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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.12 no.24 São Paulo ago. 2012

 

ARTIGOS

 

Sobre reXistências

 

About resistances

 

Acerca de las reXistências

 

 

Andréa Vieira Zanella*, I, II ; Déborah Levitan**; Gabriel Bueno de Almeida***; Janaína Rocha Furtado****, III

I Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
II Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Brasília, DF, Brasil
III Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As discussões sobre resistências têm sido frequentes em campos diferentes do conhecimento e a partir de variadas perspectivas. Este artigo pretende contribuir com este debate, problematizando algumas práticas sociais de jovens em contextos urbanos, mais especificamente as que se caracterizam por sua dimensão inventiva. Para promover o debate são apresentados três fragmentos de dissertações que tiveram como foco processos de criação engendrados por jovens em contextos e condições diversas. As condições contemporâneas nos provocam a olhar para estas práticas estético-artísticas efêmeras, momentâneas, anônimas, considerando-as como intervenções que proclamam novos modos de viver e agir nos espaços urbanos. Através dessas intervenções, ainda que não caracterizadas como resistências opositivas, os jovens resistem às formas de sujeição e submissão que lhes são atribuídas, ao esquecimento e à condição de margem a que são relegados. Eles lutam, criam, resistem e insistem. Enfim, eles re-existem, daí a assunção dessas práticas como reXistências.

Palavras-chave: Resistência, Arte, Política, Psicologia social, Jovens.


ABSTRACT

The discussions about resistance have been frequent in different fields of knowledge and from different perspectives. This article aims to contribute to this discussion, questioning some of the social practices of young people in urban contexts, specifically those that are characterized by their size inventive. To promote the debate three pieces of papers that have focused on creative processes engendered by young people in different contexts and conditions are presented. The contemporary conditions cause us to look at these aesthetic and artistic practices ephemeral, momentary, anonymous, considering them as interventions that claim to new ways of living and working in urban areas. Through these interventions, although not characterized as oppositional resistance, young people resist forms of bondage and submission assigned to them, to oblivion and the condition are relegated to the margins. They fight, create, resist and insist. Finally, they reexist, hence the assumption of such practices as reXistances.

Keywords: Resistance, Art, Politics, Social psychology, Young people.


RESUMEN

Son frecuentes las discusiones sobre resistencia en diferentes campos del conocimiento y desde diferentes perspectivas. Este trabajo contribuye a este debate, cuestionando algunas de las prácticas sociales de los jóvenes en contextos urbanos, especialmente aquellas que se caracterizan por su dimensión inventiva. Las discusiones se fundamentan en tres fragmentos de tesis que se han centrado en los procesos de creación engendrada por los jóvenes en diversos contextos y condiciones. Las condiciones actuales nos llevan a mirar estas prácticas estético-artísticas efímeras, momentáneas, anónimas, considerándolas como intervenciones que proclaman nuevas formas de vida y de trabajo en las zonas urbanas. A través de estas intervenciones, aunque no se caractericen por una resistencia de oposición al poder instituido, los jóvenes resisten al sometimiento y la sujeción, al olvido ya la condición del margen a que se ven relegados. Luchan, crean, resisten e insisten. E con eso re-existen, lo que nos permite afirmar estas prácticas como reXistências.

Palabras clave: Resistencia, Arte, Política, Psicología social, Jóvenes.


 

 

Introdução

a gente não quer só comida
a gente quer comida, diversão e arte.
a gente não quer só comida,
a gente quer saída para qualquer parte.
a gente não quer só comida,
a gente quer bebida, diversão, balé.
a gente não quer só comida,
a gente quer a vida como a vida quer.

(Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito)

 

A transformação das relações entre pessoas, dos modos de habitar e conviver vem sendo aceleradamente intensificada nas últimas décadas com a profusão das tecnologias da comunicação e informação (TIC), das mídias e seus recursos constantemente renovados. Também são reinventados, com as TIC, os modos de se fazer política, como destacam Garret (2006), Hara (2008), Juris e Pleyers (2009), Pleyers (2009).

É possível afirmar que se intensificam, com a velocidade que se afirma como marca desses recursos tecnológicos e da atualidade, modos transitórios e fugazes de estar com outros, de viver a/nas cidades. Isto porque as novas tecnologias não mais se apresentam como vetores de conteúdo, mas sim como contextos conectivos a instituir corpos outros, cybercorpos1. Corpos que transitam e se reinventam nos blogs, chats, nas cidades, corpos que se inscrevem, coreografam mapas alternativos, desenham rotas de fugas e encontros, cantam, pintam, roubam, transgridem, rendem-se, pulverizam-se. Corpos a deixar rastros no habitar da urbe, rastros devires, rastros de existências, rastros que resistem, persistem, insistem. Resistir? Resistir a que? Resistir para que? Como?

