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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.19 no.spe São Paulo dez. 2019
ARTIGOS
As dificuldades da participação: desencontro de interesses na recuperação do rio doce
The difficulties of participation: interests mismatchs in rio doce recovery
Las dificultades de la participación: desencuentro de intereses en la recuperación del rio doce
Les difficultés de la participation: intérêts introuvable dans la récupération de rio doce
Adrian Gurza LavalleI; André LeirnerII; Maria do Carmo A. de AlbuquerqueIII; Fernando Peres RodriguesIV
IProfessor doutor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCHUSP) e pesquisador do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), onde é coordenador do Núcleo de Pesquisa Democracia e Ação Coletiva (NDAC). É Editor-Chefe da Brazilian Political Science Review e representante da área de ciência política e Coordenador do Comitê de Acadêmico de Ciências Sociais do CNPq (2017- 2020). Universidade de São Paulo (USP). Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - (CEBRAP) / gurzalavalleadrian@gmail.com
IIPesquisador do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDAC/CEBRAP). Possui metrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGVSP) e em Projeto pela Architectural Association de Londres. Universidade de São Paulo (USP). Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) / indx.design@gmail.com
IIIPesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDAC/ CEBRAP). Doutora em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP). Universidade de São Paulo (USP). Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) / mcarmoa@gmail.com
IVPesquisador do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDAC/ CEBRAP). Mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Universidade de São Paulo (USP). Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) / fernando.peres.rodrigues@usp.br
RESUMO
O exame de experiência de implementação de uma tecnologia participativa (CRCMOP) nas comunidades atingidas pelo desastre do Rio Doce, no Espírito Santo, ao longo de dois anos, permite atentar para as dificuldades da participação da população atingida na governança da gestão do desastre, especificamente na definição das ações de reparação, compensação e indenização a serem realizadas pela Fundação Renova. Argumentamos que a formulação de demandas e sua projeção às instituições competentes para acolhe-las e lhes dar resposta depende de pressupostos relativos a duas dimensões: cognitivo simbólica e sócio- institucional. Ambas, em boa medida, ausentes no caso das comunidades atingidas, particularmente daquelas situadas na foz do rio. Por isso, argumentamos, a gestão do desastre socioambiental ocasionado pelo rompimento da barragem de Fundão acusa uma forma peculiar de desencontro de interesses entre comunidades atingidas e instituições incumbidas dessa gestão. As dificuldades diagnosticadas podem ser comuns a outros contextos de grandes desastres.
Palavras chave: Rio Doce; Desastre; Participação; Fundação Renova; Comunidades atingidas.
ABSTRACT
Examining the experience of implementing a participatory technology (CRCMOP) in the communities affected by the Rio Doce disaster in Espírito Santo over two years reveals the difficulties of affected population participation in disaster management governance, specifically in taking part in the definition of reparation, compensation and indemnity measures to be carried out by the Renova Foundation. We argue that the formulation of claims and their statement vis-à-vis the competent institutions that are supposed to receive and respond to them depends on assumptions concerning two dimensions: symbolic-cognitive and socio-institutional. Both are largely absent in affected communities, particularly those at the mouth of the river. Therefore, we argue, the management of the socio-environmental disaster caused by the Fundão dam burst rupture presents a peculiar form difficulty: a mismatch of interests between affected communities and institutions responsible for managing it. Diagnosed difficulties may be common to other major disaster contexts. These difficulties, here diagnosed, may also be common to other major disaster contexts.
Keywords: Rio Doce; Disaster; Participation; Renova Foundation; Affected Communities.
RESUMEN
El examen de una experiencia de implantación de una tecnología participativa (CRCMOP) en las comunidades afectadas por el desastre del Rio Doce (Espírito Santo), durante dos años, permite iluminar las dificultades de la participación de la población afectada en la gobernanza de la gestión del desastre, específicamente, en las acciones de reparación, compensación e indemnización que debe realizar la Fundación Renova. Argumentamos que la formulación de demandas y su proyección hacia las instituciones competentes para acogerlas y darles respuesta depende de presupuestos relativos a dos dimensiones: cognitivo-simbólica e socio-institucional. Ambas, en buena medida, ausentes en el caso de las comunidades afectadas, particularmente de aquellas situadas en la boca del rio. Argumentamos que la gestión del desastre socioambiental causado por la ruptura de la presa de Fundão acusa una forma peculiar de desencuentro de intereses entre comunidades afectadas e instituciones responsables por esa gestión. Las dificultades diagnosticadas pueden ser comunes a otros contextos de grandes desastres.
Palabras claves: Rio Doce; Desastre; Participação; Fundação Renova; Comunidades atingidas.
RÉSUMÉ
L'examen d'une expérience de mise en oeuvre d'une technologie participative (CRCMOP) dans les communautés affectées par la catastrophe de Rio Doce (Espirito Santo) au cours des deux années, nous permet d'éclairer les difficultés dela participation despersonnes affectées dans la gestion de la catastrophe, en particulier, dans les actions de réparation et d'indemnisation qui doivent être menées par la Fondation Renova. Nous soutenons que la formulation des demandes a les institutions responsable de recevoir les demandes et d'y répondre dépend a deux conditions concernant a les dimensions cognitive-symbolique et socio-institutionnelle. Les deux sont, dans une large mesure, absents dans le cas des communautés affectées, en particulier celles situées à l'embouchure de la rivière du Doce. Nous soutenons ausssi que la gestion de la catastrophe socio-environnementale causée par la rupture du barrage de Fundão montre une forme particulière de décalage des intérêts entre les communautés affectées et les institutions responsables de cette gestion. Les difficultés diagnostiquées peuvent être communes à d'autres contextes de catastrophes majeures.
Mots clés: Rio Doce; Catastrophe; Participation; Fondation Renova; Communautés affectées.
I. Introdução
O rompimento da barragem de Fundão ocasionou o maior desastre com rejeitos de mineração já registrado no mundo, com efeitos nocivos - em alguns lugares devastadores - sobre o meio ambiente e a população. A gestão de um desastre dessa magnitude é tarefa extraordinariamente complexa, para a qual as autoridades públicas e os órgãos competentes em matéria ambiental não estavam preparados, e o desenho da estrutura de governança criada para realizar tal gestão mostrou-se inadequado. Interessa-nos abordar, neste artigo, um flanco especialmente sensível para a população atingida, que, conforme será mostrado, é também relevante para a gestão do desastre e, especialmente, para o desempenho das funções atribuídas à Fundação Renova (FR), eixo vertebral da estrutura de governança do desastre. Buscamos iluminar as dificuldades da participação da população atingida de uma perspectiva inusual: o desencontro de interesses entre agentes potencialmente nela interessados.
No plano mais geral há uma ordem de fatores conhecidos que poderiam explicar a inexistência ou o caráter marginal da participação da população atingida nos processos de reparação, compensação e indenização: os interesses dos atores predominantes na definição e composição da estrutura de governança do desastre. Se problemas, demandas ou perdas expressas pela população e por atores sociais ante autoridades recebem respostas limitadas, não são atendidas ou sequer são reconhecidas, é razoável voltar-se para a análise dos atores que entram em jogo e de seus interesses materiais, institucionais e eleitorais. De fato, é comum à literatura e aos atores mobilizados em nome da população atingida a denúncia do descaso com participação na definição do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) que instituiu a Renova, bem como na operação dessa fundação. O texto do TTAC e a mobilização de atores sociais e agentes do sistema de justiça para alterara a estrutura de governança, introduzindo a participação de modo significativo atestam a correção desse diagnóstico no plano macro.
