sentimento de poder sobre isso que o conduz. É a partir daí que o falo passa a ordenar as aberturas do gozo, balizando sua trajetória até se perder... E novamente retomar sua função. Temos assim a ilusão, sempre razoavelmente satisfatória, de poder "comandar" nosso corpo, bem como os objetos que nele e para ele, tomamos. Não fosse assim, esse corpo tenderia a sofrer pressões que estariam muito além de sua fantasia de arbítrio. Gozos que não poderiam se submeter a nenhuma ordenação posterior.

É aí que encontramos de modo contundente o discurso do alcoolista. Discurso submetido a uma relação onde o objeto álcool não mais se propõe enquanto objeto de troca, mas sim de anulação. Não é mais possível o encontro com esse objeto pressupondo o ego enquanto senhor dessa condição, enquanto condutor dessa ingesta. As reiteradas queixas onde os sujeitos buscam um tipo de desafio contra o inelutável de sua condição tentando empreender uma derradeira busca de controle sobre o elixir, se mostram, insistentemente inúteis. O retorno ao ambiente hospitalar (quer seja para uma internação ou somente para "a glicose") prossegue.

Observamos que a palavra não mais consegue, a partir de seus elementos intelectivos de compreensão, dar conta desta força que atravessa estes sujeitos, fazendo assim que retornem a condição decadente que os habita.

A palavra que pode deter, circunscrever, delimitar a intromissão do real, endereçando essa força em alguma direção onde o eu do sujeito possa tomá-la para si, necessita estar amparada pelo campo organizador do eu, campo atravessado pelas instâncias Ideal e superegóica. Dependendo de como estejam articuladas essas forças, a palavra só será vivida enquanto um disruptor, um atravessamento agressivo, sem controle, um gozo que convoca ao eterno retorno, como se constata na dimensão da recaída no alcoolista.

A partir da clínica escutamos uma série de queixas e pedidos de auxílio no intuito de fazer valer a palavra de ordem ante a bebida: "não vou beber", mas, algo de insustentável não os permite sustentar esse desejo. O que nos cabe perguntar: será que ele efetivamente o possui?

Iniciar uma construção que dê conta desta resposta insere um questionamento justamente onde propusemos a marca do "Pai" no corpo deste sujeito. E se essa marca se instaura por uma operação, será que podemos antever - desde essa constituição discursiva apresentada pelo paciente alcoolista e que então irá inscrevê-lo nesse universo sintomático - que algo singularmente marcante se deu no que chamamos de "operação de assassinato do Pai?".

Todo assassinato remonta um crime, todo crime uma intenção, sobre este resto sustentado por um ato, todo assassinato questiona uma culpa e deixa um corpo. Intenção, crime, culpa e resto (de um corpo).

Estes serão os ingredientes que acompanharão o périplo egóico durante toda sua existência, e sendo assim retomamos essa operação questionando: como entender a inscrição de um morto no corpo?

Questão que se desdobra: para que o morto se constitua no corpo é preciso que esse corpo tenha sido inscrito com um corpo morto? Ou como um corpo morto? Como seria pensar a constituição do morto no corpo? O que significaria isso?

Abibon (2007) descreve assim a função do assassinato do Pai:

A questão da identidade, sujeito, mulher, mãe, pai, filho repousa logicamente sobre o que se aceita colocar no interior. Freud imaginava este ato como fundador da humanidade, ou seja, de cada ser humano: o assassinato do pai, pontuado pela refeição totêmica na qual se devora o corpo assassinado para assimilar as suas virtudes. Só há pai no fundamento da humanidade a partir do momento em que há morte e em que essa conjunção do pai e da morte é incorporada, abrindo o sujeito ao conhecimento desse veículo corporal que ele inaugura devorando o de um outro. (p. 14)

Então podemos propor que tanto o corpo morto deverá estar presente no corpo, quanto a presença mesma desse morto só se dá por uma operação, por uma manobra fruto de um assassinato. Isto é o que permite que a subjetividade possa contar com aberturas - e conseqüentes fechamentos - balizadas por um gozo dito fálico.

"A operação assassinato do Pai consiste em uma determinada forma de assunção desta função de abertura" (Leclaire, 1992, p. 41).

A operação de assassinato do Pai é a construção de um morto que a partir daí está vivo, se faz presente em si e contém, em sua condição estrutural a possibilidade de efetuar o modo como os objetos do mundo, objetos "Outros", terão sua metabolização e devir na constituição do sujeito.

