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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.27 São Paulo ago. 2013

 

Falso abuso sexual em varas de família: dilemas na elaboração do parecer psicossocial

 

False sexual abuse in family courts: dilemmas on the opinion psychosocial

 

Falso abuso sexual en la justicia de familia: dilemas en ela preparación de la evaluación psicossocial

 

Faux violence sexuelles dans les tribunaux de la famille: dilemmes sur l'opinion psychosocial

 

 

Inês Helena Batista de SantanaI; Luis Felipe RiosII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil. ihsantana@uol.com.br
IIDoutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e atualmente é professor Associado I e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil. lfelipe.rios@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo investiga os dilemas da atuação de profissionais da psicologia jurídica em casos de falsa acusação de abuso sexual. Está embasado em pesquisa qualitativa desenvolvida através da análise documental de pareceres psicossociais em varas de família e registro civil, e entrevistas com profissionais envolvidas com suas elaborações. O texto inicialmente discute a aproximação entre instâncias de gestão das populações e aparatos biomédicos, de modo a melhor compreender a entrada da Psicologia no sistema judiciário. Em um segundo momento, analisa o valor dos pareceres psicossociais para o judiciário, e suas repercussões nos próprios profissionais da psicologia. Finalizando, examina os dilemas relacionados à "verdade" e ao "poder", constituidores da profissão de psicólogo como ciênciaintervenção.

Palavras-chave: Abuso sexual, Violência na família, Perícia psicológica judicial, Psicologia forense.


ABSTRACT

This paper investigates professional legal psychology interventions in false accusation of sexual abuse cases. It is based on qualitative research conducted through psychosocial reports documentary analysis in family courts, and interviews with professionals involved in its elaborations. Initially, discusses the rapprochement between instances of population control and biomedical devices, to better understand the entry of psychology in the judiciary. In a second moment, examines the value of psychosocial intervention for the judiciary view and the impact of the reports to psychology professionals. Finally, discusses the dilemma related to the "truth" and "power", founder of the profession of psychology as a science-intervention.

Keywords: Sexual abuse, Family violence, Psychological legal expertise, Forensic psychology.


RESUMEN

El artículo investiga la actuación de profesionales de la psicología jurídica en los casos de falsa acusación de abuso sexual. El estudio se basa en investigación cualitativa realizada a través de análisis documental de dictámenes psicosociales en tribunales de familia, y entrevistas con profesionales involucradas en el proceso de elaboración. El texto examina en primer lugar el acercamiento entre la gestión de las poblaciones y los dispositivos biomédicos, de modo a entender mejor la entrada de la Psicología en el sistema judicial. En la segunda parte, examina el valor del asesoramiento del dictamen psicosocial para el jurídico, y su impacto en los propios profesionales de la psicología. Por último, se examinan los dilemas relacionados con la "verdad" y el "poder", constituidor de la profesión del psicólogo como una ciencia-intervención.

Palabras clave: Abuso sexual, Violencia doméstica, Psicología jurídica, Psicología forense.


RÉSUMÉ

L'article examine les dilemes de la performance des professionnels de la psycologie légale dans les cas de fausse accusation d'abus sexuel. Il est fondée sur une recherche qualitative developpé par l'analyse des documents de conseils psychosociaux dans les tribunaux de la famille et des registres civil, et des entretiens avec les professionnels concernés par ses élaborations. Le texte aborde d'abord la connexion entre les instances de gestion de la population et des dispositifs biomédicaux, afin de mieux comprendre l'entrée de la psychologie dans le système judiciaire. Dans un deuxième temps nous analysons la valeur des avis psychosociaux à la magistrature et son impact sur les professionnels de la psychologie eux-mêmes. Enfin, il examine les dilemmes liés à la « vérité » et « pouvoir », constituants de la profession de psychologue comme science-intervention.

Mots clés: Abus sexuelle, Violence familiale, L'expertise psychologique en milieu judiciaire, La psychologie médico-légale.


 

 

Introdução

É, pois, muito vulgarmente que a filosofia coloca para a psicologia a questão: dizei-me em que direção tendes, para que eu saiba quem sois? Mas o filósofo pode também se dirigir ao psicólogo sob a forma - uma vez que não é costume - de um conselho de orientação, e dizer: quando se sai da Sorbonne pela rue Saint-Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Panthéon, que é o Conservatório de alguns grandes homens, mas se se desce dirige-se certamente para a Chefatura de Polícia. (Canguilhem, 1973)

A literatura especializada tem apontado o abuso sexual contra crianças e adolescentes como uma das mais complexas formas de violência sexual (Gabel, 1997; Rios & Menezes, 2009). Considera-se que crianças e adolescentes são pessoas em peculiar condição de desenvolvimento e ainda não têm capacidade de discernimento para decidir sobre suas sexualidades. Contatos sexuais envolvendo crianças/adolescentes e adultos se configuram em uma relação desigual de poder - ainda que os primeiros afirmem ter desejado interagir sexualmente com os autores da violência (Gabel, 1997).

Nos documentos oficiais do governo brasileiro para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes são definidas duas grandes modalidades: o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e adolescentes. O abuso é caracterizado pela utilização do corpo de uma criança ou adolescente por um adulto ou adolescente, para qualquer prática de natureza sexual. É importante destacar que, para haver abuso, não é preciso haver contato físico entre o adulto e a criança/adolescente. Em relação aos vínculos sociais entre o abusador e a criança/adolescente, o abuso sexual pode ser intrafamiliar (o autor da violência é parente da vítima) ou extrafamiliar (o autor da violência não é parente). O que vai diferir o abuso da exploração sexual é a intenção de lucro ou troca, seja financeira ou de qualquer outra espécie, presente nesta última modalidade de violência. Esta classificação orienta as políticas públicas nas suas ações, e optamos em utilizá-la neste estudo (Brasil, 2009).

Vale destacar que problemática do abuso sexual se (re)configura no contexto mais amplo da implementação de uma nova legalidade sobre os direitos da criança e do adolescente, na interface com os direitos sexuais e reprodutivos (Ventura, 2003). Tal contexto é uma arena de embates, onde diferentes vozes em disputa e em diversos planos geográficos e institucionais dizem saber a "verdade", no sentido foucaulteano do termo (Foucault, 1988), da criança/adolescente e do sexual, ou, mais especificamente, da sexualidade da criança/ adolescente na ordem do mundo.