As discussões sobre resistência há tempos se apresentam em variados campos e com diferentes tonalidades (ver, por exemplo, Mizoguchi, Costa e Madeira, 2007; Rosa e Poli, 2009; Juris e Pleyers, 2009). Da resistência física dos corpos às resistências políticas analisadas por cientistas sociais, um amplo espectro de estudos contribui para a compreensão das tensões entre materiais, sujeitos, movimentos, vozes sociais e da dialogia2 que as conota. Este texto busca contribuir com esse debate problematizando as práticas sociais de alguns jovens que inscrevem suas marcas no corpo da cidade, inscrições que se produzem nos interstícios, em práticas não propriamente reconhecidas em sua dimensão subversiva/opositiva, mas que se caracterizam inexoravelmente pela condição inventiva. ReXistências, pois, é o modo como para nós essas práticas se configuram.

Para o debate reunimos três fragmentos de investigações realizadas por pesquisadores vinculados ao NUPRA/UFSC3. A leitura flutuante dos relatórios de pesquisas que investigaram diferentes aspectos da relação dos jovens com as cidades possibilitou a escolha desses fragmentos, os quais foram analisados em sua condição dialógica. Fragmentos-afetos recolhidos porque nos mobilizaram a com eles dialogar e produzir as discussões aqui apresentadas. Fragmentos de tempos e espaços diversos, entretecidos na trama polifônica da vivência urbana e que provocam a tessitura de tantas outras.

Graffitis nos muros, postes e paredes de uma cidade brasileira; músicas nos transportes coletivos de uma metrópole latino-americana; bonecos tecidos com restos em celas de uma cidade/lugar/clausura. Pedaços de corpos e imagens que inventam outras possibilidades de existência, criando e recriando modos de vida, formas de expressão, linguagens. O que inventam resiste? Os que inventam re-existem?

Lançamos essas perguntas, partindo do que nos é possível, na intertextualidade produzida entre esses fragmentos e as palavras de teóricos como Walter Benjamin, Michel Foucault, Giorgio Agamben, Michel Mafessoli, Mikhail Bakhtin, Lev S. Vygotski e outros autores, contra-palavrear.

Buscamos tensionar estes fragmentos de modo a compreendê-los em sua condição polifônica, exercício este que pode vir a ressignificar as práticas que esses fragmentos (re)apresentam e tantas outras práticas inventivas que jovens produzem nos contextos e que se configuram como resistências. Resistência constituída na produção da diferença, na demarcação de novos possíveis e, fundamentalmente, na afirmação da vida e do singular que se tece e entretece na relação com outros, no reXistir e na convivialidade que precisa igualmente ser reinventada.

 

Fragmento 1

 

 

Em Rua de Mão Única, Walter Benjamin (1995) declara que a forma tradicional de escrita está em vias de extinção, ou, no mínimo, em crescente desuso na era da informação, dos jornais, dos cartazes, do cinema. O poeta, em consonância com seu tempo, tem de sair das claustrofóbicas páginas dos livros e inserir sua poesia na vida das cidades, tem de acelerar o ritmo de seus sonetos à velocidade dos carros e ser a resistência estética ao empobrecimento das formas sensíveis. Ao proclamar que "a atuação literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor a sua influência em comunidades ativas que o pretensioso gesto universal do livro" (Benjamin, 1995:11), Benjamin anuncia a necessidade atual da constituição de um novo artista, que utilize uma linguagem contemporânea, que atinja as populações urbanas e que com elas dialogue.

O modelo econômico adotado pelos países ocidentais ou ocidentalizados culminou na epidemia estética da publicidade e configurou a linguagem comunicacional das cidades do século XXI. As cidades contemporâneas estão abarrotadas de letreiros luminosos, de muralhas de outdoors que ocultam outras facetas da cidade, propagandas fetichistas que se harmonizam com o fluxo dos transeuntes que vem e vão, jamais permanecendo.

No entanto, se a contemporaneidade nos sujeita a viver sob o que Benjamin (1995:28) chama de uma "nuvem de gafanhotos de escritura", o grafiteiro profana4 este dogma da sociedade de consumo e proclama a insurreição da arte frente à avalanche de poluição visual. Contrapondo-se à idéia estimulada pela publicidade do "consuma!", o artista urbano utiliza dos mesmos meios comunicacionais da publicidade – cores fortes, textos objetivos, nomes/marcas, frases de efeito – para outros fins, não objetivando um sucesso comercial, mas sim que as suas idéias e criações estéticas também façam parte da esfera pública: "Vamos mostrar aqui pra cidade a nossa cara. Mostrar que tem um monte de poluição visual aí, McDonalds, Bob's, por que a gente não pode fazer a nossa? Era o rito dos jovens implorando por cultura, arte, era pichação" (Lai, entrevista concedida a Furtado, 2007:67).