O "morto" presente no corpo será assim, para sempre um Outro, porém não mais heterogêneo a esse corpo, co-habitante responsável pelas incidências objetais de entrada, metabolização e resto.

O "morto Outro" será o responsável pela barragem, pela significação balizada, pela clivagem fundamental entre o sujeito e seu corpo, que ao mesmo tempo divide e sustenta, nos faz donos de um corpo alienados nesta mesma sensação. Controlo meu corpo - pois o sinto meu e assim posso idealizá-lo - desconhecendo sua primazia autônoma.

Fantasia para sempre presente sobre um corpo que deverá corresponder (apesar das inúmeras provas em contrário, visto que estamos sempre "correndo" para dar conta da dor quanto esta nos acomete e relembra nossa condição ante o lugar hierárquico do corpo e do ego) ao esperado, ao Ideal egóico.

Nasce daí o movimento - em constituição - egóico onde um prazer desde muito arcaico se estabelece para garantir um acesso ao objeto e ao desejo, mas sempre sob a condição de cumprir com a culpa sob o crime assim engendrado.

Abrahan e Törok (1995) constituem assim o modo de pensar esse movimento:

Por detrás dos crimes, dos cadáveres, dos assassinatos, reencontrar-se-á a lembrança de uma volúpia que se enquistou de tal modo, aguardando sua ressurreição. O assunto morrerá, talvez, mas sua esperança é eterna. (p.120)

Será a partir desse momento, inscrição primordial do ser no tempo, que a culpa primeira se instala, na "etapa mais arcaica da constituição do Ego" (ibid., p. 122).

Culpa primeira que conduz à separação pela duplicidade pertencente à dualidade sujeito-objeto e que se revela sem juiz nem crime, pois os mesmos "abandonaram a cena no momento mesmo da introjeção" (ibid., p.122). Porém, o que realmente se manterá fixado, é o registro que a representação inconsciente fará de si por não poder mais ignorar o "pecado indizível de que ela é, ao mesmo tempo, vítima e acusadora anônima: justamente o de ter sido submetida à introjeção" (ibid., p.122).

Aulagnier (1990) assim expõem a dinâmica da introjeção:

O que se passa neste primeiro estádio é de uma ordem completamente diferente: é o domínio da alucinação do significante. Sempre me surpreendi pelo fato desse termo tão patognômico da psicose ter sido, por Freud, empregado para descrever a primeira reação do sujeito face à ausência do objeto desejado. O que vemos quando da alucinação do objeto-seio, é o acionamento daquilo que poderíamos chamar "receptores desse primeiro objeto": é pela reprodução, ao nível da boca, de movimentos de sucção, que a criança alucina o seio. E essa alucinação (como se dará na psicose clínica) já tem aqui seu mecanismo específico: a introjeção, que pertence a um registro completamente diferente do registro da identificação. (p.25)

A introjeção é a instalação de um objeto em si, é a instalação mesma de si. Desde o corpo alienado e ingênuo até o objeto da realidade, esse é o processo pelo qual passa o sujeito em sua constituição de percepção da realidade " seja qual for a ordem que daí se estabelecerá e que ordenará contornos marcantes entre as diversas estruturas clínicas.

Como propõem Abraham e Törok (1995):

Vê-se por aí o ponto de articulação próprio da coisa introjetada: ele deriva de uma relação inocente, efetua o desdobramento do objeto, depois, na duplicidade, ele se torna o instrumento de antecipação de uma relação não inocente. É precisamente aí que intervém a prova da realidade. (p.124)

A partir desta evolução constitucional do objeto no corpo, podemos indagar sobre o modo de apropriação vivenciada pelo alcoolista em sua vivência sintomática. Propusemos, a partir da clínica, seus relatos e construções de espaço e resistências1 que o caráter infantil que organiza a posição do alcoolista frente às injunções que o impelem a beber, tem origem em suas relações mais arcaicas de evolução.

A clínica nos orienta que em seu relato encontra, em seu modo maníaco-melancólico aliado ao álcool, maneiras de lidar ciclicamente com suas Imagos: ou seja, ou responde às exigências das provas de realidade a partir da própria Imago, sem conseguir acessar seu ego em auxílio dessa mediação vivendo assim episódios maníacos de resposta (como as recaídas ao objeto alcoólico, objeto maníaco por excelência em sua vida) às demandas do Outro, ou responde a partir da Imago de sua mãe arcaica e onipotente vivendo assim o torpor melancólico auto-acusativo, não tendo, também aí, possibilidade de acessar a si mesmo como mediador dessas exigências entre o mundo externo e o mundo interno, não estabelecendo o que demandaria uma representação viril dessa exigência de trabalho em relação à prova de realidade.

