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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.3-4 Fortaleza dez. 2013
ARTIGOS
Psicoterapia infantil em grupo: possibilidades de escuta de subjetividades
Child group psychotherapy: subjectivities' listening possibilities
Psicoterapia de grupo con niños: posibilidades de escucha de subjetividades
Groupe psychothérapie de l'enfant : possibilités d'ecoute de subjectivités
Maísa Campos GuimarãesI; Jéssica Helena Vaz MalaquiasII; Regina Lúcia Sucupira PedrozaIII
IPsicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde da Universidade de Brasília. Psicóloga da Secretaria de Estado da Mulher do Governo do Distrito Federal. E-mail: maisa.c.guimaraes@gmail.com
IIPsicóloga. Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Processos do Desenvolvimento Humano e Saúde da UnB
IIIProfessora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Doutorado em Psicologia pela UnB. Pós-doutorado em Educação pela Université Paris V. Professora do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento e Saúde da UnB
RESUMO
A psicoterapia infantil está em constante processo de constituir-se. Junto ao corpo teórico de conhecimento, faz-se necessário que os psicoterapeutas infantis estejam em constante diálogo com sua maneira de atuar, elaborando e transmitindo novos conhecimentos acerca da prática da clínica infantil. Nesse sentido, o presente artigo objetiva trazer novas reflexões a respeito da clínica infantil, fundamentada na psicanálise e na psicologia sócio-histórica e contextualizada em uma experiência de psicoterapia de grupo conduzida pelas autoras em um contexto de clínica-escola. O grupo era formado por quatro meninos, com faixa etária de seis a nove anos e demandas diversas. A partir das reflexões sobre as experiências vivenciadas junto às crianças, foi possível observar como a escuta em grupo exigiu que se considerassem os constantes encontros de subjetividades, bem como os estranhamentos ao outro. Assim, as crianças puderam vivenciar esses encontros e conflitos com o desenvolvimento psíquico dos outros integrantes, de forma a elaborar processos do próprio desenvolvimento. É importante ressaltar que se buscou construir um modelo de escuta particular nos atendimentos, de modo a possibilitar a escuta para cada criança em sua subjetividade e do grupo enquanto sujeito construído a partir das intensas relações estabelecidas entre os membros e destes conosco. Dessa forma, faz-se pertinente considerar que a clínica infantil em grupo construída foi elaborada a partir do olhar à criança e ao infantil, da atuação junto aos membros do grupo e das reflexões críticas pertinentes ao processo psicoterápico.
Palavras-chave: psicoterapia; clínica infantil; subjetividade; grupo.
ABSTRACT
Child psychotherapy engages constantly in the process of constituting. Together with the theoretical principles, it is necessary that child psychotherapists are in persistent dialogue with theirs means of interaction, make out and report knowledge about the practice in child clinic. In such mean, the present article aims to bring new questionings about child clinic, grounded in Psychoanalysis and Social Historical Psychology handled by the authors in a social clinic at a university. The group was constituted of four boys, in the age of six to nine years-old, chosen with distinct demands. From the reflections emerged from the psychotherapists' experiences with the children, it was possible to observe how the group listening demanded to consider the constant subjectivities encounters and conflicts. Therefore, the children could experience these encounters with the psychic development of the others in a way to elaborate their own processes. Is is weighty to say that psychotherapists intend to put together a specific listening in theirs practice in a way to enable a listening to each child in her subjectivity and to the group as a subject too, emerged of the relations among the members and of the relations of these members of the psychotherapists. In this way, this work considers relevant than group child clinic presented here was grounded of the comprehension of the child and the infantile, of the psychotherapist's acting together with the members of the group and of the questionings inherent to the psychotherapeutic process.
Keywords: psychotherapy; child clinic; subjectivity; group.
RESUMEN
La psicoterapia infantil está en constante proceso de formación. Junto al cuerpo teórico de conocimiento, se hace necesario que los psicoterapeutas infantiles estén en constante dialogo con su manera de actuar, elaboren y transmitan nuevos conocimientos sobre la práctica de clínica infantil. En ese sentido, el presente artículo tiene como objetivo traer nuevas reflexiones acerca de la clínica infantil, fundamentada en la Psicoanálisis y en la Psicología Socio-Histórica, y contextualizada en una experiencia de psicoterapia de grupo conducida por las autoras en contexto de clínica-escuela. El grupo estaba formado por cuatro chicos, con edades entre seis a nueve años, elegidos con demandas diversas. A partir de las reflexiones sobre las experiencias vividas por las psicoterapeutas junto a los niños, se hizo posible observar como la escucha en grupo exigió que se considerara los constantes encuentros de subjetividades, bien como el asombro a otros. Así, los niños pudieron experimentar estos encuentros y conflictos con el desarrollo psíquico de los otros miembros de manera que fue posible elaborar procesos de su propio desarrollo. Es importante resaltar que las psicoterapeutas buscaron construir un modelo de escucha particular en las atenciones, posibilitando la escucha para cada niño en su subjetividad y del grupo como sujeto, construido a partir de las intensas relaciones establecidas entre los miembros, y de ellos con las psicoterapeutas. Por lo tanto, con el presente trabajo, se hizo pertinente considerar que la clínica infantil en grupo construida fue elaborada a partir de la visión de las psicoterapeutas a los niños y al infantil, de la actuación de las mismas junto a los miembros del grupo, y también a partir de las reflexiones críticas pertinentes al proceso psicoterápico.
