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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza dez. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

A experiência do ócio na sociedade hipermoderna

 

 

Kátia Flôres PinheiroI; Ieda RhodenII; José Clerton de Oliveira MartinsIII

IDoutoranda em Psicologia Social pela UERJ. Psicóloga e Professora da Universidade Estácio de Sá - RJ. Membro do GT. Ócio Tempo e Trabalho da ANPEPP. End.: Av. das Américas, 4.200, Bloco 11. Barra da Tijuca. Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22640-102. E-mail: katiafp39@yahoo.com.br
IIDoutora em Ócio e Potencial Humano pela Universidad de Deusto (Espanha). Professora da Unisinos-RS. Psicóloga e Consultora Organizacional. Membro do GT. Ócio, Tempo e Trabalho da ANPEPP. End.: Av. Unisinos, 959. Cristo Reio. São Leopoldo-RS. E-mail: irhoden@unisinos.br
IIIPós-Doutorado/CAPES em Estudos do Ócio pela Universidad de Deusto (Espanha). Doutor em Psicologia pela Univeristat de Barcelona (Espanha). Prof.Titular do PPG em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Coordenador do GT. Ócio, Tempo e Trabalho da ANPEPP. End.: Av. Santos Dumont, 6915/502. Fortaleza-CE. E-mail: jclertonmartins@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo propõe-se a refletir sobre a questão das experiências de ócio no tempo livre no contexto atual, a partir da concepção de uma hipermodernidade em curso. Apesar de representar um desafio, pois a discussão crítica-científica da temática ainda é recente no Brasil, e principalmente no campo da psicologia. Desta forma, argumentamos que diferenças teóricas têm contribuído para dar vitalidade e sustentação ao assunto. Neste sentido, apresentamos desde conceitos até aspectos mais amplos da aplicação e problematização do tema, bem como suas interfaces disciplinares e transdisciplinares, a partir de textos contemporâneos coletados a partir de pesquisa teórica. Alguns elementos discursivos como consumo, corpo, lazer, trabalho e subjetividade são articulados à temática e fazem parte da reflexão que se caracteriza por um pensar comprometido com a vivência do ócio, aqui tratada como experiência positiva e transformadora de natureza subjetiva que se entrelaça ao mundo social elaborado na contemporaneidade consumista, que projeta felicidade em objetos de desejo. O eixo central da discussão parte da observação do que é realidade do ócio na contemporaneidade, buscando compreender seus significados numa dimensão psicossocial cujo cenário retratado na hipermodernidade em grandes centros urbanos, aponta para fenômenos humanos marcados pela cultura do consumo e de novos processos de subjetivação.

Palavras-chave: Tempo livre. Lazer. Subjetividade. Hipermodernidade. Consumo.


ABSTRACT

This article proposes a reflection about the issue of leisure experiences during the free time in the current context from the conception of a hypermodernity in course. Although, it represents a challenge, because a critical-scientific discussion about the subject is still new in Brazil, mainly in the field of psychology. In this way, we argue that the theoretical differences have contributed to give vitality and support to the theme. Therefore, we introduce concepts and wider aspect application and problematization of the subject, including its disciplinary and trans-disciplinary interfaces from contemporary texts gathered through a theoretical research. Some discursive elements such as: consumption, body, leisure, work and subjectivity are articulated to the theme and related to the reflection characterized by a way of think committed with a leisure experience, here treated as a positive and transforming experience, which is originally subjective and entangles with the social world derived from the consumerist contemporaneity, responsible for conveying happiness to objects of desire. The main point of the discussion derives from the observation of what is the leisure reality in the contemporaneity, seeking to understand its meanings in a psycho-social dimension, whose scenario represented in the hypermodernity in big urban centers indicates/ human phenomenons characterized by the consumerist culture and the new processes of subjectivity.

Keywords: Free time. Leisure. Subjectivity. Hypermodernity. Consumption.


