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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.10 no.20 São Paulo dez. 2010
DOSSIÊ
A educação como mediação na teoria histórico-cultural: compromissos ético e político no processo de emancipação humana
Education as mediation in cultural-historical theory: ethical and political commitment in the process of human emancipation
La educación como mediación en la teoría cultural-histórica: compromiso ético y político en el proceso de la emancipación humana
Maria Eliza Mattosinho Bernardes*
Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP – Brasil
Apresentação
Entender a educação como mediação no processo de emancipação humana pressupõe a compreensão de que o homem se constitui, dialeticamente, a partir de atividades humanas que se objetivam pelo processo de comunicação nas relações interpessoais, entre sujeitos com diferentes níveis de domínio da cultura, entendida como produção histórica elaborada pelo conjunto dos homens, e que tem como finalidade a promoção do humano no homem.
A educação assume, dentro dos pressupostos teórico-metodológicos que organizam este dossiê, a condição necessária, porém não suficiente, de ser mediadora no processo de emancipação humana uma vez que tem a função particular de mediar a produção cultural (o conhecimento elaborado historicamente) na relação entre a dimensão universal, própria do ser genérico, e a dimensão singular, própria do ser individual.
Os limites da educação expressam a contradição presente no processo de emancipação humana, decorrente da alienação instituída historicamente na sociedade pelo movimento de exploração do homem e, de forma especial, nas sociedades de classes. Tal processo ocorre pela não apropriação da produção humana pelos sujeitos que a produzem, pela fragmentação entre o significado social e o sentido pessoal da atividade mediada que não se objetiva a partir das possibilidades impostas pelas organizações política e econômica instituída na sociedade e pela não correspondência entre a ação realizada pelos sujeitos e a finalidade da atividade em si. Ou seja, no campo da educação tais aspectos relacionam-se ao fato de que o conhecimento produzido historicamente não é mediado nas escolas para que os sujeitos possam tornar-se herdeiros de uma cultura universal; o significado social da educação não corresponde ao sentido pessoal que a educação passa a ter pelos sujeitos quando a finalidade da própria educação escolar é negada pelas ações pedagógicas instituídas na agencia oficial instituída historicamente – a escola – em decorrência das políticas educacionais instituídas nas sociedades de classe.
As produções teórico-práticas, aqui apresentadas, sobre as possibilidades de a educação se constituir como atividade mediada fundamentam-se na necessidade de superação das condições instituídas hegemonicamente na sociedade classista e pautam-se na psicologia históricocultural tendo como referência principal a produção de Vygotsky, Luria e Leontiev, entre outros, e no materialismo histórico-dialético. Entendemos que para que os fins da educação sejam atingidos a cultura em geral, o conhecimento científico e não científicos, os valores sociais, os costumes e processos instituídos nas diferentes sociedades, necessita ser mediada nos processos educativos e apropriada pelos sujeitos ativos.
Neste aspecto, a educação também se particulariza, sendo instrumento formativo no meio familiar, nos diferentes grupos sociais e na escola que tem o dever ético e político de ser o espaço social (oficial e histórico) onde o conhecimento, elaborado historicamente pelas diferentes ciências, deva ser ensinado e apreendido pelos sujeitos.
Neste dossiê, a educação, em particular a educação escolar, é o objeto central de reflexão entre os artigos e a tese articulada entre os mesmos é que as condições instituídas na educação escolar precisam ser superadas para que se cumpra a finalidade da educação – a promoção do humano nos sujeitos individuais por meio da mediação do conhecimento elaborado historicamente.
No entanto, entendemos que a finalidade da educação não seja objetivada por meio de qualquer processo educativo. No contexto escolar, é necessário que a atividade pedagógica1, unidade dialética entre a atividade de ensino e a atividade de estudo (Bernardes, 2009)2, se objetive a partir da necessidade de criar condições éticas e políticas que possibilitem a igualdade entre os sujeitos para que os meios de produção material e não-material possam ser apropriados por todos.
Assim, os motivos da atividade pedagógica são definidos pela necessidade de humanização do homem, seja do sujeito que ensina, seja do sujeito que aprende, pois ambos ao apropriarem-se do conhecimento universal se autoproduzem, superam suas potencialidades físicas e psíquicas pelo movimento dialético de transformação da natureza interna e externa ao homem. Os objetivos da referida atividade devem corresponder ao seu fim, ou seja, os objetivos pedagógicos devem ter como centro a apropriação da produção humana elaborada historicamente visando o processo de humanização. Para isso, ensinar e aprender são ações e operações não elimináveis e sim consideradas necessárias na atividade pedagógica. Na teoria históricocultural tais ações e operações não podem ser organizadas de forma indiscriminada e, concordando com Vygotsky, consideramos que não é qualquer ensino que promove desenvolvimento.
Várias pesquisas vêm sendo desenvolvidas em estudos teórico-práticos no campo da psicologia escolar e do desenvolvimento, das metodologias de ensino e da formação de professores no Brasil. Os autores3 que compõem este dossiê representam grupos de estudo e pesquisa que desde as últimas décadas do século passado vem se dedicando ao movimento de melhor entender a realidade escolar, analisar criticamente as práticas pedagógicas e as políticas públicas na educação, mas principalmente vêm produzindo conhecimento que apresentam propostas de superação das condições alienantes e alienadas presentes na educação escolar brasileira.