Palabras-clave: psicoterapia; clínica infantil; subjetividad; grupo.
RÉSUMÉ
La psychothérapie de l'enfant est en permanent processus de constitution. A côté du cadre théorique des connaissances, il faut que les psychothérapeutes de l'enfant soient en constant dialogue avec leur manière de travail, qu'ils élaborent et transmettent des nouvelles connaissances sur la pratique de la clinique infantile. Dans ce sens, cet article vise à apporter des nouvelles réflexions sur la clinique de l'enfant, basée sur la Psychanalyse et la Psychologie Socio-historique, et contextualisé dans une expérience de psychothérapie de groupe conduite par les auteurs dans le contexte de l'école clinique. Le groupe était formé par quatre garçons, âgés de six à neuf ans, choisis avec diverses exigences. A partir des réflexions sur les expériences vécues par les psychothérapeutes avec les enfants, il a été possible d'observer comment l'écoute en groupe a exigé des considérations sur les constants rencontres de subjectivités, ainsi que l'étrangeté envers les autres. De cette manière, les enfants ont pu avoir l'expérience de ces rencontres et de conflits avec le développement psychique des autres membres, afin d'élaborer leurs propres processus de développement. Il est important de noter que les psychothérapeutes ont cherché à construire un modèle d'écoute particulière dans les séances, pour permettre à l'écoute de chaque enfant dans sa subjectivité et le groupe comme un sujet, construit à partir des relations intenses entre les membres et ceux avec les psychothérapeutes. De cette façon, avec le présent travail, se fait nécessaire considérer comme approprié que la clinique de l'enfant en groupe ici constituée a été élaboré par la perspective des psychothérapeutes envers l'enfant et l'infantile, avec leur pratique à côté des membres du groupe, et aussi à partir des réflexions critiques pertinentes au processus psychothérapeutique.
Mots-clés: psychothérapie de l'enfant; clinique infantile; psychanalyse; psychothérapie de groupe; subjectivité.
Introdução
Como conhecer e entrar em contato com as múltiplas possibilidades de atuação em clínica infantil? Como encontrar um modo específico de atendimento psicoterapêutico diante de tantos pacientes, cada um com suas especificidades? Tais questionamentos nos conduziram a analisar a experiência com um grupo de crianças em psicoterapia, introduzindo uma discussão acerca dos elementos que devem ser manejados a partir da dinâmica grupal que se revela na clínica. A experiência de alunas estagiárias da clínica-escola do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília em atuar em psicologia clínica com crianças e a possibilidade do atendimento em grupo consistiram um desafio para que se pensasse essa modalidade e suas idiossincrasias. Como um espaço privilegiado de aprendizado, de formação e de contato com o processo de tornar-se psicoterapeuta, essa experiência com grupo de crianças permitiu que fossem gestados diferentes modos de se estar nesse contexto.
A partir dos campos de produções teóricas da psicologia e da psicanálise, podemos constatar que muitos modelos de atuação em clínica com crianças têm sido discutidos e reformulados. O surgimento da psicanálise infantil é coincidente com um contexto histórico de produção de conhecimentos que autoriza a ciência a gerir as regras da educação das crianças.
A condição elementar da psicanálise busca, na abordagem ao indivíduo adulto, as reminiscências da vida infantil e suas marcas (Abrão, 2001). Essa condição é possibilitada a partir do reconhecimento de Freud da existência da sexualidade infantil, o que nos leva a compreender como a criança passa a ser concebida naquele momento histórico, além de trazer contundentes postulações a respeito do desenvolvimento pulsional dos indivíduos. Cabe ressaltar que, nos Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/1980a) propõe uma leitura mais ampla do conceito de "sexualidade", tratando-a como as formas globais de obtenção de prazer, não se limitando à dimensão genital da relação sexual adulta. Nesse sentido, as crianças também experimentam, em seu desenvolvimento, momentos de descoberta de fontes de prazer no próprio corpo, o que não era sequer considerado pelas concepções sociais do século XIX.
Além disso, Freud (1905/1980a) acrescenta que a sexualidade infantil havia sido, até então, negada pela sociedade, pelo fato de o adulto suprimir os primeiros afetos, as primeiras vivências e os conflitos presentes nas fases iniciais do desenvolvimento psicossexual. Diante dessa perspectiva, o corpo teórico da psicanálise reconhece a precocidade da vida mental e suas vicissitudes, legitimando a intensa movimentação pela qual a criança perpassa em processo de constituição enquanto sujeito psíquico. A sobrevivência das experiências infantis no psiquismo do adulto fez com que médicos, pais e educadores voltassem suas preocupações para o desenvolvimento de suas crianças.
O texto de Freud, Análise de uma fobia em um menino de cinco anos: o pequeno Hans (1909/1980b), considerado a primeira análise infantil, explicita seu interesse no caso da criança Hans, a fim de confirmar suas postulações acerca da sexualidade infantil. A partir desse caso, percebe-se um aumento das práticas de observação da vida das crianças, bem como do processo de formação dos sintomas neuróticos. Além disso, com a análise do pequeno Hans, foi demonstrada a possibilidade da análise infantil e as vantagens para o seu desenvolvimento. Para Costa (2007), a partir desse caso, Freud lança as bases teóricas para a análise com crianças. O desenvolvimento desse campo, porém, será melhor estabelecido posteriormente, com as contribuições teóricas de psicanalistas que passaram a considerar a possibilidade de escuta do inconsciente infantil no contexto analítico, a partir, principalmente, da brincadeira.