Esse modo de defesa se instala a partir do momento em que as experiências de sofrimento e morte o alertam sobre um risco - catastrófico - ao ter de se haver com seu pacto criminoso frente à introjeção em seus primórdios de constituição. Um modo de não poder reconhecer o prazer de introjeção de seus objetos.

"Nos dois casos, trata-se de negar o 'crime' que é, em última análise, o de ter introjetado o objeto. A supervalorização da culpa não engana ninguém a não ser a Imago. Trata-se de esconder dela que ela foi introjetada no prazer". (Ibid., p. 126)

Esse modo de relação endereça o alcoolista à sua sina de ter de se esconder de sua condição representativa imaginária. Ter de se esconder de si - já que a culpa acusadora anônima sobrevirá - cada vez que confrontado a ter de comparecer quando o outro o conclama a comparecer fálicamente.

Toda análise dirá de uma atenção detalhada sobre a culpa mais arcaica (culpa que escapará à sua detecção pelo motivo de origem, ou seja, ter de se fazer culposa e ao mesmo tempo ter de se esquecer, fazer o luto de si). Enquanto analistas não fazemos outra coisa com ela a não ser "reconstituí-la por uma especulação sobre os limites" (ibid., p. 122) aí alcançados.

Perrier (1992) comentando as relações entre o álcool e a culpa, apontando sua dimensão melancólica, dirá:

Acreditamos "que regar" um trabalho de luto pode criar o homólogo de uma melancolia se a perda do objeto amado concerne o perdedor, no seu ser e não no seu ter. Envenenando-se iterativamente e passionalmente até que a morte aconteça mais tarde, é dele mesmo e não do outro que o alcoólatra faz seu interminável luto. (p. 349)

"A tríade maníaca de negação, de desprezo triunfante e do domínio onipotente " já que ela diz respeito a uma identificação com a própria Imago " oferece uma excelente garantia de que o 'crime' da introjeção nunca será conhecido" (Abrahan e Törok, 1995, p.126).

E o álcool, enquanto elixir que produz o efeito do encanto alquímico, enquanto transmutador estará sempre presente garantindo que essa morte criminosa " o assassinato do Pai " não se efetive.

Encontramos então um modo mortificado, uma acídia, um martírio, que se proporá sempre presente na demanda relacional do alcoolista e alguns - específicos2 - objetos (que de ordem e modo distintos se apresentarão). Mortificação presentificada no corpo, sem outra possibilidade de responder à injunção relacional senão de um modo específico constituído.

Se a sintomatologia alcoólica não permite que o jogo do morto no corpo se constitua, nos perguntamos: onde podemos nos amparar para pensar outro modo dinâmico de relação objetal que permita compreender o que se passa entre o alcoolista e Perrier (1992) aponta uma direção:

Beber não é incorporar, com ou apesar do consentimento, os poderes, saberes, riquezas e prazeres secretos de quem não se é " Amores, mortes e corpos? A partir desta primeira evocação (em preto e branco e mudo, como na cinemateca), pode-se passar do tragedismo alcoólico ao lúdico de um jogo de cabra-cega solitário; aquele do bêbado que se entrega e brinca às cegas na sua relação com o outro. (p.337)

Manifestação melancólica do objeto sobre o qual não se consegue desprender sem se perder " aqui os efeitos de apagamento do sujeito em embriaguez alcoólica são exemplos desse momento em que não responde absolutamente por seus atos e que, posteriormente, acusa esse mesmo momento como justificativa ao "não saber" já que fora de registro da consciência - no ato mesmo do desprendimento, uma tristeza profunda e irascível lembrando ao sujeito a sua irredutível condição de desamparo.

Desamparo que inevitavelmente o reconduzirá ao primeiro gole, à recaída.

O primeiro gole para o alcoolista alude ao escorregão, ao tombo, ao ato em que o sujeito é digerido junto com o líquido; o sujeito é então literalmente tragado. Não há a sensação de "porre" nesse corpo, não há uma corporeidade que estabeleça um limite pela intervenção do simbólico nesse corpo. Quando o alcoolista cai já levanta para o próximo copo; a ressaca é de outra ordem, até porque não reclama parada da ingesta, mas sim continuidade.

A bebida complementaria algo que, enquanto real, se propõe a tamponar o insuportável da frustração imaginária que, nesse momento, não encontra apelação possível à ordem simbólica. Resumidamente, podemos dizer que o objeto álcool se revela real para o alcoolista e imaginário para o bebedor social. Essa distinção é proposta pela constituição em pensar as formas da falta do objeto e sua relação com o sujeito, pois o objeto imaginário é sempre o objeto de que trata a castração, mas não é esse o estatuto do objeto álcool para o alcoolista.

