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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.20 no.47 São Paulo jan./abr. 2020
ARTIGOS
CRAS e intervenção psicopolítica: os terreiros como lugar de pertença, acolhimento e resistência política
CRAS and psychopolitic intervention: the terreiros as a place of belonging, reception and political resistance
CRAS y la intrevencion psicopolitica: los terreiros como un sitio de pertenencia, acogimento y resistencia politica
CRAS et intervention psycho-politique: les terreiros comme lieu d'appartenance, de bienvenue et de resistance politique
Marcela de Andrade Gomes
Professora de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, coordenadora da linha de pesquisa "Psicanálise, Políticas Públicas e Direitos Humanos" vinculada ao NEMPsiC (Núcleo de Estudos sobre Migrações, Psicologia e Culturas) / marcela.gomes@ufsc.br
RESUMO
Este artigo visa narrar uma intervenção realizada por um CRAS da cidade de Florianópolis (SC), em parceria com a universidade, junto aos terreiros localizados no território de abrangência deste serviço. A partir da noção de territorialização e do uso da observação participante, realizamos uma intervenção aqui denominada de psicopolítica durante 1 ano junto a estes espaços, o que nos levou a compreender o terreiro como um lugar de calor, pertença, acolhimento e luta política. Esboçamos neste manuscrito a ideia de que o terreiro favorece uma conexão afetiva e política entre seus membros, protegendo e revitalizando a identidade negra e a cosmovisão afrocentrada, operando como resistência à hegemonia colonial, eurocentrada, branca e racista. Apostamos na ideia de que a psicologia se faz política quando cria intervenções que sejam combativas às desigualdades sociais, atuando de forma criativa e inventiva na potência de existir e expandir os sujeitos singulares e coletivos.
Palavras-chave: CRAS; Terreiros; Identidade coletiva.
ABSTRACT
This article aims to narrate an intervention carried out by a CRAS (Social Assistance Reference Center) in the city of Florianópolis - SC (Brazil) in partnership with the university, with the terreiros located in the territory of this service. From the notion of territorialization and the use of participant observation, we carried out an intervention referred to as psychopolitics for 1 year, which led us to understand the terreiro as a place of warmth, belonging, reception and political struggle. In this manuscript, we'll discuss the idea that the terreiro favors an affective and political connection between its members, protecting and revitalizing black identity and the Afro-centered worldview, acting as a resistance to the colonial, Eurocentric, white and racist hegemony. We believe that psychology becomes political when it creates interventions that are combative to social inequalities, acting in a creative and inventive way in the potential power to exist and expand the singular and collective subjects.
Keywords: CRAS; Terreiros; Collective Identity.
RESUMEN
Este artículo relata una intervención realizada por un CRAS de la ciudad de Florianópolis (SC) en asociación con la universidad, junto a los terreiros ubicados en el territorio de cobertura de este servicio. A partir del uso de la observación participante, realizamos una intervención aquí denominada de psicopolítica durante un año junto a estos espacios, lo que nos llevó a comprender el terreiro como un lugar de calor, pertenencia, acogida y lucha política. En este manuscrito esbozamos la idea de que el terreiro favorece una conexión afectiva y política entre sus miembros, protegiendo y revitalizando la identidad negra y la cosmovisión afrocentrada, operando como resistencia a la hegemonía eurocentrada, blanca y racista. Apostamos en la idea de que la psicología se hace política cuando crea intervenciones que sean combativas a las desigualdades sociales, actuando de forma creativa e inventiva en la potencia de existir y expandir los sujetos singulares y colectivos.
Palabras-clave: CRAS; Tereiros; Identidad colectiva.
RÉSUMÉ
Cet article vise à raconter une intervention réalisée par un CRAS dans la ville de Florianópolis (SC), en partenariat avec l'université, aux terreiros situés sur le territoire couvert par ce service. A partir de la notion de territorialisation et d'utilisation de l'observation participante, nous avons réalisé ici une intervention appelée psychopolitique pendant 1 an à côté de ces espaces, qui nous a amenés à comprendre le terreiro comme un lieu de chaleur, d'appartenance, d'accueil et de lutte politique. Nous avons souligné dans ce manuscrit l'idée que le terreiro favorise un lien affectif et politique entre ses membres, protégeant et revitalisant l'identité noire et la vision du monde afro-centrée, agissant comme une résistance à l'hégémonie coloniale, eurocentrique, blanche et raciste. Nous parions sur l'idée que la psychologie devient politique lorsqu'elle crée des interventions combatives aux inégalités sociales, agissant de manière créative et inventive dans le potentiel d'exister et d'élargir les sujets singuliers et collectifs.
Mots-clés: CRAS; Terreiros; Identité collective.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo relatar uma experiência oriunda de um projeto de extensão que foi desenvolvido junto a um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) na cidade de Florianópolis (SC). Este projeto emergiu de uma prática de estágio realizada por estudantes do Curso de Psicologia em 2015, na qual constatamos um distanciamento entre a atuação do CRAS e os terreiros1 que ocupam, de forma significativa, o território de abrangência deste serviço, habitado por quase 50 mil habitantes. Território este localizado na região dos morros centrais da cidade de Florianópolis, atravessado por diversas vulnerabilidades sociais, constituído pelas facções, milícias e fortes mobilizações comunitárias.