Nos contextos locais, em situações extremas, em que atores são suspeitos de terem se envolvido em eventos que violam as normas jurídicas e os acordos sociais, cabe aos operadores do direito se pronunciarem sobre essa "verdade" e suas implicações psicossociais, para crianças/adolescentes e outros envolvidos, situações em que psicólogos e assistentes sociais são chamados a opinar.

Ainda no que tange à tramitação no judiciário, ressaltemos que essa forma de violência, em muitos dos casos, não é de fácil comprovação devido à ausência de provas materiais no processo judicial - nesses casos a palavra da (suposta) vítima pode se constituir como única prova. Por conta disso, não raro o autor do ato violento permanece impune, enquanto a vítima sofre as consequências psicológicas, sendo, muitas vezes, culpabilizada, humilhada e desqualificada.

Nos últimos anos, o comprometimento dos poderes públicos com o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes significou o incremento de ações que viabilizem, dentre outros procedimentos, denúncias e punições dos autores de violência. Não obstante, nos diferentes serviços do sistema de proteção e responsabilização, também há a impressão de um aumento de "outros" usos da "violência sexual". Porque, muitas vezes, acusar alguém de pedófilo ou abusador passou a se afigurar como estratégia para destituir a imagem pública desse alguém, para torná-lo/a um perigoso/a criminoso/a.

À época da realização da pesquisa aqui apresentada (2007-2008), os crimes sexuais eram apreciados à luz do Código Penal Brasileiro (S/D), datado de 1940. No Código, a penalidade para pessoas condenadas em casos de violência sexual variava entre um e vinte e cinco anos. Vale ressaltar que, a pena era aumentada pela metade se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela. Em agosto de 2009 entrou em vigor a Lei nº 12.015 que alterou o Código Penal, o ECA e a Lei de Crimes Hediondos. Não cabe aqui entrar nos pormenores das mudanças, no entanto vale salientar que esta lei tornou ainda mais severa a punição nos casos de crimes contra menores de idade. Assim, quando os profissionais de psicologia jurídica se encontram diante de uma acusação de tamanha complexidade, cujas consequências dela advindas poderão ser drásticas, tanto para a vítima quanto para o acusado, é prudente e fundamental uma análise exaustiva caso a caso, a partir da utilização de instrumentos e procedimentos técnicos pertinentes.

É justamente sobre a atuação do psicólogo nesses casos de falsa acusação de abuso sexual que localizaremos as reflexões que traremos ao longo das próximas páginas. Elas estão embasadas em um estudo que teve por objetivos analisar o fazer da psicologia no processo de construção de estudos psicossociais que resultam em laudos e pareceres psicossociais, referentes a processos judiciais, envolvendo acusações de violência sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes, em varas de família e registro civil; do mesmo modo, identificar o valor do estudo psicossocial para o desenvolvimento do processo e para o "cumpra-se" da lei. Nosso foco analítico para este artigo está nos dilemas experimentados pelas psicólogas1 ao longo da elaboração do estudo, tendo em perspectiva o seu uso pelos operadores do direito.

A discussão aqui apresentada se insere no campo da Psicologia Política, seja pelo enfoque nas políticas públicas da infância e juventude na interface com o campo dos direitos sexuais, seja pelo marco teórico que orienta as reflexões o qual, como aprofundaremos mais adiante, está fundado numa perspectiva que acentua a relação entre saber/fazer psicológico e gestão de corpos e populações (Foucault, 1988), bem como o caráter produtivo do poder, da lei e da norma na construção da sociedade (Canguilhem, 2006; Foucault, 1988).

Organizamos o texto de modo que, inicialmente, na fundamentação teórica, discutimos a aproximação entre instâncias de gestão das populações e aparatos biomédicos, possibilitando melhor compreender as raízes da entrada da Psicologia no sistema judiciário. Em seguida, no método, apresentamos os recursos técnicos para o desenvolvimento da pesquisa que originou os dados e análises aqui apresentados. Nos resultados, discutimos o "valor" de um parecer psicossocial para o judiciário buscando, nos nossos dados, o que eles podem dizer sobre o lugar da Psicologia na "disputa" pela verdade sobre o acusado de cometer a violência sexual. Em seguida, trazemos à baila o "peso dos pareceres" em suas repercussões nos próprios profissionais da psicologia. Na discussão, e com base em nossos achados sobre a atuação da psicologia jurídica na falsa acusação de abuso sexual, recolocamos em perspectiva os dilemas relacionados à "verdade" e ao "poder", constituidores da profissão de psicólogo como ciênciaintervenção.

 

Fundamentação Teórica - Psicologia: Entre a Lei e a Norma

No que se refere às práticas profissionais sobre a sexualidade, convém lembrar que, no âmbito do judiciário, como em outras esferas sociais, em que questões relacionadas ao sexual são objetos de intervenção, vários dos aparatos socioculturais entram em cena para caracterizar-lhes e dar-lhes sentido. Diversos discursos se articulam como sistemas conceituais que possibilitam a construção de representações e práticas, sendo alguns mais conservadores, outros mais questionadores do lugar do sexual na ordenação do mundo social. Aos atores institucionais envolvidos são atribuídos supostos saberes-poderes para legitimar concepções e práticas sobre a sexualidade (Foucault, 1988, Rubin, 1998).

Foucault (1988) vai mostrar como os discursos modernos sobre a sexualidade configuramse como dispositivo de controle, uma vez que as concepções presentes nas instituições, referentes às práticas sexuais - ato sexual e discursos sobre sexualidade - estabelecem categorias normalizadoras, enquadrando as pessoas como envolvidas em atividades consideradas adequadas ou desviantes. Estaria a sexualidade no fulcro daquilo que Foucault denominou biopoder.