Ao profanar a lógica que sacraliza o objeto artístico e os meios usuais de comunicação nas cidades, os graffitis como este que aparece na fotografia 1 emergem restituindo ao domínio público o exercício da pintura que por muito tempo foi considerado atividade restrita ao fantasmático mundo dos artistas/gênios.

Essa concepção que explica a produção artística e também a científica ou tecnológica pela genialidade de seus artífices, embora ainda em voga, foi questionada por Vygotski (1990) nas primeiras décadas do século XX. Para este autor, "a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo... grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos" (Vygostki, 1990:15).

Grafiteiros, personagens anônimos na complexa trama da comunicação contemporânea, reinventam com seus traçados a estética da cidade e afirmam um lugar outro para a arte no cenário urbano. Profanam as fronteiras que limitam as produções artísticas visuais às salas dos museus e outros locais autorizados pelo sistema de artes e cujo acesso é delimitado pela condição de quem os visita, pelo segmento social ao qual pertencem.

Na rua é assim, eu vejo como se fosse uma galeria de arte a céu aberto. É uma arte que não priva as pessoas. Por exemplo, eu quero ir numa exposição de arte aqui, claro que o tiozinho lá da Tapera5, as pessoas menos favorecidas não vão nesses lugares, então o graffiti possibilita que as pessoas vejam a arte. É uma tatuagem na cidade. Vejam a arte de graça, que ta ali. (Lai, em Furtado, 2007:72).

Um encontro, sujeito e cenário, dois personagens reificados pela insignificância a que são relegadas as suas existências. Do abandono de um – o "tiozinho da Tapera" e tantos outros, de diferentes recônditos e contextos – e da potência criativa do outro – o grafiteiro e tantos outros artistas que inscrevem suas artes na cidade – se objetiva a arte na paisagem urbana, arte que resiste e reinventa existências. ReXistências. Grafiteiro anti-herói por opção, poeta dos muros que inscreve nas veias urbanas uma estética outra.

 

Fragmento 2

 

 

Alguns te ignoram, pedem para não fazermos muito barulho e, como somos moleques, recém começamos com a música, criticam, mas há outros que pedem para continuarmos, para irmos em frente e assim é bacana tocar música na rua, é legal, assim podemos vivê-la, mas outros não a vivem (Pascual, 18 anos, em Velarde Castillo, 2008:139).

Na cinzenta cidade de Lima/Peru, onde o céu branco encontra o mar, jovens se cruzam, se entrecruzam e (re)produzem suas existências no caos urbano que caracteriza essa cidade. Fazem música em Lima, em suas ruas, no transporte coletivo, corpos-passagens a compor melodias na metrópole latino-americana. A cidade torna-se palco onde se reinventam, vivem música, vivem Lima, na música, em Lima. Locais essencialmente entendidos como de passagem transformam-se em paragens para quem ali mora e para o transeunte que ali também é capturado pelos sons ritmados.

Nesse fazer, os jovens (em)cantam em diversos cantos da cidade, e nos sons e silêncios produzidos enunciam os ilimitados cantos que da cidade se esquece assim como as existências que ali são esquecidas. Ao flanarem pela cidade na condição de músicos os jovens compõem arranjos, interpretam canções e, no intenso diálogo com variados sons e ruídos, criam novos possíveis para si e para suas relações na/com a cidade.

A melodia fugaz e efêmera da cidade torna-se matéria-prima para a construção de melodias outras, nas quais se fazem músicos intérpretes, intérpretes da vida que é reinventada incessantemente com seus acordes, encadeamentos rítmicos e sonoros6. A música lhes dá o que comer e justifica qualquer rota a escolher: itinerários da curta viagem, terminais de parada, linhas de ônibus. As pessoas ora escutam, ora se desinteressam, contribuem ou seguem sem lhes perceber, como é possível observar na fotografia 2. No jogo das visibilidades e invisibilidades, a música, acolhida ou não pelos passageiros, dá sentido ao tenso cotidiano desses jovens. Ali "ao menos tratamos de estar flutuando e não afundarmos, ao menos nos mantemos flutuando" (Luiz, 20 anos, em Castillo, 2008:163).

A fotografia e as falas apresentadas na pesquisa desenvolvida por Percy Francisco Velarde Castillo (2008), respondem, de certa forma, à questão que o orientou em seu trabalho de campo: as relações de jovens em situação de rua com a cidade mediadas pelo seu fazer musical, fazer este objetivado em ônibus responsáveis pelo transporte público na cidade de Lima/Peru e que transforma os passageiros em platéia.

