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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.17 no.38 São Paulo jan./abr. 2017
ARTIGOS
Mulheres usam substâncias psicoativas? Atravessamentos de gênero na política de redução de danos no Brasil
Women use psychoactive substances? Gender crossing in Brazil's harm reduction policy
Mujeres usan substancias psicoactivas? Atravesamientos de género en la política de reducción de daños en Brasil
Les femmes utilisent-elles des substances psychoactives? La transversalité entre les sexes dans la politique de réduction des risques au Brésil
Mabel JansenI; Dagmar E Estermann MeyerII; Jeane FelixIII
IMestra em Educação PPGEDU/UFGRS. Doutoranda no Programa de Pós Graduação do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo PPGNEIM/UFBA/2018. mabeljansen1@gmail.com
IIDoutora em educação, professora colaboradora convidada no Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenadora da pesquisa "Políticas públicas de inclusão social e transversalidade de gênero: ênfases, tensões e desafios atuais", financiada com recursos do Programa PQ e da Chamada Universal 2014 do CNPQ. dagmaremeyer@gmail.com
IIIDoutora em Educação PPGEDU/UFGRS. Professora vinculada ao Departamento de Habilitações Pedagógicas-Centro de Educação / Universidade Federal da Paraíba / Programa de Pós-graduação em Educação. jeanefelix@gmail.com
RESUMO
O presente artigo se desdobra de uma investigação articulada a um projeto de pesquisa multifocal e interinstitucional mais amplo, que problematiza interfaces entre gênero e políticas públicas de inclusão social no Brasil, considerando a proposta da transversalização de gênero assumida pelo governo brasileiro desde 2004. Desdobra-se também de uma dissertação de mestrado defendida em 2016, que teve por objetivo analisar as posições de sujeito usuário/a (re)produzidas pelos documentos que compõem algumas políticas de drogas no Brasil. Inscreve-se na perspectiva dos Estudos de Gênero e dos Estudos Culturais pós-estruturalistas e examina a proposta de Redução de Danos (RD) implementada no Brasil, tomando como referência um conjunto de documentos oficiais que a definem e normatizam. Operando com a análise cultural, foi possível descrever e problematizar modos pelos quais o gênero atravessa e dimensiona o que, nos documentos analisados, se representa como sujeito usuário de substâncias psicoativas (SPA) e o que se recomenda como cuidado a esses sujeitos na área da saúde mental, mais especificamente álcool e outras drogas. Aqui, abordam-se duas dimensões da análise realizada, quais sejam: a essencialização (biológica e cultural) de gênero que persiste nas representações de sujeito usuário/a de SPA e o processo de vigilância dos corpos de mulheres (sobretudo no que se refere ao exercício da sexualidade e da saúde reprodutiva) que tais representações sustentam.
Palavras-chave: Políticas públicas; Álcool e outras drogas; Redução de danos; Gênero; Pós-estruturalismo.
ABSTRACT
The present article unfolds from an articulated research to a broader multifocal and interinstitutional research project, that problematizes interfaces between gender and public policies of social inclusion in Brazil, considering the proposal of the gender mainstreaming assumed by the Brazilian government since 2004. It unfolds, produced by the documents that make up some drug policies in Brazil. It is based on the perspective of Gender Studies and Post-Structural Studies and examines the proposal for Harm Reduction implemented in Brazil, taking as reference a set of official documents that define and standardize it. Working with cultural analysis, it was possible to describe and problematize ways in which gender crosses and dimensions what, in the analyzed documents, is represented as subject user of psychoactive substances (SPA) and what is recommended as care to these subjects in the area of mental health, more specifically alcohol and other drugs. Here, two dimensions of the analysis carried out are discussed, namely: the gender (biological and cultural) essentialization that persists in the representations of the SPA user subject and the process of "monitoring" the women's bodies (especially with regard to exercise of sexuality and reproductive health) that such representations support.
Keywords: Public policies; Alcohol and other drugs; Harm Reduction; Gender; Post-structuralism.
RESUMEN
El presente artículo forma parte de un estudio vinculado a un proyecto de investigación multifocal e interinstitucional más amplio, que problematiza interfaces entre género y políticas públicas de inclusión social en Brasil, considerando la propuesta de transversalidad de género asumida por el gobierno brasileño desde el 2004. También resulta de una tesis de maestría defendida en 2016, que tuvo como objetivo analizar las posiciones de sujeto usuario/a reproducidas en los documentos que componen algunas de las políticas de drogas en Brasil. El artículo se inscribe en la perspectiva de los Estudios de Género y de los Estudios Culturales post-estructuralistas y examina la propuesta de Reducción de Daños (RD) implementada en Brasil, a partir de un conjunto de documentos oficiales que la definen y normalizan. Trabajando con el análisis cultural, ha sido posible describir y problematizar los modos por los cuales el género atraviesa y dimensiona lo que, en los documentos analizados, se representa como sujeto usuario de sustancias psicoactivas (SPA) y lo que se recomienda como cuidado a esos sujetos en el área de la salud mental, más específicamente el alcohol y otras drogas. El artículo aborda dos dimensiones del análisis realizado: la esencialización (biológica y cultural) de género que subsiste en las representaciones de sujeto usuario de SPA y el proceso de "vigilancia" de los cuerpos de las mujeres (sobre todo en lo que se refiere al ejercicio de la sexualidad y de la salud reproductiva) que tales representaciones sostienen.
Palabras clave: Políticas públicas; Alcohol y otras drogas; Reducción de daños; Género; Post-estructuralismo.
