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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza dez. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O real é morto: Baudrillard e Lacan, dissidentes da comunicação

 

 

Ondina Pena PereiraI; Verônica MartinelliII

IMestre em Filosofia pela UFMG, Doutora em Antropologia pela UnB, professora do Mestrado em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. End.: SQN 404, Bloco O, apto. 207, Brasília-DF. E-mail: ondinapena@gmail.com
IIPsicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou pesquisa de pós-doutorado na mesma instituição. End.: Parera, 163, 9B. Recoleta. Buenos Aires. E-mail: veronicam@infolink.com.br

 

 


RESUMO

Trata-se, neste artigo, de apresentar um debate entre duas pesquisadoras que trabalham, uma com Baudrillard e outra com Lacan, para uma simultânea aproximação e distinção da teoria destes autores. A obra de ambos não é de fácil compreensão, mas compreendemos que seu caráter obscuro é intencional: tem o objetivo de exigir dos leitores o esforço de abrir mão de seus modos habituais, naturalizados e, portanto, seguros, de entrada em certo universo de problemas em busca dos sentidos explícitos que o texto comunica, por meio de códigos culturais já estabelecidos. Essa exigência, per si, justifica a aproximação dos autores e, na proximidade, põe em evidência o fato de não serem construções teóricas inassimiláveis, mas desconstruções de um grande texto cultural, que trazem à tona aquilo que tem se mostrado inassimilável pela cultura. Tratando-se de obras vastas, foi necessário promover certo recorte no qual elegemos três pontos centrais e intrinsecamente articulados: o resto, o morto e o Real. Quanto à forma do artigo, com o objetivo de não tamponar as perspectivas particulares dos autores, misturando suas posições, optamos pela recuperação de um estilo deixado em segundo plano na produção acadêmica: o diálogo. Já que Lacan e Baudrillard não tiveram a oportunidade de discutir entre si as questões abordadas, o viável agora é promover o (des)encontro entre seus textos. O diálogo aqui apresentado foi, desde o início, elaboração escrita. Mediante a troca de fragmentos, visou-se, de princípio, estruturar um artigo, em um processo que pretende evidenciar o fato de que o interlocutor, tal como o compreende Bakhtin, faz parte da própria criação narrativa, isto é, escreve-se sempre em meio a um debate com o outro.

Palavras-chave: Baudrillard. Lacan. Real. Simbólico. Mundo contemporâneo.


ABSTRACT

This article proposes to present a dialogue between researchers who work, one with Baudrillard and other with Lacan, to show the coincidences and divergences between two approaches of the world contemporary. The work of both is not easy to understand, but this difficulty seems to be intentional: it has the goal to require from the readers the effort to give up the normal modes, naturalized, and therefore safe, to approach a universe of problems in search of explicit directions that the text communicates through cultural codes already established. This goal, per se, justify the approximation of the authors and, in the vicinity, highlights the fact they are not theoretical constructions inconceivable but desconstructions of a great cultural text, which bring to light what has been shown as inconceivable by our culture. For that, it was necessary to promote a cut in which we elected three central points and intrinsically linked: the rest, the dead and the Real. To the form of this article, we opted for the recovery of style left in the background in academic production: the dialogue. Since Lacan and Baudrillard have not had the opportunity to discuss between them, it is now feasible to promote the meeting of their texts. To deal with authors who support theoretical projects with different objectives, the results are presented in the dialogue form, expliciting the interlocution that, in the perspective of Bakhtin, is part of the narrative creation, ie, writes are always in a debate with other.

Keywords: Baudrillard. Lacan. Real. Symbolic. Contemporary world.


 

 

Introdução

Um debate entre duas pesquisadoras que trabalham, uma, com Baudrillard e, outra, com Lacan, para uma simultânea aproximação e distinção da teoria destes autores constitui o objetivo do presente artigo. O uso concomitante de pensadores cujas obras têm sido insistentemente qualificadas como difíceis, incompreensíveis, radicais pode, em princípio, parecer realização destinada a tornar ainda mais confusas suas propostas teóricas, sem contribuir em nada para sua elucidação. Tal afirmação é verdadeira, mas não inteiramente. Não são textos de fácil acesso. Apesar disso, é também verdade que o caráter obscuro desses textos é intencional, justamente para exigir dos leitores o esforço suplementar de abrir mão de seus modos habituais, naturalizados e, portanto, seguros, de entrada em certo universo de problemas: a busca concentrada dos sentidos explícitos que o texto comunica, por meio de códigos culturais já estabelecidos. Essa exigência, per si, justifica a aproximação dos autores e, na proximidade, uma primeira evidência aparece: não é tanto que sejam construções teóricas inassimiláveis, mas desconstruções de um grande texto cultural para trazer à tona aquilo que tem se mostrado inassimilável pela cultura.

Tratando-se de obras vastas, torna-se necessário, ademais, promover certo recorte. Este, é claro, privilegia aspectos da fala de Lacan e de Baudrillard, desconsiderando problemas relevantes. Contudo, por um lado, o trabalho acadêmico só se realiza sustentando silêncios e, por outro, a suposta totalização das teorias às quais nos referimos é projeto que, mesmo se possível, dificilmente seria desejável. Assim, elegemos três pontos centrais e intrinsecamente articulados: o resto, o morto e o Real.