O problema suscitado pela frustração - vivenciada no desamparo - como problemática fulcral no alcoolismo em sua relação de objeto conduz ao questionamento da origem desse caráter. Medida cronificada em sua ingesta e metabolização. O resultado não poderia ser outro: cronificação sintomática aliada a um empobrecimento da volição.

A cronificação alcoólica leva o etilista a uma espécie de esgotamento de sua possibilidade de diferença entre desejo e demanda, tornando-se puro objeto de uma compulsão insensata de demanda clínica e alcoólica, ambas ciclicamente organizadas e sem outra condição de oferta terapêutica a não ser o trato clínico, no sentido mais imediato de acolher e cuidar do soma em um ambiente hospitalar.

Estes pacientes requerem uma internação, e revelam enormes dificuldades em se interessar por um tratamento, justamente pelo severo comprometimento em relação à volição.

Como propõe Berlinck (2000):

Hoje sabemos que o que se denomina de vontade nada mais é, na maioria das vezes, do que a expressão de uma compulsão, de um constrangimento que nos impulsiona à ação. A liberdade à qual nos referimos não implica, portanto, a idéia de um exercício da vontade, mas a noção de que o homem, no mais íntimo do seu ser, é um ser da liberdade já que é constituído por todas as possibilidades que lhe são oferecidas pela cultura, ainda que esteja sempre empenhado em sustentar uma determinada narrativa que supõe coerente com seu eu. (ibid., p. 304)

Essa problemática em relação à volição endereça estes corpos à impotência; impotência sexual ante as relações que o demandem enquanto sujeitos de si, sujeitos em seu desejo. Justamente é na dimensão do circuito desejante que observamos uma grave deficiência.

Os sujeitos que apresentam um distúrbio da oralidade apresentam uma impotência sexual, da ordem da sexualidade e não do sexo, até por que o que se ordena muitas vezes é justamente a procura por tais relações de objeto (viciosas) para que consigam ter relações sexuais. Ora, não é justamente isto que escutamos nos relatos dos alcoolistas, ou seja, de que a ingesta alcoólica apazigua o que viria como uma "sede imensurável", o primeiro gole como um reencontro com esse objeto que - supostamente - deveria estar perdido?

Haveria então, no funcionamento subjetivo do alcoolista uma "falha", falha circunscrita às primeiras relações objetais e que se constituiria como uma falha na rejeição primordial. O que deveria se constituir enquanto introjeção para a constituição de relações objetais e que permitiria uma inscrição diferenciada, dividida e passível de administração egóica, se fixará enquanto uma falha constituída a um apelo a uma injunção onde, quando dirigida a uma resposta dita fálica, encontrará como resposta o objeto alcoólico como suplente dessa falha.

Temos assim um ego frágil, massacrado pela vociferação superegóica e que impelido à ingesta alcoólica, imagina idealmente que ali, no objeto, haverá um ponto de ancoragem para sua angústia desenfreada. Preço da impossibilidade de o sujeito, nesse estado não só vir a saber de si, mas, além disso, de responder por si.

Complexo aberto, demasiadamente aberto e perigoso, pois conduz o sujeito alcoólico a transitar entre a mania, conseqüência de uma identificação com sua Imago Ideal, e a melancolia, uma identificação com a Imago materna. Sobrevém a angústia que pedirá o licor alquímico, verdadeiro condutor à fantasia plena de absorção e retorno ao objeto supostamente perdido. Dá-se o momento mágico da "incorporação":

A "cura" mágica por incorporação dispensa do trabalho doloroso da recomposição. Absorver o que vem a faltar sob forma de alimento, imaginário ou real, no momento em que o psiquismo está enlutado, é recusar o luto e suas conseqüências, é recusar introduzir em si a parte de si mesmo depositada no que está perdido, é recusar saber o verdadeiro sentido da perda, aquele que faria com que, sabendo, fôssemos outro, em síntese, é recusar sua introjeção. A fantasia de incorporação denuncia uma lacuna no psiquismo, uma falta no lugar preciso em que uma introjeção deveria ter ocorrido. (Abrahan e Törok, 1995, p.245)

A incorporação vem a sobressair como condição de relação objetal onde as falas da introjeção deveriam se instalar.

