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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.8 no.15 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Aspectos políticos da normalização da paternidade pelo discurso jurídico brasileiro

 

The political dimensions of fatherhood normalization produced by brazilian legal discourse

 

Aspectos políticos de la normalización de la paternidad por el discurso jurídico brasileño

 

 

Juliana Perucchi*, I, II ; Maria Juracy Filgueiras Toneli**, I

I Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil
II Associação Catarinense de Ensino - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo desdobra-se de uma pesquisa de doutorado sobre a paternidade no discurso jurídico brasileiro, desenvolvida desde a perspectiva dos estudos de gênero e da Psicologia, articulados às perspectivas de Michel Foucault e se propõe a abordar a temática da paternidade, principalmente no que se refere às questões jurídicas, estabelecendo um diálogo entre Psicologia e Direito demonstrando, assim, os aspectos políticos e sociais da normalização da paternidade pelo Direito. Parte de proposições provenientes de alguns trabalhos de Foucault, discutindo questões referentes à produção de verdades sobre a paternidade pelo discurso jurídico. Entre os resultados destacam-se os usos e efeitos da argumentação técnico-científi ca na articulação entre o discurso jurídico e outros discursos, como da Medicina e da Psicologia.

Palavras-chave: Paternidade, Aspectos políticos, Direito, Discurso jurídico, Psicologia política.


ABSTRACT

This article has stemmed from a doctorate research, about the fatherhood in the Brazilian legal discourse, developed from the perspective of gender and Psychology, linked to Michel Foucault’s propositions and proposed to approach the theme of fatherhood, mainly on the topic about Law matters, making an intersection between Psychology and Law showing, this way, the political and social dimensions of fatherhood normalization produced by law. It is based on ideas contained in some of Foucault’s works, discussing questions regarding the way fatherhood’s thuth is produced by legal discourse. Among results, there are uses and effects of technical and scientific arguments in the dialogue between legal discourse and other discourses, such as Medicine and Psychology.

Keywords: Fatherhood, Political dimensions, Law, Legal discourse, Political psychology.


RESUMEN

Este artículo integra una investigación de doctorado, sobre la paternidad en el discurso jurídico brasileño, desde la perspectiva de los estudios de género y de la psicología, articulados con las perspectivas de Michel Foucault. El objetivo del artículo es abordar la temática de la paternidad, especialmente las cuestiones jurídicas, estableciendo un diálogo entre la Psicología y lo Derecho para mostrar, así, los aspectos políticos y sociales de la normalización de la paternidad por el Derecho. Parte de las ideas de algunos trabajos de Foucault, discutiendo las cuestiones de la producción de verdades de la paternidad por el discurso jurídico. Los resultados destacan las aplicaciones, el efecto y los diferentes impactos de la discusión técnico-científica en la articulación entre el discurso jurídico y otros discursos, como del Derecho y de la Psicología.

Palabras clave: Paternidad, Aspectos políticos, Derecho, Discurso jurídico, Psicología política.


 

 

O presente artigo é resultado de um trabalho de investigação desenvolvido ao longo de quatro anos que culminou em uma tese de doutoramento1 em Psicologia, que buscou analisar as enunciações sobre paternidade e as posições que os sujeitos da paternidade ocupam no discurso jurídico, especificamente, na jurisprudência brasileira. Apontamos aqui uma das possibilidades de análise que a Psicologia Social pode promover tendo o Direito e seus dispositivos como fonte de pesquisa ou como objeto de análise. É neste campo de investigações possíveis que o presente trabalho se insere, tendo como objetivo discutir os aspectos políticos da normalização da paternidade pelo discurso jurídico brasileiro.

Busca-se estabelecer uma reflexão sobre as diferentes dimensões políticas implicadas nas relações familiares, no que se refere às experiências da paternidade normalizadas pela jurisprudência brasileira em suas interfaces com a esfera jurídica. Essa discussão apresenta tanto uma reflexão política, quanto uma análise científica. Pois, contempla a ampliação do debate sobre a formação de famílias e das implicações políticas das mudanças no campo jurídico brasileiro para a vida cotidiana, ao mesmo tempo em que analisa os desdobramentos destas mudanças nos processos de constituição dos sujeitos, por meio da investigação científica em Psicologia.

 

A Jurisprudência como dispositivo de poder e seus aspectos políticos

A jurisprudência corresponde às decisões dos tribunais numa mesma direção interpretativa. Quando uma questão é decidida reiteradamente da mesma forma, surge a jurisprudência. Considerando o valor atribuído ao direito em nossa sociedade e o poder que este saber exerce na vida das pessoas, aponta-se a jurisprudência como importante campo de informações e de análise para a Psicologia Social. O caráter político da jurisprudência torna-se evidente à medida que analisamos o modo como o discurso jurídico transforma processos sociais em processos judiciários e como, por meio de uma série de estratégias de poder, define funções a serem exercidas e posições a serem ocupadas pelos sujeitos no âmbito das relações sociais.

