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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549X
Rev. psicol. polít. vol.13 no.28 São Paulo dez. 2013
ClÁSSICOS EM PSICOLOGIA POLÍTICA
O Método em Psicologia Política
The Method in Political Psychology
El método en Psicología Política
La méthode en Psychologie Politique
Traduzido por Fernando Lacerda
Prof. Dr. em Psicologia pela PUC Campinas, Campinas , SP, Brasil. Atualmente é professor na Universidad e Federal de Goiás, Faculdade de Educação, Goiânia, GO, Brasil
Problemas Metodológicos da Psicologia Política
A psicologia política é um dos ramos que, em sua formalidade específica, começou a ser cultivado recentemente na América Latina. Isto não quer dizer que a psicologia dirigiu sua atenção para o âmbito da política apenas nos últimos anos e que, consequentemente, não podem ser identificados trabalhos de psicologia política em datas anteriores. Apenas significa que somente nas duas últimas décadas, especialmente na década de 1980, que a psicologia política começou a ser cultivada de forma sistemática por um bom número de cientistas sociais latino-americanos.
Três aspectos contribuíram especialmente para este interesse pela psicologia política: (a) o desenvolvimento da psicologia e, especialmente, da psicologia social, assim como o aumento do número de psicólogos em diversos países da América Latina; (b) a consciência sobre a urgência e a gravidade dos problemas sociopolíticos enfrentados pelos povos latinoamericanos e o impacto, direto e indireto, tanto sobre a saúde mental dos indivíduos, quanto sobre o desenvolvimento pessoal coletivo; (c) a crescente insatisfação com o papel desempenhado pela psicologia no interior do ordenamento social dos países latinoamericanos, identificado como um papel que serve predominantemente aos interesses das classes no poder (Martín-Baró, 1986; 1987a).
Ao se buscar a elaboração sistemática da psicologia política, começaram a aparecer, explicitamente, diversos problemas enfrentados por este ramo do quefazer das ciências sociais. Estes problemas podem ser sintetizados em três categorias (ver Martín-Baró, 1988a):
(1) Problemas teóricos. Inexiste uma boa teoria que ilumine e oriente o trabalho de pesquisa e prática. Já existem alguns esboços iniciais (ver, por exemplo, Fernández Christlieb, 1987; González Rey, 1987) que não são menos valiosos por serem incipientes, mas que, sem dúvida, estão muito longe de constituir uma teorização suficientemente abrangente e que, ao mesmo tempo, serve de sustentação para a diversidade de problemas sobre os quais se busca pesquisar e atuar, indo desde a alienação no trabalho até a organização sindical e política, desde os traumas produzidos pela repressão até as lutas revolucionárias, desde a liderança grupal até o sentimento nacionalista dos povos latino-americanos.
(2) Problemas metodológicos. Não há acordo e nem mesmo clareza sobre os princípios que devem orientar o trabalho de pesquisa ou as formas de intervenção e, muito menos, quanto ao instrumental adequado para estas tarefas. Neste sentido, muitas das críticas formuladas ao quefazer da psicologia dominante não se desdobram na elaboração de metodologias alternativas. Este ponto será analisado no presente trabalho.
(3) Problemas práticos. Evidentemente, a psicologia política enfrenta dificuldades consequentes de suas deficiências teóricas e metodológicas: a falta de clareza sobre a natureza dos processos e fatos analisados, assim como a inexistência de uma metodologia consistente para a análise e a intervenção acarretam óbvios problemas práticos. A esta dificuldade intrínseca, são acrescidas as barreiras que as condições sociais imperantes colocam para este tipo de trabalho, que serão tanto maiores quanto mais críticas forem as áreas de intervenção. Fazer psicologia política implica envolver-se de maneira explícita no jogo de forças políticas, com tudo o que isso significa no interior dos regimes existentes nos países latino-americanos.
Vamos examinar, brevemente, cinco problemas metodológicos concretos enfrentados pela psicologia política latino-americana, tal como ela está se desenvolvendo no momento atual e partindo dos trabalhos apresentados no presente livro e naquele que antecedeu esta publicação (Montero, 1987).
O Objeto Específico da Psicologia Política
Como não poderia deixar de ser, o primeiro problema metodológico está ligado aos problemas teóricos: não está claro ou, pelo menos, não existe um consenso convincente sobre qual é o objeto específico da psicologia política, isto é, o ponto ou aspecto peculiar sobre o qual deve se centrar a análise e/ou a intervenção.
A primeira confusão surge da dúvida sobre se a psicologia política deve focar a psicologia do quefazer político ou se deve examinar o que pode ser chamado de política da psicologia, isto é, tudo aquilo que, na psicologia e no trabalho dos psicólogos, está determinado por interesses sociopolíticos ou contribua para articular esses interesses na práxis social (há um desenvolvimento maior deste ponto em Martín-Baró, 1988a). Certamente, uma coisa é examinar a participação de uma população no processo eleitoral ou proporcionar atenção psicoterapêutica para pessoas torturadas por razões políticas e outra, muito distinta, é analisar a função social que a psicologia está desempenhando no interior de um sistema social, por exemplo, avalizando com o selo de "ciência" a discriminação social realizada pelo sistema escolar.
No caso de se escolher por uma psicologia da política, fica ainda por precisar o que pode ser definido formalmente como comportamento político. Pode-se destacar pelo menos três possibilidades: (a) que o caráter político provém daquilo que se faz; (b) que sua especificidade surge mais claramente do como se faz; e (c) que o político está determinado pelo sentido do que se faz (Martín-Baró, 1988b). Expliquemos brevemente estas três possibilidades.
(a) Uma visão considera políticos, todos os comportamentos realizados nos marcos do Estado, tomando como atores tanto os organismos e representantes estatais (por exemplo, governantes, legisladores ou partidos políticos), quanto os indivíduos e os grupos que ingressam nesses marcos (por exemplo, cidadãos que participam de um processo eleitoral ou de uma manifestação política). Esta definição tem a vantagem de delimitar de forma precisa os comportamentos e os processos que são considerados políticos. Porém, como bem destacam Cot e Mounier (1985:19): "definir a política como Estado é cair no institucionalismo" e, com isso, deixar de lado um grande número de comportamentos que, sem dúvida alguma, têm um importante caráter político: por exemplo, uma greve ou uma paralisação sindical.