Porém, nos planos meso e micro é possível que perdas não sejam reparadas, nem demandas atendidas ou problemas reconhecidos por desencontros de outra índole, mais básica ou prévia ao plano do conflito aberto de interesses e eventuais desacordos fundamentais, mesmo em casos em que às partes envolvidas conviria explorar sobreposições parciais de interesses. A implementação de uma tecnologia participativa junto a população atingida pelo desastre, desenhada para propiciar participação e deliberação em escala micro, permitindo tanto a ampliação das pessoas envolvidas quanto a revisão contínua das deliberações prévias, permitiu detectar - como subproduto da implementação - esse desencontro de interesses, bem como estimulou um processo reflexão e aprendizagem que sistematizamos no argumento deste artigo.
Argumentamos que, no caso das comunidades atingidas, o plano dos desacordos ou eventuais acordos pressupõe a formulação de problemas e demandas coletivas (dimensão cognitivo-simbólica) e a disposição de repertórios de encaminhamento e negociação de demandas (dimensão sócio-institucional). Introduzimos ambas as dimensões mobilizando alguns dos pressupostos que estruturam o debate sobre movimentos socias e institucionalização - ou, dependendo da literatura, relações entre sociedade civil e Estado. Quando ambas se encontram ausentes, a elaboração coletiva de perdas e demandas resta emperrada e, se elaboradas, as respostas institucionais permanecem obstadas. De um lado, "interesses", sejam eles elaborados como "problemas", "demandas" ou "perdas", são construções simbólico cognitivas, não jazem no mundo como coisas. São construções tanto para os atores que os exprimem publicamente como próprios quanto para os atores interpelados em posições institucionais. Mais: sua construção trona-se especialmente difícil quando associada a fenômeno inédito, de efeitos muito amplos e desconhecidos ou dificilmente estimáveis, e em contextos com aceso limitado a informação. De outro, a formulação e projeção de demandas a instituições com atribuições púbicas para processa-las normalmente não ocorre como um ato único ou isolado por parte de atores coletivos, mas como expressão de capacidades de ação desenvolvidas ao longo de processos de interação socio-estatais.1 Contudo, em se tratando de uma instituição recém-criada como a FR, de caráter não governamental, inexistem repertórios que orientem o encaminhamento estratégico de tais demandas. E o desenho da estrutura de governança do desastre não favoreceu a iteração entre comunidades e as câmaras técnicas da Fundação.
A tecnologia participativa que implementada chama-se CRCMOP - Com Rio Com Mar Opinião Popular, e é parte integral de projeto de pesquisa financiado por recursos federais mediante chamada interinstitucional das agências de fomento.2 O projeto é conduzido por ComRioComMar Rede de Pesquisa, uma rede interinstitucional. Ainda em curso, a implementação do CRCMOP começou em julho de 2018, e foi antecedida por meses de trabalho de campo exploratório e intenso diálogo com atores territoriais. Ao longo de um ano, essa tecnologia foi implementada nos municípios de Vitória, Serra, Colatina, Linhares e, principalmente, em São Mateus no Espírito Santo. Trata-se de metodologia de painel que permite a agregação de opiniões preferenciais de participantes, desenhada para apoiar a deliberação coletiva e a construção de consensos respeitando a expressão de interesses e significados implicados nas relações entre atores locais. Seu emprego obedeceu inicialmente ao intuito de recolher, organizar e fornecer informações de qualidade subsidiando a tomada de decisão por parte de autoridades públicas. Porém, o trabalho de campo se revelou particularmente complexo, levando à readequação constante da metodologia. O trabalho de readequação constituiu exercício de reflexão rico sobre as dificuldades da participação em um contexto de desastre como o do Rio Doce.
Com o intuito de evitar mal-entendidos, é pertinente explicitar o estatuto do argumento e evidências mobilizados neste artigo. Nosso argumento descansa em pressupostos oriundos do debate sobre as relações sociedade civil e Estado.3 Não testamos proposições oriundas desse debate, mas nos beneficiamos com seus insights - revisitados e retrabalhados alhures (Lavalle et al., 2019) - para interpretar nossa experiência de aprendizagem ao longo de dois anos de campo na implementação de CRCMOP. Examinamos aqui um caso que, todavia, difere dos objetos usuais examinados nesse debate, pois envolve não movimentos sociais e instituições estatais ou governamentais, mas comunidades territoriais (população atingida na bacia do Rio Doce) e instituições privadas com concessão de status público (a FR)4. A relação com os pressupostos e insights é de natureza heurística e cabe ao leitor julgar o rendimento no argumento sobre as dificuldades da participação. Mais: nossa reflexão foi instada no marco de projeto de pesquisa com um componente importante de intervenção - conforme exigência das agências de fomento5 -, orientado à ampliação da inclusão das comunidades atingidas na governança do desastre. Não se realiza aqui uma defesa desse componente, das eventuais virtudes de seu desenho ou de seus resultados, e tampouco da participação em si; antes, apresentamos os achados derivados de nossa aprendizagem porque nos parecem cognitivamente valiosos. As características da tecnologia participativa e os ajustes introduzidos para viabilizar sua implementação merecem atenção, mas o exame substantivo das características dessa tecnologia e dos resultados alcançados com ela escapam ao escopo deste artigo.
O artigo está estruturado em quatro seções além da introdução e das conclusões. A sequência do argumento segue o caminho da exposição, e não o da descoberta. Assim, na seguinte seção introduzimos brevemente a os pressupostos e insights da literatura que informam o argumento aqui sustentado sobre o tipo de desencontro de interesses. Depois, abordamos brevemente as características do desastre e as peculiaridades da estrutura de governança instituída para sua gestão. Na terceira seção examinamos as características da tecnologia de governança participativa implementada no Espírito Santo. Por fim, enceramos com a apresentação do processo de implantação nas comunidades da Foz do Rio Doce, examinado as dificuldades da participação no contexto do desastre, os ajustes introduzidos no CRCMOP e como os ajustes remetem à ausência das dimensões cognitivo-simbólica e socio institucional. À guisa de conclusão elabora-se uma síntese dos argumentos achados principais e sintetizam-se o que reputamos ser os aprendizados mais relevantes para estimular novas pesquisas.
II. As dimensões cognitivo-simbólica e sócio-institucional
Dois pressupostos do debate sobre movimentos sociais e institucionalização - ou, de modo mais abstrato, das relações entre sociedade civil e Estado - informam nossa interpretação da experiência da implementação da tecnologia participativa CRCMOP. Trata-se da mútua constituição entre Estado e sociedade civil e, em decorrência, da socio-gênese das capacidades estatais e da gênese estatal das capacidades de atuação dos atores sociais (Lavalle, Carlos, Dowbor, & Szwako, 2019; Lavalle & Szwako, 2015). O pressuposto da mutua constituição subjaz um conjunto de trabalhos do neo-institucionalismo histórico e autores associados a essa tradição, que não entendem a relação entre sociedade civil e Estado como uma equação de soma zero, mas como uma relação que comporta efeitos produtivos para ambos os lados (Evans 1995; Mann 2008; Skocpol, 1992). Ele é especialmente caro a posturas que explicitamente se ocupam das dinâmicas socioestatais na produção de orientações simbólicas, programáticas e práticas compartilhadas entre atores sociais e estatais (Abers, Silva, & Tatagiba, 2018; Dagnino 2011; Szwako & Lavalle, 2019). Nesse registro, as capacidades do Estado, fiscais ou burocráticas, por exemplo (Tilly, 1996), são produzidas em processos históricos de interações socioestatais conflituosas e de cooperação com atores da sociedade civil; processos que definem as instituições - quer dizer, institucionalizam a capacidade de ação do Estado (Skocpol & Finegold 1982). Inversamente, tais processos produzem ao longo do tempo os repertórios de ação e estratégias dos atores sociais e constituem sua capacidade de ação perante o Estado e outros atores.