As práticas judiciárias, como tantas outras, são constituídas por práticas de exercício do poder que se sustentam a partir de determinados discursos que lhes conferem estatuto de verdade. Esses regimes de poder constituem as instituições, atravessam a vida cotidiana e as diversas esferas sociais. Trata-se de um poder produtivo, que constrói sujeitos, normalizando suas condutas e condicionando suas práticas aos regimes de verdade estabelecidos por dispositivos de poder e de saber. A jurisprudência, como fonte do Direito, é um dispositivo que configura seus vetores de força nas redes discursivas da norma jurídica. O código legal que a jurisprudência enuncia define as condutas, identifica o sujeito; o código atravessa a subjetividade. A pessoa é reconhecida pelo código legal que define um lugar, uma posição a ser ocupada nos diferentes níveis de reconhecimento no contexto jurídico. A jurisprudência, como discurso jurídico, nesta perspectiva, veicula e produz poder, não podendo ser entendido de forma linear, mas como multiplicidade que se processa em estratégias diversas, em múltiplas práticas discursivas.

Tais práticas discursivas constituem-se a partir dos saberes disponíveis em um determinado tempo, em uma determinada sociedade. "Cada época diz tudo o que pode dizer em função de suas condições de enunciado. (...) Cada época tem a sua maneira de congregar a linguagem conforme os seus corpus." (Deleuze, 1998:80-83) O conjunto de técnicas de exercício de poder criadas pelos saberes consolidados em enunciados científicos, filosófi- cos, religiosos, etc., contempla aquilo que é possível se dizer em certo contexto, remetem à possibilidade do aparecimento de certo enunciado, ou seja, "às condições para que apareça um objeto de discurso, as condições históricas para que dele se possa "dizer alguma coisa" e para que dele várias pessoas possam dizer coisas diferentes. (...) Isso significa que não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época" (Foucault, 2004:50).

É assim que a jurisprudência brasileira, como articulado dispositivo de poder, encontra subsídios em diferentes saberes (dentre os quais está não somente o Direito, mas também a Psicologia, a Medicina e a Sociologia) para dizer "certas verdades" acerca da paternidade. Não apenas sobre a paternidade, mas sobre os mais diferentes fenômenos da vida social. Diz verdades acerca do casamento (vejamos os complexos debates no campo jurídico envolvendo a questão da "União Civil entre pessoas do mesmo sexo"); diz também sobre as questões patrimoniais (os inúmeros processos envolvendo o direito de herança e a transmissão do sobrenome); e ainda, sobre a dimensão dos corpos (como se percebe nas "verdades jurídicas" envolvendo as questões referentes à (des)criminalização do aborto). Considerando essas e outras questões sócio-político-jurídicas em pauta no atual contexto brasileiro, pode-se afirmar que a jurisprudência opera como um dispositivo, pois, um dispositivo é:

Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Foucault, 2006:295).

O dispositivo se impõe à sociedade e às pessoas, normalizando a vida do indivíduo e da coletividade, constituindo os sujeitos e regulando suas práticas sociais. Um dispositivo contempla: 1) uma rede de relacionamentos que se podem estabelecer entre diferentes elementos (discursos, instituições, leis, medidas, regulamentos, arquiteturas, etc.); 2) o estabelecimento do nexo que se pode existir entre tais elementos heterogêneos; 3) uma formação que em dado momento tem por função responder a uma urgência, tendo assim uma função de estratégia; 4) uma inter-relação original entre seus elementos heterogêneos e seus objetivos estratégicos; 5) uma funcionalidade, por meio da qual cada efeito produzido entra em ressonância com outros e exige um reajuste, uma reorganização em seus vetores de força e suas direções.

Mas o que é um dispositivo? Em primeiro lugar, é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear. É composto por linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras. Cada está quebrada e submetida a variações de direção (bifurcada, enforquilhada), submetida a derivações. Os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vetores ou tensores. Dessa maneira, as três grandes instâncias que Foucault distingue sucessivamente (Saber, Poder e Subjetividade) não possuem, de modo definitivo, contornos definitivos; são antes cadeias de variáveis relacionadas entre si. (Deleuze, 1990:156).

Em que medida a jurisprudência vincula-se e articula-se a essas estratégias heterogêneas de poder-saber e quais seus aspectos políticos na vida social é o que se apresenta como questão nesse debate. É preciso elucidar os contornos voláteis dessas tomadas de decisão jurídica sobre processos sociais que os convertem em processos jurídicos. É necessário analisar os vetores de força em exercício nesse dispositivo. Eis uma tarefa a qual a Psicologia Social é chamada a desempenhar.

A jurisprudência contempla decisões judiciais cujo descumprimento implica sanções punitivas respectivas à infração. Não é por acaso que se ouve comumente no âmbito cotidiano a afirmativa de que, no campo do Direito Civil, uma das infrações legais cujo desdobramento penal é a prisão é o não cumprimento das decisões referentes à responsabilidade legal dos genitores frente a seus/suas filhos/as. Por exemplo, um dos processos vinculados à investigação de paternidade que apareceu diversas vezes na pesquisa de acórdãos da jurisprudência, foi o da chamada "ação de alimentos"2. O não pagamento da pensão alimentícia fixada em sentença judicial pode levar à prisão do responsável inadimplente.