(b) Outra visão, toma como políticos todos os comportamentos em que se coloca em jogo alguma forma de poder. Em outras palavras, só é político aquele comportamento que se realiza com poder ou que desdobra alguma forma de poder. No entanto, todo comportamento humano, na medida em que coloca em relação duas ou mais pessoas, envolve o equilíbrio de recursos entre os atores, dando poder (ou não) para uns em detrimento de outros (Martín-Baró, 1989). Neste sentido, todo comportamento interpessoal ou intergrupal supõe, por menor que seja, algum grau de poder e, portanto, seria político. Mas, se todo comportamento é político, o objeto da psicologia política se torna excessivamente amplo e vago e, na prática, pode ser identificado com o objeto da psicologia em geral. Mesmo aceitando que política e poder são áreas intimamente relacionadas, é necessário detalhar em que condições o exercício de poder nas relações humanas pode definir um ato como político.
(c) Uma terceira visão considera um comportamento como político a partir do seu sentido, isto é, da relação que esse comportamento tem com a ordem social e do impacto que produz nela. É claro que todo ato pode remeter, de alguma forma, à ordem social em que ocorre, mas nem todo ato tem o mesmo impacto sobre ela; somente aqueles atos que têm algum efeito significativo no sistema social, seja para manter, seja para mudar, podem ser considerados como políticos. A criança que retira de seu irmão um brinquedo está exercendo poder, mas este ato não exerce o mesmo impacto sobre a ordem social que o ato do patrão que se apropria da maisvalia gerada pelo trabalho de seu operário ou do governo que estatiza parte das terras de um país com o fim de realizar reforma agrária. Nestes casos, o poder exercido tem efeito sobre o sistema social estabelecido, no primeiro se contribui para a manutenção e no segundo para a mudança. Definir o ponto em que o impacto de um comportamento na ordem social pode ser considerado significativo é algo difícil, mas parece a melhor maneira de especificar quando um ato é político ou em que âmbito e em que medida é político.
O fato de nos inclinarmos pessoalmente pelo terceiro tipo de definição sobre o político não significa que seja uma proposição inquestionável e que responde todas as dúvidas sobre o objeto da psicologia política. Nenhuma alternativa é totalmente convincente, porque nenhuma consegue resolver satisfatoriamente as dificuldades que surgem no momento de especificar a análise ou a intervenção da psicologia política. E como é possível caminhar até o objeto da psicologia política (metodologia) se ele nem mesmo está adequadamente definido ou especificado? Muitas das deficiências metodológicas que podem ser apreciadas nos trabalhos de psicologia política são decorrentes desta imprecisão de seu objeto.
Os Pressupostos Neopositivistas
É indubitável que a psicologia alcançou seu desenvolvimento atual a partir dos pressupostos do neopositivismo, os quais tomam como paradigma de pesquisa o método experimental tal como é realizado no laboratório. Este acorrentamento da psicologia ao método experimental e aos pressupostos neopositivistas foi duramente criticado, especialmente na psicologia social. Entre as críticas mais importantes estão aquelas que qualificam esta visão psicológica como hedonista, individualista e a-histórica (Martín-Baró, 1986), além de baseada em uma visão muito pobre de ser humano.
Mas, após aceitar aquilo que é válido nestas críticas, seria um grave erro "jogar fora acriança junto com a água suja". É necessário reconhecer que a psicologia conseguiu um desenvolvimento metodológico e instrumental valioso. Pode-se e deve-se criticar o emprego mecanicista e abusivo dos testes e é possível e necessário até recusar muitos dos testes mais comumente empregados, que revelam sérios preconceitos culturais e de classe. Todavia, não se pode descartar o teste como um método de pesquisa e de prática profissional, renunciando, assim, a uma fonte de conhecimento cuja utilidade foi verificada em diversas circunstâncias e com diversos objetivos. Não está provado que a utilização dos testes significa, automaticamente, uma subordinação aos pressupostos positivistas e menos ainda subordinação às necessidades do poder sociopolítico estabelecido, ainda que seja necessário admitir que, frequentemente, este é o caso.
Se a ideia de que os métodos empregados pela psicologia não estão necessariamente vinculados com os pressupostos positivistas é assumida, então é necessário revisar sua utilização concreta para identificar o que a filosofia neopositivista acrescenta aos métodos, podendo afetar essencialmente sua natureza. Assim, por exemplo, a "operacionalização" das hipóteses não tem porque incorrer em coisificação das variáveis e nem a interpretação dos resultados pode absolutizar a ligação unidirecional, estatisticamente estabelecida, ou negar o sentido macrossocial do dado individual.
Os métodos e, especialmente, os instrumentos não são mais do que isso, métodos e instrumentos, e o que se faz com eles depende, em boa medida, do marco teórico em que são utilizados, assim como do caráter de sua utilização. Obviamente, isto não quer dizer que qualquer metodologia ou qualquer instrumento podem ser usados a partir de qualquer teoria ou para qualquer problema; significa, apenas, que o método deve ser definido a partir da elaboração do problema e não o inverso (Wright Mill, 1959/1977).
Como resgatar a rica metodologia de pesquisa da psicologia despojada de pressupostos neopositivistas? Este é um problema e um desafio à elaboração e à clareza científica daqueles psicólogos que querem cultivar a psicologia política e é algo que aparece em vários trabalhos deste volume e de Psicología Política Latinoamericana (Montero, 1987).