Klein (1975) defende que a brincadeira é a expressão simbólica das fantasias inconscientes das crianças, e é no brincar que o método analítico se fundamenta. A ação do psicanalista será, então, em direção a essas fantasias, de modo a permitir que elas atinjam plena capacidade de expressar suas potencialidades (Costa, 2007). As peculiaridades da psicanálise infantil, ressalta Pechberty (2000), são reflexos dos modos de expressão da criança, da sugestão e do lugar dos pais atravessando os dispositivos da clínica.
As crianças obrigam os analistas a terem em conta as dimensões envolvidas na própria clínica do adulto, no que se refere à escuta de um inconsciente. Desse modo, limites teóricos são ampliados, de forma que a criança, mesmo não se submetendo aos dispositivos utilizados com o adulto, exige uma escuta diferenciada de sua fala e de seu movimento. Um olhar metapsicológico sobre a questão do corpo estabelece um embate analítico que obriga a teoria a se desenvolver (Pechberty, 2000). No adulto, já existe a interdição de sua relação com o outro, enquanto na criança essa interdição pode ainda não ter se estabelecido e, nesse sentido, a relação transferencial perpassa a relação corporal adulto-criança. Pechberty (2000) destaca elementos dessa relação, como: as questões do desejo, as intervenções do analista, o lugar central da ligação de um e outro, as ligações adulto-criança, a situação terapêutica, os imprevistos, a questão educativa e terapêutica.
A inserção da psicanálise nos discursos presentes na sociedade europeia do século XIX possibilitou que Freud e outros psicanalistas provocassem novos modos de pensar a infância e o infantil. Assim sendo, é possível problematizar a concepção de "criança" que um psicoterapeuta traz consigo em sua atuação clínica a partir de diferentes perspectivas antropológicas de olhar a criança.
Ariès (1981) defende que a concepção de infância que conhecemos hoje foi algo estabelecido historicamente na sociedade ocidental a partir do final da Idade Média. Ao analisar obras de arte produzidas a cada época, ele destaca a visão que a sociedade tinha acerca das crianças e a relação estabelecida com elas. No período medieval, não se tinha a consciência das particularidades infantis e, desde cedo, a criança já ingressava na sociedade como um adulto em miniatura.
A partir do século XIV, surgiram as primeiras percepções diferenciadas do sentimento da infância. Inicialmente, este se relacionava à "paparicação" das crianças, exaltadas por sua ingenuidade e graça como fonte de distração dos adultos. Um negativo desse sentimento começou a surgir no século XVII, com uma preocupação moral eclesiástica acerca da educação dessas crianças, pautada na disciplina e na racionalidade dos costumes (Ariès, 1981).
O desenvolvimento científico da época reforçava, como questão central no seio da família, as diversas dimensões do controle da criança, considerada um ser assexuado, imaturo e não desejante que precisava ser constantemente corrigido pelo adulto. Essa visão começa a se modificar a partir de Freud. Ainda assim, como destaca Costa (2007), a revolução principal que se fez com a construção desse sentimento da infância diz respeito à constituição de um discurso de autoridade científica que deslegitima a fala da família sobre a própria criança; assim, os pais se tornam submissos a ditames que discorrem sobre a melhor maneira de educar e se relacionar com seus filhos.
Esse estabelecimento privilegiado da fala da ciência sobre as crianças perpassa, como vimos, a construção e o surgimento da psicanálise infantil. Aos poucos, diferentes campos do conhecimento se dedicaram à constituição de um discurso sobre a criança. Dolto (2005) afirma que as ciências naturais e as humanas, tais como biologia, economia, estatística e psicologia experimental, emprestaram seus instrumentos para a construção de um saber sobre o infantil. Entretanto, esse discurso em nada favoreceu a constituição da criança enquanto sujeito de desejo. Ao contrário, Dolto (2005) demonstra que a ciência se colocou a favor de uma ordem: a ordem da política, da ideologia e da organização social já estabelecida.
O lugar da ciência, dessa forma, fortaleceu-se e se constituiu enquanto detentor de um saber enviesado sobre as crianças, seu desenvolvimento e suas problemáticas. Ao longo do tempo, várias experiências foram empreendidas, na ânsia de se constatar o que já era observável no tocante ao desenvolvimento dos pequeninos. Tais tentativas dos adultos pesquisadores em catalogar e categorizar as etapas e as especificidades desse desenvolvimento podem ser entendidas enquanto posicionamento ideológico autoritário sobre as características de cada indivíduo em sua singularidade (Dolto, 2005).
