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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.3 Fortaleza 2011
RESENHAS
Camila Alvarenga Côrtes
Psicóloga. Mestrado em Psicologia. Psicóloga do Centro de Referência em Saúde Mental do Barreiro (Prefeitura de Belo Horizonte). Ccurso de psicanálise no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. End.: Av. Deputado Cristóvam Chiaradia 288/204 bl.2, Buritis. CEP 30575-815 - Belo Horizonte - MG. E-mail: ca.alvarenga@terra.com.br
Título Original: Black Swan
Gênero: Drama
Tempo de duração: 108 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2010
Cisne Negro, dirigido brilhantemente por Darren Aronofsky (2010), começa com uma cena de um sonho, em que a protagonista, Nina Sayers, dança o balé O Lago dos Cisnes. Nesta peça, uma princesa e suas donzelas são transformadas em cisnes, por um mago que lança sobre elas um feitiço, do qual a princesa só poderá ser libertada por um homem que ame apenas a ela. Nina desperta no momento em que, como cisne branco, é enfeitiçada. Seria este o primeiro indício do desencadeamento de sua psicose?
Nina é uma moça de vinte e oito anos, bailarina de uma companhia novaiorquina de balé, que não faz outra coisa senão dançar. Mora com a mãe, Erica, uma bailarina aposentada que investe toda sua atenção na profissão da filha. O drama de Nina parece ter início quando uma situação se apresenta: Thomas Leroy, diretor da companhia de balé, aposenta sua bailarina principal, Beth MacIntyre, e coloca para as outras moças da companhia que irá escolher muito em breve uma delas para este lugar. A peça com a qual iniciará a temporada é uma montagem diferenciada do balé O Lago dos Cisnes, para a qual deseja que a mesma bailarina interprete os cisnes branco e negro. Nina quer o papel, assim como muitas outras moças da companhia.
É neste cenário que desde o começo podemos perceber que algo não vai bem com Nina. Para muito além de uma expectativa em relação à escolha para o papel, esta moça nos apresenta de forma muito clara e tocante os percalços do desencadeamento de uma psicose.
Desde a Questão Preliminar, Lacan (1957-58/1998) nos indicava, retomando o caso Schreber, trabalhado por Freud (1911/1980a), como paradigmático, que o desencadeamento de uma psicose acontece quando o sujeito, em um determinado momento da vida, se depara com o chamado a ocupar um lugar para o qual não consegue localizar uma referência e sustentar-se. Referência fálica, relativa a um significante primordial, o Nome-do-Pai, que poderia orientar o sujeito quanto a este ponto. Se Schreber desencadeia sua psicose ao ser nomeado presidente do Tribunal, a psicose de Nina parece se desencadear justamente no momento em que, ao participar da disputa por ser a bailarina principal da companhia, consegue o papel.
Durante a seleção as coisas já vinham se tornando cada vez mais difíceis para a moça, tanto por ser extremamente exigente consigo mesma e muito cobrada pela mãe, figura bastante caprichosa, como pela dificuldade em lidar com os olhares de suas colegas, que disputavam a vaga. Além disso, Thomas cobra de Nina que lute pelo papel, um chamado que irá tocar justamente no ponto de sua sexualidade, de sua feminilidade, ponto do empuxo à Mulher frente ao qual ela irá sucumbir.
Ao ver seu nome na lista como a eleita para o papel principal, Nina parece viver um turbilhão de emoções. É xingada por uma colega, a qual pensava que havia ganho o papel e dado anteriormente os parabéns. Liga para a mãe chorando de dentro do banheiro e conta que conseguiu. Ao sair do banheiro, vê escrito no espelho com o batom que havia pego do camarim de Beth: vagabunda. Corre para a casa. Ao chegar em casa, o filme nos apresenta mais indícios do desencadeamento. Nina entra no quarto da mãe e vê os olhos de seus desenhos, pregados nas paredes, se mexendo. Após o banho, olha para suas costas, vê a ferida perto do ombro, tenta esconder da mãe. Por enquanto não aparece nenhuma interpretação de Nina em relação ao que lhe acontece.