Ambos os pressupostos ancoram os insights dessa literatura para pensar as dimensões cognitivo-simbólica e sócio-institucional da ação coletiva, especialmente pertinentes para a compreensão do desencontro de interesses entre atores institucionais e sociais no contexto do desastre do Rio Doce. Assim como existem repertórios de ação coletiva (Tilly, 1978) e repertórios de interação Estado-sociedade (Abbers et al., 2014), também existem repertórios discursivos que permitem aos atores exprimir demandas em uma linguagem compreensível para os atores objeto das demandas (Lavalle, 2019). Repertórios são modos regulares de fazer coisas, no caso dos repertórios discursivos, de nomear e vocalizar publicamente um "problema" com base em conhecimento compartilhado, bem como de enunciar o desenvolvimento de uma compreensão comum - para um "nós" - sobre seus efeitos e possíveis soluções. Trata-se de uma dimensão cognitivo-simbólica porque a formulação de demandas por parte de atores sociais depende de um trabalho coletivo de identificação e nomeação de questões comuns que demandam atenção, isto é, depende da construção coletiva de "problemas" e tal construção articula elementos factuais - tornando eles conhecidos ou pressupondo seu conhecimento - com o significado que eles assumem para uma determinada comunidade unida por perspectivas comuns de sentido (meaning). A nomeação de problemas e soluções por atores sociais costuma operar de modo naturalizado, ou com nomes comuns e conhecidos que não causam estranhamento; entretanto, "nomes" ou categorias são construções, e não dados, que exercem um efeito de hierarquização normativa e de constituição do mundo social (Berger & Luckmann, 2004).
Conforme será visto adiante, o desastre do Rio Doce foi e continua a ser acontecimento extraordinário, o alcance de suas consequências é desconhecido para as populações por eles atingidas e a construção coletiva dessas consequências nas comunidades não dispunha de repertórios discursivos. A dimensão sócio-institucional poderia, aí, fazer alguma diferença, devido a seu papel na construção e funcionamento de repertórios. Repertórios são historicamente construídos em processos de interação sócio-estatal, dada a centralidade do Estado ou das instituições com poder de tomar decisões vinculantes, inclusive quando as demandas dizem respeito a conflitos entre atores não estatais - da sociedade civil ou do mercado. Por isso, mesmo nas circunstâncias extraordinárias do desastre, seria possível que repertórios discursivos construídos nas histórias locais de conflitos com e mediados por autoridades públicas fossem atualizados, auxiliando no trabalho de nomeação mediante o empréstimo de categorias que permitiram veicular tradicionalmente demandas de outras naturezas.6 Assim, dimensão sócio-institucional opera de modo imbricado com à dimensão cognitivo-simbólica. Essa dimensão, nossa experiência sugere, foi inibida pelo fato de o principal ator na governança do desastre ser um ator recém instituído, desconhecido para as comunidades e de natureza privada (controlado pelas empresas que cometeram o crime), ainda que de interesse público.
Ambas as dimensões não apenas são crucias à construção coletiva de "problemas" e, neste caso, de "perdas", mas também à capacidade das instituições incumbidas de lidar com tais demandas. Entre as contribuições mais conhecidas de Scott (1998) ao neo-institucionalismo de matriz sociológica, precisamente a respeito de catástrofes produzidas por grandes intervenções estatais, se encontra o diagnóstico da incapacidade de o Estado agir com sucesso sobre o mundo social sem uma leitura de suas dinâmicas internas. A legibilidade do social para o Estado - para permanecer fieis à metáfora visual de Scott que aqui remete a dimensão cognitivo simbólica - é desenvolvida em processos de interação sócio-institucionais (Szwako & Lavalle, 2019) ou, neste caso, de interação com as instituições incumbidas das políticas de reparação e indenização.
Certamente a Renova é um ator estranho ao foco centrado no Estado próprio dos insights revisados, mas seu estatuto privado com fins públicos e o papel a ela atribuído como agente de formulação e implementação de políticas de reparação e indenização tornam a apropriação heurística desses insights pertinente. Conforme será visto na seguinte seção, as dimensões do desastre e as características da FR são pouco propícias á operação das dimensões examinadas.
III. A gestão do desastre: capacidades institucionais
Em 5 de novembro de 2015 o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, da mineradora Samarco Mineração S/A, despejou 56 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração sobre o Rio Doce, contaminando 663 quilômetros de curso de rio, que se estende de Mariana, em Minas Gerais, a Regência no Espírito Santo (MPF, 2016c; 2016d) e depois se espalhou pelo mar atingindo a costa norte do estado. No seu percurso desde o Complexo de Germano, que sedia a barragem, até a foz do Rio Doce, a lama atingiu severamente um milhão de habitantes de 50 municípios de Minas Gerais e 10 de Espírito Santo (Bianchini, 2016; Fernandes et al., 2016). Considerando que a documentação histórica de catástrofes dessa índole remonta a 1917, trata-se do maior desastre já registrado na história com rejeitos de minério (Bowker & Chambers 2015). Efeitos desse tipo de desastres são amplos: contaminação de água, solo e atmosfera; alteração de ciclos de vetores de doenças e danos sobre a infraestrutura, habitações e ao tecido econômico-social; além de severos danos à saúde das populações atingidas, dentre os quais prejuízo a órgãos do sistema nervoso central, transtornos mentais, depressão, dentre outros problemas (Freitas et al., 2019). De fato, esses efeitos vêm sendo observados no desastre do Rio Doce (Jornal O Globo, 2019a; Vormitag & Pacheco, 2018).
A legislação brasileira em matéria de proteção ambiental avançou consideravelmente no pós-transição democrática no sentido da ampliação de direitos para a proteção jurídica da diversidade socioambiental (Santilli, 2005), mas seus dispositivos mal puderam sugerir um curso de ação apropriado para um desastre das proporções do rompimento da barragem de Fundão, nem as instituições públicas de proteção ambiental contavam com estratégias ou modelos de gestão para uma catástrofe de magnitude tamanha. Frente à complexidade do quadro de reparação, e em resposta à ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) (2016a) criou-se a FR como ator vertebral na governança da gestão do desastre. Em 2 de março de 2016 a Samarco e suas controladoras - Vale e BHP Billiton -, o governo federal, o governo dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, o Ibama e diversos órgãos federais celebram o TTAC: acordo voluntário extrajudicial que, sem imputar responsabilidade às mineradoras, orienta sua conduta para a compensação, reparação, e indenização de danos mediante doação patrimonial para a constituição da Fundação (AGU, 2016). Em tese, a estratégia confere flexibilidade ao tratamento de conflitos ambientais uma em face da resolução judicial de conflitos, considerados rígidos e lenta - como no caso da Ações Civis Públicas (Viégas, Pinto, & Garzon, 2015, p. 130, segundo Mazzola & Esteves 2018; Zorzal, Silva, Cayres, & Souza, 2019).