Só pode se tratar da perda súbita de um objeto narcisicamente indispensável, enquanto que essa perda é de natureza a proibir sua comunicação. Em qualquer outro caso, a incorporação não teria razão de ser. (ibid., p. 247)

O objeto primeiro sobre o qual o alcoolista se ressente da falta é o objeto incorporado.

Introduzir no corpo, nele deter ou dele expulsar um objeto - todo ou em parte - ou uma coisa, adquirir, guardar, perder, tantas variantes fantasísticas, que carregam em si, sob a forma exemplar da apropriação (ou da desapropriação fingida), a marca de uma situação intrapsíquica fundamental: aquela que a realidade criou a partir de uma perda sofrida pelo psiquismo. Essa perda, se ela fosse ratificada, imporia uma recomposição profunda. A fantasia de incorporação pretende realizar isso de modo mágico, cumprindo no próprio o que só tem sentido no figurado. É para não "engolir" a perda que se imagina engolir, ter engolido, o que está perdido, sob a forma de um objeto. (Ibid., p. 245)

A fantasia de incorporação atesta a condição sofredora, fracassada no lugar onde uma introjeção deveria ter ocorrido. Justificativa mais que suficiente para se entregar ao objeto de sua paixão, obedecendo assim, em sua constituição egóica, à sina de péssimo administrador, precário protetor e mal-fadado economista (investidor) de sua vida psíquica.

A reflexão sobre estas duas constituições fundantes e à metáfora corporificante do sujeito para a psicanálise (introjeção e incorporação) nos orienta sobre as dificuldades, observadas no início deste escrito, de intervenção no âmbito clínico com alcoolistas. Já que impossibilitados de "introjetar" as direções terapêuticas que racionalmente conhecem, lhes resta uma escuta "alcoólica", embriagada sobre o sentido de suas condições para efetivamente poderem modificar o status quo de seu sintoma.

O que se apresenta enquanto enigma clínico é uma surdez sintomática sobre o ato interventivo desse sujeito sobre seu sintoma. Se a proposta terapêutica se supõe capaz de realizar uma reverberação a partir de uma construção de corpo em que a palavra possa ser encadeada em um processo simbólico e daí operar simbólica e imaginariamente enquanto sentido de si, na clínica alcoólica necessitaremos de um fundamento outro para poder constituir tal condição.

O alcoolista em sua tristeza, sua melancolia repleta de atuações maníacas, conduz o clínico precipitadamente a escuta de um suicídio lento como resposta ao sacrifício ao Pai que não o reconhece como filho legítimo em sua potência; ao suicídio covarde em resposta ao sacrifício ao objeto que insiste em não se retirar de cena enterrado e esquecido pelo luto; enfim, à clínica da desesperança que, se assim vivenciada pelo analista, melhor fará se retirando, permitindo que as associações matriciais cuidem de seu fraterno como irmão de infortúnio.

Por outro lado, se o analista puder escutar o necessário modo de defesa constituído pela ferida aberta e dolorosa constituída pelo alcoolista desde os primórdios de suas relações, sua dinâmica e escopo maníaco-melancólico, poderá então abrigar em sua escuta a ambiência necessária - se suficiente só o tempo dirá - para o tratamento.

Feita a aposta clínica, se a ética do alcoolista é "ter como lei para si não ser si mesmo para o outro" [...] "que cada freudiano teste, então, este esquema estrutural e teórico-clínico em relação à exigência da prática para a qual ele está destinado". (Perrier, 1992, p. 367)

 

Notas

1. Observar em Turna, José Waldemar T. Palavras em torno do copo: sobre a clínica do alcoolismo.2008. p.171 Dissertação de Mestrado. Curso de Pós- Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP. Principalmente os capítulos IV, V e VI.

2. Reiteramos observar o trabalho de dissertação de Mestrado, "Palavras em torno do copo" citado acima.

 

Referências

Abibon, R. (2007). Transmitir psicanálise? Exercício de psicanálise em ato sobre a mulher no homem. Apresentação de texto no Laboratório de Psicopatologia Fundamental -PUC, São Paulo. Trabalho não publicado.         [ Links ]

Abraham, N. & Törok, M. (1995). A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Aulagnier, P. (1979). A violência da interpretação: Do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Aulagnier, P. ( 1990). Um intérprete em busca de sentido (Vol. 2). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Berlinck, M. T. (2000). Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

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Leclaire, S. (1992). O corpo erógeno: Uma introdução à teoria do complexo de Édipo. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Perrier, F. (1992). Ensaios de clínica psicanalítica. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em 19 de maio de 2010
Aceito em 8 de junho de 2010
Revisado em 3 de agosto de 2010

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