RÉSUMÉ
Cet article s'articule autour d'un projet de recherche multifocale et interinstitutionnelle plus large qui porte sur les interfaces entre le genre et les politiques d'inclusion sociale au Brésil, compte tenu de la proposition d'intégration transversale du genre prise par le gouvernement brésilien depuis 2004. Le présent article est également l'écho d'une thèse de maîtrise défendue en 2016 ayant pour objet l'analyse des positions de sujet consammateur/trice (re)produites par les documents qui constituent certaines des politiques en matière de drogue au Brésil et s'inscrit dans la perspective des études de genre et des études post-structurelles. En outre, il examine la réduction des risques (DR) proposée au Brésil, en prenant comme référence un ensemble de documents officiels qui la définissent et la normalisent. À partir de l'analyse culturelle, il a été possible de décrire et de définir la problématique des modes que le genre traverse et de donner l'échelle de ce que, dans les documents analysés, représente le sujet consommateur de substances psychoactives (SPA) ainsi que les soins recommandés à ces sujets dans le domaine de la santé mentale, plus particulièrement concernant l'alcool et les autres drogues. Ici, deux dimensions de l'analyse sont abordées, à savoir : essentialisation du sexe (biologique et culturelle) qui persiste dans les représentations du sujet consommateur/trice de SPA et le processus de surveillance du corps des femmes (notamment en ce qui concerne la pratique sexuelle et de la santé reproductive) que de telles représentations soutiennent.
Mots-clés: Politiques publiques; Alcool et autres drogues; Réduction des risques; Genre; Post-structuralisme
Introdução: Um Texto, Uma Aposta...
Este artigo se desdobra de uma investigação de mestrado articulada como subprojeto a uma pesquisa multifocal e interinstitucional mais ampla, na qual se problematizam interfaces entre gênero e políticas públicas de inclusão social no Brasil, considerando a proposta da transversalização de gênero assumida pelo governo brasileiro desde 2004. A pesquisa "Políticas públicas de inclusão social e transversalidade de gênero: ênfases, tensões e desafios atuais", vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, descreve e analisa alguns dos modos pelos quais o gênero atravessa e organiza um conjunto de políticas e de programas governamentais que objetivam promover (de diferentes formas e em diversos âmbitos) inclusão social para responder a duas grandes e complexas questões: 1) como a proposição governamental da transversalidade de gênero tem sido apresentada e proposta nos textos programáticos das políticas de inclusão social analisadas pela pesquisa? 2) Quais têm sido as ênfases, tensões e desafios apontados por outros estudos que têm discutido e analisado essa proposição de transversalidade de gênero em políticas públicas na confluência das áreas da educação e da saúde, diante de tais questões?
Neste texto, chamaremos a RD de política, embora ela seja entendida por muitos como programa. Entendemos que a RD se configura como uma política pública, uma vez que funciona como artefato cultural e tecnologia de poder (Meyer, Klein & Fernandes, 2012). Compreendemos também que dentro da área dos estudos de políticas públicas, a diferença entre as nomenclaturas Programa e Política apontam para diferentes ofertas de serviços públicos e comprometimento do Estado. Desde a nossa perspectiva, portanto, ambos estão sendo tomados como linguagem que instaura processos de organização das sociedades contemporâneas (Meyer e col., 2012). Por fim, ressaltamos que embora os termos droga e substância psicoativa sejam frequentemente utilizados como sinônimos, privilegiaremos neste texto o termo subtância psicoativa (SPA), para mantermos um alinhamento com a nomenclatura presente nos documentos analisados.
A Política de RD está preocupada em reconhecer as escolhas dos/as usuários/as de SPA que demandam algum tipo de cuidado incluindo-os/as, desse modo, na esfera do direito à saúde, à cidadania e aos direitos humanos. No Brasil, a RD foi adotada como estratégia de intervenção no campo da saúde no final da década de 1980 e inspirava uma discussão voltada para desestigmação dos usuários e usuárias de SPA. As primeiras ações aconteceram em 1989 em Santos (SP) que, na época, era o município com maior taxa de pessoas infectadas pelo vírus HIV, decorrente do uso de substâncias psicoativas injetáveis (Silveira, 2013).
A articulação entre o campo de álcool e outras drogas e as políticas de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), particularmente no campo da saúde mental, é considerada um fato histórico recente. Do ponto de vista do gênero, Emmanuela Lins (2007) aponta que quando se estabeleceu a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras drogas, em 2003, o Ministério da Saúde reconheceu que houve um atraso do SUS na assunção da responsabilidade pelo enfrentamento de problemas associados ao consumo de álcool e outras drogas, ao passo que esse atraso também acompanha o desinteresse por questões relacionadas a gênero e uso de SPA.
O material empírico analisado foi composto por documentos normativos da política e seus desdobramentos. Para este artigo, utilizamos a Política do Ministério da Saúde para Usuários de Álcool e outras Drogas (Ministério da Saúde [MS], 2003) e uma cartilha de Redução de Danos, voltada para profissionais da saúde (2008) produzida pela Universidade Federal de São Paulo (Niel & Silveira, 2008), ambos propostos pelo Ministério da Saúde (MS).
Para o exame do corpus de investigação, foi utilizada a análise cultural (Andrade, 2004), em combinação com a pesquisa documental, operando com os conceitos de posição de sujeito, norma, poder e gênero. O processo de essencialização (biológica e cultural) de gênero parece persistir nas representações de sujeito usuário/a de SPA, assim como um processo de vigilância dos corpos de mulheres (sobretudo no que se refere ao exercício da sexualidade e da saúde reprodutiva) que tais representações sustentam.