Nessa mesma perspectiva, podemos situar o discurso elaborado pela psicologia clínica e pela psicologia do desenvolvimento acerca das concepções de indivíduo e do curso de seu desenvolvimento esperado. A clínica, antes preponderantemente médica e atualmente também psicológica, merece reflexões sobre os moldes que tem imposto sobre o olhar direcionado a cada indivíduo. Foucault (1987) imagina que um observador perfeito, no silêncio de sua escuta, abre o caminho para a espera antes mesmo de elaborar qualquer juízo sobre o sentido que está se formando ali, no doente. O autor inquieta os clínicos trazendo questionamentos sobre as relações hierarquizadas existentes entre analista e analisando. Por princípio, o analista é o detentor do saber sobre o inconsciente do outro e, por isso, detém também o poder na relação estabelecida, dando o caráter constitutivo da hierarquia. Assim, Foucault se pergunta como será possível restabelecer a autonomia do sujeito enquanto o saber/poder estiver predominante na relação do clínico com o "doente". Distanciando-se desse modelo clínico controverso, Foucault (1987, p. 122) traz a sugestão de um duplo silêncio, em que na densidade [do duplo silêncio] as coisas vistas podem ser finalmente ouvidas, e ouvidas apenas pelo fato de que são vistas.
Com o decorrer das produções científicas, percebe-se a ascensão de um saber supostamente acolhedor do sujeito criança e legitimador de sua posição enquanto tal. A criança passou a ter o direito de expressar suas opiniões, de ser esclarecida quanto a certos temas, de consumir os bens da sociedade, e até os bebês são agora representados como sexuados, e não como detentores do sexo dos anjos (Dolto, 2005). Entretanto, as crianças continuam sendo objeto do desejo dos adultos e ainda recebem as projeções dos pais, os anseios dos educadores, as expectativas nutridas por seus médicos, tornando-se prisioneiras dos símbolos que os adultos lhes depositam.
Relacionando essas ideias ao terreno da clínica, vemos que esses desejos e projeções do adulto sobre a criança se tornam ainda mais explícitos ao olhar do clínico. A história dessas construções conceituais sobre a criança vem à tona no momento do encontro do psicoterapeuta com cada uma delas. Retomamos, então, a questão: qual é a concepção de "criança" presente na atuação clínica dos psicoterapeutas infantis? Questionamos se essa postura confirma um saber autoritário do especialista sobre a criança ou se dá abertura às experiências múltiplas de "ser-criança-na-sociedade" (Pulino, 2001).
A criança, em seu nascimento, irrompe surpreendendo os adultos que a cercam, trazendo a dimensão do novo: algo que ainda não havia sido figurado pelos desejos dos pais, dos educadores, dos médicos e de todos os ditos "especialistas" em crianças. A infância foge aos nossos saberes e está a ponto de contradizer toda a homogeneidade existente e velada. Esse outro que surge
inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar a infância como um outro é, justamente, pensar essa inquietação, esse questionamento, e esse vazio. (Larrosa, 2004, p. 184)
Ao reconhecer o advento da novidade - portanto, do desconhecido, da infância -, passa-se a concebê-la como algo que não sabemos ainda e que se abre ao diálogo, ao conhecimento a ser construído junto com a criança, em sua linguagem. Com a novidade, reconhecemos também o heterogêneo, aquilo a que nos conectamos pela diferença e pela não objetivação e normatização. Por essa mesma perspectiva, Larrosa (2004) propõe que se devolva à infância a sua natureza enigmática e aos adultos a responsabilidade em reconhecer as exigências que esse enigma nos traz.
A dialética entre o esperado e a novidade no olhar sobre a criança também é destacada por Lajonquiere (2010) ao ressaltar que a chegada de uma criança é sempre estranha, ao não corresponder exatamente ao que se idealizava dela - mas é um estranho ao mesmo tempo familiar e familiarizado por nossas relações. O autor defende que a infância se configura a partir do que os adultos falam sobre ela e, assim, traz o conceito de infância perdida, compreendendo essa percepção como relacionada às reminiscências do adulto sobre essa fase de seu desenvolvimento. Nesse sentido, defendemos a importância de se valorizar as experiências vividas e de se escutar a fala da criança, considerando que o estar com o outro se fundamenta em encontros e desencontros consigo e com o outro.
A partir dessas reflexões, destacamos que o nosso objetivo é apresentar as experiências de um trabalho psicoterapêutico com um grupo de crianças, de modo a permitir reflexões sobre a atuação clínica com elas, sobre o lugar do psicoterapeuta com o outro e de cada outro com o grupo. Dessa forma, não pretendemos estabelecer um modelo de psicoterapia infantil em grupo, e sim contribuir para que o sujeito possa se sensibilizar e encontrar o seu lugar enquanto psicoterapeuta na relação com o outro. Nesse sentido, este trabalho se inscreve também em uma busca por uma reflexão epistemológica sobre tal possibilidade de clínica infantil.
Formando o Grupo
A experiência dessa psicoterapia infantil em grupo ocorreu em um contexto da clínica-escola do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, denominada Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (CAEP). O CAEP oferece serviços de psicoterapia infantil, de adolescentes, de adultos e de família. Os atendimentos são realizados por estagiários, psicólogos voluntários e psicólogos contratados pela universidade. Esse trabalho foi desenvolvido pelas autoras enquanto estagiárias e em supervisão.
A decisão pelo atendimento em grupo esteve associada a três principais fatores: a grande demanda por atendimento infantil na clínica-escola, a possibilidade de uma atuação clínica diferente para a experiência das estagiárias e o interesse destas pela busca teórico-epistemológica dos desdobramentos dessa modalidade de atendimento. Teixeira (2007), ao relatar suas experiências de intervenções psicanalíticas em grupo em uma clínica-escola, também ressalta preocupações com a alta procura por atendimento infantil nessas instituições e com os impactos de um longo tempo de espera na adesão ao tratamento e no sofrimento do sujeito.