A partir do nosso trabalho de territorialização junto a estes espaços, debateremos neste artigo os conceitos de comunidade e território, bem como desenvolveremos o argumento de que os terreiros realizam um trabalho intersubjetivo junto aos seus frequentadores, podendo se configurar como um espaço de pertença, acolhimento e resistência política.
A formação de espaços coletivos que favoreçam a potencialização dos sujeitos é um dos objetivos da Proteção Social Básica, tal como aponta a Política Nacional de Assistência Social (2004). Enxergamos nos terreiros uma potência de criar um trabalho inter e transdisciplinar (Passos & Barros, 2000) por envolver diferentes lócus de produção de saberes: o terreiro, a psicologia e o serviço social. Além disso, encontramos nestes espaços um entrelaçamento entre grupo, afetividade, saúde mental e cidadania.
Este artigo será iniciado com o item que contextualiza e justifica nossa escolha de atuar junto aos terreiros; em seguida, debateremos os conceitos de comunidade e território que sustentaram este trabalho; por fim, apresentaremos 2 reflexões: (a) A ideia de que o terreiro pode se configurar como uma lugar de pertença e acolhimento que protege e revitaliza a identidade afrocentrada; (b) A aposta de que o terreiro pode se delinear como um lugar resistência política onde a hegemonia eurocentrada, colonialista e racista é debatida, desnaturalizada e combatida.
Compreendemos que a relevância social deste trabalho se faz presente na medida em que esta intervenção psicopolítica esteve voltada a um grupo social que se encontra multiplamente segregado pela cultura hegemônica por sua condição de raça, classe, território e religião. Além disso, há poucos relatos de trabalhos dos CRAS junto a estes grupos sociais- dado objetivado pela ausência de trabalhos sobre este tema na psicologia nos principais indexadores desta área-, revelando um certo distanciamento entre a Proteção Social Básica e um dos grupos prioritários destacado nas principais políticas públicas brasileiras, em especial, a de Assistência Social e de Igualdade Racial. Cabe aqui destacar também que, atualmente, temos aproximadamente 33 mil psicólogas(os) atuando no SUAS (Oliveira, 2012, 2017), revelando a importância de refletirmos sobre a nossa formação acadêmica e prática profissional neste contexto de atuação.
Por que os terreiros?
A invisibilização das chamadas Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (CTMAs) é um dado histórico no cenário brasileiro pois, como aponta o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (SEPPIR, 2013), há uma ausência de levantamentos e dados oficiais sobre essa parcela da população brasileira em nível federal, resultado de um processo de estigmatização e exclusão da cultura africana historicamente estruturado pelo racismo. Essa invisibilização contribui para o não atendimento, pelas políticas públicas de modo geral, direcionado a essa população, favorecendo a perpetuação dos processos de exclusão, segregação e violação dos direitos humanos destes segmentos das população.
O racismo, de acordo com Schucman (2014b), é todo e qualquer fenômeno que "justifique as diferenças, preferências, privilégios, dominação, hierarquias e desigualdades materiais e simbólicas entre seres humanos, baseado no conceito de raça" (p. 85), manifestando-se de forma tanto individual quanto institucional. O primeiro se define por um conjunto de práticas raciais realizadas nas relações interpessoais; o segundo, se configura por meio de "mecanismos de discriminação inscritos no corpo da estrutura social, e que funcionam mesmo sem a intenção dos indivíduos" (p. 86), estabelecendo-se nas instituições e perpetuados pelos grupos sociais dominantes.
Conforme o supracitado Plano Nacional (SEPPIR, 2013), as CTMAs são definidas como grupos que compartilham valores e uma cosmovisão oriundos do continente africano que são perpetuados nos atuais territórios brasileiros e na vivência comunitária. De acordo com este documento, esta população é predominantemente feminina, negra, recebe até 2 salários mínimos e é beneficiada pelo programa Bolsa Família; ou seja, trata-se de um dos públicos alvos da Proteção Social Básica (Política Nacional de Assistência Social - PNAS, 2004).
Estes dados revelam os efeitos do processo de colonização e escravidão que subalternizou os povos africanos, provocando a diáspora negra que se expressa na negação e rechaço dos direitos e valores civilizatórios dos povos tradicionais, gerando situações de vulnerabilidades e sofrimento psíquico na medida em que engendram aquilo que alguns autores têm denominado de "descentramento existencial" nos povos de origem africana (Alves, Jesus, & Scholz, 2015).
Dessa forma, compreendemos que toda e qualquer vulnerabilidade configura-se como um processo psicossocial na qual torna-se inviável dicotomziar a dimensão subjetiva das condições materiais concretas de existência. Assim, neste trabalho optamos por utilizar o termo "vulnerabilidades psicossociais" para nos referir aos efeitos psíquicos das relações sociais, econômicas e políticas que atravessam a construção das identidades singulares e coletivas. Tal como nos aponta Oliveira (2012), um dos focos de atuação do SUAS está no acolhimento dos danos psicológicos potenciais decorrentes da violação de direitos.