O biopoder, ou poder sobre a vida, desenvolveu-se a partir do século XVII, com a ascensão da burguesia, em oposição ao poder soberano marcado pelo direito de vida e morte como privilégio absoluto. Nesse último caso, o poder soberano era exercido como mecanismo de confisco, de subtração, a partir do qual se tinha o direito de apropriar-se das riquezas (bens, produtos, trabalho), do tempo, dos corpos, enfim, da vida dos súditos. A partir das transformações sociopolíticas que oportunizaram a emergência do Estado burguês, foram desencadeadas mudanças significativas nos mecanismos de poder. Dessa forma, o direito soberano de causar a morte tendeu a deslocar-se no sentido de um poder que utiliza a vida, em lugar da morte, como metáfora para o controle populacional, sob o argumento de garantir a segurança dos indivíduos (cf. também Caliman, 2006; Costa, 1999; Foucault, 1988).

Segundo Foucault (1988), o biopoder se difundiu e fortaleceu, sendo predominante em todo o contexto social ocidental desde o século XIX. Esse foi forjado a partir da relação entre as tecnologias biopolítica e disciplinar, voltadas à população e aos indivíduos, respectivamente. No processo de engendramento do biopoder, a ciência médica destaca-se como elemento indispensável na constituição das subjetividades modernas, informando acerca da vida em todas as suas possibilidades. Com base no arcabouço de conhecimentos da medicina, incluindo-se os saberes psi (psicologias, psiquiatria e psicanálise), o corpo e a saúde são ressaltados como aspectos fundamentais na construção da identidade e das condições e espaços de vida do indivíduo moderno.

Foucault (1988) aponta que outro desdobramento do desenvolvimento do biopoder é a relevância crescente da ação da norma em contraposição ao sistema jurídico da lei. O autor afirma que a lei refere-se ao poder absoluto sobre a vida, ameaçando com a morte quem a transgride, ao menos como recurso derradeiro. Acrescenta que o biopoder, que tem como incumbência agenciar a vida, precisará acessar mecanismos permanentes de regulação e correção. O autor ressalta que com tal afirmação não quer dizer que não existe mais a lei ou que as instituições judiciárias estão fadadas ao desaparecimento, mas que as leis operam, cada vez mais, como normas e que o aparato judicial tem se integrado a aparelhos médicos, administrativos, etc., com funções, fundamentalmente, reguladoras.

As reflexões de Foucault (1988) nos ajudam a melhor entender a entrada dos saberes psicológicos na esfera jurídica. Representante da ciência que explica as condutas humanas, o psicólogo teria a capacidade de dizer a norma da lei: oferecer ao juiz subsídios que possibilitem o cumprimento da lei, identificando onde está o indivíduo (acusado) na distribuição da curva normal dos comportamentos humanos. Em outras palavras: dizer qual o (des)valor e a (in)utilidade de sua conduta, não no plano virtual, mas, no do ato realizado.

Indo mais além, nos casos de violência sexual, onde muitas vezes as provas não têm a materialidade necessária para indicar se houve, ou não houve, crime, cabe ao profissional de psicologia desvendar o grande mistério: acusado, acusador e vítima são o que são no inicio do processo? E mais: quais as consequências do ato criminoso, se realizado (e/ou por quem realizado), para a vida psíquica dos envolvidos, de modo que sansões e encaminhamentos outros sejam bons para vítima, para a pessoa acusada, para a acusadora e para a sociedade?

Do plano das ideias ao mundo dos fatos, é importante nos perguntarmos se a presença do psicólogo no judiciário é meramente figurativa, ou suas reflexões, apresentadas nos laudos e pareceres, efetivamente influenciam o juiz na sua tomada posição. Nessa medida, checar se a hipótese apresentada por Foucault (1988) faz sentido para o contexto investigado.

 

Método

A investigação foi desenvolvida, embasada em abordagem metodológica clínica (Lévy, 2001), e teve como local para sua realização um Serviço de Assessoramento Técnico (SAT) (nome fictício), pertencente à Justiça de uma cidade do nordeste brasileiro. Integram este serviço, psicólogos e assistentes sociais, que tem como atribuição realizar estudos psicossociais e elaborar relatórios com laudos e pareceres técnicos, relativos a processos judiciais das Varas especializadas em Família e Registro Civil; Órfãos, Interditos e Ausentes e Acidentes de Trabalho, de modo a subsidiar as decisões do judiciário.

O estudo foi levado à frente através da análise documental de laudos/pareceres e entrevistas semiestruturadas com duas psicólogas e duas assistentes sociais, que estiveram envolvidas na elaboração dos documentos, integrantes do SAT. Destacamos que tivemos autorização formal dos/as juízes/as para a consulta dos documentos. O número de entrevistadas foi condicionado pela própria dinâmica do serviço no trato dos casos nos quais deve opinar, em que alguns profissionais tendem a se especializar sobre determinados assuntos. As quatro profissionais entrevistadas foram as que identificamos atuar com mais frequência sobre a questão.

A análise dos dados foi guiada pela perspectiva da dupla hermenêutica, como sugerida por Giddens (1984). Para operacionalizá-la usamos da técnica da análise temática (Blanchet e Gotman, 1992) a fim de identificar, nos relatórios psicossociais consultados e entrevistas realizadas, os eixos de significação empregados pelas profissionais para dar sentido ao falso abuso e às implicações do fazer psicológico nos processos (cf. Santana, 2009). Os dados, assim analisados, foram interpretados à luz do marco teórico-conceitual apresentado acima. Seguindo com a perspectiva clínica que orientou o estudo, também foi importante a análise de nossas próprias implicações com o objeto de investigação e o contexto que o constitui como um fenômeno relevante para estudos e análises (Lèvy, 2001). Ressaltamos que boa parte do processo analítico foi, por questões de espaço, elidido neste texto. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Pernambuco. Para guardar o anonimato das entrevistadas os nomes aqui utilizados são fictícios.

 

Resultados - O Fazer Psicológico Frente ao (Falso) Abuso Sexual

Quanto Vale um Parecer?