Constitui-se assim, em 28 de junho de 2016, 3 meses após o TTAC, a FR, dotada de autonomia administrativa e patrimonial e destinada a realização de estudos, elaboração de propostas e implementação de medidas destinadas à compensação, reparação e indenização de danos causados pelo rompimento da barragem. Ao todo o TTAC estipulou 42 programas, ou conjunto de ações, a serem cumpridos pela Renova em âmbito estritamente privado de interesse público, que incluem uma miríade de investimentos e decisões tais como cadastrar os atingidos, reconstruir vilas, restaurar florestas, recuperar nascentes e reabilitar a capacidade de saneamento de municípios, reestabelecer a economia regional e a qualidade de vida de comunidades tradicionais, e, de especial interesse aqui, assegurar a participação da população e o controle social nos processos de reparação, bem como garantir o acesso a informação a respeito das ações de reparação conduzidas pela Renova7. Os programas foram definidos de modo genérico, com escopo impreciso e sem estabelecimento de prazos ou metas, permitindo ampla autonomia decisória e de gestão à FR (Dowbor, 2018; Dowbor et al., 2018).
A Fundação estabeleceu como estrutura de governança quatro órgãos internos8 sendo que somente em um deles, no Conselho Consultivo, foi prevista presença de membros apontados pela população atingida - cinco dentre dezessete membros ao todo (Conectas, 2018). O TTAC também estabeleceu o CIF - Comitê Interfederativo, instância de fiscalização do poder público sobre a Fundação9. Considerando a complexidade e a dimensão das ações reparatórias envolvidas, foi facultada regimentalmente ao CIF a possibilidade dede instituir Câmaras Técnicas para aconselhá-lo na análise das propostas de ações inscritas nos programas de recuperação propostos e de seus resultados (Zorzale Silva et al., 2019). Não foram contempladas instâncias de contato permanente com a população nos territórios.
Os termos acordados foram alvo de numerosas críticas no sistema de justiça e em redes de atores da sociedade civil, e sofreram mudanças exatamente no flanco que aqui interessa - a participação da população atingida - graças à intervenção do MP e à mobilização da população atingida (Carlos & Souza 2018; Vidal, 2019). O TTAC foi prontamente contestado pelo MPF, que argumentou que o acordo firmado priorizava a proteção do patrimônio das empresas em detrimento da proteção das populações afetadas e do meio ambiente (Losekann & Santos 2017; MPF, 2016b; Zorzal e Silva et al., 2019). Após contestações judiciais, no início de 2017 assinou-se um Termo de Ajustamento Preliminar (TAP), documento adicional cujo destaque é a promoção da participação dos atingidos no processo de reparação e compensação. Ainda, de modo complementar, em junho de 2017 foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta Final (TACF) e em novembro do mesmo ano emendou-se o TAP designando a disponibilização de assessorias técnicas aos atingidos de toda a bacia do Rio Doce (AGU, 2016, MPF, 2017b, conforme Mazzola & Esteves 2018). Em junho de 2018 um novo acordo promovido pelo Ministério Público de Minas Gerais altera o TTAC e promoveu ampliação da estrutura de governança da Renova e da gestão do desastre do Rio Doce. Denominado TAC Governança.10 Sem dúvida, esse acordo alterou as possibilidades de interação entre os atores sociais e a Renova e introduziu a presença dos primeiros na estrutura de governança do desastre. Contudo, na experiência de implementação da tecnologia participativa que motivou este artigo ainda não foram detectados seus efeitos nos territórios das comunidades.
Quão eficaz tem sido esse arranjo institucional ancorado na Renova para a gestão do desastre? A percepção acerca da condução das reparações e indenizações resultante desse quadro é um mosaico desencontrado e complexo composto tanto por narrativas de ineficiência e inoperância quanto de suposta relativa normalidade nos esforços de reparação. Na ausência de meios de aferição e indicadores devidamente aprovados entre os envolvidos e endossados pelo judiciário, os meios de comunicação públicos e privados, e atores sociais, de Estado e de mercado se encarregam de construir e disseminar narrativas diversas acerca dos acontecimentos. Informes da Renova noticiados na mídia especializada em economia e negócio externam a atualização constante das informações de andamento dos programas (Valor Econômico, 2018). Notícias externadas pela grande mídia no mesmo período e pertencentes ao mesmo grupo de comunicação, contanto, denunciam morosidade, desesperança e precariedade extrema entre os atingidos (O Globo, 2018b; O Globo, 2019a). Outro grupo de mídia eletrônica relata ainda que em "3 anos, Samarco cumpriu 1 dos 42 programas de reparação após crime ambiental" (Brasil de Fato, 2019a). Relatos ao Ministério Público denunciam ainda ações de má fé por parte de prepostos da acusada (MPF, 2019a) e contradições acerca da segurança de consumo de água e pescados (MPF, 2019b), o que enseja um sentimento generalizado de impunidade e insegurança na população atingida.
Certamente, há interesses econômicos e políticos de fundo que conferem plausibilidade às narrativas sobre ou descaso, ineficiência e morosidade das ações da Renova, e iluminam a incapacidade do poder público para impor as sanções cabíveis. Trata-se de atores com poder considerável de barganha: a BHP Billiton e Vale são as duas maiores mineradoras do mundo e, em 2018, o setor extrativo mineral foi responsável, no Brasil, por 30% do saldo positivo da balança comercial (IBRAM, 2019). Mineradoras não apenas constituem fonte indispensável de recursos fiscais - não raro a principal e, por vezes, quase única - nos municípios em que exploram e beneficiam minérios, mas também são fonte regular de financiamento de campanhas eleitorais. Em Mariana, por exemplo, nada menos que 95% da arrecadação fiscal entre 2013 e 2015 proveio desse setor (SEFMG, 2015). Metade dos Deputados da Comissão Interestadual Parlamentar (Cipe), criada pelas Assembleias legislativas dos estados de Minas Gerais (ALEMG) e Espírito Santo (ALES), criada poucos dias após o rompimento da barragem, visando o desenvolvimento sustentável da bacia do Rio Doce, contaram com financiamento da Vale (Amaral 2018). Não é de estranhar que das 13 proposições legislativas tramitadas na ALES nos três anos seguintes ao rompimento, mais da metade tenham se dedicado a viabilizar o retorno das atividades da Samarco e a por fim à Comissão de Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para responsabilizá-la pelo desastre (Amaral, 2018).
Porém, interessam aqui outra ordem de fatores que operam em plano mais micro, evidenciados como relevantes pela experiência de implementação da tecnologia de governança e que remetem às condições não propícias às dimensões cognitivo-simbólica e socio-institucional. Diagnósticos de pesquisas que vem apontando para o modelo de governança da gestão do desastre como fator relevante para a inefetividade das políticas de compensação, reparação e indenização (Barros, 2018; Oliveira, Silveira, & Oliveira, 2018; Souza & Carlos, 2019; Zorzal e Silva & Bussinguer, 2019). A esse respeito, levantamento e exame das ações realizadas pela Renova desde sua fundação até maio de 2018 nos municípios capixabas Linhares e Colatina oferece evidências elucidativas: considerando as áreas de água, pesca, saúde e turismo - áreas11, conforme será visto, especialmente importantes do ponto de vista das comunidades do Espírito Santo - foram registradas 104 ações, 72,1% das quais concentradas na categoria alinhamento de diretrizes e diagnósticos e apenas 12,5% dedicadas à entrega de serviços (Dowbor, 2018). Alinhamento de diretrizes constitui, a rigor uma "meta-atividade" ou uma condição de possibilidade para que atividades - de diagnóstico, no caso -sejam realizadas. Assim, as evidências sugerem que nesses dois anos e meio contemplados pelo levantamento a Renova permaneceu à procura de equacionar o que fazer.
Na seguinte seção são examinadas sinteticamente as características do desenho original da tecnologia participativa e seus pressupostos quanto às capacidades societais, de modo a evidenciar as implicações dos desafios enfrentados durante a implementação.