Estes dados supracitados do Plano Nacional (SEPPIR, 2013) denunciam o processo histórico brasileiro escravocrata que, violentamente, unificou a raça negra com a pobreza, localizando esta parcela da população em uma posição social de extrema vulnerabilidade, já que é atravessada pelas questões de raça, etnia e classe social deslegitimadas na cultura hegemônica, tornando-se alvo de múltiplas formas de opressão, sofrimento e violação de direitos. Conforme Schucman (2014 a, 2014b), a raça foi utilizada para justificar a exploração econômica, servindo de substrato para sustentar ideologicamente o sistema colonialista, imperialista e escravocrata, vabilizando a perpetuação de um sistema de privilégios, hierarquias e relações de poder, o racismo. O racismo estrutura a inacessibilidade dos negros aos recursos materiais e simbólicos da sociedade até os dias atuais.
Os terreiros, ao longo da história brasileira, foram se configurando como um espaço de proteção da identidade negra, de fortalecimento da cosmovisão das religiões de matriz africana e de conexão afetiva entre sujeitos que vivenciavam- e vivenciam- inúmeras formas de segregação material e simbólica no cotidiano das cidades e do campo.
Como nos aponta a tese de Tramonte (2001), a emergência dos terreiros na cidade de Florianópolis, quando comparada com as regiões sudeste e nordeste, veio de forma mais tardia no Brasil (década de 40). Até o final do século XVIII, a região de Desterro- atual cidade de Florianópolis- vivia, basicamente, sob a economia de subsistência, apresentava uma baixa densidade populacional, era desprovida de riquezas, de mercado e de interesses político-econômicos. Isto teve como desdobramento um menor fluxo do tráfico negreiro do que em outras áreas do país- hoje, Florianópolis conta com, em média, 14% de negros/pardos auto-declarados (IBGE, 2010), ensejando o mito racial de que "não há negros em Florianópolis".
Como nos aponta Schucman (2014b), no Brasil, mesmo com a presença de notórias evidências que apontam para o racismo como um dos principais produtores das desigualdades sociais, o racismo brasileiro tem a especificidade de ser "velado e sutil" (p. 86), fazendo operar o mito da democracia racial que funciona como uma arma ideológica para evitar conflitos e dificultar que a raça se torne um princípio de identidade coletiva e unificadora de lutas políticas, obstruindo a possibilidade da identidade se configurar em política na perspectiva descolonial (Mignolo, 2008). Para este autor, as identidades construídas pelo discurso europeu moderno pautam-se em perspectivas essencialistas e fundamentalistas no que tangem, principalmente, ao gênero e raça, ou seja, se constituíram em políticas de identidades raciais e patriarcais para perpetuar o sistema capitalista.
Conforme Mignolo (2008), "a matriz racial de poder é um mecanismo pelo qual não somente as pessoas, mas as línguas e as religiões, conhecimentos e regiões do planeta são racializados" (p. 293), fazendo a identidade branca, ocidental e europeia ser superior "ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero) e expeli-los para fora da esfera normativa do real" (p. 291).
Ainda de acordo com Mignolo, a forma que se tem hoje para desnaturalizar estas políticas de identidades é transformá-las em identidades políticas, fazendo operar a interpretação descolononial que significa aprender a desaprender estes modelos de inteligibilidades racistas, patriarcais e eurocêntricos, que vem negando a humanidade em determinados corpos e povos.
No decorrer da execução do nosso projeto de extensão, fomos percebendo que os terreiros desempenham um papel tanto político (Rancière, 1996, 2011, 2012) - ao fazerem resistência à cultura eurocentrada, colonial e racista- como também realizam uma função de acolhimento psíquico (Silva, 2005) às demandas subjetivas e familiares de seus frequentadores. Assim, os terreiros foram sendo percebidos por nós como um espaço privilegiado de intervenção já que muitos de seus frequentadores são pessoas que sofrem a precarização das condições de vida- desemprego e informalidade, violências, fragilização dos vínculos sociais e familiares, produção e reprodução da exclusão- ou seja, são sujeitos expostos às diversas situações de riscos e vulnerabilidades, fruto de um processo histórico de dominação no qual a população negra e pobre encontra-se mais vulnerável.
Em linhas gerais, o conceito de "vulnerabilidade social" é entendido pela Política Nacional de Assistência Social como as situações que fazem com que famílias e indivíduos se encontrem impedidos de acessar algum direito social, tendo comprometida a garantia de sua condição de cidadania. Em síntese, como apontam Cruz e Guareschi (2012), a noção de vulnerabilidade tem a pretensão de ao mesmo tempo incorporar e superar o conceito de pobreza, compreendendo-a como um processo no qual estão presente fatores econômicos precários que favorecem o desencadeamento de riscos sociais.
Um dado interessante apresentado na pesquisa de Tramonte (2001) é que, no início do século XX, os terreiros eram buscados pelas famílias de baixa renda que não podiam contar com os recursos da ciência e da medicina ocidental. Ao mesmo tempo em que temos uma perseguição à religião de matriz africana oriunda da igreja católica e da medicina ocidental naquele momento histórico, é justamente este segmento populacional (famílias negras e pobres) - podendo ser conceitualmente entendido como o "sem-parte"2 sob a perspectiva de Rancière (1996) - que acaba buscando os terreiros como uma forma de pertença e resistência frente aos ataques aos modos de vidas marginalizados pela hegemonia racista e eurocentrada.