Quanto à forma do artigo, preocupamo-nos em não fazer uso inadequado dos autores mediante alguma mistura teórica que terminaria tamponando suas perspectivas particulares. Logo, optamos pela recuperação de um estilo deixado em segundo plano na produção acadêmica: o diálogo. Ideal seria se Lacan e Baudrillard tivessem discutido as questões abordadas. Entretanto, estando ambos mortos, o viável é promover o (des)encontro daqueles dedicados aos seus textos. O diálogo aqui apresentado tem uma particularidade: foi, desde o início, elaboração escrita. Mediante a troca de fragmentos, visou-se, de princípio, estruturar um artigo. Este processo tem a vantagem de evidenciar algo frequentemente oculto no trabalho intelectual: o interlocutor faz parte da própria criação narrativa. Escreve-se sempre em meio a um debate com o outro. Mikhail Bakhtin (1979) chama atenção para uma manifestação visível do caráter dialógico do escrito:

"A composição sintática dos parágrafos [de um texto] é extremamente variada. Eles podem conter desde uma única palavra até um grande número de orações complexas. Dizer que um parágrafo deve conter a expressão de um pensamento completo não leva a nada. [...]

"Penetrando mais fundo na essência linguística dos parágrafos, convencer-nos-emos de que, em certos aspectos essenciais, eles são análogos às réplicas de um diálogo. Trata-se, de qualquer forma, de diálogos viciados trabalhados no corpo de uma enunciação monológica. Na base da divisão do discurso em partes, denominadas parágrafos na sua forma escrita, encontra-se o ajustamento às reações previstas do ouvinte ou do leitor. " (p. 127)

A escrita, portanto, incorpora o debate antes mesmo da leitura. O diálogo aparece até no texto monológico, porque o discurso é, por si só, jogo com o outro. Por isso, a estrutura adjacente a qualquer produção acadêmica ganha transparência no debate explícito.

 

As propostas de Lacan e de Baudrillard

Baudrillard e Lacan sustentam projetos teóricos com objetivos diferentes. Ao investigar a sociedade ocidental moderna, o primeiro procura construir um ponto de apoio exterior a essa sociedade, lançando mão da estratégia de ver o seu mundo através do olhar do outro. A alteridade, de início, são as culturas pré-modernas, principalmente os grupos "primitivos", que oferecem a lente para o estranhamento de uma realidade na qual estamos todos mergulhados. Assumindo o risco de ser julgado nostálgico e romântico, o autor constrói seu ponto de vista exterior apoiando-se em etnografias de sociedades que praticam um tipo de troca denominada "simbólica", para construir o olhar sobre a sociedade que pratica um tipo oposto de troca, denominada "econômica" - cujos problemas são gerados pela sua incapacidade de lidar com a alteridade e com o vazio. A troca "simbólica" poderia ser considerada, então, como a lente através da qual se pode ver a troca "econômica" a contrapelo, o que permite a construção de uma crítica política da sociedade moderna. A ideia de troca simbólica não se confunde, entretanto, com a noção psicanalítica de dimensão simbólica, uma das dimensões que, juntamente com o imaginário e o real, atravessa a sociedade moderna. Tais dimensões só têm sentido na nossa cultura.

Lacan, por sua vez, se ocupa de um projeto clínico apoiado na fala desventurada do sujeito contemporâneo. No seu texto o Outro se impõe ao universo capitalista como o estranho próximo, seu excluído interno. O inconsciente aponta para o resto, a sobra inassimilável. No mundo dominado pelo mercado, o autor (Lacan, 1969-1970/1992) se volta para o impagável por se apagar do campo de possibilidades. Por mais amplas que sejam as ofertas, há algo amputado da lista. Algo cuja visada tanto supostamente permitiria a satisfação inalcançável através de qualquer outro objeto, quanto destituiria o sistema por tampar o hiato de prazer que impulsiona o consumo. A este termo, Freud (1924/1996) chamava "mãe", Lacan (1972-1973/1985) dirá "mulher", elemento entregue à interdição para inscrever a lógica da troca social. Se, então, descreve-se nossa cultura como sustentada no símbolo é porque este convoca uma perda: "alguma coisa é necessária para compensar, por assim dizer, o que de princípio é número negativo" (Lacan, 1969-1970, p. 48). Na entrada do sujeito no jogo da produção capitalista, há uma subtração estrutural de gozo, depois procura-se tamponar a falta por meio de um gozo a mais.

 

O Diálogo

1. O resto

Isto: Apesar das diferenças entre os projetos teóricos, salta aos olhos a importância dada por ambos à noção de "resto". Em Baudrillard, esta noção aparece como fundamento do valor. O ponto de partida para a compreensão da questão é a forma como o autor se apropria das trocas nos grupos primitivos, às quais nomeia trocas simbólicas. Nestas, não há equivalência entre os termos trocados, estando em jogo simplesmente o desafio, a obrigação ritual de que as comunidades e seus membros revertam cada dom em um contra-dom. Tais trocas não se fundam no valor, ao contrário, organizam-se por meio de sua dissolução: não importa o valor econômico dos objetos trocados, mas a promoção da troca em si mesma, os laços sociais que esta gera. Não há mercadoria, nem abstração econômica das coisas trocadas. Independente de qualquer valor econômico, a troca simbólica se consuma, sem deixar resto ou excedente.

Aquilo: A esta afirmação se opõe algo de essencial das análises de parentesco e da teoria do Dom (Mauss, 1989). Pois estas parecem indicar que a troca sustenta as relações sociais por se perpetuar mediante a dívida, a obrigação vinculada a um elemento que persiste ao final do ato da troca. Se não há equivalência, não há também pagamento justo. Marca-se aí a noção de resto não como amparada na de valor, e sim como conceito inaugural articulado àquilo que se mantém. Lacan (1953-1954/1986) parte justamente dos trabalhos de Marcel Mauss e Lévi-Strauss para formular seu discurso sobre o resto da equação simbólica: termo indizível, irredutível e, no limite, impossível. Evidente, não se trata, no Dom, da lógica da acumulação e da troca econômica capitalista, mas não há ainda uma forma do resto?