Métodos Quantitativos e Qualitativos
Sempre existiu na psicologia uma tensão entre aqueles que dão primazia aos métodos quantitativos e aqueles que a atribuem aos qualitativos. Durante muito tempo, esta tensão esteve inclinada em favor da metodologia quantitativa, compreendida em um sentido muito rígido e quase mecânico. Ainda é difícil convencer alguns psicólogos formados no neopositivismo que é possível fazer ciência, pelo menos esse tipo de ciência que é a psicologia, sem necessariamente recorrer à estatística e que um estudante pode realizar uma excelente tese sem obrigatoriamente incluir nela alguma análise de variância.
Toda quantificação implica a redução dos fenômenos a apenas uma única dimensão e, por mais que se detalhe, esta redução significa perder grande quantidade de informações sobre a realidade, perda que, com frequência, desfigura a natureza mesma do fenômeno sobre o qual se pretende refletir. Mais ainda, a quantificação pode induzir uma perigosa codificação do objeto, reduzido ao número. Um caso típico é a análise psicológica da inteligência humana. A análise fatorial aplicada ao comportamento inteligente chegou ao ponto de compreender a inteligência como um conjunto de fatores ou dimensões ortogonais que foram, na prática, considerados como elementos reais. Mas a "realidade" desses fatores ou dimensões é a de um simples artifício analítico: são os resultados "batizados" por meio de um processo de rotação de uma matriz que, em um determinado momento, são apreendidos por uma decisão do analista, que atribui certa razão de ser para a dispersão dos comportamentos diante de certos estímulos.
De fato, boa parte dos estudos mais importantes, "antigos" e "modernos" da psicologia social e, certamente, aqueles com maiores implicações políticas (como os estudos de Sherif ou de Asch, de Lewin ou de Milgram) se restringiram ao nível da estatística mais elementar, a apresentação de porcentagens. Todavia, as principais revistas da área, como Journal of Personality and Social Psychology que é considerada "a" cátedra por excelência da psicologia social dominante, estão se caracterizando pela crescente complexidade metodológica, que se notabiliza pelo desenvolvimento e pela acessibilidade dos sistemas de computação e dos pacotes estatísticos.
Mas, recentemente, a psicologia social e, ao seu lado, a psicologia política estão buscando, cada vez mais, uma série de métodos qualitativos que permitem a compreensão e interpretação dos processos, e não apenas a explicação causal ou a correlação. No meio latinoamericano, a tradução e publicação do livro de Schwartz e Jacobs (1984) representou um reconhecimento formal desta orientação, agora legitimada por um texto acadêmico reconhecido que já era utilizada em alguns âmbitos por influência social militante.
Contudo, a tensão permanece. Em parte, porque com frequência a aplicação dos métodos qualitativos não extrapola um nível descritivo elementar e, em certas ocasiões, não passa da mera especulação, o que é duramente criticado pelos defensores da quantificação; mas a tensão continua, também, porque agora alguns dos defensores dos métodos qualitativos passaram para a ofensiva e pretendem negar o valor social, quando não toda validade, dos métodos quantitativos. Esta tensão é claramente observável nos trabalhos de psicologia política: em alguns casos, a metodologia é de corte quantitativo, mais ou menos complexo; em outros, são aplicados métodos qualitativos. São poucos os trabalhos que buscam uma síntese metodológica, que integra a formalização quantitativa sem prejuízo da análise e da compreensão qualitativa dos fenômenos.
O Compromisso Pessoal
Um dos problemas mais intensamente debatidos sobre o trabalho científico e que é particularmente crítico em tudo o que se relaciona com a política, é o das opções axiológicas do próprio indivíduo: é necessário introduzir no desenvolvimento da ciência os valores ou a natureza do trabalho científico demanda a assepsia e o esforço deliberado para evitar que as opções pessoais condicionem a busca da verdade?
A partir da perspectiva neopositivista não há muitas dúvidas sobre o tema: o cientista deve se abster de misturar seus valores com seu trabalho e se esforçar na busca pela objetividade total diante dos fenômenos que estuda. Porém, o assunto não é tão simples e não basta a intenção, por mais sincera que ela seja, para evitar o envolvimento pessoal no trabalho. A partir de diversas perspectivas foi destacada a inevitável implicação do cientista em seu trabalho, tanto pela natureza do ato de conhecer, quanto pelo caráter da relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento, especialmente quando, como ocorre na psicologia, o sujeito se vê refletido em seu objeto. Querendo ou não, a perspectiva assumida pelo pesquisador, seu posicionamento social e pessoal, condiciona aquilo que ele pode apreender do objeto e, ainda, como pode apreendê-lo. A objetividade, então, não pode residir em uma mera negação desse condicionamento limitante, mas em saber e reconhecer onde reside e como lidar adequadamente com essa parcialidade ou limitação.
O problema do envolvimento pessoal é particularmente agudo na psicologia política, já que, desde o início, há uma implicação dupla do sujeito e do objeto: desde a psicologia, porque o cientista também é humano; desde a política, porque tudo o que se relaciona com o ordenamento da vida social afeta decisivamente a vida e o destino do cientista. Assim, é absurdo buscar assepsia diante do fenômeno da tortura, indiferença diante dos conflitos de nossa própria classe social ou imparcialidade diante da educação política de nossos próprios filhos. Em todos estes casos, o cientista sente-se afetado pelo objeto de sua análise, diante do qual assume uma postura e uma opção que obviamente condicionam a compreensão do que ele pode realizar. Conseguir o senso crítico necessário para manter sob controle a influência dos próprios valores é, portanto, um dos problemas mais difíceis que enfrenta o psicólogo que pretende trabalhar na área da política.
Epistemologia Psicopolítica
Vincula-se com o problema anterior uma questão ainda mais crítica para o psicólogo político: o critério para se determinar quando um conhecimento é verdadeiro e, portanto, esclarecer o que é verdade na política.
