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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza mar. 2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O mal estar no trabalho: a culpa como mal estar e a culpa do mal estar

 

Work malaise: the guilt as malaise and the guilt from malaise

 

 

Waldir PéricoI; José Sterza JustoII

IPsicólogo pela UNESP - Campus de Assis. Especialista em "Saúde Mental e Saúde Pública" - Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo. Mestrando em "Psicologia e Sociedade" na UNESP - Campus de Assis. End.: Rua Cândido Mota, 1610, vila Rodrigues, Assis-SP, CEP: 19807-200. E-mail: waldirperico@yahoo.com.br
IIProfessor Livre Docente do Departamento de Psicologia Evolutiva e Escolar - UNESP - Campus de Assis. End.: Avenida Dom Antônio, 2.100, Parque Universitário, Assis-SP, CEP: 19 806-900. E-mail: sterzajusto@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Trata-se de uma pesquisa teórico-reflexiva que pretende, à luz das teorias Psicanalítica e Freudo-Marxista, pensar o mal estar no trabalho - efeito de uma civilização repressiva -, bem como suas possibilidades sublimatórias, no contexto das discussões sobre o conflito indivíduo-civilização. O trabalho propicia ao homem o essencial para a sua representação de si e do mundo. Pesquisas atuais indicam a importância de se pensar o trabalho no entendimento do processo saúde/doença física e mental, bem como da subjetividade do homem na atualidade. Entretanto, as organizações de trabalho, usando de entendimentos reducionistas, tendo como cúmplice o Saber/Poder médico-psiquiátrico, tendem a desconsiderar sua parcela de responsabilização na "produção" das enfermidades nos trabalhadores, principalmente as que se referem ao psíquico. Freud, partindo da compreensão das neuroses, destacou que, no conflito indivíduo-civilização, o primeiro paga um alto preço: o mal estar constante (a culpa como mal estar). Ao passo que quem detém a culpa, no sentido social da palavra (a culpa do mal estar), é a cultura humana, intermediada pelas organizações, sendo estas defensoras dos interesses da minoria detentora dos meios de produção/exploração. Para Freud, o crescimento do sentimento de culpa é inevitável, dada a necessidade da repressão das pulsões para o progresso cultural por meio do trabalho desprazeroso. Entretanto, Reich e Marcuse teorizam uma saída para o pessimismo freudiano acerca do conflito entre o indivíduo e a civilização. Freud não teria ponderado devidamente a natureza sócio-histórica do Princípio de Realidade, considerando este universal. Portanto, o nível de repressão possuiria classe socioeconômica específica: mais-valia para uma minoria e mais-repressão para a grande massa. Um Princípio de Realidade menos repressivo poderia proporcionar um progresso cultural mais justo e humanizador. Continua, como nunca, na pauta de discussão, a possibilidade do trabalho em condições sociais e psicológicas que permitam a redução do mal estar das massas de trabalhadores no seio da civilização.

Palavras-chave: Trabalho. Mal estar. Conflito de Classes. Sublimação. Freudo-Marxismo.


ABSTRACT

The present work is a reflexive-theoretically research that intends, by the light of Psychoanalytic and Freudo-Marxim theories, to think about the work malaise - effect of a repressive civilization -, and the sublimation possibilities, in the context of the discussions about the conflict individual-civilization. The work favors the essential thing for the human race's representations. Current researches indicate the importance of thinking the work in the process physical and mental health/illness, as well as the subjectivity of the human race in the present time. However, the organizations of work, using reductionist views, with the psychiatric-medical Knowledge/power as accomplice, have a tendency to disregard their responsibilities in the "production" of the illnesses in the workers. Freud, by the neurosis's understanding, showed that in the individual-civilization conflict the first one pays a high price: the constant malaise (the guilt as malaise). While who detains the guilt, in the social sense of the word (the guilt of malaise), is the human culture, intermediated by the organizations, defenders of the minority's interests that hold the manners of production/exploration. According to Freud, the growth of the feeling of guilt is inevitable, considering the necessity of the drives repression to cultural progress through displeasure work. However, Reich and Marcuse theorize an exit for the Freudian pessimism about the conflict between the individual and the civilization. Freud didn't consider properly the nature socio-historical of the Reality Principle, understanding it like universal. Therefore, the level of repression would have a specific socio-economic class: surplus value for a minority and more repression for the great mass. A less repressive Reality Principle might provide a fair progress of the humanity. It's in the list of discussion the possibility of the work in social and psychological conditions that allow the reduction of worker's malaise in the civilization's breast.

Keywords: Work. Malaise. Conflict of Classes. Sublimation. Freudo-Marxism.


RESUMEN

Este trabajo es una investigación teórica-reflexiva que busca, a la luz de la teoría psicoanalítica y Freud-marxista, pensar sobre el malestar en el local de trabajo - efectos de una civilización represiva -, así como sus posibilidades sublimatorias, en el contexto de los debates del conflicto individuo-civilización. El trabajo da al hombre la clave de su representación de sí y del mundo. Las investigaciones actuales demuestran la importancia de tomar en cuenta el trabajo para la comprensión del proceso salud/enfermedad tanto física como mental, así como la subjetividad del hombre de hoy. Sin embargo, las organizaciones laborales, con un entendimiento reduccionista, y teniendo como cómplice el saber/poder médico-siquiátricos, tienden a ignorar su parte de responsabilidad en la "producción" de enfermedades entre los trabajadores, especialmente las relativas al psíquico. Freud, empezando com la comprensión de las neurosis, demonstro que en el conflicto individuo-civilización el primer paga un alto precio: el malestar constante (la culpa como malestar). Mientras que los dueños de la culpa, en el sentido social de la palabra (culpa del malestar), es la cultura humana, mediada por las organizaciones, que defienden los intereses de la minoria dueña de los medios de producción/explotación. Para Freud, el crecimiento de la culpa es inevitable dada la necesidad de la represión de las pulsiones para el progreso cultural através del trabajo desplaceroso. Sin embargo, Reich y Marcuse teorizan una salida para el pesimismo freudiano acerca del conflicto entre el individuo y la civilización. Freud no habría pesado adecuadamente la naturaleza socio-histórica del principio de la realidad, dada esta universal. Por lo tanto, el nivel de represión posee clase socioeconômica especifica: plusvalor para la minoria y plusrepresion para las grandes masas. Un principio de la realidad menos represivo podría proporcionar un progreso cultural más justo y humanizado. Sigue, como siempre, en el orden del día la posibilidad de trabajar en las condiciones sociales y psicológicas que permiten la reducción del malestar de las masas de trabajadores em el seno de la civilización.

Palabras clave: Trabajo. Malestar. Conflicto de Classes. Sublimacion. Freudo-Marxismo.