Outra problemática recorrente é a que contempla a utilização do exame de DNA como prova pericial em processos de investigação de paternidade (muitos deles cumulado com pedido de pensão alimentícia). Se, por um lado, nos processos que contemplam a investigação de paternidade o exame de DNA – como instrumento médico-legal de comprovação do vínculo genético – aparece como "certeza da verdade" para o operador do direito sustentar sua decisão, no caso das ações em que a tomada de decisão é sobre a pensão alimentícia exigida (e muitas vezes vinculada à investigação de paternidade, conforme a pesquisa à jurisprudência evidenciou), o operador não possui nenhum subsídio que lhe "garanta" um estatuto de verdade. A lei determina que a decisão sobre valores referentes aos alimentos sejam fixados "na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada"3, cabendo ao Juiz responsável pelo julgamento do caso, fixar o valor que parecer mais justo, após avaliar as provas produzidas durante o processo.

Este dispositivo consagra os dois critérios fundamentais utilizados para determinar o valor da pensão, quais sejam: necessidades do "reclamante" (aquele que promove a ação, também denominado de "alimentário" ou "alimentado", isto é, aquele que recebe ou pretende receber a pensão); as possibilidades do "reclamado" (aquele contra quem a ação é promovida, também denominado de "alimentante", ou seja, aquele que deve pagar a pensão). (...) Como se pode observar, os critérios estabelecidos pela lei, embora justos, não são precisos na medida em que, de um lado, as necessidades, entendidas amplamente para incorporar não apenas as prerrogativas biológicas, mas também as demais necessidades fundamentais, dependem de fatores culturais, geográficos e do próprio status sócio-econômico da família. De outro, as condições financeiras do reclamado são de difícil mensuração. (Conti, 2000:61)

Não é o objetivo aqui elucidar profundamente os diferentes temas contemplados na imersão ao campo jurídico, apenas apontar que tais linhas de decisões, apesar de serem diferentes, se relacionam e estão mutuamente imbricadas nos documentos pesquisados via jurisprudência. Entretanto, é pertinente elucidar aqui alguns conceitos no que tange ao campo: o que se concebe por jurisprudência, não é sinônimo de lei, tampouco de doutrina. Todas são chamadas fontes do direito, ou seja, os meios pelos quais se formam as regras jurídicas.

Há diferentes tipos de fontes do direito: as diretas ou imediatas, e as indiretas, ou mediatas. As primeiras correspondem à lei e ao costume, e se referem às fontes que, por si só, são suficientes para gerar a regra jurídica pela sua própria força. As segundas correspondem à jurisprudência e à doutrina, e referem-se àquelas que não têm a força de gerar a regra, mas podem encaminhar para sua futura elaboração.

A lei é a primeira fonte de que se lança mão para decidir uma questão submetida à apreciação do Poder Judiciário, trata-se de uma norma dotada de generalidade, à qual todos os membros da coletividade devem se submeter, em outras palavras "é uma regra geral, que, emanando de autoridade competente é imposta, coativamente, à obediência de todos" (Beviláqua, 1959, p. 70). Mas o direito não é compreendido apenas de leis escritas, existindo normas costumeiras, de conduta por parte das pessoas que, mesmo que não constem de preceitos votados por órgãos competentes, obrigam e regulam determinada situação que se repete. Estas são da ordem do costume.

Algumas normas há em nossa sociedade que, embora não escritas, são obrigatórias. Tais normas são ditadas pelos usos e costumes e não pode deixar de ser cumpridas, muito embora não estejam gravadas numa lei escrita. Aliás, mais cedo ou mais tarde determinados costumes acabam por ser cristalizados em uma lei, passando, pois, a integrar a legislação do país. Exemplo de norma costumeira que, não obstante não estar consagrada em lei escrita nem por isso deixa de ser obrigatório, é a chamada "fila", seja de ônibus, seja para ingresso em qualquer lugar. (Brancato, 1998:19-20)

A doutrina é o conjunto de investigações e reflexões teóricas expostas, analisadas e apontadas por operadores do direito no estudo das leis. É o conjunto de princípios expostos nos livros de Direito, em que se firmam teorias ou fazem-se interpretações sobre a ciência jurídica. E a jurisprudência (Prudência do Direito) corresponde às regras gerais proveniente das decisões dos tribunais numa mesma direção interpretativa. Quando uma questão é decidida reiteradamente da mesma forma, surge a jurisprudência (Reale, 1991).

Por meio da jurisprudência podem ocorrer mudanças no tratamento dos processos e na interpretação das leis nas tomadas de decisões judiciais, uma vez que o direito reconhecido pelo ordenamento jurídico pode ser alterado por meio de decisões reiteradamente tomadas do mesmo modo. Esse vetor de possibilidade de mudança, bem como o caráter de atualização (legal) das linhas de força que compõem a jurisprudência, como fonte indireta por meio da qual se formam as regras jurídicas, permitem sua análise como dispositivo e o entendimento de seus aspectos políticos.

Uma vez que a noção de dispositivo remete a tipos de formação (discursiva ou não) por meio da qual se regula a vida social, a jurisprudência pode ser tomada como um dispositivo que corresponde a estratégias de relações de força, que pautam tomadas de decisão no campo jurídico, com subsídios de outros campos de saber, em outras palavras, que sustentam e são sustentadas por diferentes tipos de saber.