IV. A tecnologia de governança participativa e suas premissas
O CRCMOP é uma derivação do Painel de Opinião Popular (POP), cuja implantação no contexto das comunidades atingidas exigiu adaptações criativas, produzindo uma modalidade distinta. A primeira aplicação do POP data do período 2009 a 2011, e foi realizada no Jardim Ângela em São Paulo por meio de uma pesquisa realizada junto ao CEAPG / FGV EAESP12. Aplicações posteriores desse modelo foram realizadas na Escola Vera Cruz de São Paulo (2016) e na Secretaria da Educação da Estância Turística de Embu das Artes (2018)13. Na sua versão original, foi concebido como uma metodologia de painel de agregação de opiniões preferenciais, aplicável a questões que implicam escolha social - destino de uma área coletiva ou prioridades de investimento para o bairro, por exemplo -, e com o objetivo de fomentar a reflexão coletiva e a construção de consensos, respeitando a expressão de interesses e significados associados a sua expressão.
Grosso modo, participantes POP podem depositar propostas em urnas e votar em propostas já realizadas por outros votantes e organizadas em listas. Mediante sucessivas rodadas de votação, apuração e publicação das propostas sugeridas em listas e sua correspondente votação vão se agregando as preferências. A listagem é devolvida aos participantes e distribuída no território de aplicação, ampliando o alcance da circulação de informação e estimulando a reflexão sobre as propostas, bem como o engajamento da população no seu debate. A realização de ciclos sucessivos de votação e proposição permite que participantes se posicionem criticamente de modo contínuo frente aos resultados, o que cria dinâmicas de deliberação sensíveis ao contexto ambiental manifesto no elenco de prioridades14
A maturidade deste processo é alcançada quando as opiniões registradas no painel adquirem especificidade suficiente para endereçar uma visão de futuro, ou caracterizar claramente uma preferência coletiva, e informar estratégias e táticas de implementação passiveis de reconhecimento por instituições com capacidade executiva e interessadas em constituir dinâmicas de governança compartilhada. Considerando que se trata de uma dinâmica de proposição e votação em ciclo contínuo, é possível traçar uma matriz quadrante do status de uma agenda de debate em relação a população participante. Essa matriz é composta por dois eixos, proposição e apoio (endosso), o que por sua vez determina quatro possibilidades: alta proposição e baixo número de endossos, alta proposição e alto número de endossos, baixa proposição e alto número de endossos e baixa proposição e baixo número de endossos (Figura 1).
A tecnologia, descansa em algumas premissas: informações relevantes sobre as questões em elucidação são de conhecimento público ou acessíveis; tais informações são percebidas como confiáveis; existem repertórios discursivos compartilhados para nomear os "problemas" e propor soluções; é de interesse da população participar para encontrar soluções coletivas; as instituições com capacidade executiva fazem parte do horizonte possível na proposição de soluções. Sobre essas premissas, os resultados do POP variariam conforme a matriz de resolutividade apenas em função do processo de deliberação sobre proposições ao longo do tempo.
A situação de alta proposição e baixo número de endossos indica que o tema em questão se encontra em debate e que proposições estão sendo lançadas a consulta para deliberação. Nesse caso, não há endossos suficientes para constituir uma hierarquia de preferências. Por sua vez, em oposição, uma situação de baixa proposição e um alto número de endossos indica consolidação de um tema e eventualmente de uma agenda. A situação de alta proposição e alto número de endossos tem comportamento similar à anterior, mas com alta volatilidade, o que designa uma situação de disputa de temas ou até de agendas. Por fim, uma situação de baixa proposição e baixo número de apoios denota desinteresse e pouca relevância no tema ou agenda em debate. Este cenário, por sua vez, está ainda sujeito a alterações de acordo com o tamanho da base de contribuições e periodicidade das votações. De modo geral, o desenho determina que quanto maior a base, maior a possibilidade de variação nas contribuições, e quanto maior o tempo de agregação de votações, maior a possibilidade de acúmulo de votos em torno de uma proposição e mais estável sua posição dentro de um regime de preferências (menor volatilidade).15
V. CRCMOP: capacidade societais e a construção coletiva de problemas e propostas
O ComRioComMar Opinião Popular (CRCMOP) é o resultado da recriação do POP para enfrentar o desafio de implementá-lo no contexto do desastre, especificamente na foz do Rio Doce. O processo participativo foi implementado no Espírito Santo em territórios da bacia do Rio Doce e do litoral norte do estado, último a ser atingido pela lama de rejeitos de minérios oriunda do rompimento da barragem da Samarco. A pesquisa, ainda em andamento, iniciou o contato com as lideranças locais nestes territórios em novembro de 2017. Para isso contou com o apoio de movimentos que atuavam na região naquele momento, como o Fórum Capixaba de Entidades em Defesa do Rio Doce (FCRD) e o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), inclusive como estratégia para romper possíveis resistências ou desconfianças. Após meses de diálogo, trabalho de diagnóstico e vistas de campo, a implementação começou paulatinamente em meados de 2018.
A adesão à proposta do CRCMOP é voluntária e por isso registrou oscilações ao longo do tempo. O momento inicial partiu de uma apresentação geral, com a experimentação do processo de votação e o primeiro levantamento de propostas, em eventos do MAB e do FCRD que reuniram as principais lideranças dos atingidos da região. Após isso, a apresentação do CRCMOP continuou nas comunidades reconhecidas como atingidas pela FR, mas foi nas que ainda não tinham sido reconhecidas que o processo foi melhor acolhido. Assim, e dada a heterogeneidade da própria região atingida, o processo do CRCMOP foi sendo implementado em um território diverso, com urnas em comunidades urbanas, semirurais e rurais, com público aberto e seletivo, de alto e baixo graus de escolaridade, espalhadas por cinco municípios de Espírito Santo - Vitória, Serra, Linhares, Colatina e São Mateus (Ver Figura 2).
No período de junho de 2018 a janeiro de 2019 (que compreende os ciclos de votações cujos resultados são aqui examinados, ver Gráfico 1), a votação já estava em andamento em São Miguel-Ilha Preta (São Mateus), Barra Nova Sul (São Mateus), IBC (Colatina) e IFES (Colatina)16. Neste período, foram contabilizadas 861 participações de 334 participantes individuais. A taxa de crescimento dos participantes foi de 8,48 vezes. Eles geraram 214 proposições priorizadas por 3341 votos acumulados.
A aderência, à princípio, foi maior em locais onde o CRCMOP foi percebido como oportunidade, em comunidades que ainda não eram reconhecidas como atingidas, permanecendo excluídas dos possíveis benefícios de ações de reparação e indenização. Trata-se, por exemplo, das comunidades do município de São Mateus, para as quais o CRCMOP apareceu como uma ferramenta potencialmente útil para conferir visibilidade às suas demandas e permitiu organizar a própria comunidade em torno dos temas. Em Colatina, reconhecida desde o primeiro momento pelos órgãos de justiça e pela Renova, o processo de participação teve menor aderência entre as comunidades que participaram. Assim, a adesão ao CRCMOP se deve mais à expectativa de atingir o reconhecimento de um status geral (de população atingida) logicamente associado à expectativa da reparação e indenização - abstrata - do que à formulação de elaboração de problemas e possíveis soluções específicos às comunidades.