RÉSUMÉ

Il s'agit d'une recherche théorique réflexive qui prétend, à partir des théories Psychanalytique et Freudo-marxiste, penser au malaise dans le travail - comme l'effet d'une civilisation répressive, ainsi qu'à ses possibilités sublimatoires, dans le cadre des discussions à propos des conflits entre l'individu et la civilisation. Le travail accorde à l'homme l'essentiel pour la représentation de soi-même et du monde. Des recherches actuelles signalent l'importance de la considération du travail dans le processus santé/maladie physique et mentale, ainsi que dans la subjectivité de l'homme à l'heure actuelle. Pourtant, les organisations du travail, employant des démarches réductionnistes et ayant comme complice le Savoir/Pouvoir médico-psychiatrique, tendent à déconsidérer leur part de responsabilité dans la "production" des maladies chez les ouvriers, notamment celles qui sont d'origine psychique. Freud, partant de la compréhension des névroses, a souligné que dans le conflit entre l'individu et la civilisation le premier paie un prix haut : le malaise constant (la culpabilitié comme malaise). Par contre, celui qui subit la culpabilité, au sens social du mot (la culpabilité du malaise), est la culture humaine, intermédiée par les organisations, étant celles-là les défenseurs des intérêts de la minorité qui détient les moyens de production/exploitation. Pour Freud, la croissance du sentiment de culpabilité est inévitable grâce à la nécessite de la répression des pulsions vis à vis le progrès culturel par l'intermède du travail déplaisant. Pourtant Reich et Marcuse proposent une solution pour le pessimisme freudien au sujet du conflit entre l'individu et la civilisation. Freud n'aurait pas suffisament évalué la nature socio-historique du principe de réalité, tout en le considérant universel. Donc, au niveau de répression correspondrait une classe socio-économique spécifique: la plus-value pour une minorité et la plus-répression pour la masse. Un Principe de Réalité moins répressif pourrait octroyer un progrès culturel plus juste et humanisateur. Plus que jamais on doit discuter la possibilité d'un travail sous des conditions sociales et psychologiques qui permettent la réduction du malaise des masses des ouvriers au sein de la civilisation.

Most-clé: Travail. Malaise. Conflit de Classes. Sublimation. Freudo-Marxisme.


 

 

Introdução

[...] a felicidade individual não deve ser negada pela civilização [...] Assim como não contamos transformar em trabalho senão parte do calor empregado em nossas máquinas, de igual modo não devemos esforçar-nos em desviar a totalidade da energia do instinto sexual de sua finalidade própria (FREUD, 1909/1988e, p. 50).

Na sociedade capitalista atual, é muito comum, logo em seguida à indagação do nome, a importância que se dá à ocupação profissional para descrever a identidade de uma pessoa com quem se conversa pela primeira vez. O trabalho, muito cedo presente nas brincadeiras das crianças, proporciona ao homem a base para a construção da sua constituição enquanto ser individual e social (BRANT & GOMEZ , 2005; CAPITÃO & HEOANI, 2003; Dejours, 1994; FREUD, 1930/1988f; Hollack & Silva, 2005; ENGELS, 1876/s/d; MORIN, PLIPAS & TONELLI, 2007; OLIVEIRA, 2003). Apesar de não ser o foco direto da presente reflexão, não podemos nos esquecer de considerar a crescente influência do consumismo sobre o processo de formação das subjetividades contemporâneas.

Morin, Pliopas & Tonelli (2007) pesquisaram o sentido atribuído ao trabalho em uma população de jovens administradores, com curso superior, da cidade de São Paulo. O principal sentido atribuído ao trabalho foi de essencialidade, já que, além garantir os recursos materiais, o trabalho garante a inserção na sociedade, bem como o sentimento de identidade em relação a esta. Os pesquisadores afirmam ainda que há uma necessidade de estudos sobre o sentido do trabalho em populações menos favorecidas do ponto de vista da qualificação profissional, via de regra, as desfavorecidas socioeconomicamente. Para Bauman (2005), Capitão & Heoani (2003) e Dejours (2005), essa grande massa de trabalhadores sente, como acréscimo ao mal estar no trabalho, uma maior pressão externa, já que a única mercadoria que possui, sua força de trabalho, além de cruelmente explorada, pode ser dispensada a qualquer momento, diante da crescente reserva de mão de obra produzida pelo avanço tecnológico. Se o trabalho gera frustrações, sofrimentos e adoecimentos, a falta dele, o desemprego, gera males iguais ou ainda maiores como sentimentos de impotência, depressão, melancolia, insegurança; sobretudo culpabilizações profundas pelo fracasso em assegurar as bases da vida (BAUMAN, 2005).

Grande pensador das questões do trabalho na vida do homem, Engels (1876/s/d) afirma que, antes de ser base para a identidade individual e social, o trabalho contribuiu ativamente na evolução filogenética - nas mudanças bio-psicológicas -, na transformação do macaco em homem, o que equivale dizer que "o trabalho criou o próprio homem" (ENGELS, 1876/s/d, p. 269).

Freud (1930/1988f) atribui ao trabalho, além da característica de mola propulsora das criações culturais, a principal forma de inscrição do indivíduo na sociedade, já que:

Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto à ênfase concebida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade (FREUD, 1930/1988f, p. 99).

Dadas essas considerações, alguns trabalhos atuais discutem a importância em relevar as implicações do trabalho como fundamental no entendimento do processo saúde/doença física e mental, bem como da subjetividade do homem na atualidade (CAPITÃO & HEOANI, 2003; BORSOI, 2007; BRANT & GOMEZ, 2004, 2005; HOLLACK & SILVA, 2005; MORIN, PLIOPAS & TONELLI, 2007; OLIVEIRA, 2003; SATP & BERNARDO, 2005; VASCONCELOS & FARIA, 2008). O trabalho, então, dependendo de muitos fatores, tanto por parte dos indivíduos quanto da organização social da vida laboral, pode ser entendido como possível produtor de saúde ou - seu contraponto - de doença.

No entanto, a tendência das organizações de trabalho, tendo como cúmplice maior o Saber/Poder médico-psiquiátrico, é desconsiderar sua parcela de responsabilidade na "fabricação" das enfermidades dos trabalhadores, principalmente daquelas que se manifestam no plano psicológico, atribuindo-as restritamente à herança genética e fatores orgânicos (biologismos), e, quando muito, ao histórico familiar-afetivo (psicologismos) destes (BORSOIi, 2007; BRANT & GOMEZ, 2004, 2005). Deste modo, o sofrimento psíquico no trabalho é entendido, por práticas profissionais dentro do paradigma positivista da ciência moderna, principalmente da "psiquiatria do DSM" (COSTA-ROSA & YASUI, 2009), como objeto reduzido à fenomenologia sintomática, recortado de sua natureza e determinações complexas. Para Sato & Bernardo (2005, p. 870):

Tanto a denominada saúde mental ocupacional como as ciências do comportamento buscam a gênese dos problemas de saúde mental dos trabalhadores no universo intra-individual, sendo o trabalho, suas condições e sua organização mero pano de fundo. Assim, ao abstrair as condições concretas de trabalho e, principalmente, as relações de trabalho, contribuíram para construir a explicação que 'culpabiliza a vítima'.

Se não bastasse a lógica individualizante, observa-se uma lógica perversa contínua que expande e refina meios de exploração, abuso, dominação e também de sedução. Trata-se de uma civilização capitalista, portanto à mercê dos interesses do capital, excludente, aviltadora, que não se contenta em fazer sofrer seus integrantes, acabando por reaproveitar este sofrimento para gerar "mais-valia". É o caso típico de determinados serviços de saúde e da indústria químico-farmacêutica que se aproveitam da biologização do adoecimento no trabalho para aferir mais lucro com a medicalização do social. Produzem a doença e oferecem a "cura" a altos preços, evidentemente. O medicamento como mais uma mercadoria, com todas as peculiaridades que esta tem direito a reivindicar na sociedade de consumo.