Para responder à questão do valor do parecer psicossocial para a resolução do caso, primeiramente consultamos processos que passaram pelo SAT entre 2000 e 2007. Os relatórios psicossociais, relativos a processos envolvendo pais e filhos (crianças e adolescentes), os quais interessam aos fins da pesquisa, consistem em ações as mais diversas2. Observamos, ao todo, 2.134 relatórios, dos quais 940 se relacionavam a processos que tramitam nas varas de família, mas não envolvem pais e filhos (p. ex.: separação judicial, divórcio); ou são ações procedentes das varas de órfãos, interditos e ausentes, e de acidentes de trabalho. 1.194 referiam-se a processos envolvendo pais e filhos (crianças e adolescentes); entre esses, encontram-se vinte e dois processos relativos a denúncias de violência. Desse montante, dezessete se referem à violência sexual e cinco a outras formas de violência contra crianças e adolescentes. Concluído esse primeiro momento, nos dirigimos às Varas de Família e Registro Civil, nas quais os referidos processos judiciais tramitam ou estão arquivados, a fim de consultá-los, no intento de observar se os operadores do direito - juízes, promotores e advogados - referem-se ao estudo psicossocial e como o fazem.

A análise aponta que, dos dezessete processos que fazem menção à violência sexual contra crianças e adolescentes, referidos acima, apenas seis deles estavam sentenciados. Nos processos sentenciados, verificamos que em quatro as decisões judiciais acompanham as sugestões do relatório técnico, e em dois não se menciona os relatórios. Destacamos que esses últimos foram sentenciados e arquivados com base em acordos realizados entre as partes em audiência, ou alegando-se desinteresse da parte autora pelo prosseguimento da ação.

Em relação aos processos não sentenciados (11 dos 17 processos), constatamos que em oito deles se segue as orientações propostas no relatório técnico; e em três dos processos não se adota o que foi proposto no relatório. Percebemos que alguns desses últimos não haviam sido submetidos a qualquer movimentação na Vara de Família, desde a chegada do SAT; outros estavam com o advogado de alguma das partes, com o promotor de Justiça ou mesmo aguardando o cumprimento de intimações das partes para audiência. Convém salientar que, no que se refere aos processos em que se acompanha as orientações contidas no estudo psicossocial, observamos que em seis deles é feita menção ao documento pelos juízes, promotores e/ou advogados das partes; e em dois não se faz referência, ou seja, se acata o que foi sugerido, sem explicitar o posicionamento técnico.

A partir das informações apresentadas, e ainda que, dado ao número de processos identificados, não seja possível aplicar tratamentos em busca de representatividade, é possível, ainda assim, sugerir que os juízes em geral (12 dos 17 processos) acompanham os pareceres técnicos em suas decisões. O relatório psicossocial parece, de fato, ser relevante e ter valor no processo. O que significa dizer que a atuação dos profissionais de psicologia e serviço social tem desdobramentos concretos na vida dos envolvidos - acusados, acusadores e vítimas. Fato que nos leva a uma segunda questão: qual o sentido do parecer para o profissional da psicologia?

Quanto Pesa um Parecer?

Para avaliarmos, juntamente com as psicólogas, o quanto pesa o parecer, não para as partes, mas para o próprio profissional, é importante melhor dimensionar a violência sexual na vara de família, abordar outros achados frutos da análise dos dados documentais e das próprias entrevistas.

 

As Acusações de Violência Sexual em Varas de Família

Ressaltemos que a ocorrência da "violência sexual" nas varas de família é, de certa forma, atípica. Enquanto crime, os processos de violência devem, pelo menos, também tramitar na vara de crimes contra a criança - dado o modelo departamental que orienta o trabalho do judiciário. Ter processos envolvendo crime, apenas tramitando na vara de família, por si só, já chama atenção das nossas quatro entrevistadas.

O número de processos envolvendo abuso sexual nas varas de família é relativamente diminuto (17 nos 2.134 relatórios investigados), não obstante esses crescem ano após ano3, como comenta Vânia (psicóloga): "Com relação à sexualidade em si, eu vi todo tempo. Agora, acusações de abuso sexual, eu acredito que nos últimos três anos, por aí. [...] Tanto violência física como sexual. Não vou dizer que é comum, mas tá se tornando mais frequente." Nessa linha, observamos, na série histórica de documentos analisados, um aumento no número de casos que envolvem acusações de violência sexual - como mostra a Tabela 1, abaixo.

 

 

Também observamos um aumento no número de páginas e no aprofundamento da discussão teórica nos relatórios. Afinal, lançar mão do instrumental teórico é um legítimo caminho para desvelar a "verdade" sobre acusado e vítima, quando faltam provas empíricas de "maior objetividade" (um laudo do IML, ou o testemunho de alguém, por exemplo). Parece contribuir para o aumento de investimento nesses casos, um fato que as psicólogas, e também as assistentes sociais, são unânimes em afirmar: "à medida que essa questão de abuso sexual vem recebendo mais atenção da mídia, aumentou o número de denúncias [...] . Aumentou mais o das falsas do que o das verdadeiras [...] . (Carolina, psicóloga)

Convém esclarecer que as falsas acusações, as quais aludem nossas entrevistadas, não são, simplesmente, aquelas que, durante a investigação psicossocial, não se configuram enquanto tal - lembremos que a suspeição é ingrediente fundamental do sistema de responsabilização: todo acusado é inocente até que se prove o contrário. O que as nossas entrevistadas estão chamando de falsas acusações são aquelas em que parece haver uma intencionalidade, por parte do acusador, que não se configura como uma ação de proteção da criança. Elucida Vânia: "a gente vê em casos que a gente chama de alienação parental, tá sendo utilizado esse tipo de acusação, justamente pra afastar o pai ou a mãe da criança, por acusação de abusos que nem sempre é real."