Inseridas na clínica-escola, optamos por desenvolver um trabalho psicoterapêutico com crianças reunidas em grupo. Para a formação do grupo, adotamos os critérios de mesma faixa etária e de horários disponíveis em comum entre as crianças e nós, psicoterapeutas. Cabe ressaltar que não houve critérios associados ao gênero ou às demandas dos clientes. Essa decisão esteve pautada na nossa postura terapêutica de compreender a atuação clínica como um trabalho de estar com o outro e possibilitar um espaço de fala e escuta de seus desejos e angústias, independentemente de suas queixas ou demandas. Importante destacar que encontramos na literatura diferentes possibilidades e orientações para o trabalho psicoterapêutico em grupo de crianças, porém, optamos por estruturar a nossa maneira de intervenção.
Decherf (1986), por exemplo, articula um modelo de constituição de grupos de psicanálise infantil orientado a certas concepções de gênero e de fenômenos de grupo que remetem a uma estrutura fixa pré-concebida. Para esse autor, a dupla de terapeutas deve se estabelecer enquanto casal, o que ofereceria à criança um enquadre que remetesse a uma situação familiar. Decherf (1986) coloca, ainda, que as crianças devem ser escolhidas a partir de suas demandas e funcionamentos psíquicos. Desse modo, o grupo favoreceria a representação desses diferentes funcionamentos psíquicos, tal como ocorre na sociedade, e alcançaria, assim, certo equilíbrio. Além da escolha específica de queixas, o autor propõe um número equânime de meninos e meninas.
A partir da nossa compreensão clínica explicitada ao longo deste texto, questionamos amplamente tais propostas quanto à formação do grupo de crianças em análise. O enquadre analítico deve ser um lugar em que se depositam os elementos arcaicos que emanam das estruturas psíquicas dos membros do grupo. Ele é formado pela constituição psíquica dos sujeitos e por uma extensão desta ao espaço psicanalítico. Por esse viés, o enquadre serve para mobilizar o processo, a movimentação e a criatividade (Kaës, 2011). Dessa forma, é necessário que o próprio analista esteja consciente de que, naquele enquadre, circulam conteúdos arcaicos seus e dos membros do grupo, independentemente de remeterem a situações familiares. Tal estrutura proposta por Kaës (2011) admite que a existência de conteúdos arcaicos dos envolvidos no processo analítico grupal já é suficiente para mobilizar a análise.
O nosso grupo foi formado pelas duas estagiárias e por quatro crianças do sexo masculino: Mateus e Carlos1, de 7 anos; Lucas, de 8 anos; e Eliseu, de 9 anos. Para a primeira entrevista, realizada em grupo, apenas os pais foram acolhidos. As principais queixas trazidas foram: dificuldades de aprendizagem, queixa da escola sobre mau comportamento, suspeita de hiperatividade e urgência urinária. As sessões de atendimento foram realizadas apenas com as crianças e ocorriam uma vez por semana, com duração aproximada de noventa minutos. O grupo foi atendido durante dez meses.
Para o surgimento de um grupo, há de existir a precessão de um princípio desejante e organizador (Kaës, 2011). Com a existência deste, os membros do grupo podem criar a posição imaginária de um fundador do grupo, o que alimentará transferências e contratransferências, bem como vínculos entre os membros.
A esse respeito, lembramos a primeira sessão realizada com o nosso grupo. Posicionamo-nos frente ao grupo, de maneira a proporcionar um espaço de fala a todos, para que pudessem expressar suas dúvidas e ansiedades frente ao novo que se apresentava a cada um: a novidade do espaço, do outro desconhecido e das possibilidades de devir. Procuramos expor que aquele setting era um espaço deles, onde poderíamos brincar, conversar e inovar. Todos os membros do grupo tiveram a oportunidade de se apresentar, contar um pouco de si e possibilitar, dessa forma, uma construção inicial do vínculo, permitindo que o princípio desejante circulasse no grupo.
Nesse contato inicial, propusemos a discussão sobre como o grupo funcionaria e quais regras deveriam nortear o nosso relacionamento. Foi possível elaborar com as crianças tais regras, aqui compreendidas como nossos "combinados". Essa elaboração conjunta foi uma maneira de permitir que os membros se apropriassem do espaço e do grupo. Além disso, esse foi um momento inicial para que eles percebessem aquele lugar como um lugar de fala e escuta de seus desejos. Os combinados estabelecidos foram: tentar não chegar atrasado, ouvir enquanto outra pessoa falava, não dizer palavrão, pedir para ir ao banheiro quando necessário, não sair da sala sem uma das terapeutas, não estragar os brinquedos e arrumar a sala depois da sessão. Além dos combinados, eles decidiram nomear o grupo com algo que os caracterizasse. Após a discussão de diferentes nomes, as crianças decidiram representar por "Tornado de Gelo" o espaço-tempo de sua psicoterapia.