Em uma pesquisa com trabalhadores de uma grande empresa pública do setor de serviços, que passava por um período de reestruturação, Brant & Gomez (2005) constataram o processo de transformação do sofrimento em adoecimento, como parte da tática de gestão do trabalho desta empresa. Trata-se de um exemplo bem emblemático do que nos propusemos discutir no presente ensaio. Segundo os autores, o adoecimento dos trabalhadores se manifestava de várias formas, muitas vezes percorrendo, consecutivamente, o seguinte caminho: a somatização, a psiquiatrização, a medicalização, a licença médica, a hospitalização, a reinserção profissional e a aposentadoria por invalidez. Todo tipo de patologia diagnosticada no trabalhador tinha as causas atribuídas somente a ele próprio, e nunca relacionadas a qualquer aspecto da organização.

Os autores detalham cada passo do processo de adoecimento até o banimento definitivo da empresa e do trabalho, mediante a aposentadoria na condição de inválido: 1º) as somatizações, quando não se encontrava uma etiologia no corpo, eram vistas como fingimento; 2º) o processo de psiquiatrização desnaturalizava e psicopatologizava as reações afetivas resultantes dos impasses subjetivos proporcionados pelas condições de trabalho, na medida em que:

A psiquiatrização de situações propícias da vida humana, como tristeza e medo, sinalizava o deslocamento de manifestações típicas da intersubjetividade para o domínio pessoal [...] [assim] não se perguntava pelas implicações das condições de vida no trabalho (BRANT & GOMEZ, 2005, p. 945);

3º) a medicalização, como complemento da psiquiatrização, fazia minar no trabalhador aviltado toda possibilidade de enfrentamento, já que:

A ingestão de pílulas parecia fagocitar, conjuntamente, a angustiante situação de deparar-se consigo mesmo. Fechada a questão, sepultavam a possibilidade de expressar o sofrimento em palavras e, por tanto, a compreensão de sua origem (BRANT & GOMEZ, 2005, p. 948);

4º) as licenças médicas, na maioria das vezes psiquiátricas, quando prolongadas, tiravam as referências identitárias, principalmente nos trabalhadores do sexo masculino, ocasionando autoculpabilização neurótica - "não presto nem pra trabalhar, não sirvo pra nada" (BRANT & GOMEZ, 2005, p. 948), relata um dos entrevistados; 5º) a hospitalização era muito frequente e o tratamento recebido era sempre ineficaz e responsável pelo fracasso da retomada do trabalho; 6º) a reinserção profissional, outro passo previsto, via de regra falhava, já que qualquer atividade fora do padrão desejado, sob o olhar atento de familiares, colegas e chefes, era tido pelo fato de o tratamento ter sido ineficaz, o que ocasionava novas internações; 7º) a invalidez profissional, muitas vezes com marcas não só no corpo, mas também na subjetividade, implicava na invalidação enquanto sujeito.

Por fim, os autores chegam à conclusão de que:

[...] se a transformação do sofrimento em adoecimento representa a quebra da resistência dos trabalhadores, a hospitalização psiquiátrica era o cenário da vitória do poder institucional, num jogo em que preparava a abertura do último e derradeiro ato, o da aposentadoria por invalidez (BRANT & GOMEZ, 2005, p. 949).

Assim, ao trabalhador aviltado, sugado até a última gota, agora em depressão profunda, só resta uma vida de culpa, portanto de mal estar, por "não ter sido um bom menino" para a organização. À ideologia cabe o papel de, além de escamotear a dominação de uma classe sobre a outra, culpabilizar a vítima da exploração, o trabalhador, na medida em que traz preceitos racionalistas que normalizam e naturalizam as diferenças (individuais e de classe) socioeconômicas.

Freud (1930/1988f), brilhantemente, discursou sobre as relações sadomasoquistas do conflito indivíduo-civilização: as organizações, representantes da civilização, usam o indivíduo até sua quase morte; e este, alienado de sua condição psicossocial, veste a camisa da culpa. Partindo da compreensão de seus pacientes neuróticos, alerta-nos para o fato de que no conflito indivíduo-civilização o primeiro paga o alto preço do mal estar advindo do sentimento de culpa inconsciente. Ao passo que quem detém a culpa, no sentido social da palavra (responsabilização), por este mal estar, é a cultura humana, intermediada pelas instituições, estando estas nas mãos de uma minoria de indivíduos detentora dos meios de produção/exploração.

Com efeito, considerando a ambiguidade da indagação, pode-se perguntar: de quem é a culpa? Do ponto de vista metapsicológico, a culpa - derivada da tensão entre o rígido superego e o ego (FREUD, 1923/1988c; 1930/1988f) -, geradora de mal estar, se realiza no indivíduo sujeitado, que, em conjunto com outros dominados e explorados, formam a grande maioria da população no processo civilizatório-capitalista. Já do ponto de vista sociológico, a culpa (ou melhor, a responsabilização) do mal estar recai sobre a minoria que detém os meios de produção e se apropria das riquezas produzidas pelos outros.

Falamos, então, ao pensarmos o mal estar no trabalho, de culpa em dois sentidos: no primeiro, a culpa como mal estar; no segundo, a culpa do mal estar.

 

O conflito indivíduo-civilização (a culpa como mal estar)

Ao tomarmos como referência a obra O mal estar na civilização (FREUD, 1930/1988f) se faz necessário lembrar que estaremos abordando uma teorização realizada num período sócio-histórico específico, o de Freud em 1930. Assim, acrescentaremos, neste mesmo tópico e em outros que seguem no texto, discussões acerca do assunto, levando em consideração as características específicas do período contemporâneo. No entanto, nossas argumentações não levarão em consideração apenas as mudanças sócio-hitóricas; serão consideradas também mudanças do campo epistemológico, próprio psicanalítico, bem como as apresentadas pelos autores da corrente Freudo-Marxista.

Dado que o trabalho desprazeroso é a principal imposição da civilização às satisfações do indivíduo, vemos como imprescindível a presente discussão. A contradição entre indivíduo e civilização é, segundo relata Strachey, em sua nota de tradução de O mal estar na civilização (FREUD, 1930/1988f), muito antiga na obra de Freud. "Assim, em 31 de maio de 1897, [Freud] escreveu a Fliess que 'o incesto é anti-social e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele'" (FREUD, 1930/1988f, p. 76). Em Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna (1908/1988e), Freud ressalta que o crescimento das neuroses é proporcional aos sacrifícios pulsionais impostos pela cultura.

Reflitamos agora sobre qual seria o interesse de ambas as partes - indivíduo e civilização - antagônicas.

No capítulo II de O mal estar na civilização, Freud se pergunta o que um homem busca realizar em sua vida. Em seguida, diz que, sem sombra de dúvidas, os homens "esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer" (FREUD, 1930/1988f, p. 94). Estamos falando do programa do Princípio de Prazer, ou seja, da busca pela satisfação imediata e ininterrupta das pulsões. Entretanto, por intermédio da educação que lhe é imposta, pela civilização na qual é inserido, o indivíduo se vê obrigado a renunciar a essas satisfações. Assim, o Princípio de Realidade substitui aos poucos o Princípio de Prazer. "Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como o método tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo" (FREUD, 1930/1988f, p. 96).

Para Marcuse (2001), a transformação da estrutura psíquica pelo Princípio de Realidade libera energia libidial e agressiva para a construção da civilização,

[...] pois só por meio do princípio de realidade repressivo é liberada energia pulsional para o trabalho desprazeroso, para o trabalho que aprendeu a renunciar e a rejeitar os desejos das pulsões, e que apenas assim pode tornar-se e permanecer socialmente produtivo (MARCUSE, 2001, p. 122).

A psicanálise evidencia que o desejo romântico de felicidade plena não passa de ilusão. Ser plenamente feliz significa ausência total de conflito e este só é conseguido com a morte (Princípio de Nirvana [FREUD, 1920/2010]). Sem conflito, não há desejo e sem desejo não há vida. Desejo como falta-a-ser e não como busca de completude. Eis a natureza dialética da vida1.

