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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549X
Rev. psicol. polít. vol.14 no.30 São Paulo ago. 2014
A Homofobia como um fator determinante nas práticas discriminatórias para a produção de subjetividades: um estudo com pessoas homossexuais em empresas do Rio de Janeiro
Homophobia as a determining factor in discriminatory practices towards the production of subjectivities: a study with homosexual people working for companies in Rio de Janeiro
La homofobia como un factor determinante en las prácticas discriminatorias para la producción de subjetividades: un estudio con personas homosexuales en empresas en Río de Janeiro
Le homophobie comme un facteur déterminant sur les pratiques discriminatoires pour la production de subjectivités: une étude avec homosexuels dans les entreprises de Rio de Janeiro
Ricardo Henry Dias RohmI; Samira Loreto Edilberto PompeuII
IPsicólogo pela Universidade Federal Fluminense, Brasil, Mestre e Doutor em Administração pela Fundação Getúlio Vargas, Brasil. Atualmente é professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ricardorohm@terra.com.br
IIMestranda no Programa de Pós-Graduação em Administração de Empresas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. samira@mst.iag.puc-rio.br
RESUMO
O objetivo desta pesquisa consiste em descrever e analisar quais são os mecanismos de que as organizações empresariais contemporâneas se valem para moldar as subjetividades de pessoas homossexuais mediante o método genealógico especialmente desenvolvido por Rohm (2003) e explicitar as relações de poder subjacentes a tais discursos. Para tanto, este estudo é referendado nos principais conceitos de filósofos pósestruturalistas tais como Michel Foucault e Félix Guattari. Encontrou-se, como reflexos dos discursos homofóbicos relatados pelos sujeitos da pesquisa nas empresas, diversas formas de lidarem com tal discriminação, tais como a negação e o medo de se assumirem homossexuais, a busca por instrumentalização de competências técnicas, e mesmo a demissão voluntária.
Palavras-chave: Homofobia, Organizações, Subjetividade, Genealogia, Diversidade.
ABSTRACT
The objective of this research is to describe and analyze which are the mechanisms that contemporary business organizations employ to shape the subjectivities of homosexual subjects from the perspective of the genealogical method which has been specifically developed by Rohm (2003). This study is endorsed by some post-structuralist concepts from philosophers such as Michel Foucault and Félix Guattari. As reflections due to some homophobic discourses within companies, one has found subjects reporting various ways of coping with such discrimination, such as self-denial, fear of coming out, a search for instrumentalisation of technical expertises and even resigning.
Keywords: Homophobia, Organizations, Subjectivity, Genealogy, Diversity.
RESUMEN
El objetivo de este estudio es describir y analizar cuáles son los mecanismos que las organizaciones empresariales actuales se basan para dar forma a las subjetividades de las personas homosexuales a través del método genealógico específicamente desarrollado por Rohm (2003) y explicar las relaciones de poder que subyacen a tales discursos. Por lo tanto, este estudio se apoyó en conceptos posestructuralistas de los filósofos como Michel Foucault y Félix Guattari. Como reflejos de los discursos homófobos, informes de diversas formas de lidiar con ese tipo de discriminación fueran encontradas: la negación y el miedo a salir del armario, la búsqueda de la explotación de los conocimientos técnicos, y mismo la rescisión voluntaria
Palabras clave: Homofobia, Organizaciones, Subjetividad, Genealogía, Diversidad.
RÉSUMÉ
L'objectif de cette recherche est de décrire et d'analyser quels sont les mécanismes que les organisations d'affaires contemporains comptent pour façonner les subjectivités des homosexuels par la méthode généalogique spécialement développé par Rohm (2003 ) et les relations de pouvoir explicites sous-tendent de tels discours . Par conséquent , cette étude est approuvé dans les concepts clés de philosophes post-structuralistes comme Michel Foucault et Félix Guattari. Il a été constaté, comme des reflets de discours homophobes signalés par les sujets de recherche dans les entreprises, diverses formes de traiter avec une telle discrimination, comme déni et la peur de prendre des homosexuels, la recherche pour l'exploitation de compétences techniques, et même la démission.
Mots clés: L'homophobie, Organisations, Subjectivité, Généalogie, Diversité.
Introdução
Na pós-modernidade um processo de dominação e controle dos corpos se destaca: trata-se da produção de subjetividades. De acordo com Guattari e Rolnik (2007) o capitalismo mundial integrado firma-se a partir da opressão, produzindo subjetividades serializadas e normalizadas. Corroboram com esta visão os estudos de Rohm (2003) acerca da produção de subjetividades pasteurizadas, mercantis e erráticas, bem como Foucault (1984) especificamente em relação às formas de controle social e docilização dos corpos por meio das instituições disciplinares. A tendência predominante, segundo Félix Guattari é a de se igualar tudo por meio de grandes categorias unificadoras e redutoras que impedem que se dê conta dos processos de singularização.
Em outras palavras, os mecanismos disciplinares oriundos das instituições sociais mais abrangentes, tais como a família, a escola, os diversos tipos de templos, as empresas e o próprio Estado, tendem a homogeneizar os padrões de comportamento, os valores, as atitudes das pessoas, destacando uma maior semelhança e identificação entre as práticas sociais e os discursos que estas engendram. Com o advento da intensificação das práticas econômicas e culturais presentes na globalização, mais homogêneas parecem tornar-se as subjetividades produzidas no domínio das empresas, em detrimento de processos autênticos e criativos de singularização.
Segundo Guattari e Rolnik (2007), toda vez que uma problemática de identidade ou de reconhecimento surge em determinado espaço, parece estar-se, no mínimo, diante da uma ameaça de bloqueio e de paralização do referido processo de produção de subjetividades. Por isso, desejou-se tratar aqui da questão da identidade sexual como ameaça ao sucesso de tal produção, especificamente no ambiente empresarial por seguir as normas, princípios ou valores preconizados pelos capitalistas. Tal ambiente merece destaque pela relevância que ocupa na vida das pessoas nos dias de hoje, uma vez que, segundo Rohm (2003) a crise de referências e valores do mundo pós-moderno ocasiona um vazio de sentido a ser pretensamente ocupado pelas organizações por conta de sua promessa de progresso, desenvolvimento e sucesso.
No que tange as pesquisas sobre homofobia nos estudos organizacionais, Garcia e Souza (2010); Pompeu (2012) destacam o atraso brasileiro em relação a comparação da produção científica nacional com a internacional sobre a temática ou ainda com relação às práticas pródiversidade em tais ambientes. No âmbito da psicologia política, o tema da homofobia tem espaço em abordagens e contextos diversos (Costa, Machado & Prado, 2008; Detoni, Marques, Soares, & Nardi, 2011; Gouveia & Camino, 2009; Irigaray & Freitas, 2013; Neto, Saraiva & Bicalho, 2013; Rottenbacher, Espinosa, & Magallanes, 2011;
Silva & D'Addio, 2012) apenas para citar alguns e, de acordo com Silva e D'Addio(2012), há o crescimento visível do interesse de pesquisadores(as) nesse tema. É neste sentido que desejou-se fazer esta contribuição no âmbito da psicologia política, desta vez em uma frente ainda pouco estudada - porém não menos vulnerável à ocorrência da homofobia - ao abordar o referido tipo de discriminação no contexto das organizações empresariais (públicas ou privadas).
Uma iniciativa no combate a homofobia, da qual fazem parte os presentes autores, é o Programa de Estudos e Pesquisas PEP-Rohm, no seio do qual esta pesquisa foi produzida. O PEP possui três linhas de pesquisa que se relacionam entre si e podem ser comparadas com o planejamento estratégico organizacional conforme a figura:
A Figura 1 hierarquiza a gestão de uma organização (operacional) que tem em sua base as operações e processos padronizados e controlados pelo nível intermediário (tático), a partir da visão, missão e cultura (estratégico). Por analogia, os estudos e pesquisas acerca da diversidade fomentarão os valores e a visão na formação de lideranças transformadoras, capazes de promover o respeito às diferenças humanas e à boa convivência humana, ao passo que tal mudança cultural multiplicada como política de Recursos Humanos em outras organizações seja estimulada e garantida pelas boas práticas de governança corporativa.
Vale destacar que o presente estudo sobre a produção de sentidos, mediante análise das práticas organizacionais ou de seus discursos por meio das retóricas do mercado diz respeito à Gestão da Diversidade, e esta, por seu turno, não deixa de atravessar as demais áreas temáticas da Figura 1.
Afinal, o conceito de liderança transformadora de Rohm (2012b) destaca o papel da figura do(a) líder como a pessoa responsável por proporcionar mudanças de ruptura - e não apenas incrementais - que possibilitem a tomada de decisão voltada para a inclusão de minorias sociopolíticas excluídas como os LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais e travestis). Segue na mesma perspectiva, o modelo crítico de Governança Corporativa adotado pelo programa de pesquisa mencionado mais acima.
O objetivo desta pesquisa consiste em analisar e descrever quais são os mecanismos de que as organizações empresariais contemporâneas se valem para moldar as subjetividades de pessoas homossexuais recorrendo, para tanto, ao método genealógico desenvolvido por Rohm (2003) ao explicitar as relações de poder subjacentes a tais discursos. Assim, abordaremos a seguir alguns conceitos relevantes sobre a produção de subjetividades e a homofobia.
A Produção de Subjetividades nas Organizações e Homofobia
Para a análise da produção de subjetividades nas organizações e seus imbricamentos com a homofobia, destacaram-se neste artigo alguns conceitos fundamentais presentes na obra do filósofo francês Michel Foucault, sobretudo, o poder disciplinar, por seu valor heurístico na compreensão das práticas discursivas e políticas (ROHM, 2003) na produção de subjetividades e controle dos corpos.
De acordo com Foucault (1984), o poder disciplinar atua no adestramento dos corpos, produzindo comportamentos obedientes, dóceis, alinhados com valores utilitários para sua própria exploração, assujeitamento, ao invés de produzir um efeito físico, patrimonial ou material sobre a vida cotidiana do sujeito. Nesse sentido, o poder disciplinar pode acrescentar normas, hábitos, expectativas e mesmo novos comportamentos nos corpos para tal assujeitamento (territorialização) ou, ao contrário, pode retirar destes, expectativas, expropriar normas, desconstruir hábitos, ou mesmo, extinguir comportamentos indesejados (desterritorialização).
Por sua vez, a disciplina atua fabricando indivíduos, sendo uma técnica de um poder que toma as pessoas ao mesmo tempo como objetos, bem como instrumentos de seu exercício e reprodução. A disciplina, de acordo com o referido autor, constitui-se dos métodos que permitem o controle meticuloso das operações do corpo, que efetuam a sujeição constante de suas forças e lhes estabelecem uma relação de docilidade-utilidade.
Entre as principais instituições disciplinares destacadas por Foucault, e que fazem uso do poder disciplinar para controle e fabricação de corpos dóceis, encontram-se: as escolas, os hospitais, as organizações e as fábricas ou oficinas - aqui denominadas de Organizações.
Como instrumentos essenciais para o sucesso de tal poder, o filósofo pós-estruturalista aponta: o olhar hierárquico, a sansão moralizadora e o exame. No primeiro caso, o exercício da disciplina pressupõe a existência de um dispositivo que obrigue, pelo jogo do olhar, um aparelho no qual as técnicas que permitem ver induzam a consequências do poder e, de onde, os meios de coerção tornem visíveis aqueles sobre quem exercem (Foucault, 1984). A sansão moralizadora refere-se a qualquer penalidade existente em um espaço deixado pelo vazio das leis, qualificando e reprimindo todo aquele comportamento que escape aos grandes sistemas de castigo. Por último, o exame, age combinando as técnicas da hierarquia vigente com a sanção moralizadora. Trata-se de uma modalidade de vigilância que possibilita qualificar, classificar e punir as pessoas, determinando sobre elas uma visibilidade por meio do qual são diferenciadas e sancionadas.
É por meio destes dispositivos disciplinares aparentemente invisíveis nas Organizações que teremos indivíduos como resultado de uma produção em massa, serializados, registrados e modelados (Guattari & Rolnik, 2007). Ou ainda, segundo Rohm (2003) subjetividades pasteurizadas, mercantis e erráticas.
Cabe mencionar que se entende aqui que a subjetividade relaciona-se à singularidade do indivíduo, sua interioridade, aos significados percebidos, aos sentimentos e é expressa por meio de pensamentos, condutas, emoções e ações (Davel & Vergara, 2001).
A homofobia também pode ser vista como um instrumento de controle social a serviço de lógicas dominantes, possuindo um papel político que se assemelha aos papéis do machismo da desigualdade de gênero e do racismo (Silva & D'Addio, 2012). Em diversos casos, a homofobia atua como afirmação de virilidade que se manifesta ao rejeitar modos de ser vistos como impróprios, ou justificando o homoerotismo como um ato de subversão diante da "ordem natural das coisas", trazendo como consequência a violência homofóbica (Gouveia & Camino, 2009).
No âmbito da psicologia política, estudos recentes abordam a temática do preconceito por orientação sexual nas organizações. Neto e col. (2013) levantam a questão da violência simbólica que é sofrida nas trajetórias profissionais de homens homossexuais em Juiz de Fora. Por sua vez, Irigaray e Freitas (2013) identificam que homens homo e bissexuais usam estratégias para sobreviver nos ambientes corporativos marcados pelo heterocentrismo e pela heteronormatividade.
Nesse contexto, deseja-se dar continuidade aos estudos de psicologia no ambiente organizacional acerca da homofobia no trabalho por meio desta pesquisa genealógica - desta vez não apenas tratando dos homens que podem sofrer tal discriminação, como também das mulheres homossexuais, de forma a apresentar um trabalho mais inclusivo.
Procedimentos Metodológicos
Optou-se por uma pesquisa de caráter qualitativo, uma vez que ela está relacionada ao significado que as pessoas dão as coisas e a sua vida; parte de focos de interesses amplos e buscou-se compreender o fenômeno estudado através da perspectiva dos(das) participantes conforme assinala Godoy (1995). Pesquisas qualitativas com entrevistas também são adotadas em estudos da psicologia política sobre homofobia (Costa e col., 2008; Gouveia & Camino, 2009; Irigaray & Freitas, 2013; Neto e col., 2013).
O método escolhido foi a Genealogia elaborada por Rohm (2003) em sua Tese de Doutoramento, cujo propósito é:
[...] explicitar os enunciados, enquanto precursores de proposições e frases, longe das formalizações interpretativas clássicas ou das abordagens modernas com relação ao sujeito. Visa também demonstrar as visibilidades das formas ou aparelhos institucionais por meio dos quais os diagramas de poder produzem a própria realidade por meio das imagens e falas de si, ou melhor, desde os saberes de si. (ROHM, 2003:69)
O autor almejou responder a determinadas questões fundamentais mediante este método tais como: sob quais condições históricas foi produzido o discurso em análise, como este foi produzido, diferenciou-se e por qual motivo? Para além de investigar "a quem" tal discurso serve, também a "quê" serve, a quê des-serve e, se possível, a que poderia servir.
Para a aplicabilidade da referida genealogia o autor desenvolveu três tecnologias disciplinares fundamentais, das quais as organizações se valem para produzir subjetividades pasteurizadas, mercantis e erráticas (Rohm, 2003), que são a retórica modernizadora e economicista, a dietética moralizadora e a andragogia instrumental, respectivamente.
A retórica modernizadora e economicista, ligada às questões micropolíticas, pode ser potencializadora da produção de subjetividades caracterizadas pela ausência de questionamento, pelo conformismo ideológico, pela perpetuação de valores economicistas e a territorialização da culpa em quem não os segue, moldando uma subjetividade utilitária, excluindo assim a valorização das diferenças.
Por sua vez, a dietética moralizadora, ligada a ideia da vigilância e atuando principalmente mediante discursos relativos ao assédio moral, produz modos de subjetivação que enfatizam os cuidados com a imagem, a valorização das atitudes tidas como politicamente corretas, a prudência, gerando a desterritorialização das singularidades e a culpa nos indivíduos que fogem a tais ditames moralizantes.
Por fim, a andragogia instrumental atua no treinamento de habilidades e regulamentação de seu exercício. Os discursos ligados a esta tecnologia preconizam a mudança incremental (e nunca de ruptura), uma inteligência instrumental a formação de uma rede de relacionamentos utilitária ao treinamento e desenvolvimento de competências que permitam uma maior empregabilidade em detrimento de outras sociais e humanas. Um esquema que sumariza as implicações e desdobramentos dessas tecnologias disciplinares pode ser visualizado a seguir:
Assim, para a realização da etapa de campo da presente pesquisa, foram entrevistadas 13 pessoas homossexuais, tanto mulheres quanto homens, que trabalham em empresas públicas e privadas de diversos setores localizadas no Rio de Janeiro no período de Julho de 2011 a Fevereiro de 2013, segundo a técnica bola de neve de coleta de dados segundo a qual uma pessoa entrevistada indica outra. As pessoas entrevistadas de código E1, E2, E11 e E13 fazem parte do círculo social dos autores. Após a realização das entrevistas individuais com essas pessoas foi perguntado, ao final, se não poderiam indicar outras mantendo a garantia de anonimato. Assim, as demais pessoas entrevistadas foram localizadas. Vale destacar que a utilização de entrevistas tem sido central nas pesquisas sobre movimentos sociais, sendo a semiestruturada uma ferramenta comum neste campo de estudo (Costa e col., 2008).
Considerou-se mais relevante e enriquecedor para a produção de conhecimento realizar entrevistas com pessoas homossexuais provenientes de empresas de diversos setores em vez de delimitá-la em apenas a uma empresa ou setor único, uma vez que o foco aqui é a homofobia e a produção de subjetividades em empresas, de um modo mais amplo, e não uma empresa ou setor específico. Se a homofobia está presente na sociedade de onde vêm as pessoas que trabalham nas mais diversas empresas, considerou-se uma possível delimitação setorial irrelevante. O Quadro 1 apresenta informações gerais dos(as) entrevistadas. Vale lembrar que todas as pessoas entrevistadas são homossexuais.
Para a realização das entrevistas, foi utilizado um roteiro semiestruturado com perguntas abertas. As entrevistas foram gravadas e transcritas com o auxílio do software Atlas TI gerando um documento de 126 páginas. Após esta etapa, foi realizada a revisão gramatical das transcrições, em especial das pausas e pontuações para facilitar o entendimento do(a) leitor(a), tornando o relato das entrevistas mais fidedigno e mais próximo à a forma como foi falada pelas pessoas entrevistadas. Assim, os resultados encontrados, bem como sua respectiva análise, serão apresentados na sessão a seguir. Como critério de escolha dos fragmentos discursivos, selecionamos aqueles em que a pessoa entrevistada relatasse algum discurso - seja que tenha sido dito a ela no ambiente laboral ou que fundamente suas crenças pessoais ao tomar decisões nas empresas - que se enquadrasse em alguma das três tecnologias disciplinares de Rohm (2003).
Análise dos Resultados
Para melhor entendimento da análise de acordo com o método adotado, separamos os fragmentos discursivos mais relevantes em três subseções de acordo com a tecnologia a que referiam. Vale destacar que tanto a retórica modernizadora, a dietética moralizadora bem como a andragogia instrumental atuam na operação dos agenciamentos de docilização dos corpos nas organizações, aumentando o coeficiente de efetivação do diagrama disciplinar por meio da interiorização de dispositivos de controle refinados (Rohm, 2003).
Retórica modernizadora e economicista
O termo "retórica" correntemente faz alusão a um discurso sem significado, bonito na forma, porém vazio de conteúdo de sentido. Dessa forma, a retórica modernizadora refere-se a um discurso que aparenta modernidade e ou cientificidade (Rohm, 2012a). O referido autor demonstrou em sua Tese que a retórica modernizadora está relacionada a ausência de questionamento - que conduz ao conformismo ideológico - e, portanto a exclusão das diferenças. Além disso, a retórica modernizadora é responsável por conduzir no bojo do seu discurso valores economicistas, gerando a produção de subjetividades utilitárias conforme demonstrado na figura 2. Um exemplo de discurso retórico pode ser encontrado no fragmento a seguir:
Uma coisa interessante que eles têm é que, é o caso dos dual careers [grifo nosso], que são as pessoas que são os casais que trabalham na empresa... Eu nunca ouvi falar de um casal do mesmo sexo, mas que nos países onde há a união estável de pessoas do mesmo sexo são reconhecidas, eles têm políticas que englobam esses benefícios (Entrevistado 11, 23 anos, Rio de Janeiro).
Nesta perspectiva, chama à atenção a incoerência da realidade apresentada por meio do fragmento discursivo acima. A oposição se dá entre "uma coisa interessante" e "eu nunca ouvi falar". A retórica modernizada pelo termo no idioma inglês do mercado - ainda que a filial em que o entrevistado homossexual trabalhe esteja localizada no Rio de Janeiro - se dá por meio da inconsistência entre o discurso e a prática. A suposta "novidade gerencial" ou prática que diferencie esta empresa de outras não ocorre de fato. A extensão de benefícios para casais homossexuais em países em que a união estável já é reconhecida não se trata de bônus ou qualquer vantagem: apenas de obrigação legal. As práticas empresariais estariam a frente dos Direitos Humanos de um país se o reconhecimento daquele direito antecedesse às normas político-legais do referido local.
Quando perguntado o porquê ele não se assume como homossexual para as outras pessoas no ambiente de trabalho, o entrevistado 11 apresenta a seguinte explicação:
[...] a questão de que eu não sei se eu... Se no ambiente empresarial às vezes eu poderia estar tendo algum problema com outras pessoas e que pudesse me prejudicar dentro da empresa. Assim, no caso, sou uma pessoa nova. Então, às vezes, se acontecesse alguma coisa, eles poderiam dar preferência em, pra evitar problemas no futuro, me desligarem. Já que sou estagiário. (E11, 23 anos, Rio de Janeiro)
Ou seja, ele apresenta uma justificativa para um possível desligamento a retórica gerencial para fins ideológicos. Qual relação poderia haver entre ser homossexual e o desligamento de um funcionário de uma empresa se não a própria perseguição de cunho homofóbica? A retórica bem conhecida pelos oprimidos é apresentada quando o homem homossexual fala "eles poderiam dar preferência" e "para evitar problemas no futuro". A resposta é convergente com outra entrevistada, que se vale da mesma justificativa, "eu não sei o que poderia acontecer" (E1, 26 anos, Rio de Janeiro) para justificar o porquê de não declarar sua homossexualidade no ambiente de trabalho. O temor de se assumir homossexual pode ser explicado uma vez que, segundo Rottenbacher e col. (2011), pessoas homossexuais podem ser percebidas como tendo um status baixo ou representando uma ameaça ao status quo, tornando-se, portanto, vulneráveis à discriminação. A criação de um ambiente que valorize o(a) funcionário(a) homossexual, no entanto, parece ter pouco valor para as empresas conforme ilustrado por um homem homossexual sobre sua tentativa frustrada de alertar a área de Recursos Humanos sobre a importância de se pensar no desenvolvimento de Políticas de Diversidade de combate a homofobia:
Então, a gente já tentou de alguma forma alertar a área de Recursos Humanos que isso influencia na motivação do funcionário, isso influencia na produção e influencia o resultado, e o que eles mais querem é resultado [...]. Falei com um gerente de recursos humanos, que hoje já não é gerente de recursos humanos mais, porque, como um cargo comissionado, está disposto no foro político. Ele falou ''tá ótimo''[...] Não houve nenhuma manifestação formal, que ''isso é algo que deveria ser estudado pela alta instituição, pela direção dos recursos humanos e que daqui a pouco a gente poderia ter alguma resposta positiva'', que até hoje não veio. E já faz um ano, um ano e meio praticamente. Aquela coisa que vai pra debaixo do tapete e fica eternamente. (E13, 26 anos, Rio de Janeiro)
A retórica aqui se faz presente pelo discurso supostamente compreensivo e politicamente correto do gerente da área de Recursos Humanos, "tá ótimo", que não fez nada para combater a homofobia nem promover a diversidade por meio da extensão dos benefícios no ambiente empresarial. É apenas um discurso sem sentido que foi emitido pelo gerente já que a implementação prática é que provaria a congruência de sua posição.
A retórica modernizadora atua de forma a criar um ambiente natural para a existência da dietética moralizadora (Rohm, 2012a), segundo dispositivo disciplinar, e cuja tecnologia será tratada a partir dos resultados analisados a seguir.
Dietética moralizadora
De acordo com Rohm (2003) a dietética territorializa uma série de procedimentos, de cuidados de si, de incentivos a tais cuidados, de priorizações de investimentos pessoais e profissionais uma vez que serão necessários à eficiência, eficácia bem como a efetividade organizacionais. De acordo com o referido autor, tais práticas discursivas condicionarão uma disciplina minuciosa dos comportamentos e atitudes julgadas e socializadas como "politicamente corretas". Um enunciado fundamental na operação da dietética moralizadora pode ser revelado tanto nas práticas discursivas quanto nas práticas do assédio moral.
É, mas você imagina assim: por exemplo, numa convenção. Tá todo mundo, é... conversando e tudo mais... E aí aparece um amigo seu que é próximo, que convive com você, levanta e te dá um beijo no rosto. Daí todo mundo olha, entendeu? E esse não é meu companheiro, entendeu? [...] Porque até então é aquela engrenagem social que as pessoas são treinadas para ser homens e mulheres. (E9, 39 anos, Rio de Janeiro)
No excerto, o entrevistado, um microempresário pós-graduado de 39 anos, relata a diferença de tratamento percebida pela sociedade mediante seu discurso entre a demonstração de afeto entre um homem e uma mulher ou duas pessoas do mesmo sexo - ainda que seja uma relação apenas de amizade. Ele se sentiria constrangido se, em uma Convenção, fosse abordado por um de seus amigos como de costume, com um beijo no rosto por conta da opinião dos outros ("todo mundo olha"). Como afirmam Gouveia e Camino (2009), não importa como as pessoas homossexuais se comportam, mas como são interpretados seus comportamentos, motivados pela necessidade de certos grupos de se posicionarem contra a difusão de ideias que tais grupos compartilham. O desconforto que ele sente ao ser abordado também denota sua homofobia internalizada (Nunan, 2003), pois sua subjetividade parece ser territorializada (Guattari & Rolnik, 2007) e condicionada pelo ódio do inimigo a partir da efetivação de um discurso homofóbico, segundo o qual dois homens não podem demonstrar afeto da mesma forma que dois amigos de sexos opostos.
Em verdade, trata-se de um dispositivo de controle micropolítico do afeto. A ideologia heterossexista educa por intermédio do assédio moral dos olhares punitivos, como uma forma de verticalização hierárquica do olhar necessário ao pleno sucesso do poder disciplinar (Foucault, 1984) a quem se destinam as possibilidades de afeto e amor e quais seriam as regras, permissões e limites desta expressão pública. O sucesso da pasteurização de uma subjetividade mercantil (Rohm, 2003), ou seja, aquela ligada a valores mercadológicos, também está relacionada ao tipo de local, dentre tantos outros, que o entrevistado escolhe para citar como passível de reprovação social da demonstração de homoafetividade: uma Convenção, ou seja, um encontro de negócios.
Assim como no caso anterior, a mulher homossexual entrevistada é analista de Recursos Humanos de uma empresa de construção civil de grande porte e também sofre o assédio moral:
Às vezes assim: '- e você? Fala um pouquinho de você!' Ainda mais RH que é muito visado, né? '- E aí você é casada?', '- Você tem namorado?', '- Tem filho?', '- Já é mãe e tal?' Sempre surgem esses assuntos. [...] dia dos namorados está chegando né, aí começam as perguntas: '- e aí o que que você vai dar para o seu namorado e tal' e vai que eu recebo flores no ambiente de trabalho? '- Quem te mandou?', como já aconteceu [risos]! Na verdade foi aniversário de mês de namoro e eu recebi um buquê enorme, lindo, de rosas e todo mundo ficou me instigando: '- de quem era?', '- você nunca comentou que tinha namorado e tal'. E ai eu inventei uma desculpa que era um garoto que eu estava ficando né? E ai passou. Ficou por isso mesmo. (E5, 29 anos, Rio de Janeiro)
As perguntas a seguir são frequentes no trabalho desta mulher homossexual: se ela é casada, se tem namorado, filho, se é mãe e assim por diante, como um guia dietético para assediar moralmente a mulher homossexual que ocupa um cargo de poder no setor de Recursos Humanos. Não por acaso o referido setor é o responsável por promover, desenvolver e desligar os funcionários de acordo com os valores que permeiam a cultura organizacional da empresa. De fato, não é a uma pessoa aleatória que tantas sanções morais são feitas, é a uma pessoa de poder, pois como muitos pensam, o poder na empresa, deveria ser destinado aos heterossexuais e, portanto, a uma mulher com namorado, com filho.
Tal como numa dieta, a dietética moralizadora (Rohm, 2003) adestra e arregimenta diversas atitudes estereotipadas e politicamente corretas em uma economia reprimida do desejo, o que produz culpa nos indivíduos em permanente tensão com as expectativas de comportamentos pró-ativos, assertivos e adaptativos, valorizados pelas lideranças organizacionais. No relato da E5, por exemplo, ao receber o buquê de rosas de sua namorada, o comportamento adaptativo utilizado por ela é o de não falar que as flores vieram de uma mulher e sim de um garoto, reprimindo, portanto, a possibilidade de que descubram sua orientação homossexual. Tal atitude também pode ser entendida como uma forma de se eximir de uma sensação de culpa ("inventei uma desculpa") por não se enquadrar na orientação sexual dominante, adotando a atitude estereotipada de uma mulher que recebe flores do namorado - como se fosse do homem a única possibilidade de uma mulher receber tal presente.
Percebe-se, portanto, a produção de uma subjetividade pasteurizada (Rohm, 2003) pela decisão de usar a mentira do namorado: afinal, tal como a maioria, negando a existência de sua singularidade individual, ela também parecerá heterossexual. Isto é suficiente para garantir a sua empregabilidade como mulher de sucesso em uma sociedade espetáculo (Dupas, 2001), em que a performance define o lugar social de cada um. Distancia-se, com essa decisão de se passar por heterossexual, a possibilidade da mulher homossexual se tornar visível na sua empresa e, ainda mais distante a possibilidade de sua atuação política em defesa das minorias sexuais na referida organização, uma vez que nem o próprio direito de existir com sua verdadeira subjetividade a entrevistada acredita ter.
A mesma mulher homossexual entrevistada quando perguntada sobre os motivos pelos quais não assume sua orientação sexual na empresa em que trabalha, justifica:
Porque eu não conheço bem as pessoas com que eu trabalho. Eu não sei se eu posso confiar né [...]. Não digo nem meus colegas diretos, mas eu digo em relação a liderança. Porque se as outras pessoas fossem abertas, não teria problema nenhum. Eu ia ter receio de sofrer algum tipo de ação, um desligamento, uma represália [...] A gente vive numa sociedade que rotula tudo né. Então tem que passar pelo rótulo. Tem que ter uma culpa. Tem que ter um fator que gere aquilo. Então as pessoas vão rotular. A culpa é disso, é da opção, a culpa é da raça, da condição social e aí vai. (E5, 29 anos, Rio de Janeiro)
Além de perceber a possibilidade de ameaças ou de sanções disciplinares punitivas por ser homossexual, apresenta a questão da culpa que atravessa a dietética moralizadora (Rohm, 2003) bem como demonstra suposta prudência ao analisar as ameaças possíveis de assumir-se homossexual. A questão da culpa também está presente no rótulo (Nunan, 2003) que pode corporificar o preconceito, bem como a percepção da pessoa discriminada como um bode expiatório (Nunan, 2003), sobre a qual é comum ser canalizada a culpa pelas mazelas sociais. Ou seja, a E5 decide não se declarar homossexual no trabalho por saber que a orientação sexual minoritária pode ser usada por determinadas pessoas para atribuir a culpa aos (às) pessoas homossexuais por quaisquer motivos. Em outras palavras, pessoas homossexuais podem ser usadas como bodes expiatórios, a quem são atribuídas a culpa não por, necessariamente, terem feito algo errado no trabalho que mereça uma demissão por justa causa, mas como forma de perseguição discriminatória e retaliação. A origem da culpa na sociedade, como percebe a entrevistada, é o fato de fazer parte de grupos minoritários ("a culpa é disso, é da opção", "é da raça", "da condição social"). Ou seja, a culpa é atribuída como forma de discriminação social.
O medo de sofrer retaliações por se assumir, todavia, não é infundado como relata o próximo entrevistado homossexual:
Eu acho que um dos fatos de eu justamente ter sido exonerado do meu cargo foi o de eu não ser amigo do rei. E não ser amigo do rei inclui exatamente minha sexualidade, entendeu? Eu não dava muito crédito ao que era a conversinha entre os homens da minha coordenação. [...] mesmo que o meu trabalho fosse mais reconhecido do que outros, inclusive do substituto atual. O J. (coordenador atual) é o xiita da turma, com certeza. Ele tem a posição mais extremada, a ponto de, declaradamente, fazer piadas com toda e qualquer pessoa que parece homossexual. Ele que tomou meu cargo. Eu era o coordenador substituído, só que ele que foi nomeado justamente por uma... Digamos, uma atitude antiética. (E13, 26 anos, Rio de Janeiro).
O E13 é pós-graduado, homossexual assumido e especialista em regulação, atuando na implementando de políticas públicas em uma empresa pública. Embora haja a crença de que em uma empresa pública a pessoa possa estar supostamente mais assegurada como em caso de demissões, por exemplo, no caso do E13 ele não está isento de perder cargos de poder. Ele havia sido promovido como coordenador, porém só ficou por um ano e meio no cargo - sendo este cargo posteriormente ocupado por alguém de menor capacidade técnica, porém com maior proximidade ideológica de quem decidiu pela promoção. O fato relatado pelo entrevistado revela claramente um caso homofobia, uma vez que o humor opera como forma de discriminação. Percebe-se neste caso, que não apenas o poder nas empresas é destinado, sobretudo, aos heterossexuais, como no exemplo da E5, mas que entre um homossexual e uma pessoa homofóbica ocupar um cargo de liderança, a homofobia torna-se subliminarmente um critério forte nas decisões.
O poder de destaque e muitas vezes perverso que as organizações ocupam na vida das pessoas pode afetar suas decisões de vida, conforme relata a próxima entrevistada:
A minha descoberta da sexualidade e [erra palavras] abstinência alcoólica foi paralela, porque, era assim, como uma bomba atômica assim. Eu tomava muito álcool, tomava muitos remédios de tarja preta deste tratamento que eu fazia, e um dia muito angustiada com que tipo de vida que eu ia viver, se eu ia abrir pra minha família, pros meus amigos, pro meu trabalho que eu era gay ou não... Por causa desta angustia eu... eu tentei mesuicidar [...] Mas ai eu acordei com um pensamento muito forte assim já. É que eu ia abrir minha história pra todo mundo, que isso... Se eu não abrisse, é... Seria uma questão assim, de, fazia parte da minha sanidade mental abrir pra todo mundo, a questão [...] Eu tenho uma postura assim da visibilidade muito clara assim. (E8, 37 anos, Rio de Janeiro)
Por conta da homofobia internalizada (Nunan, 2003), bem como sentimento de culpa introjetado pela dietética moralizadora (Rohm, 2003), a mulher homossexual vive uma dissonância cognitiva extrema entre quem ela é ("gay" - em suas palavras) e quem a sociedade espera que ela seja (heterossexual), encontrando no suicídio a possível solução para o fim desta aflição já que não há como deixar de ser homossexual. Talvez neste exemplo ilustra-se com evidência o maior 'sucesso' da efetivação do poder disciplinar (Foucault, 1984) em que o indivíduo "desviante" toma por si só a decisão da sanção moralizadora que a sociedade lhe ensina na semiótica dos discursos ou em exemplos concretos como o homocausto (Mott, 2012; Rohm, 2012a), dado os crescentes números de assassinatos de homossexuais no Brasil - o que lhe confere o primeiro lugar mundial em crimes de ódio por conta da homofobia segundo relatório do Grupo Gay da Bahia.
Nas empresas públicas eu não passei por um processo de captação de recursos humanos que passasse por um psicólogo. Não. Mas na empresa privada sim. E foi logo na primeira (nome da empresa). E tive uma entrevista com uma psicóloga, né? E... eu não sei porque mas eu... assim, talvez eu não tenha muito conhecimento... eu critico muito isso, mas acho que as empresas privadas querem entrar na sua vida íntima, né? [...] E me perguntaram logo se eu tinha um namorado e se ele ia ficar chateado com o meu horário de trabalho. Achei de um machismo e de uma intromissão na minha vida íntima assim atroz! Eu falei na entrevista na hora: não, eu não tenho namorado. Mas se eu tivesse uma relação afetiva não seria namorado, seria namorada [...]. Se alguém se coloca logo de início assim pode ter problema sério [...] Podia, podia ser um risco. Mas como me foi colocado assim, e foi logo de cara perguntando se: "o meu namorado teria problema" então realmente eu tive que falar que "realmente não seria um problema para ele, poderia até ser para ela". (E8, 37 anos, Rio de Janeiro)
Este é o cenário de assédio moral na área do Recrutamento e Seleção da empresa em que trabalhou a entrevistada 8, após sua tentativa de suicídio (tentativa que foi relatada por ela no excerto anterior a este sobre a sua descoberta da sua sexualidade). Apesar de sua decidida postura de enfrentamento da homofobia e de sua integridade em relação a sua sexualidade demonstrada na resposta à pergunta da recrutadora, só aguentou continuar por 2 meses neste ambiente organizacional machista e homofóbico, conforme ela mesma descreve:
Já no primeiro dia já ouvi comentários homofóbicos [...] Então, primeiro comentário: 'Ah, uma das piores partes desse trabalho aqui de fiscal é ter que ir nestas boates de gays, de lésbicas, horrorosas, que você fica... E que... E... Pode levar uma cantada de alguém', este tipo de comentário. Era sempre a mesma pessoa fazia a risada geral, e tudo e mais. E foi o primeiro dia. No segundo dia eu... Cheguei lá com um broche enorme do arco íris, do grupo arco íris, pendurado aqui na altura do coração né, uma camisa branca pra chamar bem atenção, e levei uma caixa de bombom dei [...] Ofereci bombom em cada mesa para todas as pessoas verem aquele broche, né. Foi meu enfrentamento. Eu não sei se as pessoas não viram o broche, eu não sei se as pessoas é... Ignoraram, se são homofóbicas mesmo, aqueles comentários continuaram [...] Aquilo ficou me chateando muito já lá dentro, por estas atitudes homofóbicas e por este trabalho bem intelectualmente nulo eu já procurei sair dali, estava distribuindo meu currículo para ir pra outros lugares [...] [Fiquei] Só dois meses. Não aguentei mais. (E8, 37 anos, Rio de Janeiro)
O assédio dietético moralizante encontra sua maior eficácia no pedido de desligamento da empregada homossexual desviante da norma politicamente correta: pessoas heterossexuais e homofóbicas. Ou seja, a vítima da discriminação, não aguentando mais viver naquele ambiente, decide largar aquele emprego por conta do assédio psíquico em que vive. Não se poderá então, mediante o assédio moral, alegar formalmente que quem ocasionou sua demissão foram os outros, afinal faz parte da corrosão do caráter (Sennett, 2001) não ter a quem atribuir a responsabilidade pelo erro. Será mais fácil, cômodo e, especialmente, covarde, atribuir ao indivíduo desviante que não suporta mais conviver em um território psicossocialmente perverso.
Andragogia instrumental
Por fim, a terceira tecnologia disciplinar - a andragogia instrumental - é constituída por práticas discursivas e políticas que operam o treinamento de habilidades bem como a regulamentação de seu exercício (Rohm, 2003). Segundo o autor, a andragogia busca homogeneizar, pasteurizar as subjetividades, instrumentalizando-as (Rohm, 2003).
Eu sou uma pessoa muito esforçada no meu trabalho e as pessoas veem isso, eu sou bem acessível e gosto de ajudar as pessoas. As pessoas com quem eu trabalho criaram uma confiança no que eu faço, nas coisas que eu tenho pra ensinar no tempo que eu tenho disponível para elas. Então, o meu ambiente de trabalho, de certa forma, pelo menos, eu não desminto que seja algo utilitário, às vezes eu penso que é, mas, de certa forma, as pessoas têm um apreço pelo meu trabalho e pela minha pessoa também [...] Na verdade, o fato de ser homossexual pode ser criticado a qualquer momento na sociedade brasileira, então você tem que levantar sempre, superar tudo, né? Não à toa, sou eu, uma pessoa que nasci onde nasci, que não tive a educação, tive que batalhar muito, estudar com bolsa durante muito tempo para ter a educação que eu tive ao segundo grau, para lutar por uma vaga na faculdade, para me manter na faculdade, para fazer um concurso público. Então, eu tive que me superar, eu tive que dar minha cara à tapa. Porque se eu não fizesse isso por mim, com certeza, a sociedade ia fazer muito pouco. (E13, 26 anos, Rio de Janeiro)
No exemplo acima nota-se o que Irigaray e Freitas (2013) qualificaram como a estratégia de sobrevivência do homem homossexual gente boa - na qual o indivíduo homossexual possui um esforço extra para ser prestativo com os colegas, disponível para ajudá-los como busca de desviar a atenção da homofobia que pode sofrer por conta de sua orientação sexual para o seu esforço acima da média. Além disso, a andragogia instrumentaliza este indivíduo à margem para ser ainda mais explorado no trabalho, inclusive por meio desta relação tão "prestativa" com os colegas como uma dinâmica utilitária de trabalho e convivência por parte destes próprios colegas.
Isto pode ser explicado de forma ainda mais efetiva pelo conceito da andragogia instrumental (Rohm, 2003). A pasteurização da subjetividade deste homem homossexual, negro e que possui origem humilde se dá por meio da instrumentalização mercadológica. Este esforço extra para o treinamento e desenvolvimento de habilidades técnicas é percebido por ele como necessário para lhe conferir uma vantagem competitiva perante seus pares heterossexuais que, aos olhos da sociedade, estão em vantagem em relação ao entrevistado (ainda que possuíssem as mesmas habilidades e competências técnicas). Cabe refletir que outras habilidades e competências não instrumentais - como as ligadas a arte, ao desenvolvimento humano e social - não poderiam ser desenvolvidas pelo E13 que não fossem apenas para saldar um hiato da discriminação, mas estivessem ligadas a outras formas mais amplas de expressão de seu talento, desejo e verdadeiros interesses pessoais.
Considerações Finais
Constatou-se que, por intermédio do uso de discursos retóricos, as empresas apresentam incoerências no que tange à gestão da diversidade sexual. Observou-se a introjeção por parte de indivíduos homossexuais do discurso opressor, e que baseados nisso, avaliam suas decisões de assumir ou não publicamente sua sexualidade nas empresas, temendo, na maioria das vezes, as retaliações oriundas das retóricas de caráter homofóbico. A área de Recursos Humanos, nos casos analisados, procura manter uma imagem politicamente correta e supostamente pró-diversidade, porém sem nenhuma ação concreta e eficaz neste sentido. Isto dificulta ainda mais a tentativa dos(as) funcionários(as) homossexuais de serem ouvidos(as) e terem suas especificidades respeitadas.
Encontrou-se também os discursos dietéticos moralizantes atuando mediante o assédio moral, que se expressa em perguntas constantes de colegas de trabalho como forma de disseminação do preconceito sexual; um fluxo informal de interpelações no ambiente de trabalho, fortalecendo o isolamento a as estratégias de sobrevivência das pessoas estudadas; a dominação da heteronormatividade como ideologia dominante e estimulada, gerando a manutenção desse preconceito; a evitação pública do comportamto homoerótico por conta da prudência e dos cuidados com a imagem perante o mundo dos negócios, restringindo a espontaneidade na demonstração de afeto e mesmo homossociabilidade para que tais sujeitos minoritários possam maximizar sua empregabilidade rumo aos cargos de liderança; a promoção de funcionários que possuam valores homofóbicos mais próximos do responsável pela referida promoção - sendo estes valores, em muitos casos, mais influentes na decisão do que a competência e o conhecimento de habilidades e atitudes referentes ao cargo.
Como consequencia do assédio moral cotidiano, sofrido mesmo por entrevistados(as) com um perfil de maior enfrentamento da homofobia, percebeu-se a alta rotatividade em cargos que a pessoa homossexual trabalha quando existe uma cultura organizacional homofóbica. Isto privilegia a empregabilidade daqueles que estão dentro dos padrões esperados em uma cultura heteronormativa, inclusive as pessoas homofóbicas, em detrimento do homossexual, facilitando o predomínio e a sobrevivência daqueles que possuem tal visão de mundo como massa formadora de opiniões persecutórias e reprodutora de preconceitos. Notou-se claramente, também, a homofobia sofrida ou exercida por membros da área de Recursos Humanos - a qual constitui uma função estratégica nas empresas. Em vez de promover o pluralismo, a criatividade ampla e a democracia nas relações humanas, muitas vezes, as áreas de RH acabam por reproduzir, de maneira sofisticada e capilar, as tecnologias da disciplina no crescimento da homofobia.
Na última tecnologia disciplinar da metodologia adotada - a andragogia instrumental - sobressaem o treinamento de habilidades e de competências instrumentais por parte de indivíduos homossexuais como forma de compensação para garantirem sua empregabilidade e reconhecimento em uma sociedade permeada por valores homofóbicos e que, portanto, lhes confere desvantagens em relação aos heterossexuais. A busca por se destacar no trabalho para evitar discriminação encontrada aqui converge com outros estudos da psicologia política no contexto organizacional, como de Neto e col. (2013) e Irigaray e Freitas (2013).
Vale ressaltar que os protagonistas em mudanças sociais de ruptura observados ao longo das lutas pelos direitos civis nas democracias modernas nas últimas décadadas parecem experimentar um sentimento de autoestima e autoconfiança, ingredientes necessários não apenas a ação política individual, como também a motivação para liderança no movimento social e, portanto, na luta e superação das desigualdades.
Em que pese caber a todo(a) cidadão(ã) a responsabilidade por lutar por seus direitos - e as pessoas homossexuais não são excessão - a análise de dados da pesquisa aponta diversas carências no desenvolvimento da auto-estima e auto-confiança supracitadas: a inesxitência e mesmo a fragilidade das políticas inclusivas nas empresas, a formação profissional heterocentrada, o Estado que demora a ligitimar direitos civis e reconhecer seus deveres com as minorias sexuais, entre outras.
Diante deste cenário, como implicações nos ambientes empresariais, urge a efetiva implementação de políticas inclusivas de Recursos Humanos para a diversidade sexual que não se restrinjam ao discurso à imagem corporativa. Além disso, a educação dos futuros líderes organizacionais também merece papel de destaque que proporcione, uma formação mais profunda e menos instrumental e uma maior visão crítica do mundo e, de acordo com Rohm (2012a), a mudança não apenas incremental, mas de ruptura - voltada para a inclusão das minorias como as pessoas homossexuais.
Sugere-se, por fim, algumas possibilidades de pesquisa para saber o que as pessoas homossexuais perdem ao moldarem suas vidas de acordo com os dítames do mercado, quais valores humanos seriam deixados de lado para uma busca de adequação social e não da expressão de sigularidades? Estudos sobre políticas públicas e trabalho ligados à diversidade sexual e sobre boas práticas de Recursos Humanos para pessoas homossexuais, de forma que a se disseminar este conhecimento, estimulando o protagosnismo político de homossexuais para que possam tabalhar de forma digna e justa com seus pares heterossexuais.
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Recebido em 13/12/2013.
Revisado em 19/05/2014.
Aceito em 01/07/2014.