Com essa oportunidade de nomear o grupo, observamos as crianças envolvidas em elaborar seu pertencimento, bem como a própria fundação desse grupo a partir de seus desejos e expectativas. Uma vez aberto o espaço por nós, psicoterapeutas, no momento da elaboração dos "combinados", eles se apropriaram de tal forma que puderam sentir-se como cofundadores do grupo.
Conhecendo cada Criança
O encontro com cada criança trouxe a possibilidade de nos depararmos com diferentes maneiras de falar, fantasiar e se relacionar com o nosso desejo e o do outro. Realizávamos a escuta de cada sujeito observando que os conteúdos manifestos pelas subjetividades também ocorriam em função do que era partilhado no grupo. A nossa postura se fundamentou em olhar a criança para além da queixa inicial trazida pelos pais. Dolto (1981), no prefácio do livro de Mannoni, Primeira entrevista em psicanálise, delimita como essa queixa deve ser escutada e acolhida. Segundo a autora, os sintomas ou as angústias dos pais (muitas vezes sadias e justificadas) não têm tanta importância em si; eles são importantes para os significados da dinâmica de funcionamento do sujeito que vivencia esse ou aquele comportamento. Assim, o psicoterapeuta permite que as angústias e os pedidos de ajuda dos pais ou das crianças sejam substituídos pela escuta específica do desejo mais profundo do sujeito que fala. Desse modo, a fim de que esse desejo seja revelado diante dos pedidos de fazer desaparecer o sintoma, o psicoterapeuta deve exercitar essa escuta atenta e não responder direta e superficialmente a eles.
O reconhecimento da vida psíquica da criança norteou a nossa atuação, no sentido de sensibilizar a escuta para o sofrimento da criança e seus modos de estar no mundo. Acolher o grupo e cada membro configurou um movimento constante na psicoterapia, de modo a manter-nos atento à subjetividade e ao modo de pertencimento ao grupo.
No acolhimento do grupo, deve-se estar atento às características morfológicas deste, à pluralidade e à presença de indivíduos estranhos uns aos outros. A partir da singularidade de cada membro e da pluralidade criada em decorrência de cada indivíduo, esses elementos fazem surgir a rica dinâmica relacional, os processos associativos e a diversidade das formas de vínculo. O estranhamento que surge entre os sujeitos os movimenta na busca de um lugar em relação aos outros e aos psicoterapeutas. Quando cada sujeito inicia seu processo de tornar-se membro, ele se depara com múltiplos encontros intensos com os outros, que se constituem objetos de identificação, impulsos, mobilizações afetivas e representações. O encontro com outros objetos pulsionais coloca em movimento representações complementares e dissonantes que passam a permear a relação com os outros membros do grupo (Kaës, 2011).
No inicio do trabalho, percebemos claramente a intensidade desses encontros entre os membros e entre estes e nós. Lucas se apresentou como uma criança contida, preocupada com o seguimento das regras e com uma postura ajustável às demandas de outrem. O combinado de não dizer palavrões foi sugerido por ele. Mateus, que havia sido caracterizado pelos profissionais de sua escola como uma criança hiperativa, apropriava-se desse rótulo demonstrando agitação motora, batendo nos objetos ao pegá-los, atirando-os em Lucas e dizendo palavrões. Em determinado momento, afirmou taxativamente que era violento. Lucas retrucou alegando: se você é violento, sai da sala (sic).
Vemos, assim, como os primeiros encontros das crianças foram marcados por um amplo estado de excitação, o qual, ao longo do tempo, foi manejado de diferentes maneiras pelo próprio grupo. Ora o grupo atuava de forma a aumentar o nível dessa excitação, momentaneamente prazerosa; ora esquivava-se, colocando um limite ao outro e a si mesmo. Em certos momentos, os meninos brincavam de se agredir fisicamente ou de dizer muitos palavrões, e até Lucas, em geral incomodado com os xingamentos, permitia-se essa outra possibilidade de se expressar. Em outros momentos, uma das crianças se posicionava contrária à brincadeira até então bem aceita pelo grupo, descobrindo seus limites e apresentando-os aos outros.
As manifestações de agressão física nos remetem ao olhar da questão do corpo, perpassando o manejo necessário ao processo do grupo. Ávila (2006) ressalta:
Na psicoterapia de grupo, o corpo assume uma presença muito mais marcante e se impõe como um foco necessário de análise e intervenção: os indivíduos do grupo interagem, trocam olhares, mudam de lugar, deslocam-se no espaço, expressam-se gestualmente, e estabelecem laços transferenciais múltiplos e mútuos, onde o corpo desempenha papel muito ativo. (Ávila, 2006, p. 22)
Nessa mesma perspectiva, Kaës (2011) aponta que, pelo fato de o grupo pedir a situação face a face, é possível extrapolar a situação clássica de cura individual, na qual o analista se furta ao olhar do analisando. O autor situa, assim, a psicanálise de grupo sob um status de pré-psicanalítico.
Conhecendo os Pais
Admitindo que a nossa compreensão de psicoterapia infantil envolve a participação dos pais no processo terapêutico, procuramos manter um contato periódico com eles, ora em grupo, ora individualmente. O nosso interesse era envolver ambos os genitores no acompanhamento psicoterapêutico dos filhos. A nossa experiência, porém, foi limitada ao contato com as mães das crianças. O objetivo desses atendimentos consistia em acolher suas angústias frente à demanda trazida por elas sobre seus filhos e escutar suas expectativas, dúvidas e afetos direcionados ao acompanhamento psicoterapêutico.