Tomadas por estas reflexões, intentamos por meio deste projeto de extensão mapear, conhecer e integrar as CTMAs presentes neste território de abrangência deste CRAS- foco da intervenção relatada neste artigo-, buscando qualificar a prestação socioassistencial deste serviço público junto a estes usuários. Apostamos na ideia de que este tipo de trabalho psicopolítico, ainda que de forma tímida, possa servir para a construção de futuras políticas públicas e programas sociais destinados a esta parcela população brasileira, contribuindo na luta pela garantia de direitos da população negra oriunda de religiões de matriz africana e pela redução das desigualdades étnicas e raciais.
Método de Intervenção
O projeto teve duração de um ano e foi elaborado e executado pela seguinte equipe: uma psicóloga e uma assistente social do CRAS; uma aluna do Curso de Psicologia que era bolsista do projeto e pela autora deste artigo. No decorrer do projeto, a equipe inteira se reunia uma vez por mês (CRAS e universidade) e a autora deste artigo- que ocupava a função de coordenadora do projeto junto com a psicóloga do CRAS- e a aluna bolsista se reuniam uma vez por semana. As atividades práticas (visitas, derivas pelo território, rodas de conversas, participação nos dias "de gira"3, nos seminários, etc.) eram executadas por todas da equipe a depender das agendas das integrantes.
A partir da perspectiva do método da observação participante, fomos traçando as nossas ações que eram constantemente avaliadas e (re)planejadas semanalmente. Conforme a leitura de Velho (2005), a observação participante busca acompanhar as relações sociais e seus constantes processos de reinvenções, trazendo para estas olhares que se desloquem do senso comum e da visão estereotipada dos fenômenos sociais na tentativa de compreender os densos e ricos significados que atrelam as pessoas e os grupos sociais. Nosso intuito foi, tal como discorre Sawaia (1995), percorrer pela intimidade e subjetividade do território, nos aproximando da dimensão humana que se inscreve em todo e qualquer contexto espacial.
Visitamos um total de 14 terreiros/casas de santo, sendo que em 8 deles conseguimos ter um contato mais aprofundado, fortalecendo o vínculo entre o CRAS e estes espaços. Em cada uma destas visitas, levávamos o que denominamos de "kit terreiro" que era composto por materiais informativos sobre os programas, serviços e benefícios do CRAS; bem como por materiais das políticas públicas que abordavam o tema das comunidades de matriz africana, o racismo e elementos da própria PNAS (2004).
Em cada visita, partíamos da concepção de territorialização entendida como uma escuta territorial (Broide & Broide, 2015) que busca mapear as forças vitais de uma determinada comunidade, forças estas de caráter social, psicológico e político (Lara & Ribeiro, 2009). A escuta territorial busca mapear os fios de ancoragem que sustentam o sujeito a persistir vivendo, mesmo em meio a tantas vulnerabilidades, crises, atrocidades e violências. A escuta territorial busca rastrear as ancoragem simbólicas de uma comunidade, buscando mapear as relações afetivas, transferenciais e de identificação4 entre seus membros (Broide & Broide, 2015).
Inspiradas em trabalhos comunitários de alguns autores (Broide & Broide, 2015; Gomes et al., 2019; Lara & Ribeiro, 2009; Rosa, 2016), partíamos da ideia de que derivar o território na busca de observar as relações materiais e intersubjetivas em cada um destes espaços nos possibilitava aproximar destes sujeitos de modo a construirmos um vínculo transferencial de respeito, reciprocidade e dialogia.
Nesse sentido, não sabíamos o que esperar de cada visita: se iríamos ser recebidas, de qual maneira e com qual profundidade iria, ou não, se construir esta relação transferencial; menos ainda tínhamos ideia das reverberações e consequências destas visitas. A partir do primeiro contato quando apresentávamos nossa proposta de trabalho, lançávamos a ideia de realizarmos uma roda de conversa entre o "povo de terreiro" e nós (CRAS e universidade). A partir desta roda de conversa, tentávamos pensar de forma dialógica qual seria o próximo passo de nossa ação, afinal, trabalhávamos na noção do trabalho junto à comunidade e não na e para a comunidade (Campos, 1996; Sawaia, 1996). Nossa aposta esteve calcada no pressuposto de que o saber e desejo coletivo de cada espaço seriam os elementos condutores dos caminhos subsequentes de nossa intervenção.
Desse modo, a partir deste contato inicial, o nosso trabalho poderia se esgotar ali ou, como aconteceu nestes 8 terreiros, desta conversa desmembraram-se convites para participar de dias de "gira"; de ações comunitárias desenvolvidas pelos próprios terreiros; de encontros com os sacerdotes e iniciados para contarem sobre a história daquele terreiro e a relação construída com a comunidade; entre outras parcerias de trocas e diálogos entre CRAS, universidade e terreiros.
Enfim, as tentativas de aproximação e os efeitos destas foram múltiplos e não caberia descrevê-las em sua totalidade no espaço deste artigo5. Por ora, cabe ressaltar que o uso do diário de campo e da observação atenta às relações de amizade, de disputas e dos "egos de terreiros"- tal como descreve um de nossos participantes, referindo-se aos tensionamentos e disputas travadas entre os diferentes terreiros neste território- foram cruciais para a condução deste trabalho que denominamos de psicopolítico, pois, "é a escuta que nos permite mapear estes fios que se embrenham pelo território físico e psíquico" (Broide & Broide, 2015, p. 30) de uma determinada comunidade, fios estes que ancoram a produção dos sujeitos coletivos e singulares.