A imagem objetivada na fotografia 2 e as falas dos jovens músicos nos apresentam tensões várias e provocam deslocamentos nos modos de ver e se posicionar frente às suas experiências com a fome, com os restos de comida recolhidos do lixo, com o dormir ao relento cobertos por papelão. Vidas de certo modo abandonadas e cuja presença no caos da cidade, nos ônibus lotados, causam mal-estar por justamente explicitar uma situação social para a qual se costuma cegar. E quais vidas não são esquecidas? Qual cidade não as acolhe?

Ao entoar suas músicas no transporte público urbano esses jovens afirmam sua existência, reXistem, cantam a cidade que os acolhe e a cidade que os esquece. Entoam as tensões características da vida nas cidades, onde podemos fazer-nos olhos dos outros e de nós mesmos olhando, ainda que de passagem, o concreto urbano e as fissuras enformadas seja em acordes, cores, presenças, que interrompem a pressuposta condição homofônica da urbe e a revelam como polifonia em processo constante de reinvenção.

 

Fragmento 3

 

 

Restos e restos. Restos colhidos, restos produzidos, sobras que se fizerem excesso para se juntarem a outras, de variadas texturas. Restos/sobras retorcidos, rasgados, amarrados, condensados. Forma enformada com restos que foram vistos como demais para o lugar em que estavam e, uma vez amalgamados e justamente amarrados, configuraram um amontoado silencioso que faz falar. Boneco sem boca, com olhos mal traçados, e cuja presença fala por aquele que amordaçado o criou.

Essa imagem de um boneco sem boca que a fotografia 3 apresenta, produzido com restos de papel higiênico, restos de linhas e pedaços de lã arrancados de mantas concedidas para aquecer corpos, é objetivação da força de quem não se deixa calar, das vozes que falam e gritam apesar das condições adversas que insistentemente as silenciam. Boneco mudo, que fala pela justa presença a se opor ao esquecimento que supostamente as instituições totais garantiriam. Boneco "infame" que dá visibilidade à existência-relâmpago de quem o criou, algum "jovem infame"7 invisibilizado entre as paredes da clausura que o encerra.

Quais as condições de possibilidades para a criação desse boneco infame, é possível perguntar. Afinal, a intencionalidade de quem cria é arquitetada pelas condições para o processo de criação, sejam condições do próprio artista – seus conhecimentos, interesses, motivações, afetos, vontade -, sejam condições do contexto e dos materiais de que dispõe para criar. Isso porque, com base nas contribuições de Vygotski (1990) é possível compreender que

[...] que quem cria o faz a partir de um complexo processo em que aspectos da própria realidade são descolados dentre uma infinidade de possíveis, e combinados de múltiplas maneiras. O inusitado está nas infindáveis possibilidades de decomposição, de recortes de fragmentos daqui e dali que são recompostos em novas combinações, em produções inovadoras, decorrentes tanto do que intencionalmente se produz quanto dos acasos, dos encontros inesperados que surpreendem com o que emerge (Zanella & Sais, 2008:685).

Pouco sabemos das condições primeiras que possibilitaram a criação do boneco infame que se vê na fotografia 3, posto que sua autoria é desconhecida, mas as informações sobre as condições segundas, do contexto e materiais, possibilitam entender a outra ponta dessa trama.

O boneco infame foi recolhido do lixo, local de destino do que era produzido pelos jovens em momentos de extrema tensão institucional em que, de acordo com os responsáveis pelas revistas nos alojamentos/celas, eram penalizados por não se submeterem às normas disciplinares:

Papéis, canetas, alimentos, livros (exceto a Bíblia), roupas ou sapatos que não os uniformes e chinelos, acessórios, materiais de higiene, limpeza e demais objetos eram proibidos pelas normas da instituição, pois se constituíam como objetos 'perigosos' ou fora das normas da unidade. Estes objetos eram considerados 'perigosos' por diferentes motivos. Alguns objetos como a caneta, por exemplo, era proibida por poder ser usada para construir uma arma branca (chamadas de 'estoques' ou 'zincos'). Já os materiais de limpeza ou o líquido da fermentação de restos de alimentos (chamado de 'choca') poderiam ser usados como entorpecentes. O argumento sobre a proibição de papeis ou livros é de que poderiam ser usados para o consumo de drogas (papel pode ser usado para fumar). Já a justificativa utilizada em relação à proibição de roupas ou sapatos é de que acabavam motivando brigas entre os internos (Canetti, 2010:25).

Nesse cenário em que os jovens tinham acesso restrito a qualquer tipo de material é que algum jovem produziu o boneco infame confeccionado com restos, com fragmentos do pouco permitido naquele contexto. Esses restos foram alçados por seu artífice à condição de obra que por ele e os outros jovens falavam, a objetivar suas trajetórias e condições de existência, também lançadas ao lixo.