Porém, a heterogeneidade das comunidades atingidas é considerável e os desafios por elas enfrentados são em boa medida específicos. Ainda durante o processo de desenho da proposta do CRCMOP - junto com algumas lideranças -, essa heterogeneidade entre atingidos e entre as comunidades foi se tornado clara. As comunidades eram compostas de grupos de pescadores artesanais do rio, pescadores artesanais do mar, marisqueiros, pescadores profissionais, donos de pousadas ou comércios ligados ao turismo, surfistas, pequenos agricultores, estudantes, além de grupos de quilombolas e de indígenas -, entre outros. Estimular a elaboração de diagnósticos específicos revelou-se uma tarefa complexa. A organização desses grupos como atingidos passou por processos de assimilação de sua situação perante o desastre e perante outros grupos. Mais: ainda que alguns grupos de atingidos estivessem se organizando, a proposta do CRCMOP parecia distante a eles, por quê participar se suas demandas pareciam já bem definidas:indenização, justiça e recuperação de sua vida. Afinal, qual seria a vantagem de se engajar em um processo com votações conduzido por acadêmicos? Percebemos, primeiro, que a ausência de instituições com capacidade executiva ora diretamente vinculadas ao CRCMOP, ora acessíveis às comunidades para lidar com a responsabilização local dos efeitos da catástrofe parecia tornar a deliberação um exercício ocioso; segundo, que não apenas a informação era de difícil acesso para as comunidades atingidas, como também diversos agentes provedores de informação e/ou produtores de conhecimento eram vistos com desconfiança - inclusive nossa equipe -; por fim, que era preciso criar momentos de diálogo para troca de conhecimentos entre os atingidos e os membros do projeto - oriundos da academia -, bem como, entre os próprios atingidos dentre de uma comunidade e entre atingidos de diferentes regiões, possibilitando-os ora elaborar problemas e demandas comuns e concretas, ora aprender a partir da diversidades entre eles.
Assim, foram introduzidas oficinas para trabalhar com lideranças locais, agregando uma dimensão formativa. As oficinas permitiram que as lideranças expusessem os problemas enfrentados em suas comunidades, muitas vezes ainda pouco tematizados entre eles, como, por exemplo, a atenção à saúde. Após as oficinas, as lideranças levaram as reflexões das oficinas às comunidades e nelas discutiram os temas e incentivaram novas votações, expressas em novas propostas e endossos -, votos em propostas já registradas e listadas. No seguinte ciclo, as novas propostas e todos os endossos passavam a integrar a lista passível de nova discussão, reflexão, elaboração de propostas e votação. Dessa forma, as oficinas com as lideranças e o papel de desempenhado por elas junto as comunidades permitiram, a um só tempo: atenuar e progressivamente dissolver a desconfiança em relação à equipe; produzir efeitos de veracidade sobre os conteúdos discutidos nas oficinas e tematizados pelas lideranças posteriormente em suas comunidades; estimular a elaboração coletiva de problemas concretos e a projeção de soluções. Repare-se, as oficinas tornaram a equipe de CRCM indutora da construção coletiva de problemas, do desenvolvimento de repertórios discursivos, bem como da orientação temática das deliberações, sanando a distância entre as premissas ao desenho original e a realidade das comunidades atingidas pelo desastre.
Como seria de se esperar, na medida que as votações foram sendo realizadas observou-se um incremento na taxa de votos por propostas (razão voto/proposta), passando de 1,17 votos em julho de 2018 a 21,97 em janeiro de 2019. De modo inverso, o número de participantes partiu de pouco mais de 40 pessoas para 339 (incremento de 848%) e as propostas não aumentaram nessa proporção, levando à queda de proposições por participantes (razão proposta/participante). É o incremento da taxa de votos por proposta que indica incremento da atenção suscitada pelos diferentes temas, mesmo se novas propostas continuam a aparecer. O incremento dos votos por tema ocorreu, todavia, de modo diferente para cada tema no decorrer das votações por comunidade. No período, observa-se uma concentração de votos nos temas Saúde, Meio Ambiente, Trabalho e Água, ainda que outros tenham sido levantados17
Essa seleção procurou destacar temas mais relevantes, ou significativos. Os dados apresentados são resultado da soma das votações e proposições coletadas em todas urnas no período coberto. A esse conjunto denominamos ES - Espírito Santo. Contudo, como acima documentado, o padrão de votações refere-se majoritariamente às votações e proposições realizadas no município de São Mateus..
Ao observar a evolução do computo geral das votações acumuladas é possível notar que a concentração inicial de votos na categoria residual "geral" cede progressivamente lugar a temas específicos. Dentre estes, meio ambiente, inicialmente o mais saliente, perdeu importância relativa frente ao tema saúde, que passou a ganhar relevância e se aproximar do tema trabalho e, em menor medida, água. A tendência geral sugere que preocupações mais amplas com questões dispersas (geral) e meio ambiente foram cedendo espaço a preocupações mais específicas e imediatas, expressando os efeitos diretos do desastre ao longo do tempo sobre a saúde e trabalho da população nas comunidades. É plausível supor que essa tendência também expressa os efeitos dos temas trabalhados nas oficinas e da construção de problemas realizada nas comunidades graças ao trabalho das lideranças comunitárias que participaram de tais oficinas18. O Gráfico 2 mostra esses dados adotando uma média fixa = 1 para razão voto /proposta19, o que nos permite observar a concentração relativa de cada tema em relação à tendência geral (variação em torno da média). De fato, dados mostram esse comportamento de aumento da concentração acumulada de preferências em Saúde frente a diluição de preferências nos temas Meio Ambiente e Indenização.
O número de propostas acumuladas por tema, no mesmo período, registra padrão similar para todos os temas (Gráfico 3) - salvo o incremento mais acentuado das propostas de trabalho no mês de outubro -, padrão que não acompanhou aquele das votações, nem acusa efeitos das oficinas. Isso posto, interessa examinar a convergência produzida ao longo do processo mediante a utilização da matriz de resolutividade apresentada na seção anterior, na qual se levam em conta fatores importantes para discriminação das preferencias nas comunidades, a saber, o número de partícipes, a incidência de cada um e a participação diferencial de cada um no computo geral de votações (Gráfico 4). Para equacionar esses fatores condiciona-se a razão voto/proposta tanto à razão proposta/participante quanto à participação de um tema no computo geral de votações. De modo mais preciso, considerando que quanto maior a razão voto/proposta e menor a razão proposta/participante, maior será a aglutinação de preferências, é possível estabelecer que: (a) alta razão voto/proposta associado à baixa razão proposta/participante implica em número elevado de votos e baixa proposição - consolidação de agenda -; (b) alta razão voto/proposta associado à alta razão proposta/participante implica em número elevado de votos e alta proposição - disputa de agenda -; (c) baixa razão voto/proposta associado à alta razão proposta/participante implica em número baixo de votos e alta proposição - debate -; e (d) baixa razão voto/proposta associado à baixa razão proposta/participante implica em número baixo de votos e baixa proposição - pouca relevância.