Paralelamente ao trabalho de territorialziação no próprio espaço de abrangência deste CRAS, fomos tecendo parcerias interinstitucionais e inserindo o nosso projeto na rede que atua com os povos de terreiros da cidade de Florianópolis. Assim, participamos das reuniões do Fórum Municipal de Religiões Africanas de Florianópolis; fizemos contato com a SOS Racismo6 e outros núcleos de trabalho inseridos nas universidades que possuíam projetos de pesquisa e extensão sobre o tema; apresentamos nosso projeto na rede SUAS- sendo que um dos principais impactos é que este projeto foi, posteriormente, replicado em outro CRAS da cidade- e, a todo momento, éramos convidadas pelos próprios terreiros ou por outros atores institucionais para apresentar os dados, desafios e conquistas do nosso projeto.
Um indicador interessante em termos de resultados alcançados é que fechamos o projeto realizando I Encontro de Povos de Terreiros desta comunidade, momento em que o CRAS articulou e reuniu os líderes religiosos de todos estes terreiros participantes deste projeto com a ideia de que, a partir de então, estes sujeitos possam construir de forma autônoma suas conexões, lutas e parcerias que venham promover seus direitos e proteger sua identidade e cosmovisão afrocentrada. Neste momento, entendemos que a nossa função enquanto CRAS e universidade se esgotaria ali pois partíamos da ideia da autonomia e protagonismo comunitário ou, como no dizer de Lara e Ribeiro (2009), também apostamos na ideia de que o êxito de um trabalho comunitário está exatamente quando o coletivo prescinde do nosso trabalho de psicólogos(as). Assim, ao término da nossa intervenção, compreendemos que o nó comunitário entre CRAS e terreiros havia se atado; agora caberia aos terreiros se organizarem conforme seus desejos e disponibilidades sociais, afetivas e institucionais.
Comunidade e território: algumas reflexões teóricas
A partir da compreensão de que o território se define para além das questões geográficas, entendendo a dimensão simbólica e psicossocial inerente a todo e qualquer espaço temporal (Broide & Broide, 2015; Campos, 1996; Lara & Ribeiro, 1999; Rosa, 2016; Santos, 2006; Sawaia, 1995;), entendemos que os terreiros podem se configurar como um importante lugar na construção do sentimento de pertença comunitária, configurando-se como um espaço de acolhimento aos diversos tipos de sofrimento; também, apostamos na ideia de que os terreiros se apresentam como um lugar que fortalece aquilo que Sawaia (1995) definiu como identidade democrática-solidária, revelando-se como um espaço potente de resistência política frente à cultura hegemônica racista na medida em que problematiza a centralidade europeia, branca e cristã, buscando legitimar a cosmovisão afrocentrada neste espaço comunitário.
Nossa compreensão de território se aproxima do conceito de "espaço" elaborado por Santos (2006) que é compreendido como um campo de forças cuja formação é desigual, sendo produto e produtor das formas representativas das relações sociais do passado e presente de um determinado contexto. Assim, o território é compreendido como uma unidade espaço-temporal em que "a utilização do território pelo povo cria o espaço" (Santos, 2006, p. 122), sendo este constituído pelas relações de poder de seus múltiplos atores, revelando-se como uma formação econômica e social de acordo com as necessidades e interesses de cada grupo social.
A partir deste autor, o território pode ser compreendido como um processo constante de materialização da subjetividade onde não é possível dicotomizar a relação espaço-tempo e conteúdo-forma. Somada a esta visão, entendemos o território como um rizoma composto por um entrecruzamento de linhas e fluxos de força que se tencionam (Romagnoli, 2009), se chocam e se atravessam, fazendo com que estes espaços sejam marcados pelo inusitado, dinamismo, disputas e devires, onde história e subjetividade, memória e afeto, identidades e diferenciações se fazem presentes.
Ao pensarmos no conceito de território neste projeto de intervenção- ou seja, os terreiros da região central da cidade de Florianópolis-, nos demandou, necessariamente, refletir sobre a forma pela qual o processo de urbanização ocorreu nesta cidade. A perspectiva das formações urbanas proposta por Harvey (2012) nos auxilia a compreender a segregação dos terreiros "de morro"7 - diferente dos "terreiros de asfalto"- quando defende a ideia de que a cidade também virou mercadoria, arguindo que a urbanização é reflexo da articulação entre dinheiro, produto e população. Sawaia (1995) afirma que o ambicioso projeto do iluminismo- calcado no tripé ciência, razão e cidade- fez emergir artimanhas tiranas e perversas na qual "a ópera urbana se transforma em show de horror" (p. 20), revelando-se como um espaço segregador e excludente de alguns grupos sociais.
Assim como ocorreu em outras regiões brasileiras, os morros da cidade de Florianópolis foram sendo ocupados por imigrantes- em especial, do interior do estado e da região sul do Brasil- que buscavam melhores condições de vida (Gomes, 2017; Tramonte, 2001). Como afirma Harvey (2012), as "cidades emergiram da concentração social e geográfica do produto excedente" (p. 74), por este motivo, o autor defende que a urbanização é um fenômeno de classe.