As análises que exploramos neste artigo argumentam que representações naturalizadas da relação entre uso de SPA e masculinidade e de uma feminilidade que não se droga seguem ativas na política e que estas contribuem para dificultar o dimensionamento de uma demanda de cuidado. Vale demarcar a naturalização da sequência sexo-gênero-sexualidade, a partir da qual mulher é sinônimo de feminino, homem de masculino e que partimos da desnaturalização dessa sequência no sentido de compreender que masculinidade nem sempre é sinônimo de homens e feminilidades de mulheres.
Inscrição Teórico-Metodológica
É possível afirmar que os sentidos atribuídos às SPA, a seus usos e usuários/as, ao longo do tempo, foram tomando novos contornos em diferentes instâncias da cultura. Desse modo, pode-se localizar a Política de Redução de Danos como um dos lugares em que esses sentidos são (re)produzidos e atualizados como um resultado provisório da disputa em torno dos investimentos de uma sociedade, tanto no que se refere à significação do que se constitui como SPA quanto ao que seriam cuidados de saúde para pessoas que a usam. Os documentos que delineiam e constituem as políticas de saúde - entre elas, a Política de RD - são instâncias produzidas na esfera política, que atribuem sentidos e valores, definem comportamentos e formas de viver dos sujeitos, incluindo o que essas culturas definem como homens e mulheres, masculinidades e feminilidades, e quais as formas "normais" de vivê-las.
Assim, o conceito de gênero permite supor que esses parâmetros de compreensão acerca de mulheres e homens são apreendidos na cultura a partir de diferentes discursos - da igreja, ciência, lei, padrões estéticos, de saúde, entre outros - e tornam corpos "marcados social, histórica e materialmente - pelo próprio sujeito e pelos outros" (Louro, Neckel & Goellner, 2003, p. 4). A utilização do termo gênero é uma conquista das feministas contemporâneas, que buscam espaços para apontar a insuficiência das explicações sobre as desigualdades entre homens e mulheres, relacionadas, sobretudo, ao determinismo biológico (Scott, 1995).
Dagmar Meyer (2003) indica que nos constituímos como homens e mulheres, inseridos em uma multiplicidade de instituições e práticas sociais, por meio de um processo incompleto e descontínuo de aprendizagem. Nesse processo, inseridos no âmbito de grupos e sociedades, os sujeitos aprendem a reconhecer-se como homens e mulheres a partir de expectativas sociais que normalizam, por exemplo, atitudes específicas a homens e a mulheres. Michel Foucault define normalização como uma tecnologia de poder sustentada por "[...] avaliação, comparação e classificação dos indivíduos entre si, que ocorre não apenas por meio de uma normatividade científica de caráter corporal, orgânico, biológico, mas também de caráter psicológico e social que distingue os indivíduos na sociedade [...]." (Foucault, 2010, p. 57).
Assim, a consolidação da política de RD no âmbito das práticas cotidianas nos serviços de saúde é tanto o produto dessas relações de poder quanto seu constituidor e, nesse sentido, as proposições da política têm efeitos na constituição do sujeito usuário/a. Aqui é entendido que o sujeito é produzido de um modo disperso, pois, dependendo do lugar em que ele/a é situado/a, é possível posicioná-lo/la de diferentes modos.
A posição de sujeito é definida pelo seu trânsito nos discursos: é possível, portanto, ocupar várias posições, vários lugares de sujeito. No sentido foucaultiano, o sujeito é historicamente constituído a partir de jogos de verdade, de entrelaçamentos entre saber e poder, exercidos em diferentes dimensões. Assim como o sujeito louco foi constituído por quem o declarava louco, os/as usuários/as de SPA também o são. Nessa direção, há, tanto no imaginário social quanto entre os/as próprios/as profissionais e instituições que prestam cuidado aos/às usuários/as de SPA, uma construção sobre esses sujeitos que os posiciona em lugares sociais indesejáveis, articulados a sentimentos como pena, culpa, nojo, entre outros. Isto significa dizer que esse sujeito é construído em meio aos discursos, ao poder e a determinadas formas de subjetivar usos e usuários/as de SPA.
Como já indicado, o material empírico foi produzido por meio da estratégia de pesquisa documental e analisado por meio da análise cultural (Andrade, 2004) , a partir das ferramentas e dos referenciais dos estudos culturais e de gênero. As investigações, nessa direção, conforme apontam Dagmar Meyer, Carin Klein e Letícia Fernandes (2012), não estão implicadas em buscar respostas para o que as coisas de fato são, há um investimento em descrever e problematizar processos por meio dos quais significados e saberes específicos são produzidos, no contexto de determinadas redes de poder, com consequências para determinados indivíduos e/ou grupos.
Como estamos situadas no campo da educação, privilegiamos os documentos normativos e seus desdobramentos em materiais educativos, todos eles vinculados ao Ministério da Saúde, uma vez que a política estudada está situada nessa pasta do Governo Federal. Para este artigo, utilizamos a Política do Ministério da Saúde para Usuários de Álcool e outras Drogas (Ministério da Saúde [MS], 2003) e uma cartilha de Redução de Danos, voltada para profissionais da saúde (2008), produzida pela UNIFESP, que versa sobre estratégias educativas para a Redução de Danos. A escolha da pesquisa documental como procedimento de investigação permitiu a seleção dos documentos oficiais das políticas públicas escolhidas, na medida em que apresentavam algum tipo de conexão com o tema relacionado a gênero, substâncias psicoativas e redução de danos.
O material empírico selecionado, analisado na perspectiva da análise cultural, significou problematizar a política como linguagem e como artefato cultural. Tomar a concepção de cultura como histórica, provisória, instável e múltipla, por sua vez, significou declarar os limites da análise cultural, assim como assumir o caráter contingente, provisório e particular dos resultados da análise (Andrade, 2004).