 

As Falsas Acusações: Compreensão e Encaminhamentos

O fato é que, frente a um aumento da demanda, e também, da complexidade dos casos, gerando suspeitas sobre as (falsas) acusações, as tomadas de decisões se tornam cada vez mais difíceis para as psicólogas entrevistadas: "A disputa entre os pais tem se tornado mais perversa, mais danosa para os filhos, [...] tem aumentado muito o volume de processos no SAT: o número de processos enviados mesmo, propriamente, e a complexidade com que estes casos estão vindo, que é muito maior." (Vânia)

Carolina, falando desse aumento no número de casos de falsas acusações, lembrou das peculiaridades dos processos que tramitam na vara de família, nos quais aparece a suspeita de falso abuso: "a gente trabalha com litígios familiares, e muitas vezes as falsas acusações [...] vem no seio de uma disputa de guarda, de uma disputa de visita, vem movida pelas mágoas em relação à separação, vem na situação que eu chamaria, de uma situação de Medeia." Ela esclarece:

Medeia, que é uma tragédia grega, ela é abandonada por Jasão, que é o amante dela, muito resumidamente, ela é abandonada por outra mulher, e no dia que Jasão se uniria com essa outra mulher, Medeia manda de presente pra ele os cadáveres dos filhos. E, infelizmente, existem muito mais Medeias do que a gente pode supor.

As psicólogas compreendem a falsa acusação como Síndrome da Alienação Parental, que consiste do fato de um dos genitores induzir o filho, criança, para que rejeite e odeie o outro genitor, sem qualquer justificativa. Tal fenômeno ocorreria em decorrência de problemas advindos da ruptura da vida conjugal, que desencadeia sentimentos de rejeição e abandono, levando a uma tendência vingativa exacerbada e a um processo de desmoralização, de descrédito e de destruição do ex-cônjuge, ao perceber que esse tem interesse em manter o convívio com o filho (cf. Dias, 2007). As entrevistadas asseveraram que têm percebido que as disputas, em Varas de Família, têm se tornado mais complexas, com acusações cada vez mais "graves, cruéis e perversas". Nesse sentido, diz Carolina:

As disputas, as guerras, estão mais perversas. [...] os colegas, que estão há mais tempo do que eu, têm uma percepção semelhante. [...] a gente vê, na Vara de Família, que, não necessariamente pai e mãe são os maiores interessados no bem-estar dos filhos, particularmente, quando eles estão muito feridos, muito machucados, muito doídos, em função da separação. [...] Na situação de litígio, os filhos viram não só meus, mas meus objetos para eu usar da forma que eu quiser para atingir o outro.

Para melhor visualizar a ocorrência da falsa acusação e o modo como os profissionais têm escrito sobre os casos, traremos como exemplo um relatório psicossocial datado do primeiro semestre de 2006, referente a uma ação de Destituição do Poder Familiar. No processo, a genitora (requerente) acusa o pai (requerido) de ter abusado sexualmente dos filhos do excasal. Vejamos, diretamente, um pequeno trecho do mesmo:

[...] procuramos, sem encontrar, os sinais que a literatura indica como sendo prevalentes entre crianças sexualmente abusadas. Os dados levantados apontam claramente para a conclusão de que vivem em situação de sofrimento psíquico. Com igual clareza, indicam, também, que tal sofrimento não decorre de uma situação de abuso sexual e sim de um abuso psicológico continuamente perpetrado contra elas . As crianças apresentam uma inibição e uma evitação do contato social que sugerem o princípio de um comprometimento patológico. (grifos nossos)

O relatório menciona que foi descartada a hipótese do pai apresentar alguma psicopatologia compatível com o "perfil de abusador". Em contrapartida, sugere que a mãe é autorreferente, se coloca o tempo inteiro numa posição de vítima. Sobre os filhos, diz que esses são postos, não no lugar de sujeitos que sofreram diretamente o abuso, mas como os objetos através dos quais ela (mãe) foi atingida. A mãe é descrita no relatório como pessoa com dificuldade de aceitar limites para o seu comportamento. Suas atitudes parecem ser unicamente ditadas pelos seus desejos, sem levar em consideração a conveniência de suas ações nem qualquer dano que essas, porventura, possam causar a alguém. Sugere que, mesmo após a conclusão do processo judicial, a requerente continuará a tecer acusações contra o requerido e a persegui-lo com calúnias e constrangimentos.

Por tudo isso, o relatório é contundente: "Urgente se faz a intervenção do Estado através de ações que visem conter os abusos praticados contra as crianças, ao que parece pela genitora, numa modalidade diferente da que o genitor é acusado." O parecer finaliza sugerindo reverter imediatamente a guarda em favor do pai, sem direito a visitação materna, pelo prazo mínimo de um ano, devendo a retomada das visitas estar sujeita a uma reavaliação do caso feita pela equipe do SAT.

Como se vê no relatório, a falsa acusação é apontada como tão danosa quanto uma denúncia verdadeira para as crianças envolvidas. Nessa linha, em que a violência contra a criança se configura, havendo ou não o abuso sexual, esclareceu Carolina: "[...] se a mãe inventa que um pai fez isso ou aquilo com seu filho ou sua filha, essa criança foi vítima de abuso sexual. [...] a própria existência de uma denúncia falsa, é uma forma de abusar sexualmente dessa criança".

Ela sugere que muitos profissionais trabalham na perspectiva de que toda denúncia é verdadeira, e quando se descobre que é falsa, presumem que a criança nada sofreu. Carolina discorda disso. Assim, trazendo a teoria psicanalítica para a compreensão dos casos, ela lembra: "Há uma invasão psíquica dessa criança [...] ela não é inócua, porque é uma mentira que representa, completamente, uma invasão a essas fantasias incestuosas infantis, que a obrigação do pai e da mãe é proteger a criança do trauma da fantasia." Sua argumentação prossegue no sentido de que é mais fácil elaborar algo, que, por mais "duro" que seja, tenha uma realidade concreta, do que algo que não tenha acontecido: "[...] aquilo que tenha acontecido, mas foi desmentido, ou aquilo que não aconteceu, mas foi imposto como verdade, você não tem como elaborar, é uma coisa que foge à capacidade de elaboração..." (Carolina).

Convém, ainda, ressaltar que, havendo ou não havendo o abuso concreto, a categoria chave das psicólogas para compreendê-lo, tanto quanto para a compreensão da síndrome da alienação parental, é a perversão5. Apontam se nortear numa perspectiva punitiva para o autor da violência, incluindo o afastamento da vítima e a aplicação da lei de maneira mais objetiva e severa. Carolina localiza a punição como algo que, inclusive, vai ajudar a criança a melhor elaborar a situação violenta a qual estava submetida: "tem que ficar claro: 'você sabe, a gente sabe que é mentira, e você não é mais obrigado a ter que acreditar naquilo que é mentira'."