Por outro lado, considerando que o poder produz o verdadeiro (Deleuze, 1998), a jurisprudência como dispositivo exprime relativamente ao poder o relacionamento de vetores de força (incitar, induzir, produzir um efeito útil) e, relativamente ao saber, ela produz verdade, na medida em que faz ver e faz falar. Eis a dimensão política da jurisprudência: ancorada em diferentes saberes, articula variadas estratégias de poder para dizer, enunciar, afirmar verdades. Vale lembrar que tal ancoragem se dá fundamentalmente em saberes legitimados cientificamente (por isso são chamadas as ciências e não o senso comum para legitimar as decisões jurídicas). Instaura-se uma retro-alimentação entre saberes científicos e regimes de verdades jurídicas. Isso faz lembrar a afirmativa de Figueiredo (1996), de que a busca de cientificidade esteve desde muito perto e há tempos vinculada e subordinada a certa política da certeza. Dispositivos normalizadores, reguladores, com capacidade para fabricar e gerir modos de pensar e modos de viver. Os que não se enquadram a essa política normativa são criticados, discriminados, punidos.

Neste sentido, as decisões perpetradas na esfera jurídica, da jurisprudência brasileira, reverberam na vida social e configuram diferentes e variados arranjos familiares, normalizam condutas e definem posições a serem ocupadas. Uma vez que a família e as relações estabelecidas no âmbito familiar não se encontram apartadas da ordem política da sociedade na qual se inserem. Como afirma Brito:

A família relaciona-se a ordem política da sociedade na qual está inserida, ou seja, a maneira como esta cultura se organiza para assegurar a reprodução da vida e o cuidado com as crianças será assimilada pela organização familiar. A existência de uma convenção social, ou jurídica, traduzida na nossa cultura pela legislação, terá primazia sobre o dado social, quando se observa que o exercício da paternidade deve ser referendado pelo Estado. Por esta ótica, ressalta-se o quanto os textos jurídicos podem ser relevantes ao instituir as representações paternas. Através destes apresenta-se o lugar e as funções que a sociedade considera convenientes aos genitores. Entendese que as dimensões sociais e privadas na referência à paternidade estão interligadas, sendo necessário que os encaminhamentos jurídicos dispostos pela sociedade sustentem a importância da dimensão de ser pai no âmbito privado. (Brito, 1999:32)

O discurso jurídico institui a atribuição de níveis valorativos à paternidade, classifica-a, nomeia-a, define seu lugar no arranjo familiar e sua importância na vida social. Mas não faz isso sozinho, conta com outros discursos e seus múltiplos dispositivos de poder. Há todo um campo associado que merece atenção. Assim, é importante avaliar o efeito de discursos reconhecidos como científicos sobre o conjunto de práticas e discursos que constitui a jurisprudência brasileira acerca da paternidade. O estudo da inserção e utilização da tecnologia de perícia genética por exame de DNA nas investigações de paternidade e do seu papel na jurisprudência brasileira é um exemplo pertinente dessas intersecções e dos desdobramentos políticos que reverbera na dinâmica social.

É freqüente encontrar nos acórdãos – disponibilizados integralmente nas bases de dados de jurisprudência dos Tribunais de Justiça brasileiros, como as dos Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, por exemplo – o uso dos testemunhos e da argumentação referente à legitimidade da perícia por exame DNA ou de sua abdicação, como provas. Ambas, testemunho e perícia genética, articulam-se como elementos de uma construção discursiva que estabelece princípios de controle e de exame de condutas pessoais.

O exame de DNA ocupa um lugar privilegiado no âmbito dos exercícios de poder por parte do discurso jurídico exatamente por tornar visível e atribuir um estatuto de verdade ao que era, até então, suposição. Os desdobramentos políticos do uso dessa tecnologia na esfera jurídica são inúmeros e complexos. A tese, defendida enfaticamente em alguns enunciados da jurisprudência, da eficácia do DNA tem conseguido, por exemplo, corroborar ou refutar os testemunhos acerca da índole da vida sexual de uma mulher envolvida como "pólo passivo", ou seja, quando não é ela a autora do processo, nas investigações de paternidade.

Acerca do viés sexista no âmbito dos processos de investigação de paternidade, que reafirma e legitima modelos culturais moralistas em relação às diferenças de gênero, um importante conjunto de investigações foi desenvolvido em Portugal pela socióloga Helena Machado (1999; 2004; 2005). Essa autora problematiza e elucida um fenômeno bastante complexo e constituído por (micro)relações de poder, o qual traz referências das abordagens feministas do Direito para denominar como "masculinidade do Direito". Ela analisa as diferentes modalidades de exercício de poder, de diferenciação e de denominação que reflete e evidencia o caráter "masculino" do Direito: Maleness of law. (Machado, 2005:134)

Entende que a prática jurídica de investigação de paternidade reflete especificamente certas modalidades de "exercício de ‘poder masculino’ sobre as mulheres" que se manifesta sob a forma de algumas imposições, especialmente as que se referem a uma "política de reprodução" (Machado, 2005:135). Imposições normativas que atravessam transações discursivas que operam tanto por meio da oralidade – no âmbito dos diálogos que se processam nas situações de julgamento nos tribunais – quanto pela escrita – nos documentos referentes aos processos por ela analisados.