A nossa preocupação na escuta fundamentou-se em compreender, nas queixas trazidas, as angústias dos pais e de seus filhos; em explorar os sentidos da busca por psicoterapia; e em escutar o material trazido, não com o intuito de investigar a vida das crianças, mas de proporcionar aos pais um espaço de acolhimento e reflexão sobre suas relações com seus filhos. Esse espaço de escuta faz parte do processo terapêutico, à medida que favorece o fortalecimento dos adultos, a ressignificação de suas angústias e, portanto, a possibilidade de mudança aliada a um novo modo de funcionamento familiar.
A mãe de Mateus manifestava, desde o primeiro contato, que não acreditava no diagnóstico de hiperatividade do filho e só havia procurado o atendimento por pressões da escola da criança. A partir disso, pudemos compreender como a relação reticente dessa mãe com a necessidade da psicoterapia perpassou o processo terapêutico, com as muitas faltas às sessões e as dificuldades em agendar atendimentos com ela. O trabalho com essa mãe consistiu em favorecer a reflexão a respeito do diagnóstico e como este se relacionava com o modo de ser de Mateus. Procuramos, também, direcionar o olhar dessa mãe para a importância de acolher o sofrimento do seu filho em virtude do rótulo atribuído, das relações conflituosas com outras crianças e de sua vivência com mudanças em seu contexto familiar, decorrentes da possibilidade de divórcio dos pais.
Percebemos que a esperança e a confiança dos pais no especialista perpassam o processo psicoterapêutico. O psicoterapeuta fica autorizado a fornecer o discurso correto sobre o que ocorre com seus filhos. Além disso, os pais, muitas vezes, esperam que os especialistas legitimem sua fala sobre a criança. Nesse sentido, o espaço clínico é também atravessado pelo saber/poder da ciência psicológica e de seu representante - o psicoterapeuta, pelo desejo dos pais em ter o filho dentro do esperado pelos ditos "padrões da normalidade", e pelas falas de médicos e educadores (Gutfreind, 2006).
A nossa compreensão a respeito da relação especialista-pais é de que ela não deve se pautar por concepções de poder hierarquizado que subjuga o saber dos pais e os destitui de seu importante lugar para o desenvolvimento da subjetividade de seus filhos. Buscamos, assim, fazer uma escuta atenciosa das angústias e dúvidas dos pais, a fim de fortalecê-los e valorá-los em suas relações com seus filhos. Nessa perspectiva, concordamos com Gutfreind (2006) ao destacar a importância das palavras de seu orientador, Philippe Mazet:
depois de tantos e tantos estudos (especializados), quando recebo uma criança e, portanto, seus pais, eu tenho em princípio tão somente um grande objetivo: esses pais devem sair da consulta mais valorizados como pais do que entraram. (Gutfreind, 2006, p. 130)
Peculiaridades da Vivência em Grupo
No decorrer do trabalho em grupo com as crianças, percebemos que nosso modo de compreender a clínica, o desenvolvimento infantil, o paradigma psicanalítico e a postura do psicoterapeuta são aspectos que atravessaram o encontro com cada criança durante o processo terapêutico. Assim, essas reflexões estiveram presentes durante diversos momentos e mobilizaram as psicoterapeutas a, constantemente, discutirem o espaço-tempo daquela psicoterapia. O diálogo funcionou como um espaço que também pertencia ao grupo, uma vez que se construía e se consolidava, aos poucos, um parâmetro próprio para a compreensão dos fenômenos desse grupo de crianças e para a nossa postura clínica.
A percepção do quanto o grupo se constituiu como uma instância outra, de configuração própria, para além da simples reunião de quatro crianças e duas psicoterapeutas, foi um elemento que esteve presente na nossa reflexão. O grupo enquanto fenômeno que se complexifica a partir dos vínculos, das inter-relações e do material psíquico compartilhado, passa a atuar enquanto sujeito, sempre presente. Com isso, consideramos que, mesmo quando havia ausência de alguma criança na sessão, o grupo funcionava como se ela estivesse presente, devido ao lugar que ocupava em suas interações, pois, além de ser lembrada pelas outras crianças na sessão, os vínculos e os moldes das relações eram rememorados, interferindo no modo como cada brincadeira e conflito eram vivenciados por elas na psicoterapia. No final do trabalho, Lucas, Mateus e Eliseu já não mais compareciam com frequência às sessões e Carlos era, por vezes, atendido individualmente. Percebíamos que, embora apenas uma criança estivesse presente, emergiam nas sessões o funcionamento e as configurações do grupo. Além disso, era evidente para nós, psicoterapeutas, que a postura individual de Carlos remetia aos modos que ele havia construído para se vincular e estar com os outros membros.