Também podemos afirmar que, além de um fenômeno de classe, a cidade é um fenômeno de raça- pautada na ideologia dominante (Chauí, 2016) e nas estratégias de branqueamento da população (Schucman, 2014a) - e de religião. Uma das queixas dos terreiros é de não poder usufruir os espaços públicos para a expressão de sua cosmovisão sob o risco de serem punidos pela polícia e rechaçados pela população.
O fato de não conseguirem o alvará da prefeitura tão facilmente como conseguem os templos evangélicos e as igrejas católicas; o enfrentamento do preconceito quando realizam uma festividade no espaço público e a perseguição policial sobre um ritual afro da qual fica isenta uma procissão católica, entre outros exemplos escutados em nosso trabalho de campo, são indicadores de que o território urbano se apresenta interpelado por uma cultura hegemônica capitalista e neoliberal (Harvey, 2008) e, também, racista e discriminatória no campo religioso. Como nos diz um iniciado que conversamos durante este nosso trabalho, "tenho que escutar que além de preto, sou macumbeiro".
Dessa forma, é necessário superarmos a tradicional e ingênua visão de comunidade como um bem coletivo vivenciado por relações harmônicas e igualitárias e, fundamentalmente, passarmos a compreendê-la como um espaço de antagonismos onde diferentes linhas de força disputarão espaço, poder e legitimidade (Broide & Broide, 2015; Campos, 1996; Lara & Ribeiro, 1999; Rosa, 2016; Sawaia, 1995).
Assim, temos que no processo de urbanização - no qual, como nos diz Harvey (2012), todos querem um espaço (de direitos, geográfico e de reconhecimento) - a ocupação territorial é de caráter mercadológico e racista. A cidade, então, passa a ser composta por estratégias e dispositivos de governamentalidade que, conforme Foucault (2009), buscam homogeneizar determinados modos de experiência e subjetivação que enfraquecem as comunidades tradicionais e reforçam a lógica excludente de modernização.
Este fenômeno também se presentificou quando um sacerdote de uma casa de Candomblé conta que seu terreiro sofre interrupções constantes da polícia "por causa do barulho" (pai de santo) - ao passo que os templos evangélicos e igrejas não são incomodados por este motivo-; ou quando uma líder religiosa de um terreiro de umbanda afirma que é uma luta política usar sua burca no cotidiano da cidade- conta que certa vez uma pessoa se levantou quando ela se sentou no assento do ônibus... "ela que perdeu... perdeu a oportunidade de pegar meu axé" (sacerdotisa religiosa). De uma forma irônica e lúdica, ela tenta driblar mais uma experiência de racismo e preconceito religioso que se mostra recorrente no espaço da urb.
Estas interpelações do poder estatal nestes espaços de religiões de matriz africana nos remete ao fértil debate realizado por Mbembe (2016) sobre soberania, política e sujeito. Mbembe defende a ideia de que a política é o trabalho da morte e a soberania o direito de matar. Questionando-se de que maneira os corpos na contemporaneidade são inseridos nas malhas do poder, o autor se interroga sobre quais condições o Estado soberano exerce o poder de matar, deixar viver ou expor à morte determinados grupos humanos produzindo formas de soberania que fabricam campos de mortes e perpetuam um constante estado de Exceção.
Neste tipo de dispositivo de governamentabilidade, chamada de necropolítica, o racismo surge como um vetor estruturante das políticas de violência, morte e extermínio das pessoas negras, destacando que "a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado" (p. 128), revelando um processo de desumanização e industrialização da morte, seja ela física ou simbólica, como fica denunciada na fala da iniciada que diz que é uma luta política cotidiana usar a burca na cidade8.
Em uma perspectiva semelhante a de Mbembe (2016), Branco (2014) destaca que a s atuais violências de Estado contra determinadas populações vão desde atos de guerra à descobertura da seguridade social - como é o caso da maior parte da população atendida pela rede pública brasileira, tal como é o CRAS. Nessa esteira, aponta que a violência de Estado nada mais é do que a aparição abrupta e intensa de seu fundamento: "O Estado e o crime de Estado são manifestações da própria razão de ser do Estado. Eles coabitam na paradoxal inter-relação entre legalidade e violência" (Branco, 2014, p. 10). Tem-se então, um Estado que atua sob o regime da necropolítica, operando entre a legalidade e a violência de forma racista, colonial e eurocentrada, violando as populações de religiões de matriz africana no cotidiano da cidade.
O eurocentrismo e colonialismo fazem com que o racismo se incorpore de forma pulverizada e institucionalizada nas malhas sutis e invisíveis do poder, localizando tudo que se atrela à cultura negra-africana como aquilo que está distante do almejado, idealizado e legitimado, sentindo-a como estranha e ameaçadora. Sob a ótica de Rancière (1996), a vida coletiva é, por condição, hierárquica e desigual, já que a partilha do sensível produz regimes sensíveis que organizam os modos de ver e de viver, tornando alguns grupos audíveis, sensíveis e visíveis enquanto outros inaudíveis, insensíveis e invisíveis. A partir desta leitura, o espaço comum é partilhado esteticamente de forma dissensual, onde determinados agenciamentos discursivos identitários e excludentes produzem um "sem-parte" nesta partilha.