No mesmo trabalho, Freud considera que o sofrimento do homem pode surgir, basicamente, de três direções: (1) de nosso próprio corpo, condenado a morte biológica e vulnerável às doenças, (2) do mundo externo que pode se voltar violentamente contra nós e, finalmente, (3) dos relacionamentos com os outros homens. Freud ainda ressalta que o sofrimento provindo dessa última fonte, talvez, nos seja o mais penoso. Lembremo-nos que as relações de trabalho também fazem parte desta última e mais importante fonte de sofrimento.

Uma grande mudança do pensamento de Freud se dá em 1920, com Além do Princípio de Prazer (FREUD, 1920/2010). O referido autor não mais daria importância somente aos impulsos libidinais (pulsões sexuais e pulsões de autoconservação); igual importância passa a ter a Pulsão de Morte, mais tarde denominada gozo do Outro por J. Lacan (1985), caracterizando um novo dualismo pulsional.

Com a pulsão de morte, a psicanálise desmascara a natureza humana idealizada pelas religiões. Tendências contrárias habitam um mesmo peito. Toda relação é permeada pelo amor e, igualmente, pelo ódio; representantes dos impulsos de vida e morte. Assim, se a civilização repousa sobre a repressão dos impulsos tanto libidinais como agressivos, o que acontece com estes? Como se dá sua dinâmica econômica? Voltemos mais tarde a estas questões.

Freud define civilização, ou cultura, como

[...] a soma integral de realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que sevem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens da natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos (FREUD, 1930/1988f, p. 109).

Em Toten e Tabu (1913/1988g), Freud levanta a hipótese da horda primeva como protótipo do que veio a ser hoje a civilização: trata-se da hipótese (elevada por J. Lacan à condição de mito. Mito da constituição do desejo, entendido este como metonímia de um gozo que seria todo (DOR, 1989, p. 94) de uma família primitiva onde um pai violento e ciumento, possuidor de todas as fêmeas, subjugava o restante dos machos, mantendo todo o gozo para si. Entretanto, os filhos se reúnem e matam violentamente esse pai (Freud, no mesmo trabalho, levanta a hipótese de que, segundo o conceito de realidade psíquica, pode ter sido uma morte imaginária). Desse assassinato resultaria, do ponto de vista filogenético, o protótipo de todo sentimento de culpa humano. Então os filhos perceberam que o desejo de tomar o lugar desse pai e ter todos os seus privilégios era comum a todos. A renúncia das satisfações pulsionais era inevitável. A vida em sociedade só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado, assim permanecendo sempre contra qualquer um que tente ocupar o lugar, que é sempre mítico, deixado pelo pai. Surge o primeiro clã fraterno; surge o primeiro e fundamental pacto social, relativo principalmente ao tabu do incesto:

Se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito dele no sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos (FREUD, 1930/1988f, p. 115).

A vida em sociedade, desta forma, no que diz respeito ao primeiro intuito proposto por Freud, visa combater o sofrimento humano, descrito anteriormente, que surge das duas primeiras direções, a saber, do corpo humano e da natureza: o desenvolvimento de técnicas médicas dá ao homem maior poder no combate às dores do seu corpo. A civilização desenvolveu também instrumentos contra as intempéries naturais como o frio, o calor, a chuva, os grandes acidentes da natureza etc2. Em contrapartida, os fatos nos levam a refletir sobre a eficácia do segundo intuito a que se propõe a civilização, ou seja, o de ajustar os relacionamentos mútuos da sociedade, o que diz respeito à terceira, e mais importante, causadora de sofrimento no homem, segundo Freud.

Resta-nos perguntar por que Freud chega à conclusão de que nossa civilização é a principal responsável por nossa desgraça e, por isso, seríamos mais felizes sem ela, se continuássemos nas condições primitivas ou a ela retornássemos.

O primeiro passo para a resposta a essa indagação encontra-se no fato de que

[...] uma pessoa se torna neurótica por que não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe, a serviço de seus ideais culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas exigências resultaria num retorno a possibilidades de felicidade (FREUD, 1930/1988f, p. 106, grifos nossos).

Lancemos, neste ponto, uma pergunta que terá uma resposta esboçada ao final deste nosso percurso: quais ideais culturais são estes que impõem sacrifícios, ao indivíduo, impossíveis de tolerar sem danos psíquicos em termos de mal estar? Reflitamos um pouco mais porque a civilização é contrária à realização das pulsões individuais e o que acontece com a economia pulsional destas.

Primeiramente, a civilização é o inimigo número um da sexualidade, cuja repressão cabe, principalmente, à família, via de regra, com o respaldo da religião. A primeira e fundamental repressão sexual imposta pela civilização é pela via da proibição do incesto, "o que constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já experimentou" (FREUD, 1930/1988f, p. 124), embora se trate de uma operação estruturante para o processo de subjetivação enquanto sujeito desejante (recalque originário).

Em Moral sexual "civilizada" e doença nervosa moderna), Freud (1908/1988e) faz um histórico filogenético da repressão da sexualidade, histórico este determinado principalmente pela religião judaico-cristã:

Considerando essa evolução do instinto sexual, podemos distinguir três estádios de civilização: um primeiro em que o instinto sexual pode manifestar-se livremente sem que sejam consideradas as metas de reprodução; um segundo em que tudo do instinto sexual é suprimido, exceto quando serve ao objetivo da reprodução; e um terceiro no qual só a reprodução legítima é admitida como meta sexual. A esse terceiro estádio corresponde a moral sexual 'civilizada' da atualidade (FREUD, 1908/1988e, p. 194, grifos do autor).

A crescente repressão da sexualidade é proporcional ao desenvolvimento da civilização, e vice e versa. Cada vez mais, o progresso cultural exige do indivíduo a repressão e a sublimação da energia libidinal. "Como já sabemos, a civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que uma grande quantidade da energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade" (FREUD, 1930/1988f, p. 125).

Não só os impulsos libidinais, mas também os impulsos agressivos têm de ser reprimidos e recalcados. Segundo Marcuse (2001), a agressividade recalcada passa a ter dois destinos possíveis, a favor do processo civilizatório: (1) é dirigida para fora como energia destrutiva socialmente útil, ou seja, dominação e transformação da natureza e direcionada à destruição de inimigos socialmente reconhecidos fora do grupo social3; (2) é redirecionada para dentro, permitindo ao superego se apossar da agressividade e utilizá-la contra o próprio ego, como consciência moral.

Com efeito, vemos a introjeção da agressividade como mais um impasse na busca de felicidade por parte do indivíduo: "sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego" (FREUD, 1930/1988f, p. 146). A parcela de agressividade, impedida de ser defletida, é apossada pelo superego que passa a maltratar o ego. Assim, quanto maior a repressão e o recalque da agressividade, maior serão a rigidez e o sadismo do superego. Importante lembrar que, por causa da internalização da interdição, da sexualidade ou da agressividade, mesmo quando uma pessoa apenas desejou uma coisa "má" não está livre de considerar-se culpada, pois nada pode ser escamoteado do superego, nem mesmo, e principalmente, os pensamentos.