(...) importa considerar o tipo de situações judiciais que provavelmente podem evidenciar com maior clareza a "masculinidade do direito", operando pela desqualificação/dominação ou supressão do feminino, parecendo quase evidente que serão os casos que envolvem a "sexualidade" (...) Acrescento a investigação judicial de paternidade ao rol de tipo de processos judiciais que reafirmam, de forma particularmente ostentadora a posição sexual e socialmente subordinada das mulheres. (Machado, 2005:134-135).

Não são apenas as mulheres que se encontram imbricadas nessas redes de poder. Uma variedade de sujeitos são posicionados e articulados ao longo dos jogos que configuram o discurso jurídico. Como afirmado anteriormente, trata-se de uma política normativa que (des)qualifica e classifica sujeitos (in)discriminadamente: quem pode ou não (e em que condições) se casar, adotar crianças, interromper voluntariamente a gravidez, herdar patrimônio. Efeitos de um poder produtivo.

A esfera judicial, de modo geral, e, especificamente, o campo de construções discursivas da jurisprudência brasileira acerca das paternidades, é um território no qual se configuram possibilidades de controle institucional sobre os corpos, as condutas e sobre a vida dos indivíduos por meio de estratégias de poder minuciosamente articuladas entre o discurso jurídico e outros.

O reconhecimento do exame de DNA como prova contundente sobre a paternidade ou, inversamente, sua abdicação como prova (des)necessária ao desfecho do processo, assim como as estratégias de uso de certos testemunhos para conferir legitimidade e veracidade ao argumento proferido pelo relator para tomar sua decisão, são procedimentos que aplicam uma funcionalidade, imprimem certo limite, ao domínio no qual certos enunciados podem ser aplicados e determinadas posições são ocupadas.

A ilegitimidade ou legitimidade concedidas pelo Estado a determinadas categorias ou pessoas vão incluindo ou excluindo, ou seja, vão autorizando ou concedendo um lugar social ao sujeito de direito. Para ser um sujeito de plenos direitos não basta apenas que tenha capacidade jurídica no sentido clássico dos ordenamentos jurídicos. É necessário que além do requisito da capacidade de querer e de se determinar em relação aos outros que ele seja também reconhecido como sujeito, incluído em uma moralidade pública legítima e reconhecida pelo Estado. Esta legitimação, além dos ingredientes ideológicos, cujo substrato econômico é na maioria das vezes também determinante, está vinculada a uma moral sexual civilizatória. Ela é provocadora de injustiça, e de exclusão social, na medida em que ela exige de todos uma idêntica conduta moral e sexual, que só pode ser sanada pela desobediência a essas injunções morais. Foi com base nessa moral civilizatória que o Direito de Família esteve assentado até recentemente no tripé sexo-casamentoreprodução. (Pereira, 2004:43).

A normalização das paternidades pelo poder – que ao mesmo tempo em que legitima a não obrigatoriedade do exame de DNA, paradoxalmente, reafirma enfaticamente seu estatuto de verdade científica – funciona por meio de uma técnica de produção de saber, pelo processo de produção de verdade que opera por meio do testemunho e da prova. A verdade sobre a paternidade, sobre ser pai em nossa sociedade, sobre como deve ser exercida a paternidade e quem deve ocupar essa posição, encontra-se vinculada às estratégias de poder (re)produzidas e veiculadas no discurso jurídico. As nossas verdades sobre o que é ser pai são constituídas por esse dispositivo de poder, que defendo nesta tese ser um dispositivo de produção de paternidades, por meio do qual se produz a norma e se normaliza os sujeitos. O discurso jurídico opera de modo a colocar as condutas e os sujeitos sob sua sanção.

Nesta perspectiva, não apenas a produção de verdade sobre a paternidade faz parte dos dispositivos de poder que investem sobre as condutas e os sujeitos, mas é o próprio discurso jurídico como dispositivo que cria o objeto ao qual se refere e cuja verdade pretende descobrir nos processos de investigação de paternidade. As paternidades e a verdade sobre elas não foram modelados, condicionados pelo dispositivo de poder/saber, foram efetivamente produzidas por ele. A produção de verdade sobre a paternidade não liberta os sujeitos envolvidos em um processo judicial de investigação de paternidade, pelo contrário, reforça as sujeições em que se encontram envolvidos. Neste sentido, é pertinente situar como a noção de paternidade transita entre os campos da Psicologia e do Direito. A revisão de literatura sobre a paternidade nos estudos da Psicologia aponta que a forma como homens e mulheres vivenciam as relações sociais no seio da família se dá de maneira diferente a partir de diferentes referências sociais, econômicas e culturais (Thompson & Walker, 1989; Féres-Carneiro, 1987) e que, além disso, a paternidade insere-se numa dinâmica normativa de práticas sociais institucionalizas que transcendem os limites do contexto familiar, estendendo-se para o campo da religião, do direito, da política e da cultura (Coltrane, 2004).