Isto: O que Baudrillard nomeia de "resto" é justamente o que não foi consumado em uma reciprocidade rigorosa e que, portanto, transformou-se em valor. Assim, conforme sua leitura, a noção de resto não se ampara na de valor, mas, pelo contrário, como foi dito, é o resto que funda o valor e dá início à acumulação. Não pode haver equivalência onde o valor não foi instituído. Não se está pensando em justiça, mas em desafio. A ideia de consumação aqui presente - em oposição à própria noção de consumo - chega ao extremo na instituição do potlatch, uma forma ainda mais radical ao nosso olhar, porque mais antieconômica, já que nesta os grupos queimam o excedente da sua produção com o objetivo de desafiar-se mutuamente. Essa noção de troca simbólica não se aplica somente ao plano das trocas de bens, de produtos, mas também a uma análise mais ampla da cultura moderna, onde o autor identifica as consequências da sua extinção e do nascimento de uma instância econômica determinante que se alastra, atingindo a comunicação, a linguagem, as relações entre os sexos etc. que passam, por isso, a serem denominados "economia da linguagem", "economia sexual"... Por exemplo, nas regras da linguagem poética, descritas por Saussure (1971/1978) nos seus estudos sobre os anagramas, Baudrillard (1976) vê o mesmo movimento do dom e do contra-dom, onde se abole a significação, o sentido, isto é, o valor. As regras anagramáticas seriam uma espécie de contra-hermenêutica, de insurreição contra as leis da própria linguagem, já que os significantes se duplicam para se anular um ao outro e não para produzir sentido. Assim, as economias da significação e da comunicação também se fundam no resíduo deixado pelo poema mal resolvido, nos significantes que não se abolem no seu duplo e se convertem em sentidos, valores, trocados pela orquestração do código. Desde o ponto de vista de uma formação social que se situa aquém do valor, é viável entrever a sua origem: o valor nasce de uma troca simbólica não consumada.

Aquilo: Quando me referi à noção de resto sem estar amparada na de valor não defendi a anterioridade lógica do segundo termo em relação ao primeiro, mas, sim, a possibilidade de pensá-los, em determinado tempo, como elementos de séries distintas. No entanto, o fundamental reside numa diferença terminológica. O conceito tem para os autores definições particulares. Para Baudrillard ele convoca o sentido, a significação, a comunicação. Lacan não se opõe a isso. Entretanto seu foco é outro: o resto, por um lado, produtor de significância independente de qualquer significação e, por outro lado, destinado à autoproliferação - resto gerando mais resto.

2. O morto

Aquilo: Vou retomar a frase com a qual você terminou seu parágrafo. A diferença de abordagens dos autores - marcada pela distinção de suas perguntas - se revela melhor quando observamos que para o psicanalista, cuja análise limita-se à sociedade ocidental contemporânea, só é possível e necessário dizer: o simbólico é uma troca não consumada. Instaura-se pela incidência da Lei paterna, fálica - âmbito do poder - que vai atirar o sujeito na busca por "ter" mediante a enunciação do "não podes ter". Isto não implica a ausência de uma referência primeira e, em certo sentido, modelar. Contudo, Freud (1913/1996) localiza tal referência no seu mito de fundação, de caráter universal discutível: a cultura se inauguraria pelo assassinato do Pai para permitir ao filho o acesso à mulher desejada. Lacan (1969-1970/1992) delimita, nesta história, seus elementos estruturais. A morte será a casa vazia do valor; a culpa pelo crime, a dívida impagável; e a mulher, o objeto de troca interdito, não mais por uma presença, porém pela Lei transmitida pelo pai. Assim, não se trata de falar da sociedade moderna através da sua pré-história, mas da estrutura mítica inaugural, cuja função é anunciar uma falta, um resto, que, simbolicamente inassimilável, move o jogo social.

Isto: Freud se refere a um mito original, Baudrillard se refere a um mundo pré-moderno, que não se confunde nem com o mítico, nem com uma referência histórica factual, mas é a construção de um ponto de apoio exterior ao mundo moderno, no qual estão as sociedades sem resto. É esse resto, acumulado por não ter sido consumado em uma troca simbólica, por não ter sido resolvido no plano das relações sociais, que dá origem à economia moderna. Tal economia se organiza sobre os escombros da troca simbólica e sobre a exclusão dos termos que não se deixam capturar no sistema positivado. O primeiro desses termos é a morte, que, a partir de então, separada da vida, cai em uma matriz de oposição distintiva que acaba por ser o arquétipo de todas as cisões que se encontram na base da racionalidade moderna. As oposições transformam-se na nossa forma de ver o mundo: vida/morte, masculino/feminino, bem/mal, alma/corpo etc. Nelas o primeiro termo é positivado como valor, enquanto o segundo é banido e, por isso mesmo, persevera como ameaça fantasmática.

Aquilo: O valor engendra a espoliação, a mais-valia é o produto fundamental do capitalismo. O problema está em que, apesar de toda reivindicação revolucionária, há um mais-de-gozar incapaz de ser recuperado (Lacan, 1969-1970/1992). O ato do trabalho, do trabalho da linguagem, gera uma queda impossível de resgatar, pois o resgate é simbólico e o elemento perdido carece de símbolo. O termo positivado como valor é simultaneamente negativizado por sua impotência perante o ideal do valor, por sua perenidade na lógica da troca incessante do consumo. Enquanto a face banida carrega a positividade só atribuível ao que permanece. Tudo comprado se destina, em última instância, ao lixo. Continua a castração, feminina de nome, na verdade, além da diferença de gênero. Insiste igual o buraco cujo fantasma do discurso social, nas suas mais diversas formas, pretende ocultar.