A culpa extrema é o principal sentimento que brota da reconversão para si mesmo das pulsões destrutivas reprimidas, transformadas em forças coercitivas e incriminadoras. Não efetivar o ato moralmente reprovado não exime o indivíduo da sentença e da punição superegóica. O sofrimento, no indivíduo neurótico, dá-se pela renúncia pulsional e, como um acréscimo, pelo sentimento de culpa. Eis o alto preço pago pelo indivíduo [neurótico] em troca da "escolha" de uma vida em sociedade. Nas palavras de Freud:

Originalmente, a renúncia ao instinto constituía o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciava-se às próprias satisfações para não se perder o amor da autoridade. Se se efetuava essa renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa permaneceria. Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa [...] Uma ameaça de infelicidade externa - perda de amor e castigo por parte da autoridade externa - foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa (FREUD, 1930/1988f, p. 151).

A renúncia pulsional, tanto libidinal quanto agressiva, portanto, faz aumentar a severidade do superego. A tensão entre o rígido superego e o ego se expressa como sentimento de culpa. Isto posto, quanto mais a civilização usurpa a energia libidinal e agressiva do indivíduo para o seu progresso, principalmente pela imposição do trabalho desprazeroso e pelas artimanhas do consumismo, maior será o incremento do sentimento de culpa. O impulso reprimido, quando não sublimado, ou seja, compensado, representa uma desvantagem econômica muito grande por parte do indivíduo. Freud (1930/1988f, p. 118) salienta que se a perda não for economicamente compensada, pode-se ter como consequências sérios danos para saúde psíquica do indivíduo.

Não devemos nos esquecer de que quando uma necessidade libidinal é frustrada os componentes agressivos são dirigidos a este que o privou, ou seja, "a prevenção de uma satisfação erótica exige uma agressividade contra a pessoa que interferiu na satisfação, e que essa própria agressividade, por sua vez, tem de ser recalcada" (FREUD, 1930/1988f, p. 163). Assim, em última instância, a frustração em si já é geradora de culpa.

Isso nos remete a pensar na extrema perversidade do capitalismo e da ideologia liberal ao produzirem sobre-carências, mediante a exaltação do consumismo, necessárias para que aqueles que são a força motriz da economia se voltem contra si, acusando-se pelas frustrações e fracassos. Lógica de autoincriminação que se mostra tão, ou mais, repressiva e trágica do que a da Viena de Freud ou daquela que se abateu sobre Édipo. Ela remete ao indivíduo a responsabilidade pelos seus desejos e o acusa por desejar ou, principalmente, por fracassar na realização dos seus desejos. Se as relações do homem com outros homens são, segundo Freud, a terceira fonte de conflitos e sofrimentos, as relações do sujeito consigo mesmo, no plano psicológico, é o pano de fundo desse lugar de fonte principal, e mais cruel, do seu sofrimento.

 

Mal estar na atualidade

Se, no início do século XX, período das primeiras descobertas freudianas, o superego proibidor dos desejos preparava o terreno para entrada em cena da histeria, bem como da neurose obsessiva, nos tempos atuais, dada as devidas mudanças sócio-históricas, fala-se de uma nova formação superegóica, de um superego pós-moderno (ZIZEK, 1999). Reflexo da cultura do narcisismo (LASH, 1979/1983), o homem pós-moderno estaria mergulhado na busca desenfreada pelo prazer a todo custo4. Antes havia um impedimento ao gozo e a culpa por gozar - mesmo que em pensamento (questão da qual Freud trata n'O mal estar na civilização) -, enquanto que, na atualidade haveria um imperativo ao gozo (principalmente o consumista) e a culpa generalizada por não se conseguir gozar na medida em que este é ofertado, o que Zizek (1996; 1999), partindo de Jacques Lacan, denomina moral do gozo. Moral essa muito bem vinda aos olhos do capitalista pós-moderno. Moral que tem como corolário os novos impasses subjetivos (mal estares) da atualidade, a saber, as depressões, síndromes do pânico, distúrbios psicossomáticos e, sobretudo, as compulsões de todos os tipos com destaque para as toxicomanias (BIRMAN, 2001).

 

As possibilidades de sublimação no trabalho

Antes de tudo, faz-se necessário uma consideração. Ao pensarmos as possibilidades de um indivíduo, de sublimação no trabalho, pensamo-las enquanto capacidades internas, referentes à vida psíquica deste, e capacidades externas, atinentes às possibilidades proporcionadas pelo meio social no qual está inserido. Entretanto, optamos por essa separação somente como recurso pedagógico de exposição. Não é possível considerar uma separada da outra. Uma psicologia não existe sem um social e vice-versa (FREUD, 1921/1988d).

Outra saída possível para a energia dos impulsos represados, diferente da descrita no item anterior - ou seja, uma das formações sintomáticas do inconsciente: o mal estar do sentimento de culpa neurótico -, seria a canalização desta para finalidades igualmente úteis tanto para a sociedade quanto para o indivíduo; a esse processo, na psicanálise, é dado o nome de sublimação. Para Laplanche e Pontalis (2001, p. 495), sublimação é o

[...] processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa objetos socialmente valorizados (Grifos nossos).

Pensemos, primeiramente, nas possibilidades sublimatórias internas de um indivíduo. Freud (1908/1988e) atribuía à capacidade sublimatória algo dependente das características da constituição orgânica e do desenvolvimento psicossexual. Esse possível destino pulsional era visto por Freud (1909/1988a; 1930/1988f) como imprescindível no impasse vivido pelo indivíduo junto à civilização, uma pequena chance de felicidade, uma possibilidade mais refinada, na medida em que representa uma reconciliação benéfica a ambas as partes do conflito. Sublimar, todavia, não é uma saída acessível à grande maioria dos integrantes da nossa civilização moderna (FREUD, 1908/1988e).

A capacidade de sublimação, como característica de um indivíduo "saudável", ou seja, relativamente bem situado em relação ao seu desejo, poderia ser alcançada por um tratamento analítico, já que o aumento da capacidade de simbolização (de produção de novos sentidos) proporciona ao paciente a possibilidade da sublimação como uma nova reconciliação, vicissitude outra, para os impulsos recalcados (FREUD, 1915/2004g), ou seja, "uma solução mais feliz" (FREUD, 1909/1988a, p. 28). A sublimação daria lugar aos recalcamentos, como uma nova formação de compromisso entre as pulsões e as defesas. Assim, uma psicanálise poderia possibilitar ao indivíduo uma reestruturação psíquica da sua personalidade, trazendo a plasticidade pulsional perdida na sua história infantil, armando-o melhor para lidar com os impasses subjetivos de forma mais criativa (BIRMAN, 2002), em direção mais ao desejo e menos às inibições, sintomas e angústias. "A repressão prematura exclui a sublimação do instinto [impulso] reprimido; desfeito aquele, está novamente livre para a sublimação" (FREUD, 1909/1988a, p. 50).

No entanto, não podemos deixar de levantar a questão da acessibilidade do tratamento psicanalítico à imensa parte dos indivíduos que integram a civilização atual, a mesma que se depara com os impasses subjetivos, principalmente da ordem do material, mais violentos. O próprio Freud se pronunciou, de forma muito pessimista, sobre esta questão:

Provavelmente descobriremos que os pobres estão ainda menos prontos para partilhar as suas neuroses, do que os ricos, porque a vida dura [principalmente as questões relativas ao trabalho] que os espera após a recuperação não lhes oferece atrativos, e a doença dá-lhes um direito a mais à ajuda social. Muitas vezes, talvez, só poderemos conseguir alguma coisa combinando a assistência mental com certo apoio material (1919/1988b p. 181)5.