Quando questionada sobre como percebe a possibilidade de encaminhamentos para além da punição, em relação às pessoas acusadas em casos de violência, Carolina referiu não acreditar em possibilidades concretas de tratamento, considerando tanto a estrutura precária dos serviços de atenção à saúde mental, e muitas vezes a inexistência desses; quanto em razão da própria estrutura de personalidade dos autores da violência, predominantemente perversa, a qual apresenta características que dificultam o engajamento desses em qualquer que seja o tipo de tratamento.

 

Responsabilidade

Sintetizando nossa discussão até aqui, diremos: a partir da constatação de que os argumentos e acusações, nas situações de litígio, têm se tornado cada vez mais complexos, as entrevistadas dizem necessitar de um período maior de permanência dos casos no serviço, para realização do estudo psicossocial (o que se traduz em relatórios mais longos e com mais discussão teórica), de modo que a reflexão, a ser apresentada no parecer, tenha a robustez necessária para garantir que os encaminhamentos sugeridos sejam acatados pelos juízes. Nossas entrevistadas têm a clareza do quanto pesa seus pareceres no "cumpra-se a lei":

"segundo as últimas estatísticas, 98% das sentenças dos juízes das varas da família acompanham o parecer. Ou seja, na prática, a maior parte dos casos somos nós quem decidimos..." (Carolina). O que faz com que afirmem que recorrentemente refletem sobre a qualidade de seus trabalhos e questionem sobre o lugar em que se inserem profissionalmente. Nesse sentido, diz Carolina:

Olhe, é interessante, é desafiador e extremamente assustador. Eu não queria trabalhar no judiciário, essa é uma primeira coisa. [...] Eu vim trabalhar no judiciário porque [...] precisava desesperadamente ganhar mais e o concurso que aparece é do judiciário. [...] Eu sempre tive medo dessa questão de você ter um poder real sobre a vida das pessoas. Uma pessoa que, o grosso da minha prática, sempre foi clínica, e que você sabe que esse poder que você tem sobre a vida das pessoas é um poder muito mais imaginário, é um poder que é da relação transferencial, mas não é um poder real. No judiciário é um poder real, e pra mim isso é uma coisa muito assustadora, [...] um erro é extremamente grave, como processos que envolvem abuso, por exemplo, processos que envolvem violência física, psicológica. Você errar, você se equivocar num parecer, é muito grave. Isso pra mim sempre me assustou muito. (destaques nossos).

Os dilemas, aludidos no título desse trabalho, estão, então, postos: o incômodo papel, para os próprios profissionais da psicologia jurídica, instrumento estatal para manter a ordem social; consequentemente, a também incômoda responsabilidade do profissional sobre as consequências, na vida das pessoas, do "poder real" de seus atos. É sobre tais dilemas que destinaremos as reflexões finais deste texto.

 

Discussão - Psicologia: Saber-poder

Nossos dados e reflexões apontam que já está entre nós o efeito adverso da disseminação da categoria abuso sexual: seu uso como estratégia para destituir a integridade alheia cresce a cada ano nas varas de família investigadas. As psicólogas, com propriedade, qualificam o fenômeno como também uma violação dos direitos sexuais das crianças e adolescentes, que acabam sofrendo com a disputa dos pais e com as marcas psíquicas de um abuso sexual que nunca aconteceu em ato.

O fenômeno, logicamente, vai repercutir no dia a dia das profissionais de psicologia, que precisam investir mais tempo para coleta, análise e reflexão sobre os casos que lhes chegam. O que vai se traduzir em relatórios mais extensos e melhor fundamentados teoricamente. A sensação de interferir diretamente na vida das famílias, dado o peso do parecer para os operadores do direito, em especial para os juízes, que tendem a acompanhar os relatórios psicossociais, aumenta certos dilemas que são próprios aos profissionais do judiciário.

Errar na elaboração de um parecer pode significar mudar contundentemente, para "pior", a vida de uma pessoa inocente. A sensação de responsabilidade sobre a vida do outro é grande. Nas entrelinhas, vem o incômodo de estarem atuando como instrumentos de investigação e controle social, quando apenas gostariam de estar na posição de alguém (o "psicólogo clínico"6) que ajuda uma pessoa a "desvelar sua verdade", sem "grandes" implicações para a "ordem das coisas".

Como resposta às colocações de Vânia, que também são as de Carolina, diremos: estas não são questões que digam respeito apenas a vocês, ou ao objeto sobre o qual vocês estão se debruçando em busca de entendimento, e sobre o qual precisarão opinar. A psicologia jurídica, como sugerem Teixeira e Belém (1999), é, sim, instrumento de controle social:

A demanda institucional é prioritariamente a de que coloquemos o "nosso" saber a serviço da atividade judicial. Na prática isso significa que os operadores do Direito, isto é, os juízes, promotores e defensores [...] Parecem esperar que a Psicologia traga respostas até então inacessíveis pois, ao trabalhar com o "não-dito", com os aspectos subjetivos, reforçaria a ilusão de que a instituição tem domínio completo sobre o sujeito. A Psicologia funcionaria então como uma parceira no processo de controle social que, no final das contas, está na perspectiva da aplicação da Justiça. (Teixeira & Belém, 1999)

A literatura na área de psicologia jurídica vem, recorrentemente, sinalizando para tal conflito, muitas vezes descrevendo o trabalho no judiciário como se constituindo como diametralmente oposto, uma imagem em espelho, ao do "psicólogo clínico" - ainda que a "escuta" (grade teórica/interpretação) tenha a mesma origem (no caso em estudo, as duas psicólogas entrevistadas referem se orientar por uma escuta psicanalítica). Nesse sentido, Bernardi (1999) localiza as contradições básicas da psicologia jurídica como aquela de romper com a tradição que associa a profissão como capaz de possibilitar autonomia, assumindo uma ação restritiva para com os atores sociais:

Assumir esse locus exigiu do psicólogo muitas adaptações, em função dos conflitos inerentes às suas premissas de ação eminentemente clínicas e contradições básicas entre sua formação voltada para a promoção da autonomia e a ação restritiva da instituição. (Bernardi, 1999:107)

Ora, se entendemos a clínica, não como setting de atuação, mas como método, que pressupõe, além da intervenção (-pesquisa), também um posicionamento sobre o mundo e um compromisso (ético) com a mudança (Lévy, 2001), podemos afirmar que a intervenção do psicólogo jurídico é clínica por excelência.