Quem recolheu o boneco infame do lixo foi Ana Lúcia Canetti, pesquisadora que viu naquele boneco e em tantos outros objetos/lixo a expressão de vidas que insistiam em se fazer ouvir e às quais dedicou sua escuta:

Eram gorros tecidos com fios de coberta, origamis de papel, esculturas de papel higiênico ou sabonete, cordões, brincos, acessórios, máquinas de fazer tatuagem, uniformes costurados e pintados, jogos e outras produções que os jovens conseguiram construir, conquistando materiais ou transformando os poucos que existiam. Mesmo quando quase nenhum material era permitido, a criação não deixava de se apresentar repetidamente (Canetti, 2010:25 e 26).

O que vemos/ouvimos nesse boneco infame, neste momento, é mais que a objetivação do processo de criação de quem o fez: vemos nessa trama de fragmentos de papel, linha e lã uma fala trágica, quiçá a provocar a experiência da vertigem, o desvio do olhar como Frayze- Pereira (1999) reivindica que aconteça com a arte dos loucos. Vemos/ouvimos no amontoado de papel, linha e lã a tensão de variadas vozes sociais, um ato de resistência à lógica da clausura, ao silenciamento, à imposição da impessoalidade e amordaçamento dos afetos. Resistência, por certo, ao poder da instituição, do abandono, da lógica da exclusão, da não escuta, mas uma resistência que não almeja o contra-poder: é local, imprevista, solitária, e fundamentalmente inventiva. Afirmação da vida. ReXistência.

 

Resistir, a que será que se destina?8

Tradicionalmente, a palavra resistir significa "não ceder a", "permanecer", "opor-se a", "manter a forma original". No contexto político, resistências e juventudes costumam estar relacionadas a confrontos em defesa de direitos sociais ou contra determinados poderes hegemônicos. Menos comum, há ainda a presença de um imaginário que interliga juventude e rebeldia como forma de resistência, desde o clássico filme "Juventude Transviada" com James Dean, na década de 50. Os conceitos de resistir e resistência tradicionalmente veiculam, assim, certa nostalgia das lutas declaradas em oposição às diferentes formas de poder e de certo protagonismo juvenil contra a homogeneização da cultura.

Os fragmentos que aqui apresentamos provocam a pensar, no entanto, em resistências marcadas por outras características, posto que destoam dos conceitos de utilidade e de função que, com essas e tantas outras práticas sociais contemporâneas, vem sendo tensionados9. O contemporâneo tem nos impelido a olhar para essas novas práticas que se apresentam no cotidiano e a olhar para as juventudes que se reinventam por meio de intervenções efêmeras, fugazes, anônimas, intervenções estético-artísticas que proclamam novos modos de conviver e atuar nos espaços urbanos.

Posto que "não se produz só na fábrica, não se cria só na arte, não se resiste só na política" (Pélbart, 2003:132), o contemporâneo apresenta-se marcado pela extrapolação dos limites, das ações, das políticas e das subjetividades. Ao forjar-se no amálgama, no híbrido, no múltiplo, no sobreposto, no fluído e no efêmero, reivindica modificações e ampliações nas formas usuais de compreender e delimitar as tênues fronteiras do que pertence à arte ou à política. Impõe-se para que perguntemos onde, nele, instauram-se processos singulares que funcionam como resistências, como intervenções capazes de potencializar a vida.

Foucault (1995) em seu texto "O sujeito e o poder" genericamente aponta para a existência de três tipos de lutas. O primeiro diz respeito às lutas contra as formas de dminação, a exemplo das lutas étnicas, sociais e religiosas, lutas estas que prevaleceram especialmente nas sociedades feudais. O segundo se caracteriza pelas lutas contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem, que encontramos marcadamente no século XIX. O terceiro tipo de luta seria contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão). Para Foucault (1995), os três tipos de lutas sociais se encontram mesclados ao longo da história, porém em determinado momento, há a prevalência de uma delas.

Os bonecos produzidos pelos jovens encarcerados, a música entoada pelos jovens nos ônibus e o graffiti inscrito nos muros da cidade são manifestações contemporâneas que entendemos como exemplo desse terceiro tipo de luta, ainda que ali ecoem vozes dos outros tipos de lutas, e que evidenciam a afirmação de novas subjetividades. Através de criações que afirmam a potência de cada existência, os jovens resistem às formas de sujeição e submissão que lhes são imputadas, ao esquecimento e à condição de margem a que são relegados. Lutam, criam, resistem, insistem. Re-eXistem.

Os jovens que criam os bonecos com os restos de lã e papéis transfiguram imaginários, afetos e vontades, impondo ao silêncio que lhes é imputado a própria presença. Como Arthur Bispo do Rosário a tecer mantas com os fios de sua própria roupa, ou Frontino Vieira e Luís Guides10 que vêm sendo visibilizados com o reconhecimento da potência de suas produções estéticas visuais. Personagens de variados tempos e espaços que criam com restos e a estes entretecem os restos de si, recompondo os próprios corpos, a própria existência.