Para Freud, amar e trabalhar eram vistos como atividades "saudáveis" de um indivíduo, meta a ser alcançada ao fim de uma análise. A plasticidade das pulsões, fruto de uma análise, daria ao indivíduo a possibilidade do investimento no mundo da cultura com algum ganho de prazer: amar qualquer outra mulher que não a mãe e sublimar as pulsões peverso-polimorfas, seja na arte, seja no trabalho (arte que pode ser trabalho e trabalho que pode ser arte).

Referente à segunda atividade, que nos interessa mais de perto, não basta que o indivíduo possua capacidades psíquicas propícias à sublimação no trabalho, o que pode ser propiciado por uma psicanálise. A realidade externa/social tem que soprar a favor, ou seja, dar as condições para este escolher de forma livre sua ocupação:

A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio da sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados (FREUD, 1930/1988f, p. 99).

Deparamo-nos, portanto, tragicamente, com a situação da realidade social atual onde cogitar escolher uma profissão é benefício de uma pequena minoria; onde a preocupação da grande massa é se agarrar a qualquer ocupação mesmo que essa só ofereça o pão (e porque não dizer o que o diabo amassou) em troca do sacrifício.

Com efeito, as possibilidades de sublimação no trabalho perpassam questões [internas] referentes à vida psíquica de cada indivíduo, bem como questões [externas] de ordem social, ou seja, a possibilidade de escolher a profissão. Sem uma destas condições a sublimação no trabalho é substituída pelo mal estar. De forma fatídica, via de regra, a grande massa explorada no trabalho carrega a infelicidade de se ver distante destas condições, necessárias à sublimação no trabalho.

 

Sofrimento psíquico e sublimação no trabalho (a contribuição dejouriana)

Dejours (1994), um dos principais nomes no estudo da psicopatologia do trabalho, coloca a questão do sofrimento como central, não só no que diz respeito a seus possíveis efeitos patogênicos, mas também referente à sua relação com a motivação e o prazer no trabalho. Descreve dois tipos de sofrimento no trabalho, a saber, o patogênico e o criativo. O primeiro aparece quando, esgotado os recursos defensivos, externos e internos do trabalhador, a pressão do trabalho (condições de trabalho e organização do trabalho) faz aumentar a carga psíquica não descarregada, desestruturando o aparelho anímico e causando desequilíbrio psíquico; o sofrimento criativo se dá quando o trabalhador consegue se defender dando vazão, de forma criativa, à carga psíquica do trabalho, o que fortalece sua identidade e traz equilíbrio psíquico: "o trabalho funciona, então, como um mediador para a saúde mental" (DEJOURS, 1994, p. 137).

O sofrimento criativo, para o autor, antes de tudo, só passa a ser possível quando o indivíduo encontra uma ressonância simbólica entre o teatro da situação de trabalho atual e o teatro interno herdado do seu passado, ou seja, "[...] é necessário que a tarefa tenha um sentido para o sujeito, tendo em vista sua história singular" (DEJOURS, 1994, p. 134); sua pulsão pelo saber sexual infantil (epistemofilia) pode agora ser direcionada à cultura, à busca pelo saber laboral. Há, portanto, um lugar para a expressão do desejo do trabalhador, do "trabalha-a-dor". Por fim, o mal estar, patogênico, é evitado se as pulsões individuais encontrarem o destino da sublimação, na mudança de seu objeto e seu objetivo, socialmente aceitos, e até aplaudidos, no mundo do trabalho.

Numa perspectiva Freudo-Marxista, observa-se que a importância do trabalho, além do retorno financeiro, entre outros, reside no fato de que, quando não alienado e alienante, o sujeito se vê no que produziu; vê neste ato tão importante para si sua própria imagem. Nesse sentido o homem tem a oportunidade de criar e recriar-se simultânea e continuamente, já que ao atuar "[...] sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza" (MARX, 1867/1985, p. 149). Se sua atuação sobre a natureza (trabalho) é alienada a constituição da sua autoimagem igualmente será. Para Oliveira (2003), o mal estar no trabalho aparece

[...] quando sua realização não apresenta um propósito em relação ao conjunto da organização e, muito menos para sua família e para a sociedade. A desafetação, ou seja, a falta de investimento afetivo na execução da tarefa, em detrimento da falta de sentido, vai desencadear uma imagem narcísica que se torna descorada e sem vida (p. 7).

No que se refere à dimensão social, econômica e cultural da questão da sublimação no trabalho, vê-se que a grande maioria dos trabalhadores não tem a possibilidade de escolher livremente sua profissão (BORDIEU, 1974), condição primária e essencial para proporcionar a ressonância simbólica citada acima. Essa questão nos remete ao próximo tópico que se segue.

 

Classe social e mal estar no trabalho (a culpa do mal estar)

Em uma das suas mais expressivas obras, Psicologia das massas do fascismo, Reich (2001), precursor da teoria Freudo-Marxista, se pergunta por que o trabalhador explorado e esfomeado, na maioria das vezes, não faz greve exigindo melhores condições e nem rouba para saciar sua fome. Para o autor, a explicação socioeconômica, puramente marxista, não satisfaz, já que não leva em consideração os aspectos psicodinâmicos da alienação: a consciência individual precede e, em essência, determina a consciência social. A dominação da massa explorada raramente se dá por meios repressivos; o controle principal fica a cargo da ideologia, função dos Aparelhos Ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1998). A ideologia da classe dominante esconde, legitima a exploração socioeconômica, impedindo a revolta dos explorados. No entanto, esta não teria tamanha força sem certas estruturas psíquicas (repressivas) correspondentes, gestadas na primeira infância dos indivíduos no ceio da família autoritária6. Avancemos um pouco mais neste raciocínio.

Para Freud (1908/1988e), o desenvolvimento sexual do homem, em outras palavras, como esse lida com o prazer e os meios que disponibiliza para buscá-lo ou não, diz da base da sua personalidade, ou seja, "o comportamento sexual de um ser humano freqüentemente constitui o protótipo de suas demais reações ante a vida" (FREUD, 1908/1988e, p. 203).

Reich (1933/2001) vê esta questão como central no entendimento da exploração social de classes. Desde Marx é sabido que o Estado, a favor das classes dominantes, tem muito interesse na instituição família, pois, "ela transformou-se numa fábrica onde as estruturas e ideologias do Estado são moldadas" (REICH, 1933/2001, p. 28). A família é o primeiro núcleo social que um indivíduo encontra ao nascer; é responsável por ensinar a forma de habitar - e de interagir com - o mundo social. Núcleo que representa e reproduz a sociedade de classes. Reich chama a atenção para o fato de que a família autoritária contribui para a perpetuação da exploração de classes, instaurando as estruturas psíquicas correspondentes, por meio do controle do dispositivo da sexualidade, na medida em que produz indivíduos neuróticos, por tanto, dóceis, infantilizados e, principalmente, suscetíveis de subjugação autoritária:

A inibição moral da sexualidade natural na infância, cuja última etapa é o grave dano da sexualidade genital da criança, torna a criança medrosa, tímida, submissa, obediente, 'boa' e 'dócil', no sentido autoritário das palavras. Ela tem um efeito de paralisação sobre as forças de rebelião do homem, porque qualquer impulso vital é associado ao medo; e como sexo é um assunto proibido há uma paralisação geral do pensamento e do espírito crítico. [...] Assim, a família é o Estado autoritário em miniatura (REICH, 1933/2001, p. 28).

Ou, nas palavras de Freud (1908/1988e):

Em geral não me ficou a impressão de que a abstinência sexual contribua para produzir homens de ação enérgicos e autoconfiantes, nem pensadores originais e reformistas audazes. Com freqüência maior produz homens fracos, mas bem comportados, que mais tarde se perdem na multidão que tende a seguir, de má vontade, os caminhos apontados por indivíduos fortes (p. 202).