Atravessamentos de Gênero e Essencialização dos Corpos
Ao analisar a Política de RD parece haver inicialmente uma ideia de invisibilidade de gênero, mas é possível afirmar que esta é apenas aparente, tendo em conta que as políticas analisadas nesta pesquisa se articulam, ao (re)produzirem e veicularem uma concepção específica de usuário/a de SPA, a partir de representações de masculinidades heterossexuais hegemônicas em nossa cultura. Assim, quando as políticas aludem ao/à usuário/a, referem-se, de algum modo, a uma forma singular de usuário, qual seja: homem, pobre, negro, criminoso. Esses aspectos marcam os/as usuários/as, conformando um certo essencialismo, que aparece quando a política ancora-se em uma perspectiva biológica, com o intuito de dar a ver, sobretudo, os diferentes efeitos do consumo de SPA nos corpos de mulheres e homens.
Embora o uso abusivo de drogas esteja historicamente relacionado aos homens, Prado e Queiroz (2012) apresentam dados sobre o aumento do número de mulheres usuárias de drogas entre um contingente que, em 2005, registrou um crescimento global de 15 milhões de pessoas, na faixa etária de 15 a 64 anos, envolvidas com o consumo abusivo de drogas. Dentro desse contingente, foi identificado o aumento do número de mulheres em relação ao de homens para alguns tipos de substâncias, especialmente as ilícitas (Oliveira, Paiva & Valente, 2006 citado por Prado & Queiroz, 2012). Para os autores, uma explicação possível para o aumento do número de mulheres usuárias de SPA pode estar no fato de elas terem sido invisibilizadas em estudos anteriores sobre a temática.
Também Lima e cols. (2011) indicam, em pesquisa sobre o uso de SPA por mulheres, como os documentos normativos de políticas públicas, especialmente no campo de álcool e outras drogas, ainda têm como foco central os homens. Com efeito, há, segundo esses autores, uma quase ausência no direcionamento das políticas públicas para reverter os números crescentes de consumo de álcool e outras drogas entre as mulheres.
Ao nos alinharmos a perspectivas teóricas pós-estruturalistas para discutir esse silêncio e/ou suposta neutralidade no que se refere aos documentos analisados, não estamos dizendo que as políticas existentes estão, intencionalmente, focadas em homens e excluindo as mulheres. Assumindo a dimensão produtiva da linguagem, procuramos problematizar esse caráter universalizante/masculinizante da linguagem nos documentos examinados. O que, acreditamos, nos permite argumentar que gênero, ao atravessar a política de RD, reitera e atualiza uma certa relação naturalizada entre uso de SPA e masculinidades que só será rasurada, no texto normativo, em circunstâncias específicas que procuramos descrever a seguir.
A cartilha de Redução de Danos, voltada para profissionais da saúde (Niel & Silveira, 2008), destaca diferenças orgânicas entre homens e mulheres relacionadas ao consumo de álcool:
As mulheres ficam intoxicadas mais rapidamente e com doses menores de bebida alcoólica e são mais vulneráveis às complicações decorrentes do uso crônico de álcool. O metabolismo do álcool é diferente entre homens e mulheres, essas diferenças tornam as mulheres mais vulneráveis a complicações decor rentes do uso crônico de álcool. Tais diferenças ocorrem porque a mulher tem em média menor propor ção de água corporal que o homem [...] (Niel & Silveira, 2008, p. 38).
É possível observar, nesse trecho, um modo de abordar diferenças decorrentes do uso do álcool e de seus efeitos nos corpos de homens e mulheres, em um tom que universaliza e fixa masculino/homem e feminino/mulher em determinados processos biológicos. Ao colocar essa estratégia discursiva em evidência, não pretendemos negar o valor de verdade da ciência biomédica que se apoia e se concretiza em práticas de saúde focadas no corpo-organismo, inclusive porque reconhecemos que eles possuem efeitos no cuidado aos usuários e usuárias que assistem.
Em vez disso, procuramos problematizar silêncios de tal abordagem, ou, nos termos propostos por Deborah Britzman (1996), dar visibilidade ao que essa ciência não permite (re)conhecer, e assim propor uma outra leitura possível da relação entre homens, mulheres e usos de SPA, em um sentido de ampliação das possibilidades de se pensar sobre o tema e algumas de suas relações. Trata-se, em síntese, de explorar produtivamente a indagação do que vem junto com essa forma de conhecer e que possíveis efeitos isso tem nas vidas dos indivíduos e grupos que ela nomeia e mobiliza.
A partir da perspectiva de gênero, nos termos aqui propostos, é preciso admitir que esses conhecimentos, caracterizados como científicos e, por isso, tomados como verdadeiros, estão implicados com a produção de gênero. O discurso biologicista fundamenta as ciências biológicas e da saúde, e segue sendo muito mobilizado especialmente nas chamadas ciências da vida. Assim, funciona como um discurso que ocupa uma posição privilegiada nos processos de significação epistêmica do corpo, conferindo uma aura de verdade incontestável à sua materialidade biológica. A biologia, com todos os seus desdobramentos, tem sido considerada a teoria que fornece a base conceitual e a legitimidade para definir o que é o corpo, descrever como ele funciona e, no caso desta investigação, explicar como esse corpo reage ao uso das SPA, no campo dos estudos de álcool e outras drogas.
Ao constituir essas representações de corpo, tais saberes contribuem para justificar e naturalizar, no âmbito da cultura, uma determinada relação entre uso de álcool e indivíduos sexuados (homens e mulheres) e generificados (masculinos e femininos), constituindo aí uma polaridade. Mediante isso, é preciso questionar: quais são os entraves promovidos por essa essencialização biologicista quando se trata da relação entre usos de SPA e gênero? O que ela deixa de fora ou impossibilita pensar?