O racismo inscreve profundas assimetrias étnico-raciais em que os não-brancos são discriminados em termos morais, éticos e estéticos. A colonialidade, compreendida como uma racionalidade moderna e imperial criada pela Europa ocidental para diferenciar e hierarquizar as raças com o intuito de justificar a dominação de diversos povos, instituiu um padrão mundial eurocêntrico que acaba por invisibilizar e rechaçar os valores, conhecimentos e práticas de povos tradicionais e da população negra: "o racismo institucional produz iniquidades no acesso a equipamentos sociais, provocando desigualdades nas formas de inserção e impactos perversos nas subjetividades de grupos racialmente oprimidos" (Alves, Jesus, & Scholz, 2015).
Operando na radicalidade oposta ao processo de desubjetivação da identidade negra e de religião africana, fomos compreendendo o terreiro como um território de conexão afetiva e política, servindo como um espaço de proteção e fortalecimento da cosmovisão afrocentrada.
Terreiro como lugar de pertencimento
Compreendemos que a formação de grupos se pauta por uma conexão identificatória e afetiva que favorece a construção de laços solidários e fortalecimento da identidade coletiva, colaborando com a construção de uma ética da existência, como descreve Nardi (2014), pautada no respeito às diferenças, no cuidado do outro e na reciprocidade; ou seja, uma ética da existência que funciona como um contra-poder (Chauí, 2016) frente aos avanços do modo de ser capitalista-neoliberal dos tempos contemporâneos.
Tomadas por um outro modo de sociabilidade durante as nossas inserções comunitárias, fomos nos apropriando dos terreiros como um lugar que cria um laço social e identitário que fomenta um sentimento de pertença, delineando-se como um "lugar de calor" definido por Sawaia (1995) como um espaço identitário não-segregacionista, um lugar de encontro e conexão que apazigua o processo de individualização e fragmentação impostos pela modernidade. Conforme a autora, os espaços "de calor" operam na lógica oposta do sistema capitalista na medida em que faz a cidade servir aos sujeitos como instrumento de vida, possibilitando a vivência coletiva emancipatória na qual estes sentem-se ouvidos e reconhecidos em seus direitos e subjetividades.
Conforme a autora, alguns espaços podem se configurar como um "bom encontro", no sentido de Espinosa, pois provocam as paixões alegres e o sentimento de vivacidade (Sawaia, 2009). Os "bons encontros" favorecem o aumento da potência de vida, expandindo as possibilidades de ser e estar no mundo. Assim, compreendemos que os terreiros podem se configurar como uma intercorporeidade subjetiva que favorece os laços afetivos e o protagonismo coletivo, formando um espaço de acolhida, onde calor e cidadania se misturam: "o que produz calor do lugar é a segurança e uma forte dose de sentimento de sentir-se gente entre os pares" (Sawaia, 1995, p. 22), tornando estes espaços um lugar de referência para reivindicação de direitos e se configurando como uma experiência de sobrevivência psíquica e social compartilhada.
Estes espaços de calor favorecem a formação de territórios comunitários que favoreçam a potencialização dos sujeitos e a elaboração de estratégias de enfrentamento diante dos impasses da vida. Alguns autores (Alves, Jesus, & Scholz, 2015; Mignolo, 2008) afirmam que a diáspora negra provocou rupturas ancestrais e identitárias dos povos de ascendência africana causadoras de inestimáveis sofrimentos. Se compreendemos que os modos de subjetivação advêm da cultura e que esta é um equipamento simbólico que traz referência, ancoragem e apoio na constituição do sujeito (Broide & Broide, 2015; Freud, 1996; Lacan, 1998), imaginamos que deva ser bastante sofrível e nefasto o rompimento cultural e ancestral que estes grupos vêm sofrendo há cinco séculos.
O descentramento existencial produzido nas subjetividades individuais e coletivas, por meio da distorção de sentimentos e da percepção de si, é ideologicamente construído para dificultar a construção de uma análise crítica sobre os efeitos da colonialidade nas relações de poder, de modo a contribuir com a manutenção das iniquidades civilizatórias, ou seja, com a negação da existência de diferentes ontologias, epistemologias e éticas do viver no mundo (Alves, Jesus, & Scholz, 2015).
A obrigatoriedade de trocar os nomes quando foram escravizados, a ausência da historicidade de suas tramas familiares, o rompimento com o idioma e com diversas práticas culturais e o distanciamento do espaço geográfico e simbólico produzem um constante rebaixamento de seus referentes culturais pela cultura na qual foram escravizados, gerando situações psicossociais de enfraquecimento identitário, baixa auto-estima, culpabilização e rebaixamento de sua origem ancestral (Alves, Jesus, & Scholz, 2015; Silva, 2005).
Outro ponto que foi nos chamando a atenção é que o terreiro se revela como um espaço de acolhimento às diversas crises que as famílias e sujeitos vivenciam ao longo de suas vidas. Como nos relata um pai de santo,
aqui parece um hospital dia... aparece gente o dia inteiro nos pedindo ajuda... você acha que a mãe procura quem quando percebe que o guri entrou no tráfico? Ou que a menina adolescente ficou grávida? Ou quando não aguenta mais apanhar do marido? Não é no posto de saúde, ou na delegacia, eles vêm aqui... aqui é um lugar de apoio para as nossas famílias... (Pai de Santo, terreiro de umbanda)
A partir da perspectiva civilizatória da religião africana, os orixás e os iniciados são entendidos como um grupo familiar (Barcellos, 2002; Zacharias, 1998). Dessa forma, o terreiro se torna um espaço afetivo- não sem contradições e conflitos- onde as pessoas buscam este espaço de calor (Sawaia,1995).