Na psicologia clínica é bem conhecido o chamado efeito iatrogênico, ou seja, a influência que o diagnóstico e a atitude do médico podem ter sobre a enfermidade do paciente. O enfermo com alta temperatura pode piorar pela preocupação e pela angústia provocadas por saber que está em estado grave, mas pode melhorar com a tranquilidade e o otimismo produzidos por saber que não está tão mal. Disto não se conclui que o médico deve ocultar sistematicamente dos enfermos o seu estado atual; mas se conclui que uma enfermidade não é algo que afeta somente o corpo e que a relação com o médico é um fator importante para a evolução psicossomática da doença. Onde está, então, a verdade? Em indicar positivamente o estado atual do paciente ou antecipar o efeito que pode ter o conhecimento adquirido, isto é, como o paciente ficará após conhecer seu estado?
Este efeito do conhecimento da realidade não é algo específico da relação clínica. Na psicologia social é conhecido o chamado "efeito Pigmaleão" (Martín-Baró, 1983; Rosenthal & Jacobson, 1968) e, em geral, aquilo que é conhecido como as "profecias que provocam a própria realização" (self-fulfilling prophecies, ver: Merton, 1968; Miller & Turnbull, 1986). Na psicologia política, o problema se coloca com particular importância porque "conhecimento é poder". Em outras palavras, um saber pode mudar dialeticamente aquilo que é verdadeiro, posto que aquilo que o era até um determinado momento, deixa de ser por consequência de seu conhecimento público ou da tomada de consciência sobre sua realidade. Este problema é confrontado de maneira original pela chamada "pesquisa-ação" (Fals Borda, 1986), que submete o conhecimento aos interesses dos próprios pesquisados e, desta forma, faz da verdade não um dado estático, mas dinâmico.
O problema sobre o critério de verdade toca um dos aspectos mais fundamentais da psicologia política, tal como é realizada atualmente na América Latina: o seu objetivo. Para que fazer psicologia política? Ela busca a pesquisa pelo conhecimento em-si ou busca pela necessidade de mudar as situações enfrentadas pelos povos latino-americanos? O quefazer psicopolítico não está condicionado apenas pelo "a partir de onde" e "a partir de quem", mas também pelo "para onde" e o "para quem". Além das temáticas e dos métodos preferidos, algumas das diferenças mais significativas que vão se delineando entre a psicologia política latino-americana e aquela que se faz nos Estados Unidos ou na Europa surgem deste condicionamento teleológico, com sérias consequências metodológicas na definição da verdade e nos critérios de validação do conhecimento adquirido.
Princípios Metodológicos
Diante dos cinco problemas metodológicos enfrentados pela psicologia política latinoamericana, podemos estabelecer cinco princípios correspondentes que, em nossa opinião, estão orientando o trabalho concreto realizado nesta área. Isto nã o quer dizer que todos os psicólogos latino-americanos que pesquisam ou atuam na psicologia política estão de acordo com todos os princípios e muito menos que seus trabalhos se adequam a eles; uma análise sumária dos relatos e das análises publicados neste livro e no anterior (Montero, 1987) bastaria para refutar essa pretensão. O que se argumenta é que estes princípios esboçam um horizonte metodológico fundamentalmente diferente daquele estabelecido pelo neopositivismo, isto é, configuram um novo paradigma metodológico, ao qual psicólogos, como aqueles que colaboraram com o presente livro, aderem com maior ou menor convicção e coerência.
A Integridade do Ser Humano
Boa parte das deficiências da psicologia deve-se ao tratamento fragmentado do ser humano. O objeto estudado e analisado pelo psicólogo, frequentemente, não é o homem ou a mulher da realidade social cotidiana, a criança ou o idoso que trabalham e amam, sofrem e divertem-se, nosso vizinho ou nós mesmos, mas um ser abstrato, descontextualizado, um conjunto de variáveis mais ou menos interligadas, mas que carecem de vida real e, sobretudo, de história.
A psicologia política busca reconstruir o objeto da psicologia, devolvendo o ser humano à sua sociedade e sua história, isto é, recuperar sua existência pessoal social. Isto requer, em primeiro lugar, considerar o ser humano em sua exterioridade e interioridade. O ser humano é uma realidade objetiva no âmbito de uma sociedade e, portanto, objeto e sujeito nas circunstâncias, produto e produtor de condições materiais, interlocutor e referência de relações sociais. Mas o ser humano também é realidade subjetiva, criador de uma perspectiva e de uma atividade e, portanto, produtor de uma história (pessoal e social) e portador de uma vivência. Ver o ser humano assim requer devolve-lo a sua circunstância social e sua história, que não são meras variáveis somadas à realidade pessoal, mas bases essenciais dessa realidade.
Em segundo lugar, a reconstrução do objeto da psicologia requer a recuperação da dimensão macrossocial do ser humano, sem, com isso, descartar a dimensão microssocial individual, assim como é necessário elaborar as mediações históricas entre essas dimensões. É raro o estudo psicológico que extrapola o plano do indivíduo e, nos melhores casos, que converte o contexto sócio-histórico em algo mais do que uma variável ambiental. Há aqueles que, inclusive, fizeram do individualismo o princípio, por excelência, da metodologia psicológica (ver Lukes, 1973). A psicologia política, ao contrário, remete o ser humano e seu comportamento ao sistema social do qual é parte e ator e, assim, obriga a inclusão do marco estrutural em toda análise, não como algo extrínseco ao comportamento das pessoas e dos grupos, mas como um constitutivo essencial.