 

 

Introdução

A tarefa a qual nos empenhamos neste trabalho sobre a temática do ócio encontra num primeiro momento complexidades históricas e conceituais. O fenômeno do ócio é um dos mais antigos de nossa história e representa uma condição da existência humana que foi se transformando ao longo do tempo. Mesmo diante de novos significados e novas compreensões, o ócio permanece um assunto relevante e cada vez mais complexo. E, assim, com possibilidades de releituras nas articulações entre entendimentos e sensibilidades, claro, influenciado pelos valores que permeiam o momento social, que permite olhares através dos quais visualiza-se o referido fenômeno.

A compreensão do conceito de ócio ressurge na contemporaneidade como um assunto de limitada compreensão. No entanto, haja vista a amplitude que o termo possibilita, pelos sentidos diversos que toma e de acordo com as realidades de abordagens e interesses intrínsecos, o ócio ainda representa um tema de significativa vitalidade no contexto atual.

O termo ócio, apesar de sua antiguidade, somente após a Revolução Industrial, com o surgimento do chamado tempo livre, representa uma conquista das classes laborativas frente à exploração do capital. Além disso, neste momento e contexto, se evidencia a nítida separação entre o tempo-espaço de trabalho, que representa o tempo produtivo, e o tempo-espaço de lazer, voltado para as atividades contrárias ao trabalho destinadas à reposição física e mental, e, por isso mesmo, aceitas socialmente.

Dos gregos antigos aos dias de hoje a percepção coletiva do ócio em muito se alterou. O que outrora representava um valor nobre de vida educativa e contemplativa, um ideal de sabedoria, a partir do século XIX veio adquirindo significações associadas à ideias de vadiagem, libertinagem, improdutividade, desordem, tempo desperdiçado e, um pouco mais a frente, de lazer. Mas o próprio conceito de lazer se desvirtua e passa a ser um signo de classe social.

E, deste modo, o ócio se desvaloriza e se relaciona socialmente ao gozo de prazeres na cultura de produção capitalista. A lógica capitalista foi moldando "estilos de ser" em tempos outrora destinados ao descanso e à recriação, o que foi contribuindo para a industrialização do lazer. Esse processo ocorreu paulatinamente ao longo de séculos. Em dois mil anos foram sendo talhadas concepções que trouxeram um lugar e um tempo específicos para o ócio, fazendo com que não desaparecesse como perspectiva de experiência humana, no entanto, aderindo a novos significados e vinculado a diferentes práticas.

Em termos subjetivos, a palavra ócio reaparece como sinônimo de ocupação desejada, apreciada e, também, resultado da escolha livre. É interessante ressaltar a atenção posta no significado atribuído por quem vivencia a experiência de ócio. No geral, o ócio integra a forma de ser de cada sujeito, sendo expressão de sua identidade, observando-se que a vivência de ócio não é dependente da atividade em si, nem do tempo, do nível econômico ou da formação de quem a vivencia, mas sim está relacionada com o sentido atribuído por quem a vive, conectando-se com o mundo da emotividade.

Diante de diversos significados do ócio, cabe-nos situá-lo na perspectiva humanista na qual permaneceremos a fim de discutir a possibilidade do ócio na hipermodernidade. Com essa perspectiva queremos destacar o ócio como "uma experiência humana integral, centrada em atuações queridas, livres e satisfatórias. Autotélicas, ou seja, aquelas com um fim em si mesmas e pessoais, ou seja, com implicações individuais e sociais (Cuenca, 2008).

 

O hiperconsumo demarca a sociedade contemporânea

O termo hipermodernidade, utilizado no decorrer deste trabalho, busca situar os tempos atuais numa dimensão hyper, apoiado em Lipovetsky (2004). A hipermodernidade representa a radicalização, a exacerbação e a materialização dos anseios da modernidade, no entanto coloca em dúvida se o destino humano do projeto da modernidade se consumou, isto é, se o homem realmente pode se dizer feliz. Este cenário implica reconhecermos que a modernidade não findou. Seu projeto de colocar a sociedade no caminho do progresso e da razão com fins à felicidade ainda é atual, ou melhor, está potencializada e acelerada em nossos tempos (Aubert, 2004).

A exacerbação e radicalização dos fundamentos da modernidade vêm se firmando nos aglomerados humanos no ocidente, como se pode observar nos grandes centros urbanos. Na vida hipermoderna, a cultura do excesso e da urgência desencadeia pessoas mais angustiadas, frágeis, individualistas e consumistas e, assim, mais isoladas da coletividade. O consumismo é um dos fenômenos crescentes nesse estilo de vida, sendo fonte de prazer e sofrimento que centra nas sensações do corpo os objetivos da existência. O culto às sensações e emoções dão o tom afetivo no viver como formas de experimentação momentânea focadas no presente consumista. O que enfraquece os laços e as vivências sociais no face a face. Consequentemente, há um crescente sofrimento psicossocial nesta realidade que produz, por exemplo, patologias alimentares, sociais e profissionais que têm se tornado corriqueiras nos discursos e atuações sociais. Deste modo, estamos frente a novos processos de subjetivação que precisam ser pensados conjuntamente à ideia de ócio.

Diante deste contexto e de fenômenos psicossociais fragilizados, nos perguntamos: Como vivenciar o ócio como experiência subjetiva, se cada vez mais o homem se volta para o mundo externo do consumo?

Esta é a pergunta que nos inspira. A princípio, vamos pensar o humano pela via do corpo como centro da subjetividade numa atualidade hipermoderna e em larga expansão. Uma atualidade centrada no corpo contagiado pela liberação e pelo risco da servidão, numa cultura de sensações, regida pelo estatuto do corpo como matriz da felicidade sensorial. Uma vez que o ideal de felicidade está centrado nas sensações produzidas no corpo.

Na hipermodernidade, considerada a partir do final dos anos 80 (Lipovetsky, 2004), o corpo tem sido objeto de investimentos e intensas práticas de lazer no tempo livre. Em larga escala, lazer e cultura têm constituído objeto da indústria do entretenimento, compondo um conjunto de novas atividades lúdicas e recreativas que vem substituindo, na sociedade atual, o ócio, seja suprimindo-o ou incorporando-o. No entanto, o excesso de tais práticas de cunho programado, estereotipado e pautado na lógica econômica representa um grande mercado em expansão. O que favorece a aceitação passiva ante a dessubjetivação do corpo. O culto ao corpo pela diversão na dispersão, numa visão instrumental e numa realidade sedutora, pretende consolidar a ideia de que a felicidade está fora do sujeito. E se a felicidade é aquilo que almeja o homem hipermoderno, ele o faz por meio do crescente incremento do consumo.

A força das imagens e dos slogans da mídia publicitária, por exemplo, exerce intensa atratividade que impulsiona o homem hipermoderno à pandemia do consumo, mas que, inclusive, encarna seus desejos e anseios. A moda é outro exemplo apropriado de como esse fenômeno acontece. Na moda, novos padrões são permanentemente reciclados e, deste modo, consumidos, como marcadores identitários, enfraquecendo a possibilidade de constituição da identidade como um longo processo no decorrer da vida. No embalo acelerado do consumo, em tempos hipermodernos, o corpo está sob controle da lógica mercadológica, mesmo sendo o centro em torno do qual as pessoas gravitam. Por conseguinte, os hipermodernos são movidos pelo hiperindividualismo, hiperconsumismo e pela ideia do menor esforço, representando um dos valores econômicos que faz mover o mundo globalizado (Lipovetsky, 2004).

 

A felicidade está no objeto que te guia

Uma ilustração da realidade de enfraquecimento do corpo, em detrimento do fortalecimento dos meios de controle sobre ele, pode ser observada em duas propagandas situadas detrás do assento de passageiros de um avião, no ano de 2008 de uma empresa aérea brasileira.

Elas traziam os seguintes dizeres:

FIAT - movido pela paixão
Depois que inventaram o GPS com comando de voz, não é mais você que guia o carro é o carro que guia você.

FIAT - movido pela paixão
Um carro que fala tinha que ter um motor que responde.

Temos como ponto de reflexão que estes anúncios são modelos em que estão condensadas as dimensões do mercado e do desejo dos consumidores hipermodernos. Ou seja, o que se pode observar nessas propagandas é o caráter sedutor de convencimento pela paixão e a noção do deslocamento da condição humana depositada, então, no objeto enquanto extensão da vida. Nesse sentido, os lazeres também incorporam a lógica do consumo, da exibição e da exacerbação do corpo em busca do prazer em sensações instantâneas e experimentais, atendendo as necessidades de clientes por emoções num tempo dedicado a si mesmo. Portanto, em tempos hipermodernos há o incremento das experiências ligadas ao corpo, mas fora do corpo, e produtoras de emoções e adrenalinas em momentos fugazes.

Do mesmo modo, a televisão exerce sobre o sujeito uma posição não dialógica. O solilóquio televisivo mantém o sujeito em posição passiva diante da tela. A rigor, não é preciso nem ao menos levantar para trocar de canal, pois o controle remoto faz esse papel. Cada vez mais, o homem hipermoderno tem à disposição recursos para realizar seus desejos com reduzido esforço. Ele é o cliente em relações mercantilizadas com os objetos e os demais. Nesse contexto, o consumismo representa uma forma degenerativa de se vincular aos objetos, às pessoas e ao mundo da interioridade.

Todavia, a hipermodernidade, enquanto um processo histórico e social, tem suas brechas. O que significa pensar que é possível desenvolver modos de (re)subjetivação e é diante desse pensamento que a experiência de ócio representa uma maneira de resistência e transformação na dinâmica da vida hipermoderna. Tal possibilidade seria basicamente um contraponto aos mecanismos econômicos centrados em estilos de vida organizados por fins lucrativos.

 

A complexidade do ócio na sociedade hipermoderna

O que afirmamos, é que devemos considerar o ócio em toda sua complexidade como experiência subjetiva de desenvolvimento humano, para, assim, rompermos com os mecanismos alienantes e psicologicamente cristalizadores que produzimos e que, ao mesmo tempo, nos tornam produtos.

Mas é preciso, então, considerar que, na perspectiva humana, ócio e trabalho não se opõem. Como também o ócio não necessariamente representa a ausência de atividades, passividade ou prática isolada ou hedonista. Seu tempo está para além do tempo cronológico. Podemos até chamar de tempo livre, subjetivo, bem como qualquer tempo. E, além disso, o ponto básico que perpassa nossos pensamentos é que, pelo ócio, podemos ainda agregar valores à subjetividade.

Algumas atividades praticadas em tempo livre podem ser classificadas para melhor compreender sua relação com as experiências de ócio. A saber: as formativas que proporcionam liberação, relaxamento, autodesenvolvimento e enriquecimento cultural; as de descanso que repõem forças físicas ou mentais e restauram o equilíbrio psicofísico; as de diversão, que promovem aspectos lúdicos e interativos; as de aborrecimento, que produzem tédio e evasão e não requerem compromisso ou esforço, ainda que proporcionem algum prazer imediato; as atividades de consumo que representam as atividades industrializadas, aquelas que estimulam relações de dependência e passividade e promovem a padronização de comportamentos (De Grazia, 1966).

Já o ócio como experiência subjetiva representa uma maneira de fazer e de estar no tempo; uma atitude pessoal com a qual realizamos algo ou não. É um estado da mente que ocorre em condições de liberdade percebida, motivação e orientação para uma meta ou significado (Neulinger, 1981).