A partir destas perspectivas, investigações das ciências humanas e sociais têm empregado o conceito de paternidade para explicar como as relações sociais familiares e de parentesco ligam uma criança a um homem em particular com o intuito de inserir esta criança na sociedade e atribuir-lhe um lugar na estrutura social (Coltrane & Collins, 2001). Já no campo do Direito, as diferentes abordagens divergem entre proposições que se referem à paternidade biológica e à paternidade sócio-afetiva. Enquanto algumas defendem a perspectiva de que não se pode "fundamentar a investigação da paternidade biológica para contrariar a paternidade sócio-afetiva já existente, no princípio da dignidade da pessoa humana, pois este é uma construção cultural e não um dado da natureza" (Lôbo, 2006:17), outras mencionam a prevalência, no ordenamento jurídico brasileiro da determinação da paternidade com base na origem genética (Gimenes, 2006).

Neste jogo no qual o discurso jurídico se articula por meio de outros e sustenta outros mais, os acontecimentos discursivos "rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções possíveis" (Foucault, 2003, p. 58). O discurso jurídico configura-se como conjunto de regras e práticas que constroem uma versão da realidade na medida em que produz concepções sobre conceitos e objetos, definindo o que se pode dizer sobre eles num certo momento histórico (Foucault, 2004).

A paternidade constrói-se no interior de discursos que estabelecem as regras que possibilitam articular, num determinado período histórico e numa determinada cultura, certo conhecimento sobre ela e sobre seus sujeitos. Assim, o discurso jurídico, articulado a outros discursos, define e condiciona práticas institucionais estabelecendo verdades sobre como se exerce e o que é a paternidade, criando formas de se lidar com aqueles sujeitos; e definindo, sobretudo, posições de autoridade para aqueles que articulam o discurso jurídico sobre a paternidade, a saber, os operadores do direito.

O debate acerca da inserção do exame de DNA nos processos de investigação de paternidade remete a um campo mais amplo de implicações políticas na teia social: aquelas provenientes dos usos das diferentes tecnologias médicas e de sua inserção e utilidade no âmbito jurídico. As tecnologias reprodutivas no que se refere à definição (não apenas social, mas também judicial) de pais e de mães, parecem não desvincular procriação das relações de gênero. A autorização jurídica ou médica para o uso dessas tecnologias parece seguir padrões tradicionais de gênero, uma vez que, por exemplo, a possibilidade de viabilizar-se por meio dessas tecnologias a procriação sem necessariamente haver um progenitor, ou sem mesmo implicar qualquer prática sexual, ou ainda, seu uso em um contexto conjugal que foge aos padrões heteronormativos, parece permear o imaginário comum, sobretudo, o de médicos e operadores do direito, como uma ameaça à ordem social. O que parece ser um dos grandes paradoxos da atualidade: ao mesmo tempo em que as novas tecnologias médicas permitem dissociar sexualidade de reprodução, "subordinam a sexualidade, os ‘direitos’ e desejos individuais à nova ordem médica" (Knauth, 2003:895).

Neste sentido, alguns autores (Novaes & Salem, 1995; Strathern, 1995) há algum tempo já anunciavam que, apesar de suas múltiplas possibilidades no âmbito da saúde reprodutiva, as novas tecnologias de reprodução assistida continuam a serviço de políticas sociais tradicionais. Essas questões incidem também nas reflexões sobre as dinâmicas de parentesco que configuram um campo descrito pela antropóloga Claudia Fonseca (2002) como "uma arena de discussão mais abrangente e flexível" no qual se questiona o próprio sentido das tipologias tradicionalmente atribuídas à dinâmica familiar. Para essa autora, o modelo nuclear permeia o imaginário social de modo bem definido, além de se manifestar empiricamente em determinadas situações. Entretanto, essa pesquisadora afirma que há rupturas na configuração desse modelo, o que possibilita "pensar a normalidade de elementos diversos" dentre os quais ela destaca: a configuração de arranjos familiares formados por pais homossexuais; a inseminação artificial ou fertilização in-vitro; as famílias recompostas; os nascimentos virgens; as avós-criadeiras e as mães de criação. O debate acerca da inter-relação que se estabelece na sociedade contemporânea entre as tecnologias biomédicas, as diferentes configurações familiares por elas possibilitadas e a (i)legitimidade de direitos encontra na esfera da justiça, brasileira e estrangeira, um amplo e tenso espaço de propagação.

Em sua discussão sobre os usos e representações da ciência e das novas tecnologias nos tribunais, seus aspectos político-sociais e sobre as (re)configurações da cidadania nesse contexto, Machado (2004) contextualiza o grau de penetração do progresso científico e tecnológico nos tribunais portugueses, problematizando as modalidades de encontro entre o que a autora denomina "cultura da ciência e da tecnologia" e "cultura da justiça". As conclusões de suas reflexões apontam, entre outras coisas, que existem diferenças de concepções e de credibilidade por parte dos juristas em relação às diversas tecnologias. Elementos importantes para a análise do que se processa também no contexto jurídico brasileiro, uma vez que:

Se os perfis de ADN são cada vez mais encarados com interesse pelos operadores jurídicos, é também crescente a aposta do sector da justiça nas novas tecnologias de informação e de comunicação. Embora o âmbito de aplicação dessas tecnologias seja obviamente distinto, as ideologias que promovem tanto a disseminação do uso de provas forenses como do recurso a ferramentas informáticas convergem na ênfase que concedem nas oportunidades em aberto de aumentar a celeridade, qualidade e eficácia da administração da justiça e, simultaneamente – e em particular das novas tecnologias de informação e de comunicação – a possibilidade de criar uma maior proximidade do sistema jurídico aos cidadãos. Enquanto a chamada "prova científica" tem vindo a ser entendida como uma ferramenta que possibilita uma justiça mais rigorosa e exacta, mas cujo êxito parece depender, sobretudo, de agentes parcialmente exteriores ao sistema jurídico (os cientistas forenses, ainda que trabalhando em laboratórios controlados e supervisionados pelo Ministério da Justiça); já a aplicação das potencialidades da ciência informática aos tribunais tem vindo a ser encarada como um problema "intrínseco" ao sistema, estritamente dependente das capacidades e competências dos actores humanos que os integram. (Machado, 2004:2).

Nesse contexto de inserções e intersecções entre a esfera jurídica e a científica, a jurisprudência brasileira encontra nas ciências, e nos discursos da Medicina, da Biologia, da Genética, dentre outras, o baluarte para justificar sua apropriação e seu uso das técnicas exteriores ao sistema jurídico, mas que, em última instância, servem aos propósitos desse sistema. Articulações entre diferentes esferas cujos desdobramentos políticos fazem-se sentir na vida cotidiana dos indivíduos. Aspectos de uma política da certeza, de uma política normativa, de uma política de verdades: jurídica, científica, ambas.

A jurisprudência brasileira sustenta determinados "regimes de verdade" por meio dos quais concebe diferentes possibilidades enunciativas da paternidade: ora representando-a como um fenômeno biológico com desdobramentos sociais e econômicos; ora como fenômeno social construído a partir de vínculos de convivência ou de afinidade.

A discussão sobre os regimes de verdade, na perspectiva de Michel Foucault (2006a), remete impreterivelmente à relação entre saber e poder que o autor problematiza ao questionar o estatuto da verdade. Ele analisa como o poder é produzido por relações particulares com saberes, saberes estes que legitimam as práticas que os sujeitos exercem sobre si mesmos e sobre os outros nas/pelas relações sociais. Estes saberes se instituem como verdades num processo que veicula e produz poder. As verdades instituídas, no contexto das relações sociais, estão vinculadas às práticas cotidianas marcadas e constituídas por relações de poder particulares. Discutir jurisprudência brasileira sustenta determinadas verdades sobre a paternidade implica debater sobre certas práticas, operações e/ou exercícios de poder/ saber socialmente (des)legitimados (Foucault, 2006b).

O sujeito das paternidades é assim normalizado pelo discurso jurídico à medida que se configuram as "posições de sujeito" possíveis e próprias dos discursos que o articula. Posições no interior de certos discursos que, como afirma Michel Foucault (2004), produzem verdades e elaboram modos de sujeição, pelas quais o indivíduo é chamado a se reconhecer e a se posicionar. Por exemplo, ao articularem um discurso específico do século XX sobre "como ser pai" ou sobre "o que é ser pai", os discursos psicológicos, médicos e sociológicos e do Direito de Família identificam posições do sujeito que devem ser ocupadas no interior desses discursos (que se articulam entre si). Os indivíduos que passam a ser reconhecidos e se reconhecem como pais a partir desses campos discursivos sujeitam-se às suas regras, constituindo-se eles mesmos como efeitos desses discursos. É assim que alguém ocupa a posição de pai e passa a assumir a responsabilidade pela educação de seus filhos, pela sua subsistência até a maior idade, pela transmissão de seu patrimônio por meio do sobrenome, e, como desdobramento, assume outros encargos sociais com outras instituições para além da família e com outras pessoas além dos filhos.

A jurisprudência possui um conjunto complexo de elementos singulares matizadas por diferentes vetores de força e variadas estratégias de saber/poder que normalizam condutas que reproduzem seus aspectos políticos nas experiências individuais e coletivas. Aceita-se, por exemplo, no âmbito jurídico a concepção de que a ação de investigação de paternidade por meio de reconhecimento da origem genética não tem a faculdade de criar um vínculo afetivo entre progenitor e prole, mas permite a comprovação de uma origem biológica a fim de gerar desdobramentos de ordem patrimonial, sucessória e moral (Leite, 2000). Em contrapartida, diferentes saberes – dentre eles a Psicologia – concebem que a paternidade implica mais do que prover alimentos ou a partilha de bens hereditários, implica, sobretudo, cria, educar e participar afetivamente da vida dos filhos É nesta perspectiva que o Direito contempla uma distinção das funções e posições ocupadas pelos sujeitos no cerne dessa problemática.

Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora, segundo o princípio constitucional da isonomia entre sexos, mas que não envolvam direitos e deveres próprios de paternidade. (Lôbo, 2000:72).