É em relação à interpretação do papel do cisne negro que Nina é chamada a se esforçar ao máximo. Conhecida por todos como possuindo uma técnica perfeita, mas criticada por Thomas por não colocar sensualidade em sua dança, a moça é cada vez mais tomada pela exigência de fazer bem este papel.
Nina é apresentada ao público em uma festa, a mesma em que Beth se despede da companhia. Todos os olhares se voltam para a moça, que volta seu próprio olhar para a outra mulher, que está se aposentando. Já neste ponto podemos notar que a questão do feminino, da Mulher, se coloca para a protagonista de forma problemática. Durante a festa, Nina parece vivenciar mais um fenômeno elementar, que nos remete à alucinação do dedo cortado do caso do Homem dos Lobos, trabalhado por Freud (1918[1914]/1980b). Ao lavar as mãos, ela vê o canto do dedo indicador machucado, puxa a pele, machucando ainda mais o local. Ao olhar novamente para a mão, não há nada em seu dedo. Mais uma vez, há uma vivência, mas ainda sem sinais de interpretações por parte de Nina. Ela simplesmente vivencia fenômenos e exigências frente aos quais não dá ainda nenhum sentido ou explicação.
Ao sair da festa, Beth vê Thomas convidando Nina para ir a seu apartamento. Se enfurece com ela, chamando-a de puta e questionando a forma pela qual teria conseguido o papel principal. No apartamento, o diretor diz que não deveriam existir barreiras ente eles e mais uma vez incita Nina a vivenciar sua sexualidade, tocar seu corpo. Ao acordar no dia seguinte, é o que ela irá fazer. No entanto, qual é o horror de Nina ao se deparar com a mãe dormindo na cadeira ao lado de sua cama enquanto seguia a sugestão de Thomas.
Ao chegar ao teatro, Nina descobre que na noite anterior Beth havia sofrido um trágico acidente ao sair do local da festa, havia sido atropelada. Imediatamente Nina se dirige ao hospital e ao ver o ferimento na perna de Beth fica horrorizada. Aos poucos os acontecimentos levam Nina a ter que lidar com algo que fica cada vez mais insuportável.
No ensaio seguinte, é tocada e seduzida por Thomas, que diz a ela que deveria acontecer o contrário. As exigências do diretor parecem impor a Nina um imperativo, frente ao qual ela se apresenta como objeto. Além dele, a mãe da moça aparece mais uma vez como caprichosa e exigente, afirmando a ela que havia abdicado de sua carreira para tê-la, lançando sobre a filha o dever de realizar algo do seu ideal que ela mesma não havia realizado. Nina se irrita e separa no quarto um pedaço de pau para manter a porta fechada e a mãe afastada. Talvez o único meio que encontrou para manter esta mãe tão invasiva afastada. Tal cena nos remete ao que Lacan (1969-70/1992) diz a respeito da mãe, no Seminário 17, O Avesso da Psicanálise, como um crocodilo de boca aberta, pronto para engolir a criança. O que impediria isto seria um rolo de pedra colocado na bocarra do crocodilo, que protegeria a criança caso a boca se fechasse, o que representaria o falo do desejo materno. Parece que no caso de Nina com sua mãe este elemento não está colocado desta maneira, e a filha precisa de um anteparo real, pedaço de pau que coloca atrás da porta de seu quarto, para impedir a invasão materna. É neste momento de conflito entre mãe e filha que Lily chega à casa de Nina e a chama para sair, justamente na noite anterior ao ensaio geral. A contragosto da mãe ela aceita o convite da nova colega de companhia.
Em uma boate é montado um ambiente de sedução e sensualidade em que Nina é envolvida. Bebe, usa droga oferecida por Lily, beija homens, fica em um estado que faz com que o espectador não saiba o que é ou não realidade. Ao sair da boate, entra num taxi e supostamente volta para sua casa com a colega. Em casa dá más respostas às perguntas da mãe e entra com a outra moça para seu quarto, colocando o pedaço de pau na porta para a mãe não entrar. É neste momento que vivencia uma relação sexual com Lily, que ao final se transforma nela mesma e a sufoca com um travesseiro.