Considerando que no período de agosto a janeiro a taxa média de voto/proposta parte de 1,17 e chega a 21,97, frente a uma queda da taxa de proposta/participante, que parte em 2,25 e atinge 0,45, no mesmo período, temos um cenário de consolidação de agenda, onde a razão entre esses dois fatores (taxa de convergência) cresce20. A taxa de crescimento dos participantes nesse período foi de 8,48 vezes e a taxa de convergência foi de 93,88 vezes, acusando um cenário de votações em que a taxa de convergência é 11,07 vezes superior à taxa de crescimento. Esse cenário de convergência é dinâmico, embora ocorra em um universo de proposições tematicamente estáveis e frente a uma agenda de proposições relativamente estável21
A matriz confirma de modo mais acurado a tendência repostada pelo Gráfico 1 a respeito do computo geral das votações acumuladas em que é possível reconhecer o papel do tempo na apreciação dos danos produzidos pela catástrofe, bem como os efeitos das oficinas na definição de problemas e propostas nas comunidades. Com maior ou menor intensidade, as agendas temáticas partiram com alto número relativo de proposições e baixa votação, ensejando uma condição de debate. Estabelecido esse desenho de partida, testemunha-se picos de votação com destaque nos temas Indenização e Meio Ambiente. O momento posterior, de queda do número de proposta por participantes e de votos por proposta, indica tanto o ingresso de novos votantes como uma diminuição nas votações. A maioria dos temas sai do campo de debate e se posiciona no quadrante de baixa relevância, denotando um momento de baixa intensidade nas votações. Porém, é neste momento que Água e Meio Ambiente se consolidam. No momento seguinte, correspondente as oficinas de novembro, testemunha-se um impulso nas votações, levando a maioria dos temas para o quadrante de consolidação de agenda, com a exceção de propostas gerais e indenização, que perderam impulso. Essas alterações, cabe mencionar, não seguiram a mesma trajetória em todas as comunidades, mostrando como sua especificidade altera a construção de problemas e as votações.
A progressiva consolidação de temas e o desafio de manter o dinamismo participação da população nos levou a procura de encaminhamentos práticos. Afinal, a motivação das comunidades em prosseguir com novos ciclos de votação parecia ocioso se não fosse possível fazer algo com essas propostas. Assim, as oficinas focaram atenção na identificação das instâncias institucionais específicas com atribuições para atender as propostas mais votadas. Tratou-se de orientar as lideranças e as comunidades a respeito de "em que portas bater" - utilizando a linguagem de cartilhas preparadas com essa finalidade. Com isso, buscou-se fazer conexão com instâncias do Estado e da estrutura de governança da gestão do desastre. De fato, a elaboração propositiva de ações passíveis de serem negociadas e implementadas com as instituições pertinentes permaneceram subdesenvolvidas por aproximadamente um ano, quando uma oficina22, com a participação de técnicos (das CTs, secretarias estaduais e municipais), atingidos e membros da academia, objetivou a aglutinação de propostas em torno de propostas mais específicas e capazes de serem negociadas com as autoridades Os diagnósticos temáticos acabaram por ganharam expressão prática com o interesse das Câmaras Técnicas de participar das oficinas de capacitação - notadamente a CT de Participação, Diálogo e Controle. Assim, CRCMOP passou a estimular interações socio-institucionais entre parte da estrutura da FR e as comunidades, suprindo a ausência de interações entre ambos.
Para se negociar propostas era preciso um exame fino das propostas. Como proposições encerram uma dimensão narrativa em relação com o território, elas são inicialmente computadas sem alterações ou correções. A lista das proposições mais votadas (Tabela 1) revela a nomeação dos efeitos do desastre: "trabalho e programas que geram renda para os impactados pela lama" (171), "análise do lençol freático" (145) "análise do peixe do rio Cricaré" (121) ou "ponte para ir à São Mateus, entre Barra Nova Sul e Barra Nova Norte" (116). Isso, em contraste com demandas inespecíficas como " saúde" (155), concentrada em Vitória, ou "água" (101). Às vezes, as proposições cristalizam a dor da perda ("quero nosso pesqueiro de volta para ser mais feliz, 77) e a indignação de quem espera justiça em contexto de desconfiança nas instituições ("Tomar uma atitude honesta pagando o povo atingido", 103).
A apreciação mais detalhada permite observar diferenças importantes entre prioridades gerais e locais, já apontadas na análise da matriz. São Mateus apresentou como primeira prioridade "trabalho e programas de geração de renda" (5,65% dos votos); Colatina, "continuar trabalhando na mesma profissão" (6,42%); Vitória, simplesmente "Saúde" (3,81%). A primeira prioridade no computo geral dos três municípios, todavia, correspondia a "estudos (de contaminação) nas águas, nos peixes e nas populações ribeirinhas" (5,17%). A preocupação por estudos sobre contaminação ambiental não é prioritária em nenhuma das áreas examinadas, mas figurava como a principal preocupação considerando todas localidades. Se, por um lado, São Mateus - com maior mobilização na elaboração proposições e votações - apontava para a possibilidade de formulação de uma visão de futuro, Colatina manifestava um desejo de continuidade de atividade profissional (pesca), algo lamentavelmente improvável em prazo razoável dada a contaminação ambiental daquele bioma.
Por fim, e em plena consonância como o argumento aqui sustentado, note-se que as propostas também evidenciam o reconhecimento das comunidades da dificuldade de se mobilizar para encontrar soluções, invocando a intervenção de algum agente externos: "que as pesquisas possam organizar nossas comunidades e possam criar projetos para água, saúde, trabalho e mudanças nos modos de vida" (99). Aprendemos ao longo do campo, junto com as comunidades na implementação do CMCMOP, que a participação no contexto do desastre é obstada por dificuldades.
VI. À guisa de conclusão: implicações
A experiência de implementação da tecnologia participativa CRCMOP nas comunidades atingidas pelo desastre do Rio Doce, no Espírito Santo, nos permitiu atentar para as dificuldades da participação da população atingida na governança da gestão do desastre, especificamente na definição das ações de reparação, compensação e indenização a serem implementadas pela FR. Trata-se de contexto extremamente complexo e quiçá as dificuldades diagnosticadas sejam comuns a outros contextos de grandes desastres. Argumentamos que a formulação de demandas e sua projeção às instituições competentes para acolhe-las e lhes dar resposta depende de pressupostos relativos a duas dimensões: cognitivo simbólica e sócio-institucional. Ambas as dimensões se encontram em boa medida ausentes no caso das comunidades atingidas, em particular daquelas situadas na foz do rio Doce, e, por isso, argumentamos, a gestão do desastre socioambiental ocasionado pelo rompimento da barragem de Fundão acusa uma forma peculiar de desencontro de interesses entre comunidades atingidas e instituições incumbidas dessa gestão. Essa ausência não apenas parece emperrar a construção coletiva de "problemas" e, neste caso, das "perdas", como também sua projeção na forma de demandas as instâncias incumbidas das políticas de indenização, reparação e mitigação. Ademais, também parece comprometer as capacidades de essas instituições lidarem com as demandas. Iluminar tal desencontro é relevante porque evita deduzir o que ocorre no plano territorial local do jogo dos grandes interesses das mineradoras e do sistema político, atentando fatores em que é possível incidir.
A ausência de ambas as dimensões, interpretamos, deriva das características do arranjo institucional montado para gerir a governança do desastre e da natureza do desastre em si. Um desastre de tamanha magnitude é extraordinário e suas consequências não apenas são desconhecidas pelas comunidades atingidas, mas mudam e ganham expressões diferentes ao longo do tempo. Ele impõe efeitos profundamente desorganizadores sobre as comunidades e seus modos de vida, sejam efeitos diretos, mais facilmente perceptíveis - embora com implicações de médio e longo prazo de estimação difícil -, sejam efeitos indiretos e complexos. A vida das comunidades, e não apenas a economia, funde-se com o rio ou com o mar. Como poderiam lidar com as múltiplas perdas, e como verbalizá-las? Como elaborar as suas aflições para torná-las problemas coletivamente reconhecidos, se há questões tão específicas de cada localidade dentre elas? Por fim, a quem destinar cada tipo de proposição? No contexto do desastre, os repertórios discursivos que permitem a mobilização e reconhecimento coletivo de problemas parecem perder capacidade de operar, ainda mais quando os históricos de interações sócio-estatais desenvolvidos em processos de resolução de conflitos com autoridades locais não são passíveis de atualização para as novas circunstâncias por se tratar de fundação privada de interesse público, recém-criada e em relação à qual, consequentemente, inexistem históricos de interação
Com efeito, para enfrentar o maior desastre com rejeitos de mineração registrado no mundo, a União e autoridades estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo celebraram acordo (TTAC) com a companhia Samarco. O acordo não apenas criou a FR a partir de zero - sem a participação de ministérios e secretarias setoriais da áreas sociais ou da população atingida -, como também lhe definiu os programas de ação, muito amplos, e antes de haver qualquer diagnóstico razoável das dimensões do desastre e de seus potenciais efeitos sobre o território, a bacia do Rio Doce e as comunidades atingidas nos dois estados. A definição e implementação desses programas e das ações deles derivadas deveria contar, conforme o acordo, com a participação da população, mas não foram definidas diretrizes para o desenvolvimento de canais de participação com capilaridade territorial e, sobretudo, sequer contemplou-se como um problema o desafio do reconhecimento e assimilação das perdas e da formulação de demandas coletivas no plano das comunidades. Tampouco foram previstas na Renova disposições orientadas a garantir informação compreensível e relevante para as comunidades. Inexiste histórico de interações sócio-institucionais que pudesse auxiliar na construção e projeção de demandas ou no empréstimo de categorias em repertórios discursivos consolidados.