Deborah Britzman (1996) aponta que os discursos científicos hegemônicos produzem seu próprio conjunto de ignorâncias. Nessa perspectiva, a ignorância - o que não se conhece - é tomada como um efeito de poder de determinados tipos de conhecimento, não como uma ausência de conhecimento. Ou seja, cada saber mantém, ao projetar uma luz de compreensão acerca de um fato, elementos na sombra, permitindo-nos, assim, somente enxergar uma parte. Esse ponto de vista nos instiga, no caso das visões essencialistas mobilizadas no campo das SPA, a investigar o que vem junto a esse entendimento biologizante.
Em se tratando da cultura, é possível afirmar que ela ensina modos de ser homens e mulheres dentro de uma perspectiva dicotômica e universalizante, em um determinado tempo histórico, e isso se materializa em seus corpos. Louro (1997, p. 32) aponta que o corpo é "dito e feito na cultura; descrito, nomeado e reconhecido na linguagem, através de signos, dos dispositivos, das convenções e da tecnologia". Assim, é necessário pontuar, quando nos referimos a um corpo "dito e feito na cultura", que essas ações são carregadas de poder, são estratégias por meio das quais culturas fabricam os seus corpos.
Assim, o binarismo natureza/cultura estabelece fronteiras entre o que se define como a natureza ou a biologia do corpo de homens e mulheres e aquilo que a cultura define como masculinidade e feminilidade no que se refere aos usos de SPA. Ou seja, a própria construção biológica do corpo se dá imersa na cultura. Ao colocar essa oposição em suspenso, é possível entender de que modo o poder opera na constituição dessas fronteiras que opõem dois polos supostamente homogêneos e, ao fazê-lo, permite desqualificar, estigmatizar e criminalizar, no interior da população, determinados grupos e supervalorizar outros.
O excerto do documento anterior (Niel & Silveira, 2008), ao comparar os efeitos dos usos de SPA entre homens e mulheres, tomando como referência a ação das substâncias em seus corpos, (re)produz uma compreensão essencializada que permite supor uma homogeneização entre todo e qualquer corpo de homem e todo e qualquer corpo de mulher, corpos que responderiam, da mesma forma, ao uso de determinadas substâncias, considerando-se apenas diferenças de gênero e não diferenças de usos e efeitos entre um mesmo gênero. Esse entendimento pode levar a inferir que toda mulher que usa álcool, por exemplo, terá problemas hepáticos, ou que todas sofrerão por intoxicação com doses pequenas de álcool.
Desse modo, fixa-se os sujeitos em determinadas posições que carregam marcas/características. Há também uma fixidez, quando o excerto traz uma noção dicotomizada da diferença entre homens e mulheres a partir da distinção corporal. Essa compreensão parece deixar na sombra os processos sociais e culturais em que os indivíduos estão imersos, o que limita alguns entendimentos, como as variações sociais na distinção masculino/feminino. Também deixa-se de compreender o modo como cada cultura concebe o corpo, entre outras coisas. Vale salientar ainda que o sentido dos usos de algumas substâncias variam de acordo com as diferentes cultura e tempos históricos.
Assim, essa descrição do excerto acerca da maior fragilidade biológica aos efeitos do álcool e outras drogas contribui para alimentar redes de vigilância sanitária, e mesmo sociais, mais estritas no que diz respeito aos usos de SPA por mulheres. Essas redes (re)constituem modos de atuação do poder sobre os corpos de modo a controlá-los, e aparece de diferentes formas: nas abordagens nos serviços de saúde, no convívio social e familiar, na mídia, nas revistas voltadas para mulheres, entre outros mecanismos. Como o poder circula, ou, melhor, funciona em rede, toda essa atuação sobre os corpos é fortalecida quando enredada a discursos morais, no sentido de interditar comportamentos das mulheres usuárias de SPA, colocando-as em situação de estigmatização. As causas, os efeitos e os modos de vigiá-las vão modificando ao longo do contexto histórico/cultural, (re)construindo, entre outras coisas, um lugar desfavorável para as mulheres. Um outro aspecto que descreveremos a seguir se desdobra dessa discussão, no que tange à saúde sexual e reprodutiva das mulheres usuárias de SPA.
Saúde Sexual e Reprodutiva das Usuárias de SPA
A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários/as de álcool e outras drogas (2003) aborda "a morbidade entre os sexos" e a "saúde sexual e reprodutiva" das mulheres: "[...] [a] morbidade entre os sexos é diferenciada sendo que nas mulheres a vulnerabilidade está na saúde sexual e reprodutiva, enquanto que nos homens estão mais expostos às causas de acidentes e violência onde a maioria é do sexo masculino, com idades entre 15 e 29 anos". (MS, 2003, p. 16).
A morbidade é definida na saúde coletiva como uma variável, referindo-se ao conjunto de indivíduos, dentro da mesma população, que adquirem doenças (ou uma doença específica) em um intervalo de tempo, e serve para mostrar o funcionamento das doenças e dos agravos à saúde na população (Pereira, 2004). O modelo explicativo da doença para o consumo de SPA é sustentado por um discurso moralista oriundo do proibicionismo e ainda é preponderante nos serviços de saúde mental. Este modelo configura os usos de SPA e a dependência como uma patologia biologicamente determinada, que deve ser abordada com a oferta de tratamento e reabilitação (Marlatt, 1999). Quando uso de SPA é compreendido como uma doença, o sujeito é posicionado como doente e, assim, a organização de abordagens de cuidado em torno dessa doença torna invisíveis as questões singulares de cada pessoa.