Podemos pensar que há aí a reinvenção de processos subjetivos pautados por uma resistência estética, ética, sensível. As criações desses e tantos outros artistas da vida resistem às sensibilidades comuns, aos bons sensos e insistem na afirmação da possibilidade de outras vidas. Vidas do Fora, que nos provocam a transitar "nas beiradas de nós mesmos, para deixarmos os centros e os estriamentos em favor das bordas" (Fonseca & Costa, 2010:14). Vidas que se pautam por outros traços de participalidade/conflitualidade, e que assim como "certas dinâmicas urbanas (nomadismos sociais, novos corpos pós-humanos, redes sociais de autovalorização, devires minoritários, êxodo e evacuação de lugares de poder), exemplificam essa mutação na lógica da resistência, indo além das figuras clássicas de recusa" (Pélbart, 2003:136).

A música entoada no transporte público e coletivo em Lima pode, também, nos informar sobre melodias de jovens que estão aí a reinventar as resistências contemporâneas. Segundo Vellarde Castillo (2008), para permanecer cantando nas ruas e não irem presos pelo que se costuma denominar de "vadiagem", estes jovens se tatuam ou se machucam com cortes e bofetões. Ferindo os próprios corpos não são levados presos em razão do temor que provocam nos policiais de serem autuados por violência contra menores.

Estes jovens resistem ao indicar e inscrever-se nas brechas, nas fissuras, por onde lhes é possível deslizar. Transgridem as linhas de força, salientam seus pontos fracos, vivem o presente. No arriscar-se na música ou na rua, para viver nela e flutuar, fazem-se jovens no urbano. Criam outras urbanidades, outras práticas por meio das quais se fazem ver e ouvir e demarcam os gestos que calam, que emudecem e negam a invenção da vida. ReXistem.

Os grafiteiros de Florianópolis, por sua vez, assim como os grafiteiros de outras cidades, também resistem. Configuram com seus traços a constituição de outro corpo urbano, reatualizam os projetos urbanistas tradicionais ou as práticas sociais comuns nestes espaços. Aqui a resistência se manifesta a partir de cores, palavras, figuras.

Resistência inventiva, propositiva, que não sucumbe frente a uma moral hegemônica. O artista urbano talvez resista aos planos que a indústria cultural tinha para ele ao contrariar as premissas de consumidor genérico dos resíduos e rituais da cultura de massa. Adorno (2002) fez observações catastróficas sobre a sociedade contemporânea devido às características totalizantes da indústria cultural, mas estranhamente se esqueceu da potência criativa de consumidores que jamais são passivos.

No jogo das forças, poderes e contrapoderes, essas mesmas linhas molares convivem com as molecularidades e fissuras que afirmam novos possíveis. Linhas duras, molares, instituem práticas de exclusão material e simbólica, porém os grafiteiros resistem a estas formas de exclusão amalgamadas à lógica racional das cidades, na ordem simbólica que permite o que pode e não pode ser dito, visto, sentido. Assim como o flâneur resiste ao ritmo novo das metrópoles, caminhando lentamente por entre as mercadorias e suas fantasmagorias (Benjamim, 2007), os grafiteiros, assim como os músicos e os jovens na cidade/clausura que os priva da liberdade de ir e vir, resistem construindo sua própria geografia da cidade, corpografia urbana. Erram, perambulam, vendo a partir de novas perspectivas, sensualidades visuais. Esses jovens em suas experiências urbanas delimitam outras territorialidades afetivas, desterritorializando-se das normas e discursos que enrijecem as vivências urbanas.

Grafiteiros profanam as linguagens possíveis criando linguagens outras, invertem o uso da palavra no contexto urbano, modificam os significantes para, assim, modificar nosso universo simbólico. Incomodam ao provocar deslizes de sentidos, deslizes do olhar, deslocamentos nas subjetividades capturadas pelos agenciamentos e dispositivos rotineiros da lógica capitalconsumo. Incomodam porque profanam os lugares onde acostumamo-nos a localizar o público e o privado, o dito e o não dito, o possível e o impossível. Incomodam porque explicitam, com suas obras, a escuta de algumas das tantas tensões que caracterizam a dinâmica social, a própria vida.

Como artistas-artesões da/na cidade, os jovens protagonistas dos fragmentos aqui apresentados, assim como tantos outros que a eles se conectam em uma polifônica e polissêmica sintonia inventiva, agenciam devires para a própria existência e a de todos. Suas práticas caracterizam-se como um fazer ético, estético e político que afirma a diferença, a singularidade e as potências que qualificam uma dada existência da perspectiva de sua invenção e superação próprias. Resistências que se configuram e se entretecem nos ramos capilares, nos atos que se repetem e se inovam no cotidiano e, muitas vezes, a partir das práticas ordinárias.