Os dois autores se aproximam ao denunciar, no centro da estrutura da sociedade moderna, a recusa fundamental do furo, da morte - um de seus nomes. Termo sem inscrição no Aparato de linguagem, inapreensível e, por isso, intolerável. Logo, buscamos transformar o morto em outra coisa, e assim negar sua irredutibilidade angustiante.

Isto: Para falar dessa recusa do nada, do furo, Baudrillard recupera a história da relação dos humanos com os mortos, com o quê marca a diferença desta relação na modernidade. Das sociedades arcaicas às modernas, a relação com os mortos se modifica de tal forma que pouco a pouco "os mortos cessam de existir", ao serem deixados "fora da circulação simbólica do grupo" (Baudrillard, 1976, p. 195). Os mortos teriam sido proscritos do mundo dos vivos, pois, na metrópole contemporânea "nada é mais previsto para os mortos, nem no espaço físico, nem no espaço mental".

Aquilo: A morte não existe na linguagem, nada nos autoriza, a partir daí, a dizer que ela não exista, muito pelo contrário. No mito da horda, o assassinato cria o lugar do morto, então, eternizado como a perda - presente em vida por meio da Lei - em torno da qual construímos nossas mensagens: "O pai simbólico é justamente o pai morto, que só se alcança a partir de um lugar vazio e sem comunicação" (Lacan, 1969-1970/1992 p.90). Isto estrutura a cultura moderna. O pior está nas tentativas de igualar, imaginariamente, esta casa vazia à própria mensagem e, em consequência, eliminar sua alteridade radical.

Isto: Ao tentar eliminar a morte enquanto alteridade radical, a cultura moderna é obrigada, pela lógica indestrutível da troca simbólica, a condenar os vivos a uma morte equivalente, na realização de uma cultura de morte, destinada à conservação e à acumulação. A criação desse suspense entre a vida e seu próprio fim produz uma temporalidade artificial, onde se acomodam todas as instâncias de controle social e onde se enraízam as alienações e separações que se tornam objeto da crítica de Marx à economia política. O trabalho social abstrato só pode acontecer na medida em que, em um tempo histórico anterior, a separação entre morte e vida produziu um "tempo social abstrato". O próprio funcionamento do sistema econômico só se faz possível aí: ao subtrair a morte da vida, temos como resultado a vida residual, que se dá a ler "em termos operacionais de cálculo e de valor". (Baudrillard, 1976, p. 201)

Assim, no advento da economia política, Baudrillard localiza o início da empresa moderna de conjuração da morte, que cessa de circular, ficando a circulação de bens condicionada à sua submissão ao signo do equivalente geral. Se, em última instância, o que se acumula nesse sistema é o tempo, o tempo como valor, talvez a morte seja o equivalente geral, já que, diante do tempo, ela é raridade absoluta. A acumulação é, dessa forma, movida pelo fantasma do adiamento da morte, o que coloca a economia política frente a um impasse: "ela quer abolir a morte pela acumulação - mas o tempo mesmo da acumulação é aquele da morte" (Baudrillard, 1976, p. 223). Trata-se da inauguração de um processo no qual, de um lado, a vida é acumulada como valor, de outro, a morte é produzida como equivalente, tornando-se "objeto de um desejo perverso", isto é, a sobrevida para as religiões, a verdade para a ciência e a produtividade para a economia. Parece-me ser este o pior do qual se falava.

Aquilo: Duas questões. Primeiro, não seria compatível com o pensamento de Baudrillard articular equivalente geral com falo e considerar o poder como objeto privilegiado da acumulação? A questão me surge porque para o autor o valor parece corresponder à necessidade de uma cultura hierarquizada.

Isto: Sim, o falo é o equivalente geral da economia política do sexo, fundada sobre um dos termos da oposição feminino/masculino. Na nossa cultura, o masculino tornou-se o termo marcado e o equivalente geral no sistema (Baudrillard, 1979).

Aquilo: Em segundo lugar, o que é um desejo perverso? Depende. Encarando a perversão como desvio, é o desejo, simplesmente. Afinal, se não partimos da aposta na consciência - o homem sabe o que quer e onde deve buscar - o desejo se manifesta no deslocamento cego assinalado pela lógica do complexo de Édipo, posto que em nossa sociedade o incesto nomeia o horror. Por outro lado, um desejo perverso pode indicar justo o oposto, pode apontar a ânsia de destituir a Lei que, ao interditar o objeto, faz da procura o ato fantasmático da vida e da realização plena, o impossível velado por tal fantasma. Acontece que Imperativo e desejo se fundam em um só tempo (Lacan, 1963/1998). Alcançar o alvo final implica a eliminação do anseio. Quem toca a mãe visa ao suicídio - não a morte do corpo que toca, mas a do desejo capaz de movê-lo. Assim, ecoa nos meus ouvidos a frase de Baudrillard "o tempo mesmo da acumulação é o tempo da morte".

Que gozar de qualquer objeto seja o ideal de uma cultura empenhada em promover o eterno é o paradoxo perverso. No já citado mito inaugural descrito pela psicanálise, a renúncia à mulher foi movida pelo medo de repetição do crime perpetrado contra o Pai. Abdicou-se do gozo graças ao medo da morte. Gozo e morte andam, nos textos de Freud e Lacan, sempre de mãos dadas: os desejos recalcados são "ter" e "assassinar"; o impossível encarna na "mãe" e no "morto". E os termos se enlaçam de tal maneira que tanto se abdica do objeto em nome do adiamento da morte, quanto a engrenagem funciona pelo desejo de matar. Parricídio, crime contra quem impunha limites à realização, crime contra o Outro, aquele a quem não posso me equivaler - nunca serei meu próprio pai. Está aí o paradoxo: o desejo de ser eterno equivale ao da morte do Outro, o desejo de extirpar a morte é assassinato.

Este Outro incide no discurso em dois níveis. Representa a linguagem estruturada que oferta ao significante um lugar relativo na série simbólica por meio do jogo de oposições ao qual você se referiu. Neste sentido, instaura-se uma alteridade negociada na construção da realidade - algo é determinado não apenas pelo seu nome, mas também, pelo outro nome que o circunscreve: a oposição vida/morte confere realidade à própria vida. Contudo há um patamar mais radical de alteridade convocado pela morte. Não o elemento retirado de um ponto da rede de linguagem para re-surgir em posição diferente, e sim o excluído-intrínseco incapturável pelos recursos simbólicos: o Real pressentido como limiar.

Isto: Sim, o que a cultura e a ciência moderna chamam realidade revela-se como efeito da generalização das oposições distintivas em todos os níveis. Como a distinção entre morte e vida dá estatuto de realidade à vida, também outros pares de opostos, tais como homem/natureza, alma/corpo, conferem ao segundo termo uma objetividade possível somente pela separação, de onde se conclui que nosso "princípio" de realidade está mergulhado no imaginário, isto é, se criamos a oposição homem/natureza, a natureza, que nos aparece como objetiva, material, é apenas o imaginário dos humanos assim conceituados. Sendo os termos separados, um torna-se o imaginário do outro e o habita como sua própria morte.

Aquilo: Por isso o intuito de eliminar a morte se faz acompanhar do projeto de eliminação mais geral das diferenças. A começar pelas oposições que constituem a base do princípio de realidade, que nada é além da produção social da realidade como linguagem - se opondo à ideia de um mundo em si. Efetivamente, tal construção tende a velar seu processo e arbitrariedade, travestindo-se de verdade, eis sua visada imaginária.

3. O futuro do pretérito

Isto: Baudrillard (1976, 1979, 1990) captou a disjunção generalizada da realidade em pares de opostos na medida em que procurou ver o mundo moderno à luz da troca simbólica, que funciona, no seu pensamento, como uma utopia, através da qual ele pode ir à frente dos acontecimentos e ver o mundo contemporâneo caminhar em direção à realização do universo da transparência absoluta.

Podemos considerar essa troca simbólica como um objeto perdido, como algo próprio de sociedades extintas, uma vez que agora já estamos inteiramente no sistema econômico. Mas Baudrillard (2002) desconfia dessa hipótese e lança o seu desafio: de fato, vivemos em uma imensa troca simbólica. Embora nós circunscrevamos domínios onde parecem se reunir tipos de racionalidade econômica, anatômica, sexual, a forma fundamental, radical, é sempre a da negação do econômico.

Aquilo: Tanto para Baudrillard quanto para Lacan o objeto perdido está incluído na teoria de modo particular: concomitantemente ausente e presente. Ou, dito de maneira distinta, uma presença insistente do ausente.

Gostaria de levantar uma questão. A psicanálise parte da construção de um mito original, apostando numa temporalidade irredutível à cronologia. A instauração a posteriori do inconsciente potencializa tal lógica. Afinal, para Lacan (1953-1954/1986) o recalcado não está antes do dizer no divã, surge no ato da fala como anterioridade: "O recalque e o retorno do recalcado são a mesma coisa" (p.222). Baudrillard se apóia ou na arquitetura da ficção do futuro paradoxal por meio da exacerbação das contradições do presente, ou na pré-história moderna como modelo atual. Parece-me haver entre os autores uma relação com o tempo que se aproxima, embora não se identifique.

Isto: A aproximação está justamente no jogo de presença/ausência, que pode muito bem ser visto como o tempo do futuro do pretérito. A diferença está no projeto teórico dos autores, isto é, no que cada um deles pretende desafiar. Baudrillard demarca um lugar de crítico radical da sociedade e, para tal, desconfia até da própria a atividade crítica, ou seja, para ele, o pensamento crítico pode ser facilmente absorvido pelo sistema, pode mesmo lhe servir de álibi para a sua fachada democrática. Em substituição à crítica, propõe uma "teoria irônica", com a qual pretende ir adiante dos acontecimentos, descrevê-los antes que venham a acontecer, justamente com o objetivo de impedir que as coisas cheguem a se realizar da forma como supõe. É uma ficção teórica, a partir da qual consegue descrever o sistema moderno como inteiramente racional e positivo, sem rituais ou mitos através dos quais se possa viver a troca simbólica, a qual se torna alteridade absoluta. Sem lugar, os elementos da alteridade retornam de forma anômala, explosiva, como uma espécie de "retorno do recalcado". São esses elementos banidos que conservam o potencial de reversibilidade dos termos, porque expõem os limites, atestam a ruína do sistema que pretende tudo erigir em cifras, em evidências.

A pretensão de um sistema como tal, embora absurda, cria um mundo sem ausência, isto é, esconde sua ambivalência, pois o mundo, tomado na sua radicalidade, é, ao mesmo tempo, presente e ausente. O processo de construção de uma presença dominante, o esquecimento da ausência em proveito da pura presença, conduz à eliminação de toda e qualquer cena, dando lugar ao obsceno, à transparência, ainda que, olhando com as lentes relativizantes da troca simbólica, a transparência não é a da realidade, mas somente dos códigos.

Essa associação entre obscenidade e transparência só existe contemporaneamente. No universo moderno, da representação, o obsceno é outra coisa, é o que permanece fora da cena, nas trevas do sistema de representação. Ele é, ainda, o "recalcado", e, enquanto tal, possui uma energia de ruptura, de violência escondida. Já no universo contemporâneo, a obscenidade indica uma sobre-representação: nem escondido, nem recalcado, é a transparência do social, do sexo, da história, do político, como sentido, como evidência. A transparência e a obscenidade levam, portanto, ao êxtase da representação (Baudrillard, 1983, p. 71)

A paixão ligada à era da representação, da cena, deu lugar ao fascínio da era do obsceno. Termos como desejo, sedução, expressões do universo da representação, são substituídos por termos como êxtase, comunicação, vertigem, expressões do universo da hiperinformação e da hipervisibilidade.