No que se refere à saúde reprodutiva, a Organização Mundial de Saúde adota a seguinte definição:
A saúde reprodutiva é um estado de completo bem estar físico, mental e social e não a simples ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tenha a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes o deve fazer [...] (Ventura, 2009, p. 77).
Nessa perspectiva, investir em saúde reprodutiva deveria promover, também, possibilidades de se levar uma vida sexual segura e satisfatória, com autonomia em relação às escolhas envolvidas. Nesse sentido, a expressão vida sexual é mais ampla e complexa, não compreende apenas aspectos relacionados à vida reprodutiva; a saúde sexual "[...] diz respeito às várias possibilidades de pensar, sentir e viver a sexualidade". (Meyer, 2005, p. 7).
Embora o trecho da política aponte para a saúde sexual relacionada à saúde reprodutiva, é importante salientar que cada termo possui definição própria, podendo funcionar de forma relacionada, mas também de forma independente, sendo possível exercer a "função reprodutiva sem relações sexuais, com o uso de técnicas reprodutivas, e outras técnicas, bem como é possível a atividade sexual sem fins reprodutivos" (Ventura, 2009, p. 77). A abordagem conjunta de saúde sexual e de saúde reprodutiva, em geral, também é generificada, na medida em que as ações de saúde sexual são voltadas aos homens e às ações de saúde reprodutiva destinadas às mulheres.
A problematização desses dois termos acena para a possível ampliação do modo de se pensar as abordagens de cuidado no que se refere à saúde sexual e saúde reprodutiva. Não se trata aqui de negar que as vulnerabilidades sexuais e reprodutivas são um problema no contexto de uso de SPA, mas de relacionar esses aspectos a outros que envolvem a cultura - por exemplo, ao alargar o espaço para que apareça o modo como cada usuário/a de SPA constitui e compreende a experiência da sexualidade de um modo e não de outro.
Toda discussão acerca do essencialismo pressupõe a noção de pré-concepções sobre os sujeitos de modo a torná-los fixos, universais e imutáveis, e acena para uma outra dimensão importante: a maternidade no contexto dos usos de SPA, pois há fortemente neste contexto a noção preexistente de que estas mulheres são incapazes de cuidar de si e do outro.
Como nos documentos analisados a questão da maternidade não é tratada, seguimos naquela linha de Deborah Britzman (1996) a respeito das sombras formadas a partir da projeção de luzes. Por isso a análise que segue não terá como sustentação o material empírico. Contudo, a relevância dessa discussão encontra-se justamente por ela permanecer nas sombras dos documentos analisados. Trazê-la à luz mostra-se necessário devido ao contexto atual em que diversos serviços de atendimento público da saúde/saúde mental e social vêm passando por entraves que envolvem o tema, sobretudo no que se refere a retirada de bebês das mulheres usuárias.
No contexto da discursividade sobre a maternidade vigente, Meyer (2005) assinala que, ao longo dos séculos XIX e XX, multiplicaram-se os discursos sobre cuidados a serem dispensados aos corpos de mulheres, corpos femininos. Especialmente quando se refere a corpos de mulheres-mães, esses se voltam para um sentido específico acerca do modelo da mãe cuidadosa, ao restringir os modos de ser mãe, a uma determinada forma fixa de maternidade (Meyer, 2005). Esse modelo de mãe cuidadosa acaba por criar uma referência naturalizada do que se espera das mulheres no exercício da maternidade, especialmente, para mulheres que já têm filhos/as, para as mulheres grávidas ou que querem engravidar. É possível supor que esta expectativa social delimita uma fronteira entre as mulheres consideradas aptas para correspondê-las e as que por diferentes motivos não o são.
A esse respeito, pode-se afirmar que, para ocupar uma posição de sujeito de mãe cuidadosa, serão demandados preparos que começam em um momento anterior ao da concepção, pois,
[...] espera-se que a futura mãe se abstenha de café, chá, álcool, fumo (inclusive passivo), determinados tipos de alimentos industrializados, estresse, excesso de exercícios [...] Durante a gravidez, o desenvolvi mento do bebê e todos os aspectos do comportamento dela são minuciosamente monitorados pelos serviços de saúde. [...] Para o melhor e para o pior, hoje, as responsabilidades da mãe dobraram: a estabilida de emocional e o desenvolvimento cognitivo e psicológico dos filhos também estão a seu encargo. [...] As mães são bombardeadas com mais informações do que conseguem absorver e o conselho é sempre apresentado como o "melhor para o seu bebê", porém envolve vários outros interesses [ou problemas] sociais, políticos e culturais (Forna, 1999, p. 15).
Esses investimentos intentam educar, e, de um determinado modo, constituem uma rede de poder-saber investida na regulação dos sentidos da relação mãe-filho, envolvendo o corpo materno "em um poderoso regime de vigilância e regulação" (Meyer, 2005, p. 83). Nessa direção, é razoável supor que os corpos das mulheres usuárias de drogas que estejam grávidas entram ainda mais incisivamente nesse registro da vigilância, de modo a monitorar a saúde do feto e, também, a sua capacidade de gerir ou de manutenção do cuidado aos/às filhos/as. Aqui residem duas questões: uma é que algumas pesquisas indicam que os consumos, mesmo ocasionais, de álcool, tabaco e outras SPA afetam o desenvolvimento do feto, até a vida adulta. A outra questão diz respeito à capacidade dessas mulheres usuárias de SPA de dispensarem os cuidados adequados a seus/suas filhos/as. Trataremos dessas questões a seguir.