Nem sempre a resistência se nomeia como resistência. Pode-se observar que muitos grafiteiros, por exemplo, não atuam com o intuito de transgredir regras, mas com o objetivo primeiro de comunicar e expressar sua arte. Sua ação, contudo, não deixa de ser ato de resistência aos modos instituídos e legitimados de comunicar no urbano, para o urbano.

Do mesmo modo, os jovens que produzem bonecos com restos de papéis não resistem, com essas obras, à violência do enclausuramento, mas sim à negação de suas próprias existências. Os jovens músicos, por sua vez, não somente produzem sons para garantir a comida, mas também a diversão e a arte. Com a música flutuam e vivem a vida como a vida quer, em consonância com o que reivindica a poesia de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito apresentada como epígrafe.

Para Pélbart (2003:142) "A resistência se dá como a difusão de comportamentos resistentes e singulares. Se ela se acumula, ela o faz de maneira extensiva, isto é, pela circulação, a mobilidade, a fuga, o êxodo, a deserção: trata-se de multidões que resistem de maneira difusa e escapam das gaiolas sempre mais estreitas da miséria e do poder." Multidões e multiplicidades que ensejam um fazer outro, não caracterizado como uma consciência coletiva, uma ação unificada, pontual ou uniforme. Multiplicidades conectivas. No bojo de uma estética de formas fluídas, flexíveis e performáticas que caracterizam o sentir e o agir no contemporâneo, tal como afirma Mafessoli (2000), as resistências apresentam-se como inventivas, plurais. São resistências não orientadas por possibilidades e projetos de futuro com topos previstos, posto que se caracterizam pela condição aberta e agenciadora de possíveis.

Se o modo como se relacionam, enfrentam o cotidiano, atuam na cena urbana, nos panoramas diversos que os envolvem qualifica-se pela multiplicidade de formas, diversidade de espaços e efemeridade dos tempos, o modo como resistem e ao que resistem também ganha novas conformações. Esses jovens resistem ao fazer uso do espaço urbano, do espaço de fala, do espaço de existência que lhes foi confiscado. Com suas produções estéticas abrem brechas nos agenciamentos, rearranjam processos subjetivos, constroem rotas alternativas e itinerários de fuga. O que promovem de diferença para si e para os outros, se contribuem para a constituição e afirmação de subjetividades não homogeneizadas é, no entanto, questão a ser investigada. Perguntas as quais não podemos no momento responder, mas em cujas respostas ousamos apostar.

O que nos parece concreto é a força e intensidade desses modos através dos quais os jovens resistem em contextos urbanos específicos. São resistências que reinventam seus mundos apesar de e a partir das adversidades que estes mesmos mundos implicam. Seus corpos jovens se inscrevem no acontecimento da ação criadora, resistem à subjugação, se reelaboram bio-politicamente. ReXistem, e nesse processo afirmam a própria dialogia da vida, com a tensão constante entre infindáveis vozes sociais que a conota.

 

Para finalizar...

Criar não se encaixa em categorias dicotômicas, bom e ruim, certo e errado; ou em pensamentos funcionalistas, serve e não serve, útil e inútil. Com base nessa compreensão, afirma-se que a pessoa que cria é aquele capaz de assumir as potências e gerir as vontades, é fundamentalmente alguém que assume sua condição de protagonista dos acontecimentos históricos dos quais ativamente participa e com os quais pode efetivamente contribuir, de variadas maneiras e com diferentes intensidades.

Se de algum modo ressaltamos a importância de olhar para as formas de resistir e atuar nos espaços sociais que não almejam o contrapoder; se enfatizamos a importância de se analisar os efeitos éticos e políticos dessas ações, não o fazemos para que possamos qualificálas a partir das mesmas perspectivas que tradicionalmente categorizam as ações coletivas a partir dos resultados coletivos que produzem.

Não podemos dizer que resultam das ações desses jovens um mundo melhor, uma cidade mais bela, uma vida mais decente, pois não são as saídas ou os resultados que fazem dessas práxis um ato em resistência. Também é difícil predizer as modificações que podem engendrar nas vidas desses próprios jovens, a médio e longo prazo.Mas essas e tantas outras resistências efêmeras, invisíveis, chamam a atenção para as invenções-potências destes jovens. São ações superações que afirmam a vida que excede aos dispositivos que lhes pretendem dominar, controlar.