No dia seguinte Nina se atrasa para o ensaio, e Lily ensaiava em seu lugar. É aí que a colega diz a ela que não passaram a noite juntas, achando graça que ela tenha tido um sonho erótico com ela. Mais um sintoma se apresenta em seu corpo: vômito. Ao tirar medidas para a roupa do espetáculo a costureira comenta que ela emagreceu mais ainda. A questão do corpo fica novamente em evidência, e Nina se vê no espelho ferindo as costas com as unhas. Transtornada, chega em casa e joga todos os brinquedos de seu quarto no lixo.
No ensaio geral, são dadas as seguintes coordenadas para Nina representar o ato final do cisne branco: "seu sangue se esvai... só há uma saída para o sofrimento... pule!".
Nina começa a pensar que Lily, por ter sido colocada como sua substituta, queria roubar seu lugar. Implora pra que ela não seja sua substituta, mas o diretor não lhe dá ouvidos, diz que ela foi bem e a manda descansar. Vemos que a cada momento Nina fica mais confusa, invadida e desorganizada, cada vez mais tomada pelo que lhe acontece. Ensaia sozinha em casa e ao se olhar no espelho vê a outra mulher. Vê Lily com Thomas. Interpreta então estas vivências e corre ao camarim para pegar seus objetos. Ao sair do teatro, vê sua foto no pôster de estreia do espetáculo. Vai ao hospital e leva os objetos de Beth que estavam no camarim e os devolve a ela. "Sei como você se sente, estão querendo pegar meu lugar". Quando Beth a interpela questionando se havia roubado suas coisas, Nina diz apenas que só queria ser perfeita como ela, ao que a mulher lhe diz que não é nada, e desfere golpes em seu próprio rosto com uma lixa, transformando-se em Nina. A moça foge da cena e ao entrar no elevador, uma lixa cai de sua mão.
Interessante notar como as figuras femininas são complicadas para Nina: Erica, Beth, Lily. Parece não haver nenhuma mediação simbólica que colocasse um ponto de basta nestas relações. Nina está identificada imaginariamente com Erica, sua mãe, ao se colocar em posição de atender às demandas maternas de realizar seus ideais frustrados. É na posição de objeto do Outro que Nina parece responder a tais demandas. Erica aparece o tempo todo como bastante caprichosa e controladora, exigente, sempre presente, nenhum ponto de falta ou de seu desejo se colocam no filme. O que aparece vindo desta mãe é o puro imperativo, relativo a um gozo materno. Uma mãe que sabe de tudo e controla tudo na vida da filha. Uma relação especular sem uma mediação paterna que pudesse colocar limites no Outro caprichoso que impõe exigências constantes. O pai de Nina nem mesmo é citado no filme, índice de uma foraclusão.
Além da mãe, as figuras de Beth e Lily também nos apontam para identificações imaginárias de Nina. Ela vê Lily como a mulher que quer seu lugar, em uma clara relação especular, no eixo a - a', que podemos localizar como o eixo da relação imaginária, elaborado por Lacan (1957-58/1998) no esquema L da Questão preliminar. Imediatamente ao localizar Lily como rival, se identifica com Beth, da qual ela própria haveria tomado o lugar, sendo também uma posição de rivalidade. No papel de bailarina principal, na subjetividade de Nina, dançam essas quatro mulheres, sem que haja para ela alguma mediação que possibilitasse outro tipo de interpretação que não a da rivalidade imaginária.
Ainda em relação à questão do feminino no filme, podemos retomar o Seminário 20, Mais, Ainda, para abordar as elaborações de Lacan (1972-73/1985) a respeito da tábua da sexuação. No caso de Nina é importante pensar no que é o gozo d'A Mulher, o gozo Outro, para quem não tem referência no campo fálico. Toda a exigência relativa à sensualidade feminina para ao papel do cisne negro e as relações com essas mulheres acabam por levar Nina ao pior.
Ao experimentar o empuxo à Mulher, característico da psicose, Nina vivencia sua transformação, já anunciada. Podemos dizer que o empuxo ao Cisne Negro, representativo do feminino e da sexualidade, questões sobre o ser às quais Nina não possui recurso para responder, leva a moça a oferecer-se a esta transformação.