Dialogando com nossas interlocutoras privilegiadas ao longo do trabalho de campo, diremos que o peso do fazer psicológico está também lá, nos consultórios/ambulatórios, onde os dizeres e fazeres do psicoterapeuta também têm um forte peso político, ao influenciar as pessoas na condução de suas existências (Rios & Nascimento, 2007). É certo, que ainda faz parte do senso comum científico dos "psicólogos clínicos" o primado de uma neutralidade a tout cour, exigindo-se do clínico (atuante em ambulatório de saúde mental) o apagamento de seus valores pessoais, para que possa emergir a "verdade de seu cliente" (seja ela qual for); para que possa facilitar o processo de mudança almejado pelo cliente, na direção que esse quiser tomar. Não obstante, se conseguirmos superar o obstáculo epistemológico (Bachelard, 1996) da neutralidade em psicologia clínica, nos daremos conta de que sempre haverá, atravessando o processo, avaliações por parte dos clínicos, a partir dos seus valores pessoais, sobre as condutas do cliente - se não em palavras, ao menos nos micro-gestos ou numa simples entonação de um "humhum". Mesmo que, muitas vezes, isso não seja visível, conscientemente, para o profissional ou seu cliente, a subjetividade do terapeuta marcará, numa leitura psicanalítica do fenômeno, as relações transferenciais e contra-transferenciais - ressaltemos, impulsionadora e fundante do processo psicoterapêutico.

Por outro lado, é importante lembrar que também o clínico de ambulatório, no atendimento individual (no sistema privado ou público de saúde), está regido pelas normas do Estado. Ainda que a "verdade" a ser desvelada e as mudanças almejadas sejam do cliente, e não do clínico, princípios mínimos devem se interpor no processo, de modo que o contrato social de solidariedade e coparticipação dos bens públicos, sejam garantidos (sobre isso, por exemplo, basta conferir, no código de ética do psicólogo, as situações em que o sigilo pode e deve ser quebrado) via, também, a ação terapêutica.

Para melhor esclarecer sobre o que estamos querendo argumentar, daremos um exemplo de nosso próprio campo de pesquisa. Uma das psicólogas entrevistadas diz não acreditar que indivíduos diagnosticados como perversos realizem a mudança necessária para voltarem a conviver em sociedade, desaconselhando para eles o processo psicoterapêutico. Para além da discussão sobre a pertinência ou não dessa perspectiva de compreensão sobre o abusador/pedófilo, a assunção desta posição sinaliza que ela tem "uma régua", utilizada para avaliar a mudança (benigna) almejada. De algum modo, todos os terapeutas, refletidamente ou não, possuem expectativas, avaliações (teóricas e morais) e ideia da direção para onde deve caminhar a mudança dos clientes. Elas estão tão presentes no processo quanto os sofrimentos e desejos de mudança de seus interlocutores. É na tensão provocada entre os dois projetos de mudança (o do terapeuta e o do cliente) que o processo tem condições de se estabelecer e se desenvolver.

Retomando as outras questões políticas (mais "pessoais") que se atualizam nas relações (transferenciais e contra-transferenciais) no setting (terapêutico ou jurídico), diremos que é justamente pela existência desses fenômenos, que se constitui a necessidade de supervisões, de grupos de intercontrole, de seminários, e, em última instância, de publicações de artigos, como parte mesmo do método de conhecimento clínico. Em todas essas instâncias, a ideia é que o clínico torne explícito para seus pares o modo como se deram as conduções de seus atendimentos, além das reflexões que esses lhes renderam.

Esses dispositivos de controle sobre os conhecimentos produzidos, acima elencados, devem proceder a análise das implicações do clínico. Em cada um desses fóruns de discussão, o psicólogo será questionado sobre as bases de seu trabalho. Não só os fundamentos teóricos e metodológicos do processo, também - e por ser, ele mesmo (o psicólogo), o principal instrumento de seu trabalho - suas implicações como alguém que é atualização singular de uma coletividade, encarnado que é pelos diferentes marcadores sociopolíticos (sexo-gênero, raça, classe, religião, etc.), condição para sua existência.

Só assim, dirá Lévy (2001), o processo de conhecimento viabilizado pelo método clínico se concretizará. Essas instâncias disciplinares do método clínico possibilitam um maior distanciamento do sujeito da intervenção (ou, do acusado/acusador/vítima/norma) e, a um só tempo, o ponto de encontro entre o novo (atuação prática do psicólogo em determinada situação) e o velho (teorias e consensos), de modo que o processo interventivo possa se revigorar, se tornando conhecimento compartilhável, utilizável em outros contextos. Elas permitem o surgimento de novos consensos sobre subjetivação/singularização, sobre técnicas de intervenção e mudança e, também, redescrições do campo do considerado normal.

No caso do psicólogo jurídico, quando chamado pelo juiz para opinar, e se tiver seu parecer acatado, ele tem a capacidade de ir além de interferir apenas sobre um caso concreto. Os autores dos pareceres poderão ter a capacidade de contribuir para ampliar o campo do legal (e do ilegal), quando o seu dito incrementar jurisprudências. Nesse sentido, o parecer psicossocial pode ser pensado como uma instância normativa, no sentido dado por Canguilhem (2006), no nível sociocultural.

O conceito de normatividade apresentado por Canguilhem (2006), a capacidade do organismo instaurar novas normas, em contraposição com a condição de conformidade diante do estado patológico, como apontando para a saída da doença rumo à saúde, pode ser retomado para localizar o papel do relatório psicossocial. Aplicando livremente as ideias do autor ao campo que nos interessa, pensamos na possibilidade de constituição, no caso a caso da lida da escuta psicossocial, da construção de um conhecimento singular que pode ajudar na formulação de novas jurisprudências, e de novas leis - no nosso entender, um processo sociocultural correlato à normatividade organísmica (ou psicossocial) discutida por Canguilhem (cf. Santana, 2009).