Portanto, a experiência subjetiva apresenta necessariamente determinados atributos psicossociais percebidos pelo protagonista. Entretanto, a consciência do ócio é flutuante, podendo ocorrer várias vezes numa atividade (Tinsley e Tinsley, 1986). Outros aspectos são ainda fundamentais como: metas claras, feedback de competência, foco na ação e no presente, ausência do medo do fracasso e de preocupações com imagem, alteração da percepção de tempo, vivência autotélica, equilíbrio entre exigências e habilidades e desfrute (Csikszentmihalyi, 1997).

Estes aspectos, somados à percepção das possibilidades de liberdade no contexto, ao significado motivacional intrínseco à atividade ou situação, ao desfrute e ao reconhecimento de estar implicado, tornam o ócio uma vivência subjetiva plausível e construtiva. Além disso, agregar encontros interpessoais profundos, enfrentar desafios, promover a introspecção e desenvolver a autoexpressão e a apreciação estética também são elementos dinamizadores da experiência de ócio.

Numa perspectiva humanista o potencial para o crescimento pessoal e a tendência atualizante impulsionam o sujeito em direção ao enriquecimento de suas experiências e do próprio Self (Rogers, 1982; Maslow, 1976).

Contudo, algumas pessoas temem seu potencial e entram num processo de evasão de um crescimento possível, o que Maslow (1975) denominou de Complexo de Jonas. Para Rogers (1982) as pessoas incongruentes, negam ou rechaçam suas habilidades, desejos e crenças, enquanto que as congruentes, aceitam-nas e as incorporam no seu projeto de vida. Essas ideias remetem, também, à psicodinâmica do ócio e desenvolvimento, como relacionadas ao caminho para construção do sujeito e estruturação da identidade. A propósito, temos um duplo sentido nessa psicodinâmica: a introspecção e absorção do mundo e as possibilidades de expressão pessoal.

A psicodinâmica do ócio encontra, na Teoria da Interação Simbólica, um entendimento das possibilidades de liberação do controle consciente sobre a autoexposição, compreendendo-se desta forma porque as experiências de ócio permitem a expressão mais autêntica do Ser (Samdhal, 1991). Cabe lembrar ainda que as experiências de ócio muitas vezes proporcionam, além da autoexpressão, a escuta sensível de si e do outro, ou seja, a interação humana mais profunda, alimentando assim estados de ânimo positivos e a coesão familiar e comunitária.

As ideias levantadas até o presente momento acerca do ócio demonstram que esta experiência permite a significação e (re)significação da realidade por meio de um processo de aprendizagem natural e da escuta mais apurada de si e do outro. Logo, se desvela o potencial de desenvolvimento do ócio numa perspectiva construtiva.

Este potencial de desenvolvimento do ócio ecoa na construção da identidade e atualização do Self, facilitando o autorreconhecimento e reconhecimento social da identidade. Promove ainda autoconhecimento e formação da autoimagem ou autoconceito, pois nas escolhas que fazemos expressamos e afirmamos habilidades e valores, informando quem somos. Para Dumazedier (1964), esse potencial está relacionado ao descanso, desfrute e desenvolvimento. Já para McDowell (1984), volta-se para a exploração das capacidades, complementando ou compensando outras experiências, bem como buscando trabalhar contradições humanas.

Com Witt e Ellis (1989), as percepções de competência, ao colocar à prova as habilidades e reconhecer que há competências para participar com êxito da atividade, a pessoa se sente forte, competente, com sentimento de controle sobre si e sua vida. Para Stebbins (1992), as formas de ócio mais absorventes e menos habituais proporcionam um maior sentido de competência. Conforme Csikszentmihalyi (1998), a retomada de aspectos mais autênticos, a transcendência de condicionamentos sociais, o desenvolvimento de habilidades e a prática da criatividade resultam numa maior "complexidade psicológica". Segundo Kleiber (2002), o sentido de competência surge quando exploramos e provamos interesses, e recebemos feedback positivo. E, de acordo com Saint-Arnaud (2002), o prazer de conhecer e a paixão de saber através das idades contempla dois prazeres: do descobrimento em si mesmo (artístico, filosófico ou científico) e a satisfação que estes descobrimentos proporcionam.