A partir desse trabalho, buscamos interconexões possíveis entre a psicologia do desenvolvimento e a clínica infantil. Sendo assim, os pressupostos de Vygotsky (2003) enriqueceram o nosso olhar em direção ao desenvolvimento da criança no contexto da psicoterapia. Consideramos que a psicologia sócio-histórica nos apresenta a complexidade do desenvolvimento sociocultural e psíquico no decorrer da história do indivíduo e, por isso, acrescenta à clínica infantil concepções que abarcam a construção da subjetividade da criança. Ao se legitimar o espaço e o momento da psicoterapia como adequados para a subjetivação, a negatividade, a dúvida, o desejo e a oposição ferrenha a uma lei/regra, reconhece-se veementemente a psicoterapia em grupo de crianças como promotora de desenvolvimento. É com os recursos e os atributos da grupalidade que cada indivíduo vem a se constituir enquanto tal. Nesse sentido, o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) afetiva trazido por Newman (2002) nos faz compreender como as inter-relações entre as crianças e entre estas e nós, terapeutas, constituíam-se em possibilidade de desenvolvimento afetivo.
A experiência em grupo como possibilidade do sujeito de se individualizar é também apresentada por Ávila (2007), que constrói uma compreensão de grupo a partir de uma perspectiva psicanalítica. Para o autor, o verdadeiro sujeito da realidade humana é o grupo, e este cria o indivíduo: "é com os recursos e os atributos da grupalidade que cada indivíduo vem a se constituir enquanto indivíduo. É no grupo e para o grupo, que o indivíduo se torna o que é" (s/p.). Nesse sentido, o autor aponta que a teoria psicanalítica dos grupos é inteiramente coerente com os desenvolvimentos teóricos da psicanálise, uma vez que pensar os grupos é uma maneira radical de pensar psicanaliticamente, pois nossas estruturas psíquicas são relacionais e o ser humano naturalmente tende à relação.
Outra questão muito discutida por nós, psicoterapeutas, foi o manejo da agressividade manifestada pelas crianças nas sessões. Como bem pontua Winnicott (2002), a agressividade, dentre as tendências humanas, é especialmente escondida, disfarçada, desviada e atribuída a agentes externos ao indivíduo. Identificar, portanto, suas origens é uma tarefa difícil e não queremos, por isso, prendermo-nos à falácia de que a agressividade reflete apenas instintos primitivos. No grupo, essa agressividade se manifestava por meio de xingamentos e objetos atirados, geralmente direcionados a nós. A expressão corporal das crianças também era um meio de manifestação dos vínculos e dos conflitos em que emergiam atitudes agressivas, como puxões de cabelos, tapas e arremesso de almofadadas. Buscamos compreender os sentidos dessas atitudes para cada criança: Lucas, sempre preso às regras, de repente pôde experimentar novas possibilidades de agir e se posicionar frente ao outro, diferentes das que ele se habituara a obedecer; a agressividade em Mateus era forte constituidora de sua subjetividade e, ao longo dos atendimentos, ele pôde passar pelo movimento de se aproximar e se distanciar desse modo de ser, construindo novas possibilidades de atuação subjetiva; Eliseu, por sua vez, demonstrava em suas atitudes agressivas resistência à psicoterapia e defesas frente à nossa intervenção.
Além de percebermos os sentidos diversos imbricados nesses momentos conflituosos, considerávamos que eles eram propulsores de desenvolvimento da criança e foram salutares ao nosso olhar para a construção de limites para o outro e para si próprio. Nós, psicoterapeutas, descobrimos, aos poucos, quais eram os nossos limites na relação com o outro e como os expressaríamos sem cairmos em posicionamentos acríticos ou moralistas. Da mesma forma, esse espaço também permitiu às crianças que construíssem seus limites e os expressassem por meio do diálogo, evitando que a agressividade se tornasse a única maneira de manifestar suas diferenças e opiniões. O espaço psicoterapêutico se constituiu, assim, como um lugar de escuta e fala de desejos, de subjetividades e de limites às relações com o outro.
Considerações Finais
Construir um modelo de atuação em clínica exige o exercício constante de acolhimento ao sofrimento do outro, de atenção ao modo como cada sujeito se coloca em uma relação psicoterapêutica e de reflexão sobre a postura do psicoterapeuta enquanto tal. Diante dessas considerações, o presente texto procurou apresentar nossas reflexões advindas da experiência de atendimento em grupo de crianças em uma clínica-escola.
Os referenciais teóricos da psicanálise nortearam o nosso olhar a respeito da construção da subjetividade da criança na relação com o outro e de seu desejo manifesto em suas diferentes possibilidades de estar e de vir a ser. Tais pressupostos fundamentam a construção de uma metapsicologia atenta à imensa complexidade dos fenômenos subjetivos, como o amor e o ódio, o desejo e a lei, a preocupação com os atos de fala, de sonhos e de fantasias (Nasio, 1995). Além disso, os paradigmas da psicologia sócio-histórica nos proporcionaram uma perspectiva histórico-cultural e antropológica acerca do infantil e da relação criança-adulto, o que nos possibilitou ouvir a voz da criança, reconhecer sua vida psíquica e respeitá-la enquanto sujeito de desejo.
Por fim, foi possível compreender que a representação da criança que se constrói na clínica não está restrita às definições propostas por teóricos como Freud, Klein ou Winnicott. Há de surgir sempre novas representações, construídas a partir da relação das psicoterapeutas com o grupo. São os pacientes que ensinam os clínicos a lidar com eles, reforçando o encontro verdadeiro e presentificado em cada relação (Pechberty, 2000).
Referências
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Recebido em 12 de dezembro de 2011
Aceito em 17 de maio de 2012
Revisado em 04 de janeiro de 2013
1 Os nomes citados são fictícios.