No entanto, a utilização da repressão da sexualidade, bem como da agressividade, como arma de subjugação e exploração da grande massa não se Résumé nisto. Esta se faz, ainda, de forma secundária. Impedido de atingir uma satisfação satisfatória de sua sexualidade, o indivíduo, agora sexualmente faminto, fica a mercê da manipulação, por parte das classes dominantes, de satisfações substitutivas. Reich dá alguns exemplos: a agressão natural deslocada para os inimigos em guerras imperialistas; o caráter libidinoso nas formações militares como os uniformes e a própria posição social de características exibicionistas. Lembremos também a intensa alusão à sexualidade na publicidade, como nas propagandas de produtos de cigarro, bebida, automóvel, entre muitos outros.

Há pouco dissemos que a civilização é o inimigo número um da sexualidade, já que é por intermédio da repressão desta que capta, ou melhor, desvia (e por que não dizer: usurpa), a energia para seu progresso. Falamos, igualmente, do superego como consciência moral reguladora dos impulsos individuais, a favor dos interesses da civilização. Para Reich, a repressão da sexualidade não é obra e interesse especial da cultura, mas sim de uma cultura específica, a saber, a baseada na divisão em classes sociais. Assim, "só bem mais tarde, com o estabelecimento de um patriarcado autoritário e com o início das divisões de classe, é que surgiu a repressão da sexualidade" (REICH, 1933/2001, p. 27).

Para Freud, o antagonismo entre os interesses da civilização e do indivíduo é inevitável e irremediável. A repressão em Freud seria fruto de um Princípio de Realidade universal. Tanto Reich (1929/1977; 1933/2001) quanto Marcuse (1972), em uma releitura desta questão, argumentam que Freud não enfatizou devidamente a dimensão sócio-histórica do processo de repressão das pulsões. Desta forma, a repressão da sexualidade é resultado de um determinado tipo de Princípio de Realidade; mudando este, aquela também se modificaria:

[...] uma sociedade em que todos os membros trabalham normalmente pela vida requer modos de repressão diferentes dos de uma sociedade em que o trabalho é o terreno exclusivo de um determinado grupo. Do mesmo modo, a repressão será diferente em escopo e grau, segundo a produção social seja orientada no sentido do consumo individual ou no do lucro; segundo prevaleça uma economia de mercado ou uma economia planejada; segundo vigore a propriedade privada ou a coletiva. Essas diferenças afetam o próprio conteúdo do princípio de realidade, pois toda e qualquer forma de princípio de realidade deve estar consubstanciada num sistema de instituições e relações sociais, de leis e valores que transmitem e impõe a requerida 'modificação' dos instintos (MARCUSE, 1972, p. 52).

Marcuse refere-se, então, ao que denominou Princípio de Desempenho, que poderíamos chamar de Princípio de Realidade Capitalista, um Princípio de Realidade que impõe uma cota de repressão que excede a repressão básica, ou seja, a quantidade necessária para o processo de subjetivação dos sujeitos e o convívio em sociedade. Esse excedente de repressão por parte da civilização estaria a favor de uma minoria de indivíduos que exploram a grande maioria, segundo a concepção marxista. Nas palavras de Marcuse:

As instituições históricas específicas do princípio de realidade e os interesses específicos de dominação introduzem controles adicionais acima e além dos indispensáveis à associação civilizada humana. Esses controles adicionais, gerados pelas instituições específicas de dominação, receberam de nós o nome de mais-repressão (MARCUSE, 1972, p. 52-53, grifos do autor).

Estamos diante da relação, possível de ser estabelecida com Marcuse e Reich, entre a repressão da sexualidade e a alienação no trabalho. A repressão sexual estaria a favor de dois processos, a saber: 1) as pré-condições para o trabalho alienado, ou seja, submetendo o corpo e a vida anímica a uma alienação psíquica desviando parte da energia sexual da finalidade original e; 2) proporcionando a modelação de personalidades maleáveis, dóceis, infantilizadas, diante do poder autoritário. Processos que constituem a base para que ocorra e se perpetue a alienação tanto psíquica quanto social.

Marcuse, ao elaborar tal conceito central em sua obra, parece pautar-se no Freud d'O Futuro de uma ilusão (1927/s/d, p. 317) na medida em que este ressalta que a civilização, não no seu ideal, mas na prática, é algo imposto à maioria por uma minoria que soube apoderar-se dos meios de poder e opressão. O preceito marxista que vai ao encontro deste estaria na idéia de que o Estado teria por função, escamoteada pela ideologia, servir aos interesses da minoritária classe social que domina os meios de produção/exploração, a burguesia. A mais-repressão seria uma visão multidisciplinar - psíquica, sócio-histórica e econômica - da relação explorador/explorado, fruto de uma sociedade estamental em que a grande maioria da massa, trabalhadora, sustenta nas costas, a custo de sua saúde biopsicossocial, as regalias de uma minoria exploradora.

 

O imperativo ao gozo e a dessublimação repressiva: a produção do consumismo

Nossas reflexões ficariam incompletas se não abordássemos a contradição a qual chegamos nesse momento de nossas argumentações: se a civilização, como enuncia Freud, é resultado da coerção dos impulsos, como pensar a sociedade atual que, não só possibilita, mas, sobretudo, incentiva sobremaneira uma maior "liberdade" para a "satisfação" dos sujeitos? Como pensar, nestas conjecturas freudianas, o atual imperativo ao gozo?

O capital parece ter encontrado uma boa estratégia para evitar que ocorra novamente um grande colapso do seu sistema econômico, como o da crise de superprodução de mercadorias de 1929. Percebeu que não basta produzir em massa. Para o contínuo escoamento da produção são produzidas demandas no consumidor. No cultivo, pela publicidade e propaganda, da confusão entre valores-de-uso e valores-de-troca o capitalista faz surgir a necessidade; falsa necessidade, já que se trata de "valor-de-uso" estrategicamente incutido sem real usufruto por parte do consumidor. "Falsas são aquelas [necessidades] superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares" (MARCUSE, 1969, p. 26). Para o gozo cínico do capitalista fecha-se o ciclo de controle e dominação sobre os desejos na chamada sociedade de consumo: não basta o trabalho alienado; o consumo alienado e alienante apresenta-se como sua outra face. O fetiche da mercadoria, logo, arranca um sorriso do capitalista que vê a mais-valia brotar como mágica diante de seus olhos.

No contexto atual, a própria sexualidade, antes inimiga primordial da civilização, é capturada pelo capital, apresentando-se como mais uma mercadoria, possuindo, portanto, um valor-de-troca para quem dela se apropria: "nesse processo de 'liberação', ela foi integrada ao processo de trabalho, à propaganda e aos meios de comunicação de massas, apresentando-se como mais uma mercadoria" (PISANI, 2004). A "liberação" da sexualidade, na sociedade de massas, não passa de uma liberação controlada e capitalizada. Portanto, liberação repressiva. A liberação é aparente, dado que a sexualidade, antes possível dispositivo de protesto contra o status social repressivo, foi integrada ao sistema de dominação social. Marcuse ( apud PISANI, 2004) nomeia tal processo de dessublimação repressiva.