Agora, o perigo reside em acreditar que se resolve essa exigência da psicologia política adicionando uma nova "variável", isto é, limitando-se a uma mera justaposição do aspecto macrossocial com as análises microssociais que, possivelmente, foram cuidadosamente elaboradas, mas sem uma suficiente interconexão. A incorporação da dimensão macrossocial exige elaborar todas as mediações psicossociais que vinculam historicamente a realidade das estruturas sociais básicas com os comportamentos concretos dos indivíduos. Na interface entre o macro e o micro são filtrados e depurados os interesses sociais e se gera, portanto, a ideologia. Por isto, por exemplo, a exigência da psicologia política não é resolvida com o estabelecimento de uma simples correlação entre uma determinada ação ou forma de agir e o pertencimento a uma classe social; é necessário examinar todos os processos que vão desde o pertencimento de um indivíduo a uma classe até a sua maneira de se comportar para, assim, discernir porque esse indivíduo age de um modo e seu irmão, que, em princípio, pertence à mesma classe social, de outro. Mas é necessário examinar, também, a relação na direção inversa, isto é, o sentido da ação de um dado indivíduo no interior de sua sociedade e o impacto que suas diversas formas de agir produzem no equilíbrio de forças sociais. Neste sentido, a psicologia política deve dedicar atenção aos processos do ser e agir das pessoas e dos grupos, assim como às vivências mediadoras e aos efeitos desse agir, indo para além das formas psíquicas já definidas (independentemente da concepção adotada para essa definição) ou da apreensão dos comportamentos já realizados como meros dados positivos.
Superar a Dualidade Sujeito-Objeto
O quefazer dos psicólogos - especialmente o daqueles dedicados à pesquisa, mas, também, algumas vezes, daqueles ocupados com a prática profissional - tende a assumir como ponto de partida a dualidade sujeito-objeto: eles são os sujeitos da atividade e o outro ou os outros são os objetos do estudo, da análise ou da experimentação; em todos os casos, são objetos passivos, sem possibilidade de definir ou determinar a interação. Esta relação assimétrica tende a despojar a pessoa que ocupa o lugar de objeto de algumas de suas características mais singulares e, frequentemente, ela é convertida em uma coisa que é examinada e estimulada, observada e questionada, mas que não tem a possibilidade de ação recíproca ou, pelo menos, de participar na direção do processo. Desta forma, o saber ou o efeito produzido resultam da ação unilateral do psicólogo, mas não propriamente da interação entre o pesquisador e o pesquisado. Não é de se estranhar, portanto, que, com frequência, as pessoas sintam que o pesquisador as trata como simples cobaias de laboratório e que muitas rejeitam os pesquisadores e entrevistadores que as procuram afirmando que o conhecimento adquirido será útil no futuro - quando toda a experiência indica o contrário, isto é, que este tipo de saber ou é arquivado em uma tese que ninguém lê ou é utilizado apenas por aqueles que, em posições de poder, não compartilham dos mesmos interesses.
Romper com a dualidade na pesquisa da psicologia política requer que tanto o pesquisado, quanto o pesquisador sejam sujeitos do conhecimento que é produzido. Segundo Fals Borda (1986:130), nisso radica a essência da participação: na "ruptura voluntária e vivencial da relação assimétrica de submissão e dependência, implícita no binômio sujeito/objeto". A superação da assimetria é particularmente importante na psicologia política, já que o que está em jogo é um conhecimento político e, portanto, um poder crucial para a vida de grupos e pessoas.
Contudo, deve-se evitar a crença ingênua na participação pela participação. Uma visão simplista que surgiu de certos desdobramentos da chamada "dinâmica de grupos" associados com a "não diretividade" rogeriana tendem a atribuir virtudes quase milagrosas à participação, o que entranha, em certas ocasiões, consequências muito ilusórias. A coisificação e a assimetria da relação de pesquisa não são superadas com qualquer tipo de participação do pesquisado; de fato, com frequência se pede para ele atuar com espontaneidade ou expressar o que lhe parece melhor, o que, em-si, não muda a natureza da relação com o pesquisador, que continua sendo o dono das decisões fundamentais. Tampouco se deve acreditar que a dualidade sujeito-objeto é superada quando o pesquisador abdica de seu saber. Ocorre aqui algo semelhante àquilo que ocorre quando o educador busca ser mero "facilitador", mudança contra a qual Paulo Freire protestou veementemente e que nada tem que ver com sua pedagogia "do" oprimido. O pesquisador deve levar para a relação de pesquisa o seu conhecimento e a sua experiência técnica, tal como o educador deve contribuir com seu saber teórico e práxico para a relação pedagógica. O eixo de uma participação que possibilite superar a dualidade sujeito-objeto não significa que o pesquisador deve abandonar seu saber ou aceitar ingenuamente qualquer iniciativa do pesquisado, mas que a pesquisa seja realizada por meio de um diálogo contínuo entre o pesquisador e pesquisado, considerado como interlocutor válido desde o início até o final.
Liberdade Instrumental
Frequentemente, se confunde metodologia científica com instrumental técnico e se considera, de forma mais ou menos implícita, que uma boa pesquisa psicológica deve se servir de testes e questionários devidamente normatizados ("padronizados"). Não é raro que o estudante de psicologia fundamente sua tese a partir de um questionário que viu e gostou ou a partir de um teste que parece útil. Assim, o ponto de partida (e, muitas vezes, também de chegada) é o instrumento, que ganha um valor final e quase absoluto: a teorização e, o que é mais importante, a realidade analisada ficam subordinadas à ótica do teste ou do questionário escolhido.
A psicologia política latino-americana, ao menos aquela que se realiza durante a década de oitenta, parte de uma vontade explícita de contribuir para a análise e a resolução, junto com outras disciplinas, dos principais problemas que afligem os povos e que são de natureza política. Portanto, seu ponto de partida é extrínseco à própria disciplina; não se trata tanto de dar continuidade ao desenvolvimento da psicologia, mas de utilizar a psicologia como forma de abordar um aspecto dos problemas enfrentados pelas maiorias populares latino-americanas.
Assim, o método e, com mais razão ainda, o instrumental estarão necessariamente determinados pelo caráter do problema e vice-versa. Não há nada de novo nesta proposição que não é específica da psicologia política, ainda que seu horizonte particular de interesses obrigue enfatizá-lo.
Desta ênfase resulta uma desmistificação de todo o instrumental técnico da psicologia: o caráter científico de uma pesquisa ou de um trabalho não está vinculado com a utilização de qualquer instrumento específico. Por isso mesmo, é possível utilizar, com toda liberdade, qualquer instrumento disponível, sempre e quando não implique, por sua própria natureza, em uma visão reducionista do problema estudado.