Aquilo: Cabe comentar: como o recalcado e seu retorno se identificam, ele é mais o audível do que o escondido.

Compreendo que Baudrillard produza uma hipérbole futurista e, portanto, não cabe questioná-lo tendo como base uma análise ambientalista. O mundo - sempre objeto perdido - descrito pelo autor, parece corresponder ao exagero de modelos, ao futuro sonhado. Revelam-se aspectos do presente por meio de seus ideais, mostrando o absurdo e o pavor a que seríamos conduzidos pela realização de certos desejos contemporâneos. Contudo, pergunto-me se a exacerbação da relação com o código seria capaz de levar à transparência, à positivação absoluta, ainda que não da realidade, mas do próprio código. Por um lado, qual a distinção feita entre esses termos, há realidade além-código? Por outro lado, se dá poder demais às palavras. O Real, entendido como limite e motor do simbólico, não é registro passível de ser retirado, prolifera no escuro ou na luz; "retorna sempre ao mesmo lugar" (Lacan, 1964/1998 p. 52). Quando interrogado sobre o avanço da ciência e da religião que supostamente chegariam a um ponto de resolução similar ao descrito por Baudrillard, Lacan (1974/2005) respondeu: não se preocupem demais, "o real, por pouco que a ciência aí se meta, vai se estender" (p. 65). Há um embuste no projeto de tudo apreender: quanto mais se fala, mais silêncio se gera, mais se deixa de falar. A representação e a comunicação, independente de suas pretensões, não se reduzem a formas de captura, simultaneamente, indicam forças produtoras de resto e de ausências - ou perde-se o mundo ao capturá-lo.

Baudrillard mesmo indica o caráter indelével do excluído, através da noção de terrorismo, por exemplo. Mas, como falar do terror na positivação total quando, segundo ele, o real torna-se racional?

Entretanto, nesta descrição futurista, perpassa uma ideia de relevância clínica, cujas consequências talvez ainda não vislumbremos com clareza. Freud (1920/1996) nomeava o desestruturante, a pane no aparato de linguagem, de acordo com duas perspectivas: falta e excesso. Hoje, descreve-se uma sociedade onde, tentando tamponar o primeiro desses desafios, cai-se violentamente no segundo. Sofrer por carência ou por sobrecarga, sofre-se de qualquer jeito, todavia há diferença aí. A castração converte-se num escudo, que precisamos chamar insistentemente, contra o desmedido.

Isto: Retomo a questão da positivação total. A expressão "o real torna-se racional" indica, em Baudrillard, o triunfo de uma cultura antidialética, cega às contradições, em vias de dessimbolização. É necessário, pois, por mais que "o real retorne sempre ao mesmo lugar", marcar a distinção entre o universo da representação e o do código, que tipo de resistência política é mais eficaz em um e outro universo. Na representação, preserva-se uma relação entre o real e o racional, no sentido de que há aí ainda uma assunção da ausência, da contradição etc. Enquanto que o código busca eliminar a ausência, na medida em que se antecipa à realidade, a cria, a modeliza, simulando, assim, a transparência do mundo. A questão que se coloca para Baudrillard é a da relação da teoria com o mundo, isto é, a de como é o jogo teórico nos diferentes universos. Ora, no mundo da representação, a teoria crítica é uma forma eficaz. Trata-se do sujeito ilusoriamente privilegiado e sua vontade de desvelar o mundo, jogo que se dá na forma da dialética velamento/desvelamento. Já na era modelizada dos códigos, a relação teoria-mundo é outra. Se a própria ciência reconhece as alterações que seus instrumentos produzem nos objetos, ao tentar conhecê-los, é preciso ir mais longe e dizer, concedendo um animismo às coisas, que não se trata de limitação dos instrumentos, mas de uma resposta do mundo, através da desobediência às normas, das falhas dos programas, do desregramento escondido.

Aquilo: Ao defender um projeto irônico, Baudrillard joga para o primeiro plano justamente o Real: algo resta, retorna, assombra, move na direção de sua apreensão só para tornar a escapar.

Isto: Certo, a ironia é o desafio do mundo, com o qual é necessário aprender para reverter as regras do jogo teórico, produzindo uma teoria também irônica, espelho da ironia do objeto. É essa ironia que lhe permite falar de fenômenos extremos que irrompem na contramão de uma sociedade pacificada, normatizada, codificada. No universo contemporâneo da norma, dos modelos, a resposta só pode se dar na forma da anomalia e não mais da anomia, própria ao universo da representação. O terrorismo é anômalo porque é uma forma de violência que nasce de uma sociedade permissiva e pacificada, enquanto a AIDS nasce de um sistema protecionista e profilático do corpo. São virulências internas ao sistema, não mais uma agressão exterior.