 

Considerações finais

O mal estar no trabalho pode ser relacionado, diretamente, à questão da alienação. Tanto para a Psicanálise de Freud quanto para o Materialismo Histórico de Marx, o sofrimento do homem, em última instância, Résumé-se a esta grande questão: para o primeiro a alienação do seu inconsciente que o determina e lhe toma toda energia pulsional, a favor da manutenção dos recalcamentos e em detrimento do bem-estar; para o segundo, a alienação de sua situação enquanto sujeito explorado pela classe social que retém os meios de produção. Da família repressiva ao Estado autoritário a repressão nega o desejo e, com isso, provoca sofrimento. Por fim, pode-se pensar numa relação de determinação e complementação entre a alienação psíquica e a social.

Ao trabalho podemos atribuir importância central tanto para o indivíduo quanto para o projeto da civilização (projeto que por trás do seu discurso ideológico se esconde os interesses do capitalista). Faz-se fundamental pensar as implicações do trabalho na produção do processo saúde/doença física e psicossocial do homem na atualidade, na qual se observa que a histeria dos tempos de Freud saiu de cena para dar espaço a outras formações subjetivas, com destaque para a depressão e as compulsões. O sentimento de culpa pode ser entendido como a principal manifestação do mal estar no trabalho, resultado do processo de culpabilização da vítima, operado pelas organizações de trabalho, sendo estas representantes da classe social dominante no plano econômico e ideológico. Outra contribuição que incrementa o sentimento de culpa nos indivíduos da sociedade de massas pode ser atribuída à estratégia capitalista de dessublimação repressiva. Tanto o trabalho quanto o consumo, quando alienados, apresentam-se como dispositivos de dominação social e, portanto, responsáveis pela desgraça humana.

Para Freud, felicidade e liberdade parecem não terem entrado no plano da Criação. Essa civilização que se opõe ao projeto de felicidade do homem, não é senão a que vislumbra em seu horizonte, sempre mais, e a qualquer custo, Progresso Técnico em detrimento do Progresso Humano7. Progresso que tem como combustível a mais-repressão.

Para o indivíduo das classes socioeconômicas baixas, o trabalho é duplamente penoso. Além de não trazer satisfação no ato da realização, porque alienado e alienante, pois nega qualquer manifestação do desejo, também não proporciona o mínimo de retorno psíquico, social e material: no dia do pagamento se observa que o que "mais-valia" lhe foi arrancado pela "mais-repressão". Sua vida lhe é arrancada em troca de nada ou muito pouco. Sempre um "dá cá" em detrimento do "toma lá"; pacto social perverso.

Pensar o mal estar no trabalho é uma tarefa que perpassa questões biopsíquicas bem como sociais. O exercício de refletir o assunto à luz do conflito indivíduo-civilização pode trazer contribuições importantes, sobretudo levando em consideração a relação entre classes sociais e restrições pulsionais. Em uma civilização tão socialmente desigual, as restrições pulsionais, e, com efeito, as exigências das mesmas, passam a ser diferentes; principalmente dependendo do tipo de berço que se encontra ao nascer.

Na atualidade, fala-se de uma "banalização da injustiça social" (DEJOURS, 2005). O homem, o mesmo que impôs sua cultura e seu jeito de ser aos povos nativos do mundo novo, sempre se orgulhou de denominar-se "civilizado"8. No entanto, o crescente progresso da civilização, sempre lembrado nos discursos políticos ideológicos, não passa de Progresso Técnico a serviço da acumulação do capital e em detrimento dos interesses da maioria. Assim, "Precisamos saber de que modo a riqueza social é repartida e a serviço de quem são empregados os crescentes conhecimentos e capacidades dos seres humanos" (MARCUSE, 2001, p. 114). Esta questão levantada por Marcuse não nos leva a refletir as ilusórias possibilidades de felicidade plena, já que isso é incompatível com a condição humana, mas em uma redução desse oneroso preço pago pelos indivíduos da grande massa. O próprio Freud, apesar de não se preocupar em elaborar um conceito específico como o de mais-repressão, faz alusão a essa possibilidade de desdobramento teórico: enuncia que uma pessoa cai neurótica por não suportar os sacrifícios exigidos pela civilização e que reduzindo estes teríamos como resultado a possibilidade de felicidade do indivíduo. A essa afirmação de Freud nos resta acrescentar que estes sacrifícios exigidos não são senão resultado da coerção social de uma classe sobre outra.

Se as visões de Reich e Marcuse sobre a possibilidade de uma civilização pautada num Principio de Realidade não repressivo se mostram como utopias, nem por isso deveriam ser desconsideradas, uma vez que a utopia nos mantém num caminho9. Caminho não em busca do objeto da demanda, mas na trilha do objeto do desejo, como teorizado pela psicanálise. Desejo que se renova a cada encontro com o desejado.

 

Notas

1 Segundo o filósofo A. Schopenhauer (1851/1999) "trabalho, aflição, esforço, e necessidade constituem durante toda a vida a sorte da maioria das pessoas. Porém, se todos os desejos apenas originados, já estivessem resolvidos, o que preencheria então a vida humana, com que se gastaria o tempo? Que se transfira o homem a um país utópico, em que tudo crescesse sem ser plantado, as pombas voassem já assadas, e cada um encontrasse logo, sem dificuldade, sua bem amada. Ali em parte os homens morrerão de tédio ou se enforcarão, em parte promoverão guerras, massacres e assassinatos, para assim se proporcionar mais sofrimento do que o posto pela natureza" (p. 279, grifos do autor).

2 No entanto, não devemos nos esquecer que o próprio progresso técnico-cultural traz também alguns provocadores de sofrimento, ou seja, cria aquilo que, a priori, se propõe combater: a intervenção humana provoca as próprias doenças que mais tarde serão alvos de pesquisas médicas; provoca mudanças climáticas como enchentes, mudanças de temperatura etc.

3. O que Freud descreve como Narcisismo das Pequenas Diferenças: "É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade" (FREUD, 1930/1988f, p. 136).

4. Para Aranha (1993, p. 14), a característica hedonista da sociedade capitalista, na dimensão histórico-materialista, pode ser reflexo da negação do prazer pela alienação no trabalho: impedido do prazer no trabalho o individuo buscaria desesperadamente formas de prazer imediato. Aliás, trata-se exatamente do que necessita a outra face da moeda da produção, o consumismo, fechando o ciclo perverso do processo de extração da mais-valia.

5. Situação que nas últimas décadas, no Brasil e em vários outros países do mundo, vem mudando com as revoluções paradigmáticas no campo da Atenção à Saúde Mental. A esse respeito, sobre as Reformas Psiquiátricas e a introdução do Modo Psicossocial, ver Amarante (2007), Costa-Rosa (2000) e Costa-Rosa & Yasui (2009).

6. Reich via nesta explicação também o motivo da não efetivação da tese central de Marx de que a contradição de classes do Sistema Econômico Capitalista o levaria à ruína e acarretaria a sua superação definitiva.

7. Marcuse (2001) propõe duas definições de progresso cultural: 1) O Progresso Técnico, quantitativo, que faz referência ao aumento dos conhecimentos e capacidades humanas para a dominação do meio humano e natural, resultando na riqueza econômica e social (que no capitalismo tardio não é apropriado pelos que produzem); 2) o Progresso humano, qualitativo, que diz da capacidade de produção da liberdade entre os homens, do aperfeiçoamento humano, que se opõe à opressão do homem pelo homem.

8. Freud (1908/1988e) já havia usado essa palavra entre aspas.

9. "A utopia está no horizonte. Me aproximo (sic) dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar" (GALEANO apud AMARANTE, 2007).

 

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Recebido em 05 de Junho de 2010
Aceito em 17 de Agosto de 2010
Revisado em 29 de Setembro de 2010