Um conjunto de estudos (Silva & Tocci, 2002; Silva, 2014; Siat, 2016) confirmam os efeitos nocivos que as substâncias psicoativas produzem no corpo das mulheres gestantes e, principalmente, no feto. Há um alerta, de um modo geral, a respeito dos efeitos de todas as substâncias psicoativas, especialmente as lícitas, e junto a isso diversas recomendações que envolvem aspectos como o cuidado com a alimentação, diminuição de exercícios físicos, entre outros, apontando para a necessidade de abstinência total dos usos. Mas em relação às mulheres que não conseguem ou não querem corresponder a essas indicações, os usos/abusos de SPA as tornam incapazes de cuidar de si e do/a outro/a?
Diante da pouca produção teórica a respeito do tema, abordamos aqui duas notícias publicadas em jornais sobre os entraves dos serviços públicos, no que se refere ao manejo de casos que envolvem usuárias de SPA gestantes pelos/as profissionais de saúde nesses espaços.
Em 2012, foi publicada uma matéria que mostrava o aumento dos partos por usuárias de crack, sendo esse fato indicado na matéria como relevante para a saúde pública. Segundo a mesma notícia, os sinais de que a gestante usa SPA nem sempre são evidentes, mas a suspeita inicia-se quando as mulheres informam morar na rua, não possuírem vínculos familiares e não terem feito o pré-natal. Diante dessas informações, a associação ao uso de drogas passa a se tornar presente, e junto a isso se soma uma série de julgamentos que, entre outras coisas, constituem um campo de impossibilidades que incapacitam as mulheres de cuidar de seus/suas filhos/as. Assim, a maior parte dessas mulheres (80%) saem das maternidades sem os/as filhos/as, que são encaminhados para abrigos (Bedinelli, 2012).
Em um outro artigo, relata-se que, em 2015, maternidades e unidades básicas de saúde de Minas Gerais receberam recomendações da 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível de Belo Horizonte, indicando, aos psicólogos e assistentes sociais desses campos de atuação, o envio à Vara da Infância e Juventude de relatórios dos casos de recém-nascidos de usuárias de drogas, para que estes fossem encaminhados a acolhimentos institucionais (Oficina de Imagens, 2014).
A promotora de Justiça da Infância e Juventude Civil de Belo Horizonte endossa a recomendação, ao mesmo tempo em que garante o direito da criança a conviver com a família de origem, no período em que esta estiver acolhida; enquanto isso, o juiz encaminharia a mãe para tratamento (Oficina de Imagens, 2014). Salienta-se que nesse documento indica-se que o diagnóstico dessas situações seja elaborado pelos técnicos do abrigo e por profissionais da prefeitura.
Em alguma medida, essa questão localiza-se no contexto de um conflito entre dois sujeitos de direito, feto/criança e mulher. A proteção do feto/criança é assegurada pelo Código Civil de 1916, em seu artigo 4º, quando ele considera que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os [seus] direitos" (Brasil, 2008, p. 143).
Em relação aos direitos das mulheres gestantes, estas possuem leis (UFF, 2016) que as amparam, durante o pré-natal, o parto e o pós-parto, e garantem direitos sociais como: filas preferenciais, direitos trabalhistas como a licença-maternidade, e os direitos da saúde que garantem a disponibilização dos exames e procedimentos necessários. Todos esses direitos tendem a não ser exercidos por mulheres que vivem em situação de rua, algumas tantas usuárias de SPA.
Saliento aqui que os Direitos Reprodutivos (Adolescência, 2016, p. 1) compreendem o direito básico de toda pessoa decidir, com liberdade e "responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos/as e de ter a informação e os meios de assim o fazer". Também garantem o direito "de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência" (Adolescência, 2016, p. 1). Essas proteções legais a que esses dois sujeitos de direitos - feto/criança e mulher - fazem jus acenam para a complexidade que envolve esses sujeitos e seus direitos no tocante à discussão das mulheres gestantes usuárias de SPA.
Os estudos mostrados anteriormente (Silva & Tocci, 2002; Silva, 2014; Siat, 2016) comprovam os malefícios das substâncias nos corpos, principalmente do feto, inferindo uma compreensão de que as mulheres, ao escolherem dar continuidade aos usos de SPA durante a gravidez, estão atestando a sua incapacidade de decidir pela gestação e/ou sua manutenção e/ou mesmo sua incapacidade de cuidarem da criança após o nascimento. O que parece ser legitimado por esses estudos são ações semelhantes àquelas apresentadas nos dois casos descritos anteriormente, publicados em matérias de jornais, em que seus/suas filhos/filhas são retirados/as imediatamente após o nascimento.
Nesse sentido, os direitos direcionam-se mais ao próprio feto e, em função disso, há uma preocupação em relação à promoção da saúde fetal que envolve principalmente o exercício responsável da maternidade. Esta responsabilidade, no tocante à mulher usuária de SPA, pode enredar ainda mais estes corpos nos sistemas de vigilância e regulação (sanitária, social e moral).
Desse modo, essa rede poderá incidir de modo intensivo sobre as mulheres gestantes usuárias de SPA consideradas inaptas para exercer a maternidade. Em outros termos, se às mulheres-grávidas em geral já são dispensados um cardápio de prescrições sobre o que devem fazer e como devem cuidar de si e de seus/suas filhos/as, às mulheres usuárias de SPA grávidas esses cuidados se ampliam, na medida em que elas parecem estar todo o tempo sob suspeita e vigilância. No limite, seus corpos adictos atestam antecipadamente a incapacidade de seguir tais prescrições, eles expressam a inabilidade para o cuidar.