À questão que colocávamos anteriormente sobre se os métodos e instrumentos utilizados pela psicologia neopositivista podem ser recuperados, os psicólogos políticos responderam utilizando-os com grande liberdade. É claro que isto não resolve o problema, já que é preciso questionar a coerência desta utilização, analisando se os resultados obtidos não contradizemas pretensões e os objetivos da psicologia política latino-americana. É possível que os psicólogos políticos estejam aplicando estes métodos e instrumentos porque são os únicos que conhecem ou dominam. Mas a resposta sobre sua validade para a psicologia política deve ser de caráter empírico, isto é, analisando, concretamente, se os resultados foram contaminados ou não. Os trabalhos apresentados no presente volume são uma amostra que pode ser submetida e este tipo de análise.
Envolvimento Pessoal
A psicologia política latino-americana não busca apenas realizar um tratamento asséptico dos problemas, mas parte de uma clara intencionalidade política e, portanto, de uma opção axiológica. Isto não significa que todos os psicólogos latino-americanos que trabalham na área política coincidam em suas opções concretas, ainda que tendam a estar de acordo com alguma atitude "progressista" e a se inclinar por posturas "de esquerda", levando em conta todos os matizes que esta caracterização implica nas circunstâncias de cada país. Mas nem mesmo este acordo mínimo pode ser generalizado a todos, já que, para apresentar um exemplo claro, existem psicólogos - felizmente, não muitos - trabalhando com as forças armadas de regimes conservadores e repressivos. Agora, independentemente da opção política concreta que os psicólogos da área defendem, há a coincidência nessa vontade de não se cindir pessoal e profissional e, portanto, de levar os valores ao terreno do quefazer científico e técnico.
Esta vontade política significa aceitar o envolvimento no jogo de forças que caracteriza a política. Por isso, raramente se pode dizer que ao psicólogo político interessa o conhecimento simplesmente por um afã acadêmico de promover o saber; o que interessa ao psicólogo político é, acima de tudo, promover certas causas sociais, a partir da perspectiva particular que é proporcionada por sua disciplina. "A valentia não elimina a cortesia", diz o ditado; e não há razão para que o envolvimento pessoal do psicólogo político subtraia rigor ou objetividade de seu trabalho. Inclusive, certa dose de paixão pode servir para mostrar a dimensão mais vivencial dos problemas, uma dimensão que, frequentemente, se perde entre o estilo forçosamente impessoal (se chegou a proibir a escrita em forma personalizada, como se encobrir o próprio discurso com a impessoalidade da terceira pessoa mudaria a sua natureza e o tornaria mais científico!) e a frieza das tabelas estatísticas.
A partir desta proposta metodológica chega-se a uma íntima conexão entre pesquisa e participação, entre conhecimento e intervenção. Não se trata apenas de tomar consciência do efeito que, desejado ou não, tende a produzir o mero fato de se fazer pesquisa, o que, tal como indicamos anteriormente, em alguns casos pode ser algo de grande importância; trata-se de orientar a pesquisa de acordo com os objetivos que os próprios envolvidos na pesquisa determinarão. Produz-se, assim, uma relação dialética que pode ser extraordinariamente criativa e que não permite a definição, a priori, das metas que conduzem a pesquisa, já que essas metas devem ser subordinadas às justas exigências daqueles para quem mais importa a pesquisa, que nem sempre ou não necessariamente são aqueles que a financiam ou encomendam.
O trabalho psicoterapêutico com vítimas da repressão política realizado no Chile pela equipe de Elizabeth Lira mostra a necessidade de que o psicoterapeuta tenha compromisso político claro e que este compromisso seja conhecido pelas pessoas que se pretende ajudar (Lira, 1988; Lira e col., 1984; Weinstein e col., 1987). De outro modo, é difícil estabelecer confiança e o trabalho do terapeuta pode ser compreendido como uma nova e sutil forma de agressão sociopolítica, orientada, neste caso, à própria intimidade das pessoas. Da mesma forma, o trabalho com sindicatos realizado no Brasil pelo grupo dirigido por Wanderley Codo (1987; 1988) é um exemplo de como se pode ir direcionando o conhecimento adquirido pela pesquisa para a promoção dos interesses dos setores populares (neste caso, sindicais) e isto a partir de sua própria ação e determinação, ao invés de uma decisão benevolente do pesquisador ou de sua equipe (Martín-Baró, 1988a).
A metodologia que melhor satisfaz esta proposta é a pesquisa ação, tal como foi desenvolvida por Fals Borda (1986). Posto que neste volume, Lane e Sawaia1 oferecem um excelente capítulo sobre esta metodologia, suas virtudes e seus limites, o leitor pode remeter a ele.
O Critério de Verdade
A validação de um conhecimento, o critério de verdade, é um dos problemas cruciais de qualquer filosofia da ciência. Ingenuamente, tende-se a pensar que a verdade reside na mera adequação entre conhecimento e realidade, mas o problema começa no momento de definir em que consiste essa adequação e, mais ainda, o que é, propriamente, "a realidade".
Não se trata de elaborar uma epistemologia da psicologia política aqui, mas de destacar a importância deste ponto como princípio que deve reger a metodologia desse trabalho, especialmente os desenhos de pesquisa, caso ele queira ser científico.
A visão neopositivista que predominou na psicologia sustenta que a verdade reside na adequação comprovada empiricamente entre um juízo e os dados da realidade. O pressuposto é o de que a realidade é precisamente um "dado", algo "dado", e, portanto, objetivo, extrínseco ao ato de conhecer e ao sujeito que conhece. O critério de verdade radicará, então, na possibilidade de "falsear" os juízos e hipóteses apresentados por meio da análise empírica dessa realidade dada, isto é, avaliar se é possível ou não manter sua validade demonstrando que são falsas. Assim, o que conta é o dado positivo, o fato como objeto independente, que deve impor sua "objetividade" e, por assim dizer, estabelecer o juízo de verdade sobre o juízo hipotético.