Seguindo as contribuições dos estudiosos do ócio e do lazer, determinadas condições psicossociais tornam possível a experiência de ócio. Cabe destacar, que essas condições não são fórmulas prontas e seguras ou "formas" aplicáveis de maneira padronizada, mas indicadores importantes. Além disso, apropriar-se de um tempo cronológico e liberá-lo das obrigações é uma condição concreta para a existência do ócio. Contudo, dominar o tempo pessoal sem dominar a si mesmo, percebendo os valores e o estilo de vida que se leva, também será determinante de como e se os indivíduos de fato experimentam um ócio com um fim construtivo.

 

Ócio entre a subjetividade e as determinações do mercado

A partir desses posicionamentos, determinadas questões relacionadas ao ócio nos inquietam. Como os valores da era hipermoderna interferem na vivência do ócio? Como se reflete no ócio a realidade de que, na hipermodernidade, uns se beneficiam dos recursos econômicos e sociais e outros são excluídos, vivendo, assim, na vacuidade da própria existência? Como os estilos de vida predominantes na hipermodernidade interferem na possibilidade ou impossibilidade do ócio? Seja como for, prestigiar o ócio como constituinte da vida, qualificá-lo como oportunidade de construção e aprimoramento humano, valorizá-lo em contextos educativos e de trabalho e conviver com a complexidade das temporalidades num mundo hipermoderno, são aspectos primordiais do ócio como fenômeno humano e objeto de estudo.

No entanto, precisamos compreender e lidar com a hipermoderna vida de exageros dos indivíduos posicionados como consumidores no tempo livre. De acordo com Adorno (1995), o tempo livre está aprisionado ao tempo do trabalho. O trabalho, por sua vez, determina as condições necessárias para o ato de consumo no tempo liberado. Nos dias atuais, esse é o tempo central para o qual o trabalho se volta. Pode-se inferir que esse tempo central está relacionado ao processo de produção dentro de uma lógica capitalista, pois representa o tempo que brota na modernidade industrial. Não são tempos em oposição, mas se complementam para fazer girar a máquina social de produção e consumo. Contudo, o tempo livre ainda exerce fascínio sobre as pessoas, mesmo podendo estar atrelado a parâmetros funcionalistas.

Afinal, vivemos num regime em que a lucratividade é a cultura que impera nos modos de organização globalizados, cujo paradigma está centrado no desejo e no prazer hedonista, num corpo que já não se pertence mais, pois foi apropriado e capturado pela lógica do consumo. E, neste cenário, a felicidade e a qualidade de vida parecem estar vinculadas ao poder de consumo. De acordo com Tissier-Desbordes (2004), o corpo hipermoderno deve satisfazer as exigências da sociedade do consumo em três domínios: a performance, o prazer, e o bem-estar e a estética.

Neste panorama, o ideal de vida está voltado para o hedonismo individualista. Este hedonismo faz parte de um dos esquemas do hiperconsumo (Charles, 2009). O primeiro esquema se refere ao consumo de bens e comercialização de estilos de vida e, o segundo, diz respeito à lógica emotiva e hedonista para oferecer prazer. Desta maneira, o hiperconsumo suscita o hiperindividualismo ao produzir uma infinidade de produtos para atender aos gostos pessoais aparentemente menos padronizados e mais personalizados; pelo menos é o que se anuncia e o que se oferece como modelo de sedução.