Em um universo como tal "o real tornou-se o racional" (Baudrillard, 1983, p. 79), sob o signo da hiper-realidade, o êxtase do real. Contudo, tal como quer Lacan, não se pode concluir daí, felizmente, que toda tensão metafísica se dissipou, pois o humano não se reconciliou com sua imagem, ao contrário, permaneceu hostil a ela e fez do Mal um princípio, que o mantém vulnerável à sedução, que o desvia desse projeto, pois "se o segredo é cada vez mais acuado pela transparência, se a cena (não somente a do sentido, mas também a potência de ilusão e de sedução das aparências) é cada vez mais acuada pelo obsceno, o enigma, entretanto, consolai-vos, permanece inteiro." (Baudrillard, 1983, p. 30)

Estando resguardado, o enigma nos protege do fascínio da era dos modelos e da ludicidade gratuita, onde até mesmo a subversão, a violência e a crítica são absorvidas, fazendo do princípio do prazer uma mera conjunção da demanda e de sua antecipação por respostas programadas. Um jogo sem o outro, portanto, já que lanço e sobrelanço são efetuados pelo mesmo, na circularidade das redes de informação. Nesse ponto, desaparecem até as oposições distintivas, próprias do discurso e da produção de sentido, já que aí não há diferença regrada, mas "bit", impulso eletrônico que não compõe uma unidade de sentido. "Isso não é mais linguagem, isso é a sua dissuasão radical" (Baudrillard, 1979, p. 222). Porém, a linguagem resiste, o enigma preserva a ilusão.

Aquilo: Convém diferenciar a ideia de ilusão para os dois autores. Em Lacan, mundo positivado e ilusão radical seriam quase sinônimos, pois a ilusão por excelência é a da sociedade complementar, total (Zizek, 1992 p. 124). Universo no qual nem haja espaço para o desejo, graças ao tamponamento imediato da falta, à carência do resto enigmático que apóia o adiamento intrínseco ao princípio de prazer - princípio de construção da realidade como linguagem sob a regência da satisfação. Claro, tal projeto impossível, se efetivado, acabaria por revelar o que poderíamos chamar de face maldita da ilusão, porque não existe imaginário capaz de se manter perante a realização plena dos devaneios. Este hiato inerente à sustentação do ilusório passa para o centro da cena em Baudrillard, definindo o conceito.

Isto: Baudrillard concordaria com Lacan: o mundo inteiramente positivado seria a ilusão radical. E concordaria com a impossibilidade de realização da face maldita da ilusão. A diferença é que, na sua versão, vivemos já em uma sociedade muito empobrecida pela denegação da ausência, mas isso não quer dizer que seja uma situação irreversível. Há vários trabalhos, tanto teóricos, quanto fotográficos, que Baudrillard aponta como o que ele entende por "transferência poética de situação", isto é, "resistir ao imperativo moral do sentido pelo silêncio da significação" (2002, p.143). Resistir ao sentido seria resistir à codificação absoluta, do quê a clonagem poderia figurar como uma bela metáfora. Essa "descendência por multiplicação vegetativa", "projeção e isolamento no espelho do código genético": "do Mesmo ao Mesmo sem passar pelo Outro". (Baudrillard, 1979, p. 225)

É como se uma fórmula molecular substituísse a imagem especular, constituindo uma "paródia monstruosa" do mito de Narciso. No mito, o sujeito se aliena no espelho, seja para se encontrar ou para morrer. Na paródia não há mais essa miragem ideal ou mortal. Nela, os seres se somam sem se espelhar, porque não foram engendrados sexualmente e não conhecem a morte. Nesse caso, não se trata mais da espécie humana. (Baudrillard, 1979, 191).

Com a clonagem, o ato dual de engendramento é abolido, dando lugar à ramificação a partir de um segmento. Pai e mãe são substituídos pela matriz do código genético, doravante a perfeita reprodutora. Não havendo mais qualquer mediação imaginária nesse tipo de reprodução, também não há sujeito, mas multiplicação identitária, em que a semelhança com os outros desaparece em proveito da semelhança consigo próprio, isto é, a multiplicação fiel a uma fórmula. A diferença também não tem mais como referência o outro, mas uma diferenciação interna do mesmo até o infinito. O próprio corpo enquanto ideia de uma configuração indivisível, de imagem de totalidade, perde o sentido, tornando-se um agrupamento de células. O paradoxo é que os seres fabricados são, como seus modelos, também sexuados, apesar da inutilidade da função sexual.

"Mas justamente o sexo [...] excede todas as funções do corpo [...] toda a informação que pode ser reunida sobre o corpo. A fórmula genética pretende reunir toda essa informação. Por isso ela só pode abrir caminho a um tipo de reprodução autônoma, independente do sexo e da morte". (Baudrillard, 1979, p. 229)

Na simulação contemporânea, a fórmula inscrita em cada célula torna-se a prótese de todo o corpo, o DNA, que permite o prolongamento indefinido do ser vivo por si mesmo. Eis o que constitui, para Baudrillard, o código genético: um artefato, uma matriz de simulação, de onde seres idênticos procedem.

Essa forma da multiplicação serial tão bem analisada por Walter Benjamin (1980) no que concerne aos objetos industriais e às imagens atinge, para Baudrillard, o corpo humano, no momento em que a tecnologia permite a geração de seres idênticos, sem retorno a algum original. O modelo genético precede, pois, a transformação do corpo em estoque de informações e de mensagens, impondo-se como matriz, que faz do indivíduo "uma metástase cancerosa de sua fórmula de base". (Baudrillard, 1979, p. 231)

A clonagem atinge o extremo da transparência do sistema consigo próprio, revelando o segredo do corpo, que deixa de ser uma forma para incorporar uma fórmula de informação digital. No lugar do triângulo edipiano, temos o "Narciso digital". É o que Baudrillard, da sua ousada ficção teórica, prenuncia.

Aquilo: A sociedade-clone, fim do homem moderno, seria, paralelamente, o enterro de um de seus produtos discursivos: a psicanálise. Este mundo futurista destrona os elementos constituintes do sujeito barrado. Primeiro, o caráter fundador do Édipo e da sexualidade aponta para como a história de tal sujeito nasce da construção do seu lugar perante as diferenças de gênero e de geração. Para Lacan (1957-1958/1999), instaura-se, então, um campo de linguagem onde algo se torna possível quando um outro termo perpetua-se impossível - referência tanto ao inconsciente quanto ao Real. A sociedade-clone, ao prescrever a reprodução do mesmo, destitui as posições mãe-pai-filho e inviabiliza, tanto a estruturação sexual edípica quanto a perda por ela engendrada.