Agora, a definição positivista começa a se fragilizar a partir do momento em que aparece não apenas a relatividade histórica do conhecimento, mas o caráter social da própria realidade. Não há dúvida de que, particularmente considerado, cada fato é um dado. Mas sua facticidade fenomenológica perde sua aparente consistência quando, à particularidade abstrata, é devolvida a concretude social e histórica. Cada fato social e, portanto, cada dado psicológico são o que precisamente são enquanto produtos de uma história; mas em sua objetividade dada, na afirmação de sua facticidade (é assim e não de outra maneira) entranham também uma negação: tudo o que poderia ter sido "se" fossem dadas outras condições, "se" tivesse sido desenvolvida outra história social. O "dado", portanto, é inteligível somente em suas essenciais relações, diacrônicas e sincrônicas, com todos os seus concomitantes sociais, especialmente a luta e o exercício de poder social.
Este ponto é particularmente crítico quando se abordam comportamentos políticos. Um dos "dados" que mais tiraniza a realidade política latino-americana é o da alienação, isto é, a falta de controle das grandes maiorias populares sobre sua existência e destino. Sem dúvida, um exame positivista apreende que o indígena latino-americano é, passivo, presentista, carente de motivação de realização, fatalista e dotado de "lócus de controle" externo, para mencionar alguns dos traços com os quais se caracterizou seu estado de alienação social - características que também foram historicamente "encontradas" em todos os povos colonizados (Alatas, 1977; Fanon, 1972; Martín-Baró, 1987b). Mas, não seriam estes dados construídos a partir da mente daquele que tem o poder e, mais ainda, não refletiriam precisamente essa história de exercício de poder? Este dado, abstraído de sua história, perde seu sentido dialético, a necessária referência àquilo que ele nega e coisifica, quando não naturaliza (é assumido como algo "natural"), de forma a favorecer aqueles que detêm o poder sociopolítico.
Passa-se, assim, de uma concepção estática de verdade para uma concepção histórica. Não se trata de negar o dado em sua facticidade; trata-se de considera-lo como um momento dialético, e, portanto, como uma afirmação histórica, relativa. O efeito iatrogênico ou as profecias autorrealizadoras, antes mencionados, mostram a transitoriedade histórica do dado social. Assim, residiria a verdade no dado ("aquilo que é dado") ou no que "vai se dando"? No fato (factum) ou no "por fazer" (faciendum)?
A psicologia política, por sua orientação própria, se dedica ao exercício do poder, à configuração da realidade social. Neste sentido, o critério de verdade não pode se limitar à comprovação dos dados positivos, mas deve ser o da verificação, em um dos possíveis sentidos etimológicos do termo: "verum facere", fazer verdadeiro. Trata-se de fazer verdadeiras as realidades políticas que são o horizonte dos povos latino-americanos. Trata-se de converter a afirmação da alienação das maiorias em um momento dialético que será negado pela verificação libertadora, isto é, contribuir para que se "verifique", que se faça realidade e verdade o processo de libertação dessas maiorias. Assim, o dado factual da alienação é apenas um momento da verdade histórica; a verdade será sempre um processo no qual, com frequência, aquilo que vai se fazendo - possibilitado pelo conhecimento - transformará o fato. Assim como, muitas vezes, a práxis desmente a afirmação positiva do discurso ideológico, a verdade política por fazer revelará a "falsidade", historicamente pontual, de muitos dados positivos encontrados.
Sou consciente do quanto é questionável esta proposição epistemológica. Pode-se dizer que, ao fundo, nada muda, já que se reconhece a verdade do dado e que a única mudança realizada é a de confundir indevidamente o desejo com os fatos, as aspirações subjetivas (por mais bem-intencionadas que sejam) com as realidades objetivas, o conhecimento científico com sua aplicação ulterior e sua utilização para diversos fins. Mas é diferente reconhecer o dado como um momento do processo de verificação e reconhece-lo como o fim desse processo; neste caso, se abstrai a realidade de sua história, enquanto no primeiro, ela é reconhecida em sua própria história, o que muda, essencialmente, seu caráter, seu sentido e seu valor. Trata-se de contrapor uma epistemologia histórica a uma naturalista, uma concepção dialética de verdade a uma concepção estática.
Obviamente, esta proposição também pode induzir a uma ilusão permanente. Colocar a verdade no "por fazer" não significa remeter os processos a ideais inalcançáveis ou perpétuos "se" utópicos. Não basta afirmar teimosamente que "o povo unido jamais será vencido", colocando a vitória em um permanente amanhã escatológico que nunca chega; é preciso provar concretamente que determinada prática histórica é capaz de tornar real o que o dado positivo nega, em um tempo, em um espaço e em condições sociais concretas. Justificar-se com o "se não muda tudo, não muda nada" pode ser certo em princípio, mas pode ser ideologicamente tão ou mais enganoso, quanto aquela justificação da realidade existente que parte do pressuposto de que o ser humano sempre será o mesmo, que "sempre haverão pobres e ricos" e, portanto, que não cabe aspirar por "algo de novo sob o sol".
Técnicas de Pesquisa em Psicologia Política
A análise dos trabalhos apresentados no presente volume e no anterior (Montero, 1987), prova, da melhor forma possível, que a psicologia política latino-americana utiliza praticamente todas as técnicas disponíveis na psicologia, especialmente na psicologia social, com a exceção do experimento clássico de laboratório. Porém, em nosso juízo, esta utilização é um tanto acrítica e revela uma fase de transição, pois a aplicação dos princípios metodológicos apresentados antes significa, no fundo, um novo paradigma de pesquisa e é este novo paradigma o que deve ser efetivado com desenhos criativos que utilizam as técnicas necessárias, sejam elas tradicionais ou novas.
Não se busca aqui revisar todas as técnicas, porque, entre outras coisas, pouco ou nada se acrescentaria ao que muitos manuais e textos especializados apresentam. Façamos, isso sim, uma breve classificação das técnicas mais empregadas (até onde sabemos), pois isso ajudará a complementar a visão sobre a metodologia da psicologia política latino-americana.