Todavia, conforme Munné (1980), o tempo livre é uma categoria do tempo que se relaciona às ações humanas decorrentes da percepção de uso desse tempo com total liberdade e de forma criativa. Portanto, na contramão do cenário hipermoderno, no tempo livre deveria ser possível vivenciar o ócio. Entretanto, o consumismo que move a hipermodernidade termina por mercantilizá-lo, deteriorá-lo, coisificá-lo e, então, reduzi-lo em suas significações. Com isso, o ócio e o lazer programados, típico da indústria do entretenimento, estão cada vez mais associados. Por isso, uma preocupação legítima é a de investigar e verificar as possibilidades de rompimento, resistência ou transformação dessa noção de ócio adulterado pelo consumismo. Então, vejamos se a filosofia pode, também, nos dar alguma pista.

 

Reflexões finais

Ao abordar o tema da filosofia, Charles (2009) nos mostra que existem duas ilusões fundamentais. A primeira se refere à relação entre a vida e a morte e, assim, para alguns, o intenso receio da morte produz o recuo diante dos prazeres da vida e, para outros, a existência se restringe ao divertimento. A segunda ilusão se refere à ideia de que a felicidade está na exterioridade, fora do próprio homem. E, para aprofundar está temática, o autor apresenta a ideia da "moderação" mencionando o seguinte:

A mensagem da filosofia é simples, a da moderação: é preciso saber impor limites aos desejos, ao que é necessário à obtenção de uma vida agradável, sem ir além do que basta. A verdadeira pobreza não está ligada à falta de recursos, mas, mais propriamente, ao lado do exagero dos desejos, mensagem bastante difícil de se entender na nossa sociedade de hiperconsumo mas que retoma, apesar de tudo, as preocupações contemporâneas sobre a necessidade de se limitar a retirada de recursos naturais a fim de se preservar o meio ambiente e de se preocupar com o destino das futuras gerações (Charles, 2009, p. 56-57).

Tendo em vista a maneira como a moderação é apresentada pela filosofia, nos cabe pensar o ócio interligado e articulado às diferentes disciplinas e saberes, bem como aos múltiplos aspectos da vida humana. Com isso, queremos esclarecer que a experiência de ócio se integra a outras experiências humanas. É possível perceber o ócio, tanto no trabalho não obrigatório, como no passear, ler, flanar, estudar, namorar... Enfim, como vivência que integra o sujeito e o mundo e/ou a si mesmo, onde os valores sejam aqueles pautados no pensar e no agir significativos, voltados para o lúdico, a criatividade, a realização, a participação voluntária, o solidarismo, o bem-estar, o desenvolvimento humano e num tempo que não se limite a uma situação ou contexto específico, mas que reflita muitos tempos, espaços e significados. Um tempo que preencha o ciclo de vida e morte, como bem ilustrou o poeta Fernando Pessoa:

"... Mas eu nem sempre quero ser feliz,

É preciso ser de vez em quando infeliz

Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,

E a chuva, quando falta muito, pede-se.

Por isso tomo a infelicidade com a felicidade

Naturalmente como quem não estranha

Que haja montanhas e planícies

E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo

Na felicidade ou na infelicidade,

Sentir como quem olha,

Pensar como quem anda,

E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja..."1

Se o ócio como dimensão subjetiva está relacionado à ocupação desejada, apreciada e resultado da livre escolha, é preciso rediscuti-lo frente à lógica hipermoderna que tende a transmutar pessoas e relações em objetos de consumo, enquadrando-as aos ideais econômicos. Se isso ocorre, é preciso reconhecer, também, o consentimento do homem hipermoderno e passar a discutir este tema com maior profundidade. Embora este tenha sido nosso objetivo neste trabalho, desde já, sabemos que a discussão não para por aqui. Ela ainda nos inquieta e nos impulsiona a buscar aprimorar estudos sobre os novos processos de subjetivação em tempos hipermodernos.

 

Notas

1. Pessoa, F. Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977, p. 216. (Biblioteca Luso-Brasileira; Série Portuguesa).

 

Referências

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Recebido em 23 de outubro de 2010
Aceito em 12 de novembro de 2010
Revisado em 21 de novembro de 2010

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