Talvez, na atualidade, possamos falar da predominância dessas resistências inventivas, propositivas, ao invés de resistências opositivas tais como as que são historicamente reconhecidas como políticas. Ainda que estas resistências opositivas continuem acontecendo e se fazendo necessárias nesses tempos de globalização em que proliferam as práticas políticas de negligência dos direitos humanos e sociais, é importante considerarmos, nas pesquisas sobre o tema, que a invenção pode reinventar outras oposições.

Fazer política por meio de outras práticas e a partir de outra estética e poética da existência é o que anunciam os fragmentos aqui apresentados. Se se trata de uma luta, os instrumentos e as armas são, nessas resistências, poéticas. A racionalidade não é do embate ou do confronto de um coletivo, de uma unidade em prol do próprio coletivo, mas da expressão múltipla de singularidades na busca pela expressão de suas existências, afirmadas em fugazes, inusitadas, frágeis, porém potentes reXistências. ReXistências que reinventam a vida de cada um e, ao mesmo tempo, contribuem para a reinvenção das vidas de todos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Andréa Vieira Zanella
E-mail: avzanella@gmail.com

Déborah Levitan
E-mail: delevitan@gmail.com

Gabriel Bueno de Almeida
E-mail: gbapsi@gmail.com

Janaína Rocha Furtado
E-mail: janarf1@yahoo.com.br

Recebido em: 01/02/2011
Aceito em: 12/12/2011

 

 

* Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil e bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Brasília, DF, Brasil.
** Mestre em Psicologia Social e Cultural pela London School of Economics and Political Science, Londres, Inglaterra.
*** Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
**** Pesquisadora do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres e mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
1 Esta afirmação vem ao encontro das discussões apresentadas por Bardainne e Susca (2008:45): "Sem saber, estamos todos nos transformando em cyborg. De um lado estendemos o nosso sistema nervoso central para fora do nosso cerebelo nas memórias digitais, nos esquemas audiovisivos, nos depósitos de informações on-line... e de outro o reabsorvemos de modo dilatado na nossa pele por meio de dispositivos portáteis como os celulares, os palms, os leitores de mp3, as microtecnologias e os chamados wearable computer. Isso acontece ao mesmo tempo de modo natural e inconsciente: sabemos como resgatar os detalhes de nossa existência em um palm, mas ignoramos o processo pelo qual isso é possível".
2 A dialogia consiste no "espaço de luta entre vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam forças centrípetas (aquelas que buscam impor uma certa centralização verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas (aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso de qualquer natureza, a polêmica explícita ou velada, a hibridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc)" (Faraco, 2003:67).
3 NUPRA – Núcleo de Estudos em Práticas Sociais: Relações Éticas, Estéticas e Processos de Criação da Universidade Federal de Santa Catarina. Os fragmentos apresentados foram retirados das pesquisas de Ana Lúcia Canetti (2010), Percy Velardes Castillo (2008) e Janaina Rocha Furtado (2007).
4 O conceito 'profanação' aqui utilizado é proveniente do texto Elogio da Profanação, de Giorgio Agamben. Segundo o autor, "sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens [...] E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituílas ao livre uso dos homens" (Agamben, 2007:65).
5 Tapera é um bairro da cidade de Florianópolis/SC habitado por pessoas de baixa renda.
6 Os jovens músicos aqui mencionados são intérpretes de músicas do repertório popular ou veiculadas nos meios de comunicação de massa. Mas entendemos que a interpretação é também criação, assim como o é a percepção da arte. Vygotski esclarece que "a percepção da arte também exige criação porque para essa percepção não basta simplesmente vivenciar com sinceridade o sentimento que dominou o autor, não basta entender da estrutura da própria obra: é necessário ainda superar criativamente o seu próprio sentimento..."(1999:314).
7 Utilizamos a expressão "infame" e "jovem infame" em referência ao trabalho de Michel Foucault junto aos arquivos do internamento do Hospital Geral e da Bastilha, em que dá visibilidade às vidas "destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas" (Foucault, 2006:207). O adjetivo "jovem" aqui se faz necessário porque o artista que criou o boneco infame é assim reconhecido, e essa condição lhe garante o recolhimento a uma unidade de aplicação de medida socioeducativa ao invés do cárcere em uma delegacia ou presídio.
8 Este subtítulo faz referência ao primeiro verso da música Cajuína, composição do artista brasileiro Caetano Veloso.
9 Michel Maffesoli (2008:13) afirma que atualmente "...assistimos inegavelmente a superação dos conceitos de utilidade e de funcionalismo modernos".
10 Frontino Vieira e Luís Guides são habitantes do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre. Suas produções estéticas são apresentadas e analisadas, juntamente com a de outras vidas do Fora, na coletânea organizada por Tania Galli Fonseca e Luciano Bedin da Costa (2010). Arthur Bispo do Rosário, por sua vez, é reconhecido como artista pelo circuito das artes e tem nota biográfica publicada na Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais.