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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.18 no.43 São Paulo set./dez. 2018
ARTIGOS
"Ideologia de gênero" em movimento1,2
"Gender ideology" in movement
"Ideología de género" en movimiento
"Idéologie de genre" en mouvement
David PaternotteI; Roman KuharII
IProfessor Associado do departamento de Ciências Sociais e do Trabalho da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Université Libre de Bruxelles, Vice-presidente do Atelier Genre(s) et Sexualité(s); david.paternotte@ulb.ac.be
IIProfessor no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Ljubljana e editor associado da Social Politics (Oxford University Press); roman.kuhar@ff.uni-lj.si
RESUMO
Este artigo oferece uma visão geral das recentes campanhas contra a chamada "ideologia de gênero". Está organizado em três partes. Primeiro, detalha os principais dogmas da "ideologia de gênero" como discurso. Em segundo lugar, examina a "ideologia de gênero" como estratégia. Isso mostra que essa invenção católica, em resposta aos acontecimentos nas Nações Unidas, é cada vez mais atraente para os populistas de direita na região. Em terceiro lugar, argumenta que as campanhas anti-gênero tornaram-se um fenômeno nacional e transnacional, como demonstrado pelos desenvolvimentos recentes na América Latina. Este projeto baseia-se na análise comparativa de 12 países europeus por uma equipe internacional de pesquisadores.
Palavras-chave: mobilizações antigênero; transcionalização; gênero; religião; direitos sexuais.
ABRSTRACT
This article gives an overview of recent campaigns against so-called "gender ideology". It is organised in three parts. First, it details the main tenets of "gender ideology" as a discourse. Second, it examines "gender ideology" as a strategy. It shows that this Catholic invention in response to developments at the United Nations is increasingly appealing to rightwing populists in the region. Third, it argues that anti-gender campaigns have become both a national and transnational phenomenon, as demonstrated by recent developments in Latin America. This project relies on the comparative analysis of 12 European countries by an international team of researchers.
key words: antigender mobilizations; transnationalization; gender; religion; sexual rights.
RESUMEN
Este artículo ofrece una visión general de las campañas recientes contra la llamada "ideología de género". Está organizado en tres partes. Primero, detalla los principales principios de la "ideología de género" como un discurso. En segundo lugar, examina la "ideología de género" como estrategia. Muestra que esta invención católica en respuesta a los desarrollos en las Naciones Unidas es cada vez más atractiva para los populistas de derecha en la región. En tercer lugar, sostiene que las campañas contra el género se han convertido en un fenómeno tanto nacional como transnacional, como lo demuestran los desarrollos recientes en América Latina. Este proyecto se basa en el análisis comparativo de 12 países europeos por un equipo internacional de investigadores.
Palabras clave: movilizaciones antigénero; transnacionalización; género; religión; derechos sexuales.
RÉSUMÉ
Cet article offre un aperçu des campagnes récentes contre la soidisant "idéologie du genre". Il se compose de trois parties. Il développe premièrement les principaux éléments du discours contre cette "idéologie". Ensuite, il analyse les stratégies liées à ce discours et montre que cette invention catholique initialement censée répondreà des avancées au niveau des Nations-Unies séduit un nombre croissant de populistes de droite dans la région. Troisièmement, il étudie ces mobilisations comme un phénomène tant national que transnational, comme l'attestent les événements récents en Amérique latine. Ce projet repose sur l'analyse comparée de douze pays européens par une équipe internationale de chercheures.
Mots-clés: mobilisations anti-genre; transnationalisation; genre; religion; droits sexuels.
Introdução
Bolonha, Itália, Praça São Francisco, 5 de outubro de 2014. Um pequeno grupo de pessoas está em pé em uma praça, a dois metros de distância uma da outra, cada uma com um livro em suas mãos. Elas leem em silêncio por uma hora. Afirmam defender a liberdade de expressão e combater a "destruição do humano e da civilização". Assim como elas, alguns/umas milhares de outros/as cidadãos/ãs se reuniram, no mesmo dia, em mais de 100 cidades italianas. Esse grupo, chamado de Sentinelle in Piedi (Sentinelas em Pé), apareceu pela primeira vez em 2013 para se opor ao Projeto de lei Scalfarotto contra a homofobia. Desde então, essas manifestações se multiplicaram em toda a Itália e se tornaram um dos modos de ação marcantes dos opositores aos direitos LGBT e à "ideologia de gênero" no país. Os/As Sentinelas se apresentam como herdeiros/as de Gandhi ou Sócrates; isto é, como vítimas de abuso político e membros/as de um movimento de resistência. Em pé em uma praça pública, eles/as aludem a outras formas de protestos de cidadãos/ãs do período, como as Primaveras Árabes e as manifestações na Praça Taksim, em Istambul.
Liubliana, Eslovênia, Praça do Congresso, 12 de dezembro de 2015. Oito dias antes do segundo referendo sobre igualdade no casamento no país. Um grupo de cerca de 70 pessoas perfila-se, em linhas retas com cerca de dois metros entre cada uma, em uma das maiores praças da cidade. Elas leem seus livros em silêncio. O grupo é chamado Stražarji (Os Guardas) e se apresenta como defensores da liberdade de expressão, pensamento e consciência. Elas são instruídas a não se envolver em discussões com outras pessoas e não reagir a qualquer provocação. Os/As Guardas afirmam estar "cansados/as" da lógica imposta pelos/as ativistas da "teoria do gênero" fazem sobre seus modos de vida. De acordo com um folheto do grupo, eles/as são os/as guardiões/ãs de "uma família natural, uma união de um homem, uma mulher e filhos" e do "matrimônio entre um homem e uma mulher". Além disso, eles/as defendem o direito das crianças a um pai e uma mãe, o respeito pelas identidades masculinas e femininas e a liberdade dos pais de criarem seus filhos/as como quiserem. Ao contrário daqueles/as que, segundo eles/as, geralmente ocupam o espaço público protestando ruidosamente, os/as Guardas se manifestam em silêncio, por acreditar que suas consciências só podem falar em silêncio. No entanto, por desejarem que suas ações sejam ouvidas, em seu comunicado à imprensa, pediram à mídia para informar sobre o evento, que fazia parte da campanha do referendo.
Estes dois exemplos mostram a difusão de modos de ação específicos usados através da Europa. Em ambos os casos, os/as manifestantes afirmam defender a liberdade de expressão, pensamento e consciência. Eles/as contestam a igualdade de gênero e os direitos LGBT e clamam contra as intrigantes noções de "ideologia de gênero", "teoria de gênero" ou "genderismo". Essas mobilizações não são casos isolados, e têm se disseminado pelo continente nos últimos anos. De fato, os/as ativistas eslovenos/as se inspiraram nos/as italianos/as, que, por sua vez, tomaram como referência um grupo francês, os/as Veilleurs (Os/As Vigias), e, ao importar seus modos de ação, promoveram alguns ajustes táticos para os seus contextos. Nascido em 2013, em Paris, o grupo francês, inicialmente, reunia alguns/mas jovens (principalmente católicos/as) que se opunham ao projeto de casamento entre pessoas do mesmo sexo e estavam interessados em promover a "ecologia humana". Inspirando-se em uma tradição de resistência não violenta, organizam manifestações à luz de velas em praças públicas, durante as quais cantam e leem trechos de livros de autores/as os/as mais diversos, como Gramsci, Gandhi, Martin Luther King ou Saint-Exupéry (Lindell, 2014). Ao contrário dos/as franceses/as, os/as manifestantes italianos/as e eslovenos/as ficam em pé e permanecem em silêncio. Esses movimentos se tornaram mais importantes do que o francês, que, mais tarde, os emulou e fundou, na França, os/as Veilleurs debout (Vigias em pé). Por fim, os/as franceses/as adotaram o nome de seus pares italianos: os/as Sentinelles (Garbagnoli, 2016a).
A leitura silenciosa dos livros é apenas uma forma de ação no repertório de um novo movimento emergente na Europa que declara se opor ao "gênero" e se mobilizar contra o que chama de seus efeitos mais perniciosos. Essas campanhas, todas com uma notável semelhança, eclodiram em diferentes partes do continente. Elas compartilham discursos, estratégias e modos de ação através das fronteiras, observam o que cada uma faz e estão cada vez mais conectadas transnacionalmente (Paternotte, 2015; Hodžić & Bijelić, 2014). Essas semelhanças são importantes pois nos permitem compreender a origem dessas mobilizações, suas manifestações locais e suas formas de difusão.
Estudiosos e estudiosas têm descrito mobilizações similares contra a igualdade de gênero e/ou a cidadania sexual em outras partes do mundo. Os objetivos e as formas das ações da direita cristã estadunidense, por exemplo, foram longamente estudados e possibilitam frutíferos debates acadêmicos sobre as noções de contramovimentos e guerras culturais. Outras pesquisas têm focado tanto a história quanto o desenvolvimento desses movimentos (Diamond, 1989; Liebman & Wuthnow, 1983; Williams, 2010) e também sobre suas influências em questões específicas como direito das mulheres, especialmente em relação ao aborto (Saurette & Gordon, 2015) e direitos LGBT (Herman, 1997; Fetner, 2008; Stone, 2012). Pesquisadores e pesquisadoras latino-americanas têm igualmente produzido trabalhos seminais importantes (Vaggione, 2010). Esse é particularmente o caso do sociólogo argentino Juan Marco Vaggione, que, seguindo o pioneiro trabalho de José Casanova (1994), tem examinado a desprivatização da religião e a "politização reativa" das políticas sexuais e de gênero pelos movimentos religiosos da região. Vaggione (2005, 2012) aponta que esse processo é acompanhado por uma onguização dos/as atores/atrizes religiosos/as e pela secularização de seus discursos. Mais recentemente, pesquisas sobre o continente africano documentam a exportação das guerras culturais norte-americanas (Kaoma, 2009, 2012), muitas vezes com foco nas igrejas protestantes, bem como interseções entre as questões de gênero e preocupações quanto à soberania nacional e à autenticidade das tradições (Anderson, 2011; van Klinken, 2013; van Klinken & Zebracki 2015).
Esses estudos insistem no papel que o entendimento conservador da religião joga como catalisador da oposição às igualdades nos campos do gênero e da sexualidade, assim como no processo contínuo de reafirmação da religião no espaço público. Eles mostram também que, com frequência, essas dinâmicas se atrelam a questões relativas ao nacionalismo e à defesa da soberania nacional (Gryzmala-Busse, 2015; Ayoub, 2016). Isso pode ser dramaticamente ilustrado pela rejeição do acordo de paz na Colômbia, em um referendo em 2016. Viveros Vigoya e Rodrigues (2017) estão entre os/as autores/as que apontam que os debate sobre a paz sofreram o impacto da promoção de um "pânico antigênero" por parte de atores e atrizes que se opunham ao acordo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
Até o momento, houve poucas pesquisas sobre essas mobilizações na Europa (Ozzano & Giorgi, 2015; Verloo, 2017). Isso se deve em parte ao caráter recente dessas mobilizações, que se desenvolveram principalmente a partir da década de 2010. Essa ausência, no entanto, também é explicada pela predominância de um relato teleológico acerca das políticas sexuais e de gênero na região. Acadêmicos/as, observadores/as, atores/atrizes, em geral, estavam convencidos/as de que a Europa seguia, irrefreável, em seu caminho em direção à "plena" igualdade de gênero e à cidadania sexual. Eles e elas presumiam que tais formas de oposição eram em grande parte estranhas à experiência europeia ou que só poderiam subsistir como algo remanescente do passado, sobretudo na Europa Oriental ou em países (católicos) como a Itália ou a Irlanda. Assim, manifestações muito bem-sucedidas (Paternotte, 2017a), como as promovidas pelo movimento francês Manif pour Tous (Manifestação para Todos), foram uma surpresa e forçaram estudiosos e estudiosas a fazer reparos nessa grande narrativa.
Além disso, os relatos sobre essas mobilizações, quando existentes, costumam ficar limitados ao interior das fronteiras de cada país, sendo apresentados como exclusivamente nacionais. Esses estudos caem na armadilha do nacionalismo metodológico (Raison Politique, 2014). Procuram explicar essas campanhas concentrando-se em fatores locais e interpretando-as como fenômenos nacionais. Isso é particularmente visível no caso francês, onde, desde 2014, uma quantidade abundante de pesquisas sobre o tema tem sido publicada. Com poucas exceções, as mobilizações francesas contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo são geralmente entendidas como "outra exceção francesa", ignorando-se as semelhanças com manifestações de outros lugares, bem como o fato de terem sido antecedidas em países como Espanha, Itália, Croácia e Eslovênia (Paternotte, 2015). Elzbieta Korolczuk denuncia a mesma falha na cobertura dos debates poloneses, concluindo que "há evidências, no entanto, de que a recente mobilização contra a 'genderisation', a 'ideologia de gênero' ou o 'lobby de gênero' não é apenas uma tendência local" (Korolczuk, 2014, p. 5).
Por fim, embora exista hoje uma crescente literatura sobre religião, gênero e sexualidade na Europa, ela se dedica, em grande medida, ao Islã, e está focada na questão acerca da possibilidade de que essa tradição religiosa possa ou não ser combinada com a aceitação da igualdade sexual e de gênero. Além disso, esses relatos, em geral, não focalizam os movimentos religiosos, mas concentram-se em experiências individuais de fé ou nas autoridades religiosas. Além disso, vale notar a existência de uma literatura sobre política pública dedicada a "políticas da moralidade", que, contudo, muito frequentemente não distingue os/as vários/as atores/atrizes religiosas em jogo e apenas considera a religião como um obstáculo a políticas mais permissivas, sem tratar a religião como objeto de estudo (por exemplo: Engeli, Green-Pedersen & Thorup Larsen, 2012; Knill, Preidel & Nebel, 2014; Knill, Adam & Hurka, 2015). Da mesma forma, os emergentes estudos sobre gênero, sexualidade e populismo (por exemplo, Scrinzi, 2014; Spierings, Zaslove, Mugge & de Lange, 2015; Lazaridis & Campani, 2016) enfocam principalmente os partidos populistas de extrema direita e sua capacidade de atrair a opinião pública, e dedicar menor atenção a questões relativas ao papel das organizações da sociedade civil (Aslanidis, 2016).
Frente a essas várias insuficiências, o livro que publicamos se concentra em campanhas e movimentos contra o "gênero" na Europa e insistimos na natureza transnacional de seus discursos e estratégias. Postulamos que essas mobilizações compartilham raízes teóricas comuns na chamada "ideologia de gênero" que em alguns países também se denomina "teoria de gênero" ou, ainda, "genderism". Ao mesmo tempo, mesmo enfatizando as semelhanças transfronteiriças, o livro examina processos locais e nacionais de recepção e observa as formas específicas assumidas localmente por esses movimentos, identificando as razões pelas quais eles não se desenvolveram em outros contextos. No capítulo introdutório que é a base desse artigo, uma primeira seção é dedicada a examinar a "ideologia de gênero" como discurso específico, expondo suas origens e premissas. Em seguida, essa pauta é examinada como estratégia numa chave que também discute as interseções entre os vários movimentos acima mencionados, a Igreja Católica e a recente onda populista de direita na Europa.
"Ideologia de Gênero" como um discurso
"Ideologia de gênero é destrutiva, obscurantista, antissocial, antipopular tanto quanto é antinatural". Essa intrigante citação é encontrada em uma brochura sobre "ideologia de gênero" que pode ser baixada livremente do site da Manif pour Tous, o movimento de massa francês que se opôs ao reconhecimento e à aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo no país em 2012-2013. A brochura pretende alertar a cidadania francesa para os perigos negligenciados do "gênero", que - como afirma a citação acima - representaria uma enorme ameaça para as sociedades europeias.
Ao contrário do que normalmente se sugere, esse discurso não constitui "outra exceção francesa". Uma extensa produção intelectual tem sido elaborada ao longo dos últimos anos em torno a esse fenômeno e já pode ser identificado um quadro teórico comum para analisá-lo, embora com argumentos que podem receber ênfases distintas em diferentes países. É crucial sublinhar que "ideologia de gênero" não designa os estudos de gênero, mas sim um termo originalmente criado em contraposição aos direitos de igualdade e ao ativismo feminista e das pessoas LGBT, bem como aos estudos que desconstroem a base essencialista e naturalista das ordens de gênero e sexualidade. Os discursos antigênero, apagam as árduas controvérsias que existem no campo dos estudos de gênero e sexualidade assim como a complexa relação entre ativismo e academia para definir "gênero" como a matriz ideológica que inspira um conjunto de reformas éticas e sociais "abomináveis" ou seja aquelas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e adoção de crianças por esses casais, as novas tecnologias reprodutivas, a perspectiva de gênero nas políticas públicas, a educação em sexualidade, a proteção contra a violência de gênero e mais. Ignorando completamente a história do conceito de gênero, autores/as do campo antigênero tem como ponto de partida os experimentos problemáticos de John Money nos anos 1950 e, de forma equivocada, consideram Judith Butler como a mãe da "ideologia de gênero". Curiosamente, eles/as colocam num mesmo saco os pensamentos de Simone de Beauvoir, Shulamith Firestone, Monique Wittig, Germain Greer, Margaret Sanger, Alfred Kinsey, Wilhelm Reich e, às vezes, até elaborações de Herbert Marcuse, Sigmund Freud e Friedrich Engels. Em poucas palavras, a expressão "ideologia de gênero" busca oferecer um enquadre interpretativo para explicar a adoção dessas reformas e, ao mesmo tempo, conectar atores e atrizes muito díspares numa suposta aliança conspiratória do "gênero" (Trillo-Figueroa, 2009; Montfort, 2011; Scala, 2011; Peeters, 2013).
De acordo com esses/as autores/as, "ideologia de gênero" ameaçaria a maioria das sociedades, especialmente ocidentais, colocando em perigo a humanidade. "Gênero", segundo essas vozes, levaria a uma revolução antropológica porque nega as diferenças sexuais e a complementaridade dos sexos, "assim eliminando a base antropológica da família" (Francisco, 2016, p. 56). Segundo Marguerite Peeters, uma das mais traduzidas "teóricas da 'ideologia de gênero'".
A análise mostrará que, em nome de uma interpretação cidadã e secular da igualdade, unicamente entendida em termos de poder e direitos, o processo revolucionário de gênero mina cultural, política e legalmente a identidade constitutiva do homem e da mulher como pessoas: suas identidades como cônjuges, suas maravilhosas complementaridade e unidade no amor, sua vocação e papel educativo específicos, a masculinidade e a feminilidade, o casamento e a família, a estrutura antropológica de qualquer ser humano, construída sobre um amor dado, recebido e compartilhado (Peeters, 2013, p. 9).
O desenvolvimento dessa "ideologia", segundo esse pensamento, teria origem na propagação do hedonismo, da laicidade, do relativismo e do individualismo nas sociedades ocidentais, mas também nas interpretações equivocadas do feminismo. Essa pauta estaria ainda associada com a ideia de "cultura da morte" de João Paulo II - a ideologia que subjaz ao aborto, à contracepção e à eutanásia e seria oposta à "cultura da vida", essa sim promovida pela Igreja (Vaggione, 2012; Grzebalska & Soós, 2016). Isso leva Peeters a concluir que gênero "pertence a um processo de negação típico do mistério do mal, no qual a humanidade esteve engajada, desde a sua origem e ao longo da história, em uma tripla perversão: uma busca desordenada de poder, prazer e conhecimento como fim em si mesmos" (Peeters, 2013, p. 73).
Este projeto seria particularmente ameaçador para as crianças, que estariam sendo doutrinadas desde cedo na escola, segundo valores contrários aos de suas famílias e muitas vezes sem o seu conhecimento (das famílias). O gênero também produziria severas consequências no desenvolvimento das crianças, sobretudo por que borra as referências antropológicas relativas aos sexos. Como parte da crítica à "permissividade sexual" e ao legado de Maio de 68, a "ideologia de gênero" é também acusada de incentivar a hipersexualização de crianças e a pedofilia.
As campanhas antigênero também podem ser entendidas como um projeto de produção alternativa de conhecimento, voltado a descontruir as perspectivas pós-estruturalistas no campo das ciências sociais e das humanidades. Essas vertentes teóricas são descritas como sendo ideológicas e desconectadas dos achados inquestionáveis das ciências naturais, particularmente os estudos biológicos, médicos e psicológicos alinhados com concepções essencialistas sobre as diferenças sexuais entre homens e mulheres (incluindo as diferenças entre os cérebros dos homens e das mulheres) e a complementaridade dos sexos masculinos e femininos.
A "ideologia de gênero", no entanto, não é vista apenas como uma ameaça antropológica e epistemológica, mas também como uma estratégia política camuflada, uma espécie de conspiração destinada a tomar o poder e impor valores desviantes e minoritários às pessoas comuns. A acadêmica e ativista alemã Gabriele Kuby, particularmente ativa na promoção de campanhas antigênero na Europa Central e Oriental, chega a afirmar que o principal instrumento dessa revolução cultural é a adoção da perspectiva de gênero que vincula a produção de conhecimento a projetos políticos:
Pela primeira vez na história, as elites políticas estão se proclamando como autoridade para mudar a identidade sexual de homens e mulheres por meio de estratégias políticas e medidas legais. Antes essas elites não dispunham de maior expertise em engenharia social. No entanto, hoje isso está acontecendo diante de nossos olhos em escala global. O nome da estratégia: a adoção da perspectiva de gênero. A batalha está sendo travada sob a bandeira da igualdade entre homens e mulheres, mas isso é apenas um estágio tático de transição. (Kuby, 2016, p. 42).
Por essas razões, esses/as autores/as consideram que "gênero" representa uma forma de ideologia totalitária, ainda mais perigosa do que o marxismo e o fascismo (Kuby, 2012, 2016; Schooyans, 1997, 2000). Nessa perspectiva, Kuby novamente declara que o "totalitarismo mudou os costumes e agora aparece sob o manto da liberdade, tolerância, justiça, igualdade, antidiscriminação e diversidade - um pano de fundo ideológico que demonstraser termos amputados e distorcidos" (Kuby, 2016, p. 12).
Esta ameaça permaneceu por muito tempo invisível: em meados da década de 1990, a jornalista estadunidense Dale O'Leary já alertava que "a agenda do gênero navega nas comunidades não como um navio de grande porte, mas como um submarino, que se revela o menos possível (O'Leary, 1997, p. 21). Os/As autores/as antigênero também evocam o conceito de "novilíngua" de George Orwell, acusando, frequentemente, os/as ativistas de gênero de manipular a linguagem e esconder seus reais objetivos (Lopez Trujillo, 2005, p. 8). Segundo essas vozes, uma bela linguagem em defesa da igualdade, na verdade, encobre motivos e tentativas de subverter a ordem natural e o bom senso. Diante disso, a meta dos/as ativistas e teóricos/as de "ideologia de gênero" é desvelar os sentidos ocultos dessa "ideologia" e, ao mesmo tempo, alertar para os perigos do "gênero". Por exemplo, Gabriele Kuby preocupa-se, por exemplo, que depois da "revolução de gênero" haveria "não apenas dois sexos, mas no mínimo seis: homem e mulher e cada um em versão como heterossexual, homossexual ou bissexual. Trata-se, portanto, de criar um ser humano 'emancipado' frente à natureza".
Elites corruptas estariam jogando um papel central nesses processos e no âmbito de instituições internacionais, como a União Europeia e a Organização das Nações Unidas, descritas como carro chefe da "ideologia de gênero" que minam os princípios de soberania nacional e as deliberações democráticas. Comparando "ideologia de gênero" ao Cavalo de Tróia, o monsenhor Tony Anatrella3 afirma que:
A ideologia de gênero é a nova ideologia que serve abertamente como referência para a ONU e suas várias agências, em particular a OMS, a Unesco e a Comissão sobre População e Desenvolvimento.Tornou-se também o novo marco de referência da Comissão de Bruxelas e de vários Estados-membros da União Europeia, inspirando os legisladores. [...] Ela sucede à ideologia marxista, sendo mais opressiva e mais perniciosa porque é apresentada sob o manto de uma libertação subjetiva de restrições injustas, de um reconhecimento da liberdade pessoal e da igualdade de todos perante a lei. (Anatrella, 2011, p. 3).
Como sublinhado nessa citação, "ideologia de gênero" é, frequentemente, apresentada como nova ideologia de esquerda, criada nas cinzas do comunismo. Os filósofos espanhóis Francisco José Contreras e Diego Poole (2011) equiparam a "velha esquerda" do marxismo à "nova esquerda" da "ideologia de gênero". Segundo eles, a realização do socialismo permanece o objetivo da revolução, mas, como o colapso do comunismo no Leste Europeu evidenciou, ele não poderá mais ser alcançado por esse caminho, assim sendo inspirados na noção gramsciana de hegemonia (Brustier, 2014), os grupos que usam a teoria de gênero acreditam que uma revolução cultural faz-se necessária para mudar a consciência e o pensamento de modo que o Marxismo possa prevalecer. Por razões política óbvias, esse argumento tem muita ressonância nos países europeus pós-socialistas, onde normalmente "teorias de gênero" são frequentemente classificadas como um novo marxismo (Cestnik, 2013).
Além do mais, para esses/as autores/as, "ideologia de gênero" é uma ofensiva que não está restrita às sociedades ocidentais, mas estaria sendo imposta pelo Ocidente ao resto do mundo. Normalmente entendida como um sintoma da depravação euroamericana, segundo essas vozes, ela deve ser entendida como um projeto de neocolonização através do qual ativistas ocidentais e seus/uas governantes tentam exportar os valores decadentes de suas sociedades e secularizar as sociedades não-ocidentais (Alzamora Revoredo, 2005, p. 559; Sarah, 2013, p. 4; Peeters, 2013, p. 79). Esta é a razão do porquê, ao se referir à "ideologia de gênero", o papa Francisco prefere a expressão "colonização ideológica". Esse tipo de enquadre também tem permitido a Vladimir Putin apresentar a Rússia como o prenúncio de um projeto moral alternativo e enraizado em "valores tradicionais" e em autênticas culturas nacionais (Ayoub e Paternotte, 2014, p. 1-4). Instituições internacionais e fundos privados tais como a Open Society ou a Fundação Ford são acusadas de ter um papel central neste processo, especialmente por forçar países pobres a aceitar moralmente leis e regulações problemáticas em troca de apoio a projetos e suporte financeiro. Interferências estrangeiras foram muito debatidas durante o recente segundo Sínodo da Família (2014-2015), e o papa Francisco se referiu a isso em sua exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, na qual ele afirmou considerar "inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o 'matrimónio' entre pessoas do mesmo sexo" (Francisco, 2016, p. 251).
Por fim, este discurso se intersecta com preocupações relativas à ecologia (humana). Como apontou Eric Fassin (2007, 2010), esta concepção não somente envolve a defesa da natureza como criação de Deus, mas também, a proteção do ser humano de si mesmo. Popularizada pelo papa Bento XIV, essa noção foi assumida pelo papa Francisco que a ela se refere como "ecologia integral". Juntamente com preocupações com o meio ambiente, esse discurso é um veículo para visões conservadoras sobre vida, gênero e sexualidade (por exemplo, Derville, 2016). Além dos ataques contra o aborto e as novas tecnologias reprodutivas, a "ecologia humana" tem sido frequentemente usada para atacar transexuais, cujas identidades violariam os desígnios de Deus ao buscar biotecnologias para transformações corporais. Em seu famoso discurso de Natal em 2008 para Cúria, Bento XVI defendeu que a Igreja "deve defender não só a terra, a água eo ar como dons da criação que pertencem a todos. (...) As florestas tropicais merecem, sim, a nossa proteção, mas não a merece menos o homem como criatura, na qual está inscrita uma mensagem que não significa contradição da nossa liverdade, mas a sua condição" (Bento XIV, 2008). papa Francisco (2015, p. 155) adotou posições semelhantes em Laudato Sì, sua carta encíclica sobre os desafios ecológicos contemporâneos.
"Ideologia de gênero" como uma estratégia
Como vimos na seção anterior, a invenção da "ideologia de gênero" está intimamente ligada a debates no interior da Igreja Católica. No entanto, ela é não apenas uma questão religiosa: essas campanhas se conectam com o crescente populismo de direita na Europa e, em menor medida, com a homofobia política concebida como um projeto político para consolidar o poder do Estado (Weiss & Bosia, 2013). Não iremos examinar aqui as articulações nacionais específicas, mas queremos oferecer uma visão geral da gênese dessa noção e destacar algumas de suas interseções contemporâneas com determinados projetos políticos.
Uma Invenção Católica
A emergência e a história da "ideologia de gênero" estão bem documentadas. Acadêmicas como Doris Buss (1998, 2004) e Mary Anne Case (2011, 2016) e atores como Krzysztof Charamsa (Case, Paternotte & Bracke 2016) e a organização Católicas pelo Direito de Decidir (2003) rastrearam essa noção localizando sua origem nos debates no Vaticano e, mais particularmente, na elaboração de uma contra-estratégia após a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, em 1994, no Cairo, e a Conferência Mundial sobre as Mulheres, em 1995, em Pequim. De fato, embora o cardeal Josef Ratzinger já tivesse discutido algumas dessas questões na década de 1980 (Ratzinger & Messori, 1985), a noção de "ideologia de gênero" realmente tomou forma em meados dos anos 1990 como uma resposta ao reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito do sistema de direitos das Nações Unidas (Girard, 2007, p. 334; Swiebel, 2015; Butler, 2004, p. 185).
A Santa Sé lutou, juntamente com outras religiões e delegados (Buss & Herman, 2003; Butler, 2006; Chappel, 2006), ativamente contra a noção de gênero e considerou os resultados de Cairo e Pequim como uma derrota. O Vaticano temia que os direitos sexuais e reprodutivos se tornassem um veículo para o reconhecimento internacional do aborto, ataques à maternidade tradicional e uma legitimação da homossexualidade. Frente à recém-reconhecida noção de gênero, privilegiou a ideia de "complementaridade entre os sexos" e promoveu a noção de "igual dignidade" em oposição a de "igualdade de direitos". Nesse contexto, o gênero - que passou a fazer parte do discurso da ONU naquele momento - foi interpretado pela Santa Sé como um meio estratégico de atacar e desestabilizar a família natural. Nas reuniões preparatórias, em coalizão com os/as aliados/as conservadores/as, conseguiu que o termo ficasse entre colchetes, ou seja como definição não consensual, para ser debatida na conferência (Baden & Goetez, 1997; Corrêa, 2018). De maneira a superar esse impasse o secretariado da conferência produziu uma nota técnica que seria incluída no anexo do documento final da conferência, segundo a qual o termo "gênero usado no texto (...) deveria ser interpretado e entendido segundo seu uso comum e geralmente aceito" e os colchetes foram eliminados. Curiosamente, como analisa Corrêa (2018), gênero não seria objeto de maior controvérsia em Pequim, o ataque ao termo, contudo, voltaria com força nos processos de Revisão + 5 da CIPD e da IV CMM, em 1990 e 2000, respectivamente.
Entre um ponto e outro, a hierarquia da Igreja no Vaticano, junto com alguns/umas intelectuais e ativistas católicos/as, procurou entender o que aconteceu no Cairo e em Pequim. Este é o caso de Dale O'Leary, uma jornalista pró-vida dos EUA que participou da Conferência de Mulheres. Foi ela que, durante o Comitê Preparatório para Pequim em março de 1995, em Nova York, mobilizou a distribuição de um folheto intitulado Gender: The Deconstruction of Women (Girard, 2007; Fillod, 2014). O´Leary se tornaria ainda mais influente quando publicou o livro The Gender Agenda (O'Leary, 1997), um volume que se reputa ter sido lido no Vaticano. O'Leary percorreu o mundo para destacar os perigos do gênero e seu trabalho inspirou a resposta inicial à "ideologia de gênero" por parte da Conferência Episcopal do Peru (Fillod, 2014). O livro abre com a seguinte declaração, que resume a mente dos atores católicos naquele momento:
Sem alarde ou debate, a palavra 'sexo' foi substituída pela palavra 'gênero'. Nós costumávamos falar de 'discriminação de sexo', mas agora é 'discriminação de gênero'. Os formulários, como os pedidos de crédito, costumavam pedir uma indicação de nosso sexo, mas agora eles pedem nosso gênero. Com certeza parece bastante inocente. 'Sexo' possui um significado secundário, subentendendo relação sexual ou atividade sexual. 'Gênero' parece mais delicado e refinado. As militantes feministas aprenderam a partir de suas derrotas. Quando elas não puderam vender sua ideologia radical para as mulheres em geral, elas lhe deram uma nova roupagem. Mas, se você acha que a mudança sinaliza um renascimento da sensibilidade neo-vitoriana, você não poderia estar mais errado. Essa mudança e uma série de outras coisas que você pode não ter percebido são todas partes da Agenda de Género. (O'Leary, 1997, p. 11)
A noção de "Ideologia de gênero" surgiu, portanto, tanto como uma resposta às interrogações do Vaticano, quanto como um meio de ação que deve ser entendido como parte de uma estratégia católica global. Ela mesma agora, baseando-se na teoria gramsciana da hegemonia cultural (Brustier, 2014; Peeters, 2011, p. 221), a Igreja passou a propagar ideias alternativas usando e subvertendo as noções que repudia e, também, contestar a suposta hegemonia cultural e política do "gênero pós-moderno" no contexto de uma batalha global das idéias. A Igreja, portanto, utiliza noções progressistas como "gênero" ou "feminismo" alterando seu significado, criando confusão no entendimento das pessoas comuns e ressignificando a pauta que vozes liberais vinham tentando articular nas últimas décadas.
O discurso sobre "ideologia de gênero" não surgiu num vácuo, pois tem suas raízes na Teologia da Mulher e do Corpo de João Paulo II, que insiste na diferença e na complementaridade dos sexos (Carnac, 2013a, 2013b; Case, 2011, 2016; Favier, 2014; Garbagnoli, 2014, 2016b). Também ecoa tentativas do Vaticano de promover um "novo feminismo", que fomentaria a colaboração entre homens e mulheres, em lugar de exacerbar o antagonismo entre eles/as (Couture, 2012), tal como detalhado em documentos como Mulieris Dignitatem (1988) e Evangelium Vitae (1995). Muito antes de ser eleito como papa Bento XVI, em 2005, o cardeal Ratzinger nomeado, em 1981, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, desempenhou um papel fundamental nessa estratégia, tendo sido, inclusive, uma força motriz na elaboração de documentos como as Considerações sobre os Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais (2003) e A Carta aos Bispos sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo (2004).
A "ideologia de gênero" não deve, contudo, ser entendida como uma mera tentativa de colocar em movimento a teologia de João Paulo II ou uma nova versão de tropos mais antigos. Iniciada sob o papa polonês, esta estratégia foi reafirmada pelos papas Bento XVI e Francisco, com o apoio de várias congregações e dicastérios romanos, em particular a Congregação para a Doutrina da Fé, o Pontifício Conselho para a Família, o Pontifício Conselho para a Leigos, o Pontifício Conselho para a Cultura e a Pontifícia Academia para a Vida. Esses esforços levaram, em 2003, à publicação do Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre a vida familiar e questões éticas pelo Pontifício Conselho para a Família, com o apoio da Congregação para a Doutrina da Fé. Este documento se assemelha a um dicionário com verbetes que tratam de uma ampla gama de tópicos éticos, incluindo vários sobre gênero. Traduzido em numerosos idiomas, como o alemão, o francês, o inglês, o espanhol, o português, o russo e o árabe, o documento "informa sobre o real conteúdo e a verdade que deve guiar seu uso apropriado, procura esclarecer alguns termos e expressões ambíguas ou equívocos, de difícil compreensão" (Lopez Trujillo, 2005, p. 7).
Vários/as autores/as, tanto clericais quanto laicos/as, contribuíram para a elaboração desse discurso. Além da jornalista Dale O'Leary, os/as autores/as mais influentes e traduzidos/as em muitos dos países em estudo são: Michel Schooyans, Tony Anatrella, Gabriele Kuby e Marguerite Peeters. Michel Schooyans é um padre belga com longo tempo de atuação junto a dicastérios vaticanos, como o Pontifício Conselho para a Família e a Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Também professor emérito da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, em 1997 publicou L'Evangile face au désordre mondial. Este livro, que inclui um prefácio do cardeal Ratzinger e escrito com a ajuda de Marguerite Peeters, é uma das primeiras análises do papel da ONU na disseminação da "ideologia de gênero". Schooyans repetiu suas advertências em publicações posteriores, como La face cachée de l'ONU (2001). Padre e psicanalista, Tony Anatrella esteve fortemente envolvido nos debates do PACS na França e é um dos especialistas da Igreja Católica francesa em questões relativas a família, gênero e sexualidade. Em Roma, ele ocupou o lugar de consultor junto ao Pontifício Conselho para a Família e ao Pontifício Conselho para a Saúde. Ele participou diretamente da elaboração do Lexicon e da sua tradução para o francês. Como já mencionado anteriormente, o monsenhor está hoje impedido de exercer suas práticas terapêuticas (ver nota5). Gabriele Kuby, uma convertida ao catolicismo e conhecida do cardeal Ratzinger, publicou vários livros, traduzidos em vários idiomas, para alertar os cidadãos sobre as consequências das revoluções sexuais e os perigos do "gênero". Ela tem viajado muito pela Europa Central e Oriental e chegou a fazer um pronunciamento no parlamento tcheco em outubro de 2014. Sua filha, Sophia Kuby, fundou a ONG European Dignity Watch e, mais tarde, tornou-se diretora da European Union de advocacy para a ADF International (Alliance for the Defense of Freedom). Finalmente, Marguerite Peeters é uma cidadã belgo-americana radicada em Bruxelas, onde dirige uma ONG chamada Dialogues Dynamics, que se ocupa de "identidade humana" e governança global. Ela trabalha no campo da ajuda internacional, especialmente para a África. Próxima do conservador cardeal Robert Sarah, ela trabalha regularmente com o Vaticano e tem sido convidada para participar de reuniões em Roma sobre "ideologia de gênero" e a família. Ela é consultora junto ao Pontifício Conselho para os Leigos e do Pontifício Conselho para a Cultura.
Esses/as quatro intelectuais são bem conhecidos/as no Vaticano e inspiram o pensamento institucional sobre gênero. Seus livros são amplamente traduzidos e viajam através das fronteiras, embora de maneira desigual nos países europeus. Kuby, por exemplo, não é muito conhecida pelos francófonos ou espanhóis, ao passo que é amplamente lida na Europa Central e Oriental, onde atua localmente. Esses/as autores/as têm também inspirado vários especialistas locais que propagam ulteriormente esse discurso em seus próprios países. Suas ideias também são difundidas por meio de produtos da cultura popular, tais como os livros da italiana Constanza Miriano, que, traduzidos em vários idiomas, também circulam fora da Itália, às vezes provocando controvérsias públicas. Encontros públicos também têm funcionado como espaços de produção discursiva e canais de difusão. Incluem-se aí eventos organizados em Roma, como as conferências que celebram os 20º e 25º aniversários de Mulieris Dignitatem em 2008 e 2013, ou o colóquio inter-religioso "Humanum: a Complementaridade do Homem e da Mulher", de 2014 (Lopes & Alvaré 2015), e eventos como a 1ª Conferência Internacional sobre "Ideologia de Gênero", organizada pelo Opus Dei na Universidade de Navarra, em 2011.
A Igreja Católica desempenhou, sem dúvida, um papel crucial na emergência e no desenvolvimento da noção de "ideologia de gênero". A campanha antigênero foi endossada pelas mais altas autoridades do Vaticano, que há muito a consideram uma prioridade política. Além disso, embora seja enganoso supor que as mobilizações nacionais sejam executadas diretamente de um gabinete em Roma, é preciso notar que, em muitos casos a Igreja ofereceu um espaço onde intelectuais e ativistas pudessem se encontrar e trocar visões e estratégias. Também forneceu sua poderosa rede de mobilização e difusão. No entanto, embora o modo de produção desse discurso seja relativamente bem conhecido, sua difusão no mundo católico e as formas como ele alimenta as mobilizações locais exigem mais investigação. É preciso, de fato, compreender os canais por meio dos quais essa estratégia é propagada, inclusive para além dos círculos católicos, bem como as maneiras pelas quais sofre adaptações ao ser adotada em um contexto específico. O timing do protesto é outro aspecto a ser investigado. O discurso sobre "ideologia de gênero" estava de fato pronto em 2003, quando o Lexicon foi publicado. No entanto, demorou dez anos para viajar de Roma para a maioria dos países europeus, onde os protestos começaram frequentemente em 2012-2013 (embora alguns tenham experimentado mobilizações anteriores).
Finalmente, a difusão do discurso da "ideologia de gênero" não pode ser entendida sem que se preste atenção a outros projetos da Igreja com os quais está intimamente ligado. Isto é particularmente verdadeiro em relação à Nova Evangelização, iniciada pelos/as mesmos/as atores/atrizes, particularmente os papas João Paulo II e Bento XVI (Aguilar Fernandez, 2011; Béraud & Portier, 2015; Paternotte, 2017b; Tricou, 2016a). Esse projeto é uma tentativa da Igreja de recuperar sua influência em partes do mundo secularizado (entre as quais a Europa é central) e reafirmar a fé de seus seguidores. Além disso, em contraste com a privatização da religião, ela insiste no papel público da religião, convidando os/as leigos/as católicos/as a defender publicamente suas ideias e a se mobilizar na política e nas ruas. O papel evangelizador da família e a importância de sua defesa pelas autoridades políticas são muitas vezes enfatizados, e as novas tecnologias, especialmente a internet, devem ser exploradas como novos dispositivos de evangelização. Os/As fiéis leigos/as são cruciais nesse esforço e os/as principais atores/atrizes incluem novas comunidades eclesiais, como o Opus Dei, a Renovação Carismática ou o Caminho Neocatecumenal, que também se mobilizam contra a "ideologia de gênero". Autores como Schooyans (2000, p. 139) e Kuby (2012, p. 78), bem como atores como o cardeal espanhol Rouco Varela (2015, p. 101) ou a ativista francesa Frigide Barjot (2014, p. 42, 91) insistem nas interseções entre os dois projetos.
A fadiga populista
A ressonância inesperada desse discurso em várias partes da Europa, assim como o sucesso relativo dessas mobilizações não podem ser compreendidos se não reconhecermos as interseções entre as preocupações do Vaticano com "ideologia de gênero" e a onda atual de populismo de direita na Europa. Isso não quer dizer que as campanhas antigênero sejam consequência direta da onda populista de direita. No entanto, a inflexão para a direita reforça essas campanhas e fornece-lhes novos apoiadores, os quais adotaram a noção de "ideologia de gênero" que compartilha algumas estruturas ideológicas com a ideologia populista de direita. Igualmente, as reações à crise econômica e às rigorosas medidas de austeridade em alguns países europeus tem encorajado protestos antigênero, como resultado da insatisfação com as elites acusadas de corrupção e de ataques contra minorias transformadas em bodes expiatórios. Em ambos os casos, o gênero funciona como a "cola simbólica" permitindo que atores/atrizes com objetivos e estratégias divergentes trabalhem juntos/as contra um inimigo comum (Kováts & Põim, 2015).
Em vários países, os/as atores/atrizes antigênero se sobrepõem aos/às que promovem a política populista de direita, sejam eles/as membros/as de partidos políticos ou de organizações da sociedade civil. Isso é particularmente verdadeiro em países como Áustria e Alemanha (Villa, 2017; Mayer & Sauer, 2017; ver também Kemper, 2016). Da mesma forma, um grupo dissidente da Manif pour Tous francesa passou-se a chamar Printemps Français (Primavera Francesa), dizendo defender "la France d'en bas" (a França dos de baixo) ou "le pays réel" (o país real) e se importar com os problemas reais das pessoas (Perreau, 2014).
Mais importante ainda, uma certa fadiga populista em relação a gênero e políticas de igualdade de gênero, entendidas como mais uma interferência de elites internacionais corruptas e do "politicamente correto" também alimenta os discursos propagados pelo Vaticano. Embora os/as atores/atrizes lançam mão possam não estar cientes de suas origens religiosas, o discurso Vaticano sobre "ideologia de gênero" frequentemente tem ressonância com suas próprias ideias e críticas contra o "gênero". Isso pode derivar, por exemplo, de visões que pretendem destruir o legado de Maio de 68 ou que defendem a soberania nacional contra imposições neocoloniais da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos. A nostalgia de uma era de ouro perdida, onde tudo era mais simples e os "gêneros" eram o que pareciam, também alimentar a busca por fundações mais firmes numa era em que tudo parece estar desaparecendo, o que, no caso do "gênero", significa a erosão da natureza e da biologia (Villa, 2017). Finalmente, masculinidades contestadas e incertas, especialmente quando se entrelaçam com a mobilidade social invertida ou as ameaças culturais assim percebidas, também fortalecem essas dinâmicas (Norocel, 2013; Wimbauer e cols. 2015, Tricou, 2016b).
Num discurso desse tipo, o senso comum e as divisões binárias "nós e eles" são centrais. Tanto os grupos antigênero como o populismo de direita identificam as elites corruptas como responsáveis pela situação atual e procuram dar voz àqueles/as que são vistos/as como silenciados/as: a maioria (normal). Eles/as também acusam os poderes internacionais e supranacionais - no contexto europeu, frequentemente resumidos sob o termo "Bruxelas" - de impor perversões a povos sem poder, que estaria sendo manipulados por todos os tipos de lobbies, incluindo bilionários americanos, maçons, judeus e feministas (Chetcuti-Osorovitz & Teicher, 2016). Para reforçar a impressão de que o "gênero" é imposto a partir do exterior, os/as ativistas antigênero geralmente empregam o termo inglês gender. Ao rejeitar traduções vernaculares do conceito, eles/as o fazem ressoar como algo estranho, estrangeiro e imposto a "pessoas inocentes" (Kuhar, 2015).
Essas semelhanças não são coincidências. Campanhas antigênero e populistas utilizam estratégias discursivas semelhantes, identificadas por Wodak (2015, p. 4) como o kit de ferramentas necessário da retórica populista de direita: a inversão vítima-agressor/a, o bode expiatório e a construção de teorias de conspiração. Sua política depende da "política do medo" e da "arrogância da ignorância". As políticas do medo procuram incutir o medo de perigos reais ou imaginários ao instrumentalizar minorias ou outros grupos sociais para criar bodes expiatórios que representam o "Outro perigoso", cuja imagem é baseada em imaginários coletivos estereotipados (ver também Marzouki, McDonell & Roy, 2016). Como apontado por Pelinka (2013), precisamos diferenciar entre os Outros primários (os verdadeiros bodes expiatórios, geralmente grupos minoritários) e os Outros secundários (as elites, que promovem a diversidade cultural e se posicionam atrás do Outro primário). A arrogância da ignorância, por outro lado, apela para o senso comum e recorre a pensamentos pré-modernistas. De fato, o senso comum é a resposta ao medo inicialmente instilado por meio da criação de um bode expiatório. A criação de bodes expiatórios, permite que um grupo social transite do status de vítima (por exemplo, o não reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo) para o status de agressor/a (o casamento entre pessoas do mesmo sexo destruirá a família). Isso permite aos/às populistas direcionarem os medos e alimentarem choques entre "o povo", o/a inimigo/a e a elite e se apresentarem como como as verdadeiras vítimas.
Nesse contexto, a "ideologia de gênero" torna-se uma "ameaça" - um significante vazio, que permite a formação de coalizões com uma variedade de atores/atrizes, precisamente por causa de seu "vazio populista". Corresponde à estrutura básica do populismo, que é uma "ideologia restritiva que considera a sociedade em última instância separada em dois grupos homogêneos e antagônicos, 'o povo puro' versus 'as elites corruptas'" (Mudde, 2007, p. 23). Os/As populistas e ativistas antigênero também tentam implementar o que Mudde (2007) chama de "o mantra de Le Pen": "rendre la parole au people" (devolver a palavra ao povo). Por essa razão, uma de suas estratégias envolve o uso de referendos - ora eles/as tentam iniciá-los, ora defendem o aumento de seu uso. Particularmente na Europa Central e Oriental, ativistas antigênero têm investido pesadamente (e com bastante sucesso) no uso de referendos (por exemplo, na Eslovênia, Croácia, Eslováquia e Romênia). Em outros países, tal como aconteceu na França por parte do Manif pour Tous, petições são encaminhadas às autoridades políticas para se realizar referendos. Também se observa o acionamento de registros emocionais "para aumentar os afetos do povo e despertar seus sentimentos imediatos" (Benveniste, Campani & Lazaridis, 2016, p. 12).
Por fim, ataques aos direitos sexuais e de gênero podem ser instrumentalizados para consolidar o poder do Estado quando alguns/umas desses/as atores/atores chegam ao poder ou quando os/as que estão no poder têm interesse em apoiar tais reivindicações. Isso se relaciona com a noção de "homofobia política" de Weiss e Bosia (2013) que, segundo os autores, pode ser desconectada e até mesmo preceder as reivindicações dos ativismos locais de que essas noções se tornem ferramentas políticas estratégicas das elites estatais para garantir poder e reafirmar sua soberania. Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado a questões de gênero (Amar, 2013). Na Europa, esse fenômeno pode ser ilustrado pelo caso da Rússia, onde Vladimir Putin contrapõe o gênero a "valores tradicionais" para procurar fortalecer seu poder e restaurar o status internacional de seu país (Moss, 2017). A Polônia e Hungria seguem hoje um caminho similar, ao menos no que se refere ao uso interno dessas estratégias (ver Graff & Korolczuk, 2017 e Kováts & Pető, 2017).4
"Ideologia de gênero" como fenômeno nacional e transnacional
A luz das reflexões anteriores é urgente pesquisar e entender melhor como gênero, um conceito acadêmico, tem sido traduzido por uma poderosa organização religiosa como a Igreja Católica Romana conectando-se com a atual onda populista na Europa. Desde algum tempo, gênero, se tornou um instrumento de mobilização e alvo de movimentos sociais massivos como o Manif pour Tous na França e na Itália, o U ime obitelji (Em Nome da Família) na Croácia, ou o Za otroke gre (Pelas Crianças) na Eslovênia. É importante mapear essas mobilizações, explicar como discursos religiosos sobre a diferença e a complementaridade sexual podem ser transformados em manifestações de rua massivas e, além disso, entender como as formas de organização e protesto podem viajar através das fronteiras nacionais.
Além disso, como já mencionado, esses protestos não são de fato fenômenos nacionais singulares ou isolados, mas compartilham raízes comuns e exibem semelhanças através das fronteiras. É hoje obvio que as mobilizações antigênero não são específicas de nenhum país, mas se espalham através do continente e para além das fronteiras europeias. Isso pode ser ilustrado pela circulação de logos, bandeiras e nomes, assim como linhas de argumentação. Para exemplificar, a Manif pour Tous francesa foi uma fonte crucial de inspiração para ativistas em outros países como pode ser visto pela ciraulação da mesma iconografia. Esse movimento foi diretamente "exportado" para a Itália onde, inicialmente, os/as ativistas se autodenominaram "La Manif pour Tous Italia", adotaram a mesma imagem, traduziram cartazes e tinham vínculos com sua contraparte francesa. O logo da " boa" família (mãe, pai, crianças- um menino, uma menina), as imagens, estratégias e tropos retóricos também foram copiados na Alemanha (Demo Für Alle), Esolváquia (Alianca za rodinu), Croácia, (U ime obitelji) e Finlandia (Aito Avioliitto).
Nossa pesquisa ainda revela que muitos dos/as atores/atrizes que aparecem nas campanhas europeias estão envolvidos em atividades que se fazem em outras partes do mundo, como a América Latina e os EUA. Por exemplo, a Association for the Defense of Freedom - Reino Unido é originalmente norte-americana mas opera crescentemente na Europa (EPF, 2018) e jornalistas investigaram densas conexões entre ativistas espanhóis/espanholas e italianos/as e os protestos feitos no México, em 2016, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo5. Organizações como o Congresso Mundial de Famílias (World Congress of Families), estabelecido por ativistas norte-americanos/as e russos/as nos anos 1990, estão construindo uma rede global para promover "valores familiares". O movimento antigênero está longe de ser um fenômeno regional isolado, ao contrário comporta uma complexa constelação de atores/atrizes globais. Essa rede transnacional precisa ser, urgentemente, investigada para que se possam construir respostas consistentes, ajustadas a cada contexto e que não fiquem confinadas às fronteiras nacionais.
Em suma, essas mobilizações não devem ser consideradas apenas como reiterações contemporâneas de formas consolidadas de oposição a determinados entendimentos sobre gênero e sexualidade. São, de fato, mobilizações configuradas em novos discursos e novas formas de organização por meio das quais antigos/as e novos/as atores/atrizes conservadores/as buscam ir além de seus círculos tradicionais e se conectar com um público mais amplo.
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Submetido em: 01/05/2018
Aprovado em: 01/11/2018
1 Este artigo, traduzido e reeditado, foi publicado originalmente como introdução do livro Anti-Gender Campaigns in Europe: Mobilizing against Equality, editado por Roman Kuhar e David Paternotte. London: Rowman & Littlefield International, 2017.
2 Traduzido e editado por Rogério Diniz Junqueira e Marco Aurélio Máximo Prado.
3 Sobre os processos judiciais em que monsenhor Anatrella é acusado de violências sexuais por parte de ex-pacientes submetidos a "terapias corporais" voltadas a curá-los da homossexualidade, ver: Junqueira (2017).
4 Desde que o livro foi publicado em 2017, a situação se deteriorou muito na Hungria. O novo programa de estudos de gênero na Universidade ELTE (o primeiro curso desse tipo em uma universidade local, a parte a Central European University) e a ratificação da Convenção de Istambul para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica foram alvos de parte da mídia e de oganizações ligadas ao governo Orban. Essa mobilização contra "ideologia de gênero" também alimentou a campanha feita contra George Soros, em 2018. O governo, em agosto do mesmo ano, anunciou sua disposição em revogar a acreditação dos programas de estudos de gênero no país. Além disso, a Convençao de Istambul não foi ratificada.
5 Para o ativismo espanhol ver: Garcia (2016). Para o ativismo italiano ver Gayburg (2016).