É possível classificar as técnicas mais comuns na psicologia política latino-americana em três tipos: documentais, observacionais e interativas. Estes três tipos variam desde uma participação nula até a participação completa das pessoas pesquisadas e demandam graus diversificados de envolvimento pessoal do pesquisador.
A utilização da pesquisa documental experimentou grandes oscilações e foi praticamente descartada por todas as correntes vinculadas com o behaviorismo, tão dominante nos países latino-americanos na década de setenta. Certamente, esta pesquisa tem o perigo de reduzir a análise à interpretação quase literal de alguns documentos, sem diferenciar, suficientemente, o plano do discurso ideológico do plano dos processos psicológicos envolvidos. A grande vantagem oferecida é a possibilidade de recuperar a dimensão histórica dos processos e, desse modo, possibilitar especificamente uma análise ideológica que contrapõe o discurso e os comportamentos concretos.
Há uma grande diferença entre a análise tradicional de conteúdo, praticada pela escola norte-americana de Ithiel Pool (1959) e que, fundamentalmente, se limita a quantificar os conteúdos definidos como unidades analíticas (conceitos, juízos, valores e outros) e a complexa análise estrutural desenvolvida pelo argentino Eliseo Verón (1976) ou a análise contextual realizada por Armand Mattelart (1973) que propõem uma meticulosa análise ideológica. Estes formatos são de grande utilidade para a análise da psicologia política e recentemente foram aperfeiçoados por psicólogos franceses (ver também: López Aranguren, 1986).
As pesquisas observacionais constituem o segundo tipo de técnicas mais usadas na psicologia política latino-americana. Incluem-se aí tanto questionários e levantamentos de opinião, quanto técnicas utilizadas pela observação participante. Por exemplo, os registros observacionais ou o diário de campo. O maior perigo destas técnicas é a dificuldade de superar a dualidade sujeito-objeto que, como destacamos, tende a coisificar o pesquisado, submetendo-o ao poder de vivissecção do pesquisador, que controla o conhecimento e a iniciativa. Sua maior vantagem é a de possibilitar realizar a quantificação sistemática dos processos e dos comportamentos.
Há alguns anos, apresentamos a possibilidade de utilizar os estudos de opinião pública como um instrumento de desideologização (Martín-Baró, 1985). Nossa proposta surgia da experiência concreta obtida em nosso trabalho como psicólogo social em El Salvador, que obrigatoriamente enfrentava essa onda alienadora que é a guerra psicológica e que é parte essencial dos "conflitos de baixa intensidade". Uma das consequências mais nocivas dessa guerra psicológica é a impossibilidade das pessoas efetivarem uma formalização adequada de suas vivências políticas. Neste contexto de conflito social, os levantamentos de opinião pública podem ser utilizados para contribuir nessa forma específica de conscientização que é o reconhecimento da própria experiência no sistema social. Mencionávamos, em 1985, quatro condições para que o trabalho contribuísse ao quefazer desalienador:
(a) ser sistemático, tanto em relação à temática, quanto ao tempo;
(b) ser representativo dos grupos mais importantes de uma população (o que é uma condição óbvia, mas que convém lembrar);
(c) buscar uma totalização de sentido, estabelecendo, até onde é possível, as configurações atitudinais que sustentam as opiniões; e, acima de tudo,
(d) devolver dialeticamente os resultados para a população como matéria de reflexão crítica.
Em 1986, fundamos, na Universidad Centroamericana de San Salvador, o Instituto Universitario de Opinión Pública (IUDOP). A experiência desenvolvida, desde então, confirmou nossas proposições, fazendo do IUDOP uma instância útil para intervir criticamente nos processos políticos de El Salvador no interior da guerra civil que assola o país desde 1980. Mais ainda, a experiência do IUDOP foi essencial para se iniciar um trabalho similar em outros países da América Central (até agora: Costa Rica, Honduras, Nicarágua e, possivelmente no futuro, Guatemala e Panamá).
Um interessante fruto adicional deste trabalho de opinião pública foi o de desmascarar a manipulação realizada pelo governo norte-americano de Reagan sobre os resultados de supostos estudos realizados pelo CID-Gallup de Costa Rica. Estes resultados demonstravam que os centro-americanos apoiavam massivamente a ajuda militar aos "contra" na Nicarágua e serviram para promover a concessão da ajuda milionária do Congresso dos Estados Unidos. Ao contrário, os resultados obtidos pelo IUDOP e outros centros independentes demonstravam que não existia tal apoio massivo dos povos centro-americanos aos "contra" e contribuíram, no mínimo, para neutralizar a utilização da opinião pública como instrumento de guerra psicológica contra o povo nicaraguense.
O terceiro tipo de técnicas são as interativas. Aqui se incluem, sobretudo, as entrevistas em profundidade, os grupos de discussão e as técnicas da pesquisa-ação. São técnicas de caráter mais qualitativo do que quantitativo e, em geral, requerem cuidadosa elaboração e interpretação posterior do material obtido como, por exemplo, na análise linguística e ideológica das gravações das discussões de grupo. Destas técnicas, a mais conhecida e utilizada é a entrevista que, frequentemente, serve para os chamados "estudos de caso"; enquanto a menos conhecida e utilizada até agora é a dos grupos de discussão, ainda que seja uma técnica próxima de certas formas de análise grupal que são empregadas há algum tempo por psicólogos sociais latino-americanos (Ibañez, 1979). Dado o seu valor para apreender as representações sociais e o discurso do cotidiano em sua dimensão ideológica, é provável que ganhe rápida aceitação e seja intensamente aplicada ao trabalho da psicologia política em um futuro próximo.
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1 Ver: Lane, S. T. M. & Sawaia, B. B. (1991). Psicología: ¿Ciencia o política? Em M. Montero (Org.), Acción y discurso: Problemas de psicología política en América Latina (pp. 59-85). Caracas: EDUVEN [N. do T.].