Marilda Facci, pesquisadora dos grupos de pesquisa, Estudos Marxistas em Educação (UNESP) e Psicologia Histórico-Cultural e Educação (UEM), no texto A Escola é Para Poucos? A positividade da escola no desenvolvimento psicológico dos alunos em uma visão vygotskyana, aborda a questão do fracasso escolar a partir da reflexão sobre o fato de que os alunos que não estão conseguindo aprender têm demonstrado sofrimento em relação a isso. O objetivo do artigo é discutir sobre a necessidade de se compreender a importância da escola no desenvolvimento psicológico dos alunos, tomando como referência os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, que se fundamenta no marxismo. O texto é guiado pela história do Vitor e Daniele, que, muito cedo, compreendem que a escola é para poucos. A autora apresenta, em um primeiro momento, aspectos da questão metodológica na Escola de Vygotsky e, em seguida, pontos que demonstram a relação entre apropriação do conhecimento científico e o desenvolvimento das funções psicológicos superiores. Defende a ideia de que todos os alunos devem ter acesso ao conhecimento científico para se humanizarem.
Suely Amaral Mello, líder do grupo de pesquisa Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural (UNESP), no texto Ensinar e Aprender a Língua Escrita na Perspectiva Histórico-Cultural, reflete sobre o sentido que o sujeito atribui às apropriações que realiza a partir da educação escolar, condicionado pela relação que estabelece com o objeto em processo de apropriação. Entende que essa relação é mediada pelas experiências que o sujeito acumula ao longo de sua vida e implica concretamente na unidade afetivo-cognitivo. Sendo a escrita entendida pela autora como um instrumento cultural complexo, de cuja apropriação depende o acesso do sujeito a parcela importante da herança cultural da humanidade – essencial para a reprodução das qualidades humanas em cada ser humano –, sua apropriação é elemento essencial no processo ontogenético de humanização porque passam todos os seres humanos. A autora discute os riscos da apropriação da escrita quando esta acontece de forma alienada, ou seja, quando o sentido atribuído à escrita, pelo sujeito que dela se apropria, foge de sua função social. Apresenta no texto algumas possibilidades de realização do ensino e aprendizagem da língua escrita de modo a criar condições adequadas para sua efetiva apropriação.
Manoel Oriosvaldo de Moura, líder do GEPAPe – Grupo de estudo e Pesquisa sobre a Atividade Pedagógica (USP), e Vanessa Dias Moretti, pesquisadora do GEPAPe (USP), no texto A Formação Docente na Perspectiva Histórico-Cultural: em busca da superação da competência individual, ao assumirem a perspectiva histórico-cultural como referencial teórico para a formação docente, buscam explicitar as limitações do conceito de competência, assumido como nuclear pelas políticas públicas atuais no Brasil para a formação de professores, para a orientação de propostas de formação que sejam, de fato, constitutiva do homem em sua genericidade. Para isso, retomam as origens do conceito explicitando suas vinculações históricas e ideológicas, ligadas ao individualismo liberal. A superação do conceito é proposta pelos autores por meio dos conceitos de trabalho e atividade, tomados como referência teórica das pesquisas apresentadas ao final do texto e cujos resultados trazem implicações para a organização e elaboração de propostas de formação docente nas quais os professores apropriem-se dos objetos de seus trabalhos, num processo formativo do humano no homem, fornecendo-lhe meios para a sua libertação e não contribuindo para a sua alienação.
Como organizadora deste dossiê, pesquisadora que integra o GEPAPe (USP) e líder do grupo de estudo e pesquisa Educação, Sociedade e Políticas Públicas: aspectos da teoria histórico-cultural (USP), identifico ser o método materialista histórico dialético o elemento essencial na teoria histórico-cultural, e também presente na fundamentação teórica de todos os textos que compõem este dossiê. Assim, o texto escrito por mim, O Método de Investigação na Psicologia Histórico-Cultural e a Pesquisa sobre o Psiquismo Humano, abre a sequência de textos aqui anunciada com a finalidade de explicitar o diferencial desta concepção teórica na compreensão da realidade e na produção do conhecimento que indique caminhos para a superação das condições instituídas na educação escolar. O texto tem como objetivo explicitar os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa sobre a constituição e o desenvolvimento histórico do psiquismo humano segundo a psicologia histórico-cultural e o método materialista histórico-dialético. São apresentados os elementos essenciais sobre a constituição e do desenvolvimento histórico do psiquismo humano, e são explicitadas as bases metodológicas implícitas no método de investigação como mediação no processo de compreensão sobre a constituição da individualidade humana. Os resultados visam à superação da compreensão do ser individual e pressupõem a compreensão do ser universal, que não pode ser identificado apenas como produto da condição particular própria do processo de culturalização que medeia a condição humana, mas que ocorre a partir da apropriação da condição humana constituída histórico-culturalmente.
As produções aqui apresentadas são a manifestação da concepção ética e política, considerada por nós como necessária a partir do referencial teórico citado, sobre a organização de ações educacionais que possam criar possibilidades de superação das condições alienantes instituídas na sociedade contemporânea pela via de análise da realidade pela teoria histórico-cultural.
Espero que os textos apresentados possam ser instrumentos teóricos que ampliem as possibilidades de compreensão da realidade escolar brasileira e que possam subsidiar o movimento de análise e síntese da atividade pedagógica na escola e do desenvolvimento humano como produto desejável e necessário a partir dos processos educativos.
Boa leitura a todos...
* Organizadora do dossiê. Professora do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP – Brasil.
1 O conceito de atividade pedagógica pauta-se na Teoria da Atividade sistematizada por Leontiev e que se fundamenta no conceito de atividade humana próprio do marxismo, também presente na obra de Vygotsky como atividade humana em geral que considera os sujeitos ativos no processo de aprendizagem e desenvolvimento.
2 Bernardes, M. E. M. (2009). Ensino e Aprendizagem como unidade dialética na atividade pedagógica. Psicologia Escolar e Educacional. , v.13, p. 235-242. ISSN 1413-8557.
3 A identificação da atuação profissional de cada autor é realizada nos textos do dossiê.