O conceito de paternidade no ordenamento jurídico brasileiro atravessa outros três conceitos: família, relações de parentesco e filiação. Incidindo também sob a ótica dos chamados direitos de personalidade4. Mais um aspecto político importante das enunciações da paternidade pela jurisprudência: suas reverberações concretas nas práticas sociais e, sobretudo, nas políticas públicas e na legislação, que envolvem questões familiares, relações de parentesco e problemáticas entre pais e filhos.

É imprescindível atentar para a produção histórica da verdade acerca da paternidade, o que exige elucidar os jogos de regras, que tornam possível em determinada época afirmar certas verdades sobre a paternidade e, concomitantemente, revelar como tais jogos atuam de modo a legitimar estratégias e táticas de poder presentes nas diferentes práticas sociais e constitutivas de processos de subjetivação.

Podemos chamar "estratégias de poder" ao conjunto dos meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Podemos também falar de estratégia própria às relações de poder na medida em que estas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros. Podemos então decifrar em termos de "estratégias" os mecanismos utilizados nas relações de poder. (Foucault, 1995:248).

A paternidade, como individualidade que conserva sua essência nos diferentes contextos, não existe. Ela é objetivada por meios de estratégias de poder complexamente articuladas aos saberes que lhe dão condições de existência. Trata-se aqui de considerar a constituição histórica das articulações saber/poder que fazem a paternidade surgir, mudar ou mesmo se extinguir como objeto. Por outro lado, é também nesse jogo que alguém, numa prática histórica específica, torna-se sujeito, ganha estatuto de pai, ocupa determinada posição e desempenha uma função.

Os diferentes impactos das decisões dos tribunais numa mesma direção interpretativa têm implicações políticas concretas nas vidas das pessoas, uma vez que o discurso jurídico é atravessado e constituído por outros discursos e outras práticas. Como afirma Michel Foucault (2006:251) "há juízes da normalidade por toda a aparte. Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do assistente-social-juiz; todos fazem reinar a universalidade do normativo". As práticas da norma constituem uma maneira de produzir medida comum, tornar comparável e individualizar. Amparada na normatividade é que a jurisprudência pode individualizar e comparar indivíduos, atribuindo-lhes posições cambiantes, mais ou menos universais: paternidade biológica, pai registral, filho biológico, filiação sócio-afetiva, etc. O regime normativo dos enunciados da paternidade rege o aparecimento do sujeito.

Essa articulação do Discurso jurídico com outros discursos e outras práticas se dá por meio de diferentes redes institucionais de apoio que se desenvolveram em torno da instituição judiciária a fim de lhe permitir assumir a função de controle da conduta dos indivíduos, "uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência" (Foucault, 1996, p. 86). Toda essa rede que exerce um poder que não é judiciário desempenha uma das funções que a justiça tomou para si, a de corrigir condutas, prever comportamentos, (des)legitimar posturas e atitudes pessoais dos indivíduos perante a sociedade.

Quando uma questão é decidida reiteradamente da mesma forma, surge a jurisprudência, e com ela se instaura um conjunto de estratégias políticas que podem ser utilizadas das mais variadas formas, para os mais diferentes fins. Neste sentido, destacase um imperativo ético que acende as lanternas da cidadania, nas mãos dos cientistas sociais: deve-se atentar para que os aspectos políticos, característicos dessas políticas da certeza, políticas normativas, políticas de verdades não passem desapercebidos, nem sejam considerados ingenuamente como sinais de um novo tempo de mais autonomia e de justiça. É preciso compreender tais aspectos no contexto em que se inserem e na trama social e discursiva que os criaram. A Psicologia Social é chamada a analisar em que medida esses diferentes aspectos políticos ampliam o exercício da cidadania e/ou em que grau o limita; se promovem a emancipação individual e a ação coletiva ou se, ao contrário, comprometem-na à sujeição institucional. O caminho da investigação existe e as lanternas estão disponíveis para quem se propõe a fazê-lo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Juliana Perucchi
E-mail: jperucchi@hotmail.com

Maria Juracy Filgueiras Toneli
E-mail: juracy@cfh.ufsc.br

Recebido em: 12/02/2008
Aceito em: 06/04/2008

 

 

* Doutoranda do Programa de Pós-graduação em psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Curso de Psicologia da Associação Catarinense de Ensino - Brasil.
** Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil.
1 "Mater semper certa est, pater nunquan - O discurso jurídico como dispositivo de constituição de paternidades". (2008) Tese Doutorado. Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Apoio: CAPES.
2 O direito aos alimentos possui uma concepção ampla no ordenamento jurídico nacional. São considerados Alimentos as prestações devidas para subsistir, manter a existência, realizar o direito à vida, tanto em seu aspecto físico, quanto intelectual e moral (Cahali, 2003).
3 Art. 400 do Novo Código Civil.
4 Os direitos da personalidade se referem ao direito à identidade pessoal, à intimidade e à integridade física e psíquica dos indivíduos. Foram codificados em capítulo próprio no Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406 - Livro I – Das pessoas, Capítulo II – Dos Direitos da Personalidade, artigos 11 a 21). Também se encontra referências em diversos dispositivos da Constituição Federal (art. 1º, III, V; 3º, I, IV; 5º, caput, I, X, XXVII, XXVIII, e 226 a 230, CRFB) e em documentos internacionais, como a Declaração Universal das Nações Unidas de 1948.

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