Essa desconstrução de certo desenho do aparato simbólico vem acompanhada da ruína do imaginário mediado. Afinal, tais dimensões aparecem sempre enodadas, uma é incapaz de sobreviver sem a outra. O descrédito narcísico indica a falência do aparelho especular por meio do qual cria-se a ilusão inaugural do corpo totalizado. A palavra ao atravessar tal corpo produz um furo na imagem, rompendo a boa-forma. Fundamental a ideia de que o contorno percebido no espelho não é idêntico a quem olha. Ao contrário, alvo de cobiça, objeto de ódio e alienação, diante do qual alguém aponta para fora na tentativa de se ver e, por isso, se perde: o "eu sou ele", marca uma disjunção essencial (Lacan, 1936/1998). Édipo e estádio do espelho circunscrevem dois momentos fundadores do sujeito da psicanálise que, vistos concomitantemente, demarcam a inscrição inelutável do Real.

O clone converte a cena em monstruosidade, o reflexo sai do espelho e ganha carne. Há ainda uma ilusão essencial, a do sujeito idêntico e reduzido ao código genético. Da existência de gêmeos univitelinos à noção de memória, a realidade depõe contra a hipótese, mas a sociedade-clone cega seus limites, para destronar a alteridade.

Quando se sonha com extirpar fronteiras, encontra-se na morte alvo privilegiado. Irrepresentável e inegociável, nela ancora-se o ponto derradeiro da castração. Entretanto, a quimera carrega consigo o pesadelo. "Do mesmo ao mesmo, sem passar pelo Outro", o ideal de vitória sobre o Real retira o instrumento com qual cobre-se a incidência desmedida do próprio Real. A amputação do impossível convoca a eliminação, simultânea, do que traça o campo do possível em nossa sociedade. A falta não é simplesmente dano, apóia a estrutura cultural. Diante do perigo da perda da falta, o sujeito contemporâneo se depara - isso o divã testemunha - com a angústia que vem lembrar a falência do aparelho psíquico, aparelho de edificação da realidade. Curioso notar como esse sinal se manifesta: sua expressão mais comum é justamente a certeza da morte eminente. Retorna siderante, o elemento imaginariamente superado. Surge, à frente, nosso verdadeiro próximo (1959-1960/1997): o gozo, o impulso para ir além do princípio do prazer, onde a linguagem não responde. Portanto, se há para Baudrillard o modelo de uma sociedade-clone, existe para a psicanálise uma demanda clínica na qual a angústia passa para o primeiro plano. Ou seja, assume o centro da cena a dor que sinaliza o quanto a falta é pilar fundamental para o sujeito.

"O clone será doravante vosso anjo guardião, forma visível de vosso inconsciente e carne de vossa carne, literalmente e sem metáfora. Teu "próximo" será doravante esse clone alucinante de semelhança, tal que não estarás nunca mais só, e não terás nunca mais segredo. "Ama teu próximo como a ti mesmo": esse velho problema do Evangelho está resolvido - o próximo, és tu mesmo". (Baudrillard, 1979, p. 233)

 

Notas finais

A forma dialógica aqui produzida não pretendeu ser exaustiva quanto à posição dos autores em relação aos temas abordados, tampouco buscou atingir um consenso. Ao contrário, ela se sustenta na convicção de que não há debate que dissolva as divergências e tensões que interpelam a relação entre as obras, de resto, como dito na introdução, já marcadas pelas diferentes posições a partir das quais os autores endereçam suas questões ao mundo. Além do mais, são os próprios autores que, na medida da sua dissidência da comunicação, desautorizam uma abordagem que esvazie o potencial transgressivo da permanência no limiar do sentido.

De certo modo, diálogo implica encontro, pois apresenta em um só texto não apenas diferentes autores, mas diferentes discursos. Entretanto, por isso mesmo, diálogo é, também, desencontro. Escreve-se em idiomas particulares, criando-se uma Babel na qual a comunicação escapa entre as linhas. Falando, cada um, sua língua, o texto - esta entidade de vida quase independente - captura nuances da realidade-ficção na teia significante, enquanto notamos algo se perder no lugar intermediário engendrado pelo próprio debate. Justo tal perda desvela a verdade da comunicação: o ruído no centro da cena.

Suportar a má-forma perante o outro foi postura que tanto Lacan quanto Baudrillard não cansaram de exercitar. Assim, de início, abdicamos de convencer ou entender, em prol do ato de jogar a palavra no campo para ver o que se produz, primeiro, na construção do artigo, depois, na sua reconstrução pelo leitor. Buscam-se efeitos, movimentos de linguagem, antes de adeptos, de partidários, de sintonia, de conclusão...

Não é justamente essa a posição de que carece o mundo contemporâneo? Afinal, tem-se circunscrito o Real por meio do afã de tudo dizer, tudo totalizar imaginariamente. Ou seja, tenta-se reduzir o irredutível. Existe um perigo nesta aposta - ameaça contra o ausente, contra a falta - a ser combatido por caminhos que ultrapassam a oferta do outro sentido, da outra proposta. Convém ir além e garantir a alteridade mediante a forma. Assim, deixamos ao leitor o desafio de sustentar a tensão que acompanha as descrições do mundo que o revelam abertamente como aquele da "troca impossível".

 

Referências

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Recebido em 23 de julho de 2010
Aceito em 04 de agosto de 2010
Revisado em 18 de agosto de 2010

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