A implementação do CRCMOP desafiou a equipe, pois o contexto do desastre demandou um trabalho cuidadoso e paciente de negociação e entrada no território e uma aprendizagem rica junto às comunidades atingidas que levou a adaptações substantivas no desenho original da tecnologia participativa. Os ajustes introduzidos demandados pela implementação tornaram evidente a importância das dimensões cognitivo-simbólica e socio-institucional para entender as dificuldades da participação. Tais ajustes fizeram das oficinas de capacitação não apenas instâncias de treinamento para o uso da tecnologia ou de debate sobre questões eventualmente associadas a sua implementação, mas de conhecimento e tematização de problemas. Com base nas dinâmicas das oficinas e dos materiais preparados para informar a deliberação, as lideranças passaram a trabalhar coletivamente as questões discutidas dentro de suas próprias comunidades, estimulado a construção coletiva de problemas e a formulação de propostas. A paulatina consolidação de temas e propostas, conforme mostrado na matriz de resolutividade, orientou o trabalho do CRCMOP para a identificação das "portas em que bater" e, posteriormente, na articulação entre as CTs da FR e as oficinas, estimulando a interações sócio-institucionais, quer dizer entre atores e os diagnósticos de seus problemas e demandas, de um lado, e as instâncias institucionais interessadas em transformar essas demandas em ações, de outro. Não sustentamos aqui argumentos a respeito das eventuais virtudes de CRCMOP, nem avaliamos substantivamente seus resultados, antes sistematizamos nossa reflexão sobre a experiência de sua implementação porque com ela aprendemos e essa aprendizagem nos parece cognitivamente valiosa.
Não ignoramos que há interesses de vulto em jogo no desastre e sua gestão, no âmbito do mercado e do Estado, e seria ingênuo imaginar que a participação das comunidades na escala territorial observada possa se desempenhar como um contrapeso nesse nível macro. Não é esse o sentido do argumento aqui exposto. Contudo, seria equívoco de consequências lamentáveis para a população atingida assumir que as deficiências nas ações de reparação e indenização no plano local, bem como a atuação dos agentes associados à sua implementação, são mera derivação desses interesses "vultosos". O desencontro de interesses que aqui esperamos ter iluminado obedece a outros motivos passíveis de serem contornados - que envolvem atores posicionados em escalas institucional e territorialmente menores.
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Recebido em: 07/10/2019
Aprovado em: 26/12/2019
Agência de fomento: Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA), no âmbito da chamada 6/2016, “Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce”.
Agradecemos o trabalho valioso realizado por Ana Paula Galdeano, Fernando Peres Rodrigues, Larissa Galdino de Magalhães Santos e Monnique G.Malta Cardoso, indispensável para a experiência de implantação da tecnologia participativa que informa este artigo, bem como as críticas e sugestões de Gisela Zaremberg, Marcela Torres e dos colegas vinculados ao projeto durante o Seminário CRCM, realizado em Porto Alegre/RS em 9 e 10 de setembro de 2019.
1 Reciprocamente, nesses processos também são desenvolvidas capacidades estatais para lidar com tais demandas A literatura de movimentos sociais e o neo-institucionalismo histórico tem contribuído significativamente para a nossa compreensão de ambas as dimensões.
2 Ver nota de rodapé 1.
3 Para a nossa posição nesse debate, ver (Lavalle et al., 2019; Lavalle & Szwako, 2015).
4 Para utilizar a fórmula conhecida de Offe (1989).
5 A chamada foi orientada ao "Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce".
6 Esse é caso dos povos indígenas com longo histórico de negociação com agentes públicos e privados, precisamente em torno de pautas de uso e preservação de recursos naturais. Para uma descrição da atualização desse histórico de negociação no caso do desastre do Rio Doce, ver Silva, S. J. (2019). Quando participar é resistir: Os Tupinikim e Guarani no contexto do Desastre no Rio Doce. Paper apresentado no Encontro da Rede de Pesquisa ComRioComMar, UNISINOS, Porto Alegre.
7 Para mais detalhes ver: https://www.samarco.com/programs / https://www.fundacaorenova.org/sobre-o-termo/
8 São eles: a Diretoria Executiva, o Conselho de Curadores, o Conselho Consultivo e o Conselho (Conectas, 2018, p. 10).
9 Presidido por Representante indicado pelo Ministério do Meio Ambiente, no caso o Ibama.
10 O TAC Governança alterou não só composições da estrutura organizacional interna da Renova, como instituiu instância Comissões Locais, Câmaras Regionais - de índole participativa -, um Fórum de Observadores e fortaleceu o papel das assessorias técnicas no intento de conferir centralidade ao Cidadão atingido (MPMG, 2018). Para uma avaliação das limitações do TAC governança ver Losekann e Milanez (2018).
11 Essas áreas se encontram presentes em pelo menos 9 dos 42 programas da Renova.
12 Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Escola de Administração Pública de São Paulo - Fundação Getúlio Vargas.
13 Para acessar esses relatórios, veja www.priorize.net,
14 Descrições detalhadas podem ser consultadas em Leirner (2011; 2013a; 2013b; 2013c).
15 A rigor, isso permite ainda aferir porcentagem de participação e taxa de renovação de pleitos.
16 Iniciavam naquele momento as votações em Guriri (São Mateus), Jacaraípe (Serra) e SINDIPESMES (Vitória).
17 Os gráficos a seguir apresentam 6 categorias temáticas selecionadas dentre as 13 existentes no total.
18 As oficinas realizadas até o momento foram: Reconstituição, consequências e perspectivas (Julho/ 2018), Saúde (Novembro / 2018), Meio Ambiente (Março / 2019), Trabalho e Renda (Junho / 2019) e Reformulação de texto-proposta (Outubro de 2019).
19 Para tal fixamos asoma acumulada de todos os votos dividida pela soma acumulada todas propostas no tempo ao valor 1, ou 100%. Demais taxas voto proposta assumem valor em relação a essa baliza.
20 Taxa de convergência TC ago = 1,17/2,25 = 0,52
Taxa de convergência TC Jan = 21,97/0,45 = 48,82
TCago/TCJan = 93,88
21 Tendo em vista os resultados obtidos, dividimos o quadrante em torno das medianas desenhando assim um arcabouço de referência comum a votação como um todo..
22 A oficina ocorreu em outubro de 2019, com o título: "Para além de dizer não: como construir mudanças? Elaborando nossas propostas para abrir portas".