No dia da estreia, Nina chega em casa bastante transtornada e ouve um choro no quarto da mãe. Vê todos os desenhos chorando e gritando, a mãe quer saber o que está havendo e ela se fecha no quarto. Seus olhos ficam vermelhos e ela retira uma pena da ferida de suas costas. Suas pernas se viram, enquanto a bailarina de sua caixa de música gira quebrada dentro desta. A mãe percebe que Nina não está bem, e avisa ao diretor que ela está doente e não iria à apresentação, tentando impedi-la de ir. Nina não aceita a proibição da mãe, e diz, ao sair "Eu sou a rainha cisne, que você não conseguiu ser!".
Ao chegar ao teatro, se depara com Lily, que diz que era para ela estar doente. Desesperada com a situação, ela se arruma no camarim e Thomas lhe diz que a única pessoa no seu caminho é ela, dizendo com tom imperativo: "Lose yourself!". Esta expressão em inglês tem a conotação de "vá em frente!", mas traduzida ao pé da letra, significa "perder-se". É o que parece ter acontecido com Nina.
Ao vestir suas sapatilhas, ela vê os dedos de seus pés colados. Mais uma etapa de sua transformação no Cisne Negro. Como cisne branco ela cai no palco, estando visivelmente perturbada com o que sente. Se vê nas outras bailarinas. Ao voltar para o camarim, vê Lily entrar e falar sobre sua queda e atuação. Quebra o espelho e se vê como o Cisne Negro atacando. Fura a barriga de Lily vestida de cisne branco com um estilhaço do espelho, dizendo "É a minha vez!". Coloca o corpo de Lily em um canto escondido no camarim e vai dançar como Cisne Negro. Durante a dança, sua transformação se conclui. Ao final, muito aplaudida, dá um beijo na boca de Thomas, que se mostra bastante satisfeito.
Retorna ao camarim, vê o sangue no chão perto do espelho quebrado, cobre com uma toalha. Lily chega para dar os parabéns e Nina fica pasma: não vê sangue na toalha, não há corpo no canto do camarim, se olha e vê o estilhaço de vidro em seu próprio ventre. O retira e chora. Veste-se novamente como cisne branco para voltar para o ato final.
No final trágico, Nina retorna ao palco como cisne branco e vê sua mãe na plateia. Termina o espetáculo jogando-se da plataforma, conforme as instruções dos ensaios. Realiza então a única saída possível para o cisne branco: a morte. A morte do cisne branco é a própria morte de Nina, que ao cair deste salto, permanece deitada no colchão, sangrando. Quando Thomas pergunta o que havia feito, ela diz apenas "Eu fui perfeita".
A transformação no Cisne Negro pode ser pensada pela via de uma realização do empuxo à Mulher. Ela não se faz A Mulher, mas se faz O Cisne Negro. No momento desta realização, testemunhamos uma passagem ao ato kakoniana, em que Nina tenta matar o mal que supostamente estaria fora, na rival imaginária. Atinge a si mesma, para o sujeito não restou outra saída que não o seu próprio apagamento, para o advento do Cisne Negro. A morte do sujeito, no simbólico, a morte do cisne branco, no imaginário, a morte de Nina, no real.
Referências
Aronofsky, D. (2010) (Diretor). Black Swan. [Filme]. EUA: Fox Searchlight Pictures. [ Links ]
Freud, S. (1980a). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides) (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 12, pp. 15-110). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1911). [ Links ]
Freud, S. (1980b). História de uma neurose infantil (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. 17, pp. 13-153). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1918 [1914]). [ Links ]
Lacan, J. (1985). O Seminário: Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar. (Originalmente publicado em 1972-73). [ Links ]
Lacan, J. (1992). O Seminário: Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Originalmente publicado em 1969-70). [ Links ]
Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro: Zahar. (Originalmente publicado em 1957-58). [ Links ]
Lacan, J. (2002). O Seminário, Livro 3: As psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro: Zahar. (Originalmente publicado em 1955-56). [ Links ]
Recebido em 09 de outubro de 2010
Aceito em 09 de abril de 2011
Revisado em 05 de Agosto de 2011