A reflexão que realizamos acima nos permite localizar a responsabilidade, a qual as psicólogas já afirmaram ter, num plano ainda mais coletivo dos processos sociais - dos indivíduos para a sociedade. Ela pode ir para além de um caso individual, se imiscuindo nas instâncias mesmas de criação e recriação da norma da lei.

Ainda nessa linha, podemos dizer que Foucault (1988) se alegraria em saber que suas hipóteses se confirmam em nosso contexto de investigação. Não apenas as instâncias científicas, mais e mais, interferem no "cumpra-se da lei", mas (e cada vez mais) nossas interlocutoras estão presas no dispositivo de sexualidade. A cada ano falam mais e melhor sobre sexualidade, quando poderiam apenas estar falando sobre relações familiares.

 

Conclusão - Psicologia, para Onde Te Encaminhas? Para um Livre Conhecimento sobre as Condutas Humanas ou para a Delegacia de Polícia?

Nesse quadro, o enigma de Canguilhem (1973) - epígrafe com a qual iniciamos o artigo - não deve intimidar o psicólogo em seu fazer. Muito menos levar a desprestigiar a ciência psicológica por produzir conhecimentos utilizados pelas instâncias de gestão da sociedade. E nem precisamos evocar novamente Michel Foucault para afirmar o lugar híbrido de toda forma de conhecimento, seja em que linhagem se afilie: saber é poder. Basta lembrarmos da própria história da ciência, que nasceu com a utopia de conhecer melhor o mundo, para melhorar a existência dos humanos. Toda ciência tem um pé lá, na intervenção; e toda intervenção objetiva mudar pelo menos uma parte do mundo. A grande questão é que, além de boas ferramentas para promover mudanças, também se precisa ter ótimos critérios para decidir sobre o que merece, ou não, ser mudado.

Por isso mesmo, pelo fato de que nenhum saber é intrinsecamente neutro, e por, todo ele, ter implicações políticas, deve-se cada vez mais chamar os psicólogos para tomar o enigma, ao qual alude Canguilhem (1973), como um importante obstáculo epistemológico (Bachelard, 1996) a ser enfrentado. Obstáculo que, se superado, possibilitará um conhecimento psicológico não apenas válido, mas útil à humanidade.

Certamente os psicólogos jurídicos (ou de qualquer outra área da profissão), se conseguirem fazer um conhecimento reflexivo e crítico, que se atualize em intervenções que priorizem o bem estar de indivíduos e coletividades, que contribua para a manutenção e/ou alargamento de lugares de inscrições dos atores sociais no mundo, onde os princípios da promoção da solidariedade e do acesso aos bens coletivos sejam garantidos - e ainda nas palavras de Canguilhem (1973) - não merecerão mais a acusação de carecerem de rigor, exigência e controle.

Ao usar conhecimento - não como o "olho de Deus", lugar absoluto de onde se pode, neutramente, classificar as condutas humanas (Haraway, 1995), mas - como um processo sistemático, reflexivo e crítico de melhor compreender para melhor atuar sobre o mundo - que, dada a historicidade humana, nunca se completa -, poderá, o psicólogo (seja lá onde estiver), se oferecer como um instrumento de transformação social, auxiliando o confessor, o educador, o chefe, o juiz (etc.) a constituir a normatividade da lei.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 24/11/2012
Aceito em 31/03/2013

 

 

1 Por contingência do trabalho de campo, apenas mulheres foram entrevistadas
2 Guarda, Modificação de Guarda, Regulamentação de Visitas, Alimentos, Revisional de Alimentos, Execução de Prestação Alimentícia, Exoneração de Pensão Alimentícia, Busca e Apreensão, Separação Judicial Litigiosa, Separação de Corpos, Investigação de Paternidade, Divórcio Consensual, Divórcio Litigioso, Destituição do Poder Familiar
3 Nossas interlocutoras atribuem o fato à disseminação de informações sobre os aparatos de proteção à criança e ao adolescente, incluindo as discussões nos planos governamentais, no âmbito da sociedade civil organizada e as campanhas midiáticas
4 Ressaltemos que em 2006 não foi possível consultar 20 relatórios e em 2007, 60 relatórios. Estes deram entrada no SAT, mas, ou ainda estavam em tramitação, ou os processos foram devolvidos às varas, através de ofício, sem relatório
5 Neste ponto, pedimos licença e, saindo da postura analítica, queremos passar ao diálogo com nossas interlocutoras. Tendemos a concordar com Carolina sobre a necessidade de uma punição que mostre para criança o desmentido e permita que ela se reestruture; não obstante, temos nossas reticências em relação a uma perspectiva meramente punitiva, e ao descrédito em relação a uma forma de tratamento do abusador. Não é foco desse texto discutir qual a melhor resposta em relação aos "perversos"/abusadores, de modo que, além de punidos, também sejam cuidados. Mas, não poderíamos nos furtar de apontar que esse assunto precisa de investimento em pesquisas e discussões, dada a clara falência do atual modelo punitivo vigente - o qual, todos concordam, parece não contribuir para "recuperar" ou "re-socializar" os autores desse e de outros crimes. Do mesmo modo, é importante apontar os substratos ideológicos da nebulosa e pouco precisa categoria perversão. Herança da sexologia oitocentista, esta, ao longo da história da sexualidade ocidental, vem servindo como instrumento de destituição de humanidade para pessoas com práticas sexuais que fogem à norma heterossexual, ainda que, muitas das vezes, suas práticas não coloquem em causa a vida e o bem estar de outras pessoas, ou da coletividade (cf. Foucault, 1988; Rubin, 1998)
6 É importante sublinhar que a psicologia clínica aqui é tomada na acepção do senso comum psicológico, que localiza o clínico, não como um método de conhecimento (Lévy, 2001), mas como o campo de atuação do psicólogo na prestação de serviços de psicoterapia