Silveira (2013) aponta que grande parte das mulheres gestantes usuárias de SPA consideradas inaptas vivem em situação de rua (corpos adictos e sem residência fixa, corpos fora dos bancos de créditos). O autor argumenta que a incapacidade dessas mulheres de exercer a maternidade está muito mais relacionada com a situação de pobreza do que ao uso de SPA. Segundo o psiquiatra, a criança normalmente é retirada da mãe porque esta vive em situação de rua. O autor diz que o argumento de que o problema é a droga é usado para justificar a retirada do/a filho/a, mas que isso é feito porque ela é pobre: "atendo pessoas de classe média, classe média alta, com o mesmo vício e isso não acontece entre elas" (Silveira, 2013, p. 1). Sob o pretexto do uso de SPA, criminaliza-se a pobreza, penaliza-se a mulher, pobre, usuária de SPA, retirando-lhe o que culturalmente legitima um corpo de mulher: a maternidade.
Ao analisar a posição de sujeito que se (re)produz nesse contexto, como mulher usuária de SPA grávida/pobre, pode-se pensar que o fator incapacitante a ela associado parece não ter relação com as definições de uso abusivo ou dependência pois, segundo o relato anterior, mesmo que não haja parâmetros para esse diagnóstico, ou antes mesmo de identificar se há realmente o uso (abusivo ou dependente), já se fixa a mulher na condição de incapaz de exercer a maternidade. Em outros termos, parece haver uma sobreposição da noção de pobreza com a noção de incapacidade, marcando assim a impossibilidade de exercício da maternidade.
Os estudos aos quais tivemos acesso (Hochgraf, Zilberman & Brasiliano, 1999; Henderson, Boyd & Mieczkowski, 1994), sobre os prejuízos decorrentes do uso de SPA por mulheres, não possuem um caráter investigativo mais aprofundado a respeito dos processos sociais e culturais em que estas mulheres estão inseridas. Outras perspectivas que abordam esses processos poderiam, por exemplo, apoiar serviços públicos de saúde/mental e de assistência social com uma outra forma de abordagem a essas mulheres, considerando suas histórias de vida, suas formas de se situar no mundo, compreensão acerca de suas escolhas etc. Desse modo, contribuiriam também para um olhar não essencializado acerca da pobreza e dos usos de drogas.
Olhar o contexto das mulheres usuárias de SPA acena para a necessidade de se pensar gênero na articulação com outros marcadores sociais, como raça, classe, geração, entre outros, compreendidos e organizados em meio a relações de poder (Scott, 1995). Pode-se supor, portanto, que a posição de sujeito "mulheres grávidas usuárias de SPA" cola-se ao marcador da pobreza, ao fato de serem possivelmente negras e julgadas incapazes de terem filhos/as. Vale ressaltar que atribuir uma incapacidade a essas mulheres também pode fortalecer a violação de alguns de seus direitos, uma vez que a incapacidade oblitera a posição de sujeito de direitos dessas mulheres. Assim sendo, não bastasse a tendência em subsumir o uso de SPA aos homens, invisibilizando mulheres com necessidades decorrentes de usos de SPA, fica também em aberto a questão da possibilidade de se falar em redução de danos, em se tratando de mulheres em idade reprodutiva que não evitam a gravidez, ou que querem engravidar.
Fechamentos Provisórios
As análises que exploramos neste artigo nos permitiram refletir sobre o processo de essencialização (biológica e cultural) de gênero que persiste nas representações de sujeito usuário/a de SPA e o processo de vigilância dos corpos de mulheres, especialmente no que se refere ao exercício da sexualidade e à saúde reprodutiva que tais representações sustentam. Argumentamos, através de algumas discussões, que as representações naturalizadas da relação entre uso de SPA e masculinidade e de uma feminilidade que não se droga seguem ativas na política e que estas contribuem para dificultar o dimensionamento de uma demanda de cuidado que leve em consideração seus aspectos singulares.
Um dos processos de essencialização apontados nas análises parte das diferenças decorrentes do uso do álcool e de seus efeitos nos corpos de homens e mulheres por um tom que universaliza e fixa masculino/homem e feminino/mulher em determinados processos biológicos. Essa compreensão permite supor que os corpos respondem, da mesma forma, ao uso de determinadas substâncias, desconsiderando as suas diferenças orgânicas de responder a quantidade, a frequência do uso etc. Também são ignorados os sentidos específicos que levam cada pessoa a fazer esses usos e, desse modo, fixa os sujeitos em determinadas posições que carregam marcas/características, como por exemplo, as categorias dicotômicas e homogeneizadas homens ou mulheres.
Nesse sentido, no que diz respeito aos usos por mulheres, discutimos que esse entendimento contribui para alimentar redes de vigilância sanitária e mesmo sociais mais estritas. Essas redes (re)constituem modos de atuação do poder sobre os corpos de modo a controlá-los, e aparece de diferentes formas: nas abordagens nos serviços de saúde, no convívio social e familiar, na mídia, nas revistas voltadas para mulheres, entre outros mecanismos. Essa atuação sobre os corpos é fortalecida quando enredada a discursos morais no sentido de interditar os comportamentos das mulheres usuárias de SPA, colocando-as em situação de estigmatização.
As causas, os efeitos e os modos de vigiar as mulheres vão se modificando ao longo do contexto histórico/cultural, (re)construindo, entre outras coisas, um lugar desfavorável para as mesmas, sobretudo as mulheres usuárias de SPA, grávidas, negras, em situação de pobreza. A respeito desta discussão, a questão que nos acompanhou durante esta escrita e que permanece em aberto diz respeito à possibilidade de se falar em redução de danos no contexto de mulheres grávidas usuárias.
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Recebido em: 24 de junho de 2017
Aprovado em: 25 de outubro de 2017