Inúmeros estudos apontam uma sólida relação entre o racismo e a violação da saúde mental das pessoas negras, pois a violência civilizatória colonial e racista produz marcas psíquicas nestes sujeitos (Silva, 2005) que vivem em constante estado de tensão emocional (Alves, Jesus, & Scholz, 2015). O racismo afeta a produção das subjetividades e identidades do "ser negro/a", que são submetidos a um processo de desvalorização constante, sofrendo o efeito do preconceito por meio de frases e gestos ambíguos (Ferreira & Camargo, 2011).
Em nossas derivas pelos terreiros, ficava visível que as questões físicas e psíquicas eram os principais motores que fizeram a pessoa buscar este espaço: dores, doenças, cirurgias, brigas familiares, ingresso no tráfico, uso excessivo de álcool e outras drogas, gravidez não planejada, traições, rompimentos amorosos, entre outros.
Notamos que o terreiro pode se configurar como um espaço que, por oferecer este suporte psíquico de valorização identitária, serve como um espaço de promoção de saúde mental às pessoas que sofrem cotidianamente as práticas perversas do racismo individual e estrutural. Nesse sentido, apostamos na ideia de que o terreiro se configura como este lugar de calor e conexão afetiva que auxilia as pessoas a lidarem com as vicissitudes da vida e, no caso das pessoas que sofrem o racismo de forma sistemática e cotidiana, lidar com este estado de tensão emocional que gera uma ambiguidade de seus sentimentos e da percepção de si mesmo.
Terreiro como lugar de resistência política
Nosso último ponto de análise consiste na ideia de que os terreiros além de se configurarem como um espaço territorial de pertença e acolhimento psicossocial, podem também se tornar um dispositivo de "subjetivação política". Este termo é definido por Rancière (2011, 2012) como algo que diz respeito às cenas, sujeitos e espaços que provocam uma reconfiguração na partilha do sensível ao provocar fissuras na lógica hegemônica. Em outras palavras, a subjetivação política ocorre quando as práticas sociais passam a ser problematizadas e desnaturalizadas, fazendo emergir novas formas de inteligibilidade e sensibilidade na partilha da vida coletiva. Conforme o autor, "os sujeitos políticos são potências de enunciação e de manifestação do litígio que se inscrevem como algo a mais, algo sobreposto, em relação a qualquer composição do corpo social" (Rancière, 2006, p. 377) produzindo atos disruptivos à ordem vigente.
Alguns terreiros que frequentamos promovem atividades cujo objetivo é trazer para a comunidade reflexões e problematizações sobre o racismo e a descriminação religiosa. A partir da realização de seminários, filmes, rodas de conversa com pesquisadores(as), iniciados, estudiosos(as) e pessoas da comunidade sobre a cultura hegemônica racista, colonial e intolerante, estes terreiros vem defender e revitalizar os paradigmas civilizatórios afrocentrados. A própria realização das "giras" ou outras práticas religiosas em espaços públicos promovem fissuras na ordem vigente já que estão ancoradas em cosmovisões e compreensões de vida, morte, natureza e sociedade contra-hegemônicas.
Na medida em que fomos participando destas atividades de caráter reflexivo e problematizador, passamos a compreender os terreiros também como um lugar potencial de resistência política, entendendo está sob a perspectiva de Marques e Máximo (2018), ou seja, "como uma polêmica capaz de intervir sobre as organizações perceptivas da realidade" (p. 43). A partir da leitura que estes autores fazem da obra de Rancière, a política é entendida como estética na medida em que está "impõe subversões à percepção social dominante por meio da produção de cenas de dissenso" (p. 25), entendendo a textura da experiência estética como definidora "da transformação política na partilha do sensível" (p. 67).
Em certa medida, estas atividades atuam contra a homogeneização das práticas sociais e modos de subjetivação da sociedade racista e capitalista (em geral, não se vende, paga ou consome nos terreiros), configurando uma outra forma de sociabilidade menos capitalista e, tal como aponta Sawaia (1995), mais democrático-solidária.
A partir de Chauí (2016), compreendemos que na medida em que falam das cenas de racismo e múltiplos preconceitos (classe, religião e território), os terreiros possibilitam circular o contra-discurso que opera na contramão da lógica hegemônica já que ele revela os andaimes da ideologia: "quando fazemos falar o silêncio que sustenta a ideologia, produzimos um outro discurso, o contra-discurso da ideologia, pois o silêncio, ao ser falado, destrói o discurso que o silenciava (Chauí, 2016, p. 247). Nas palavras de Rancière (1996), os não-contados nesta partilha "... só existem através das formas de manifestação pelas quais ele se faz contar" (p. 378), defendendo que a reconfiguração do sensível se faz na medida em que o "sem-parte" reivindica seu direito de voz e de lugar nesta partilha coletiva.
A ética neoliberal (Harvey, 2012) que se capilariza nas relações sociais é, de alguma forma, resistida neste território, onde o coletivo se unifica para proteger uma ancestralidade, combater o racismo e acolher as mazelas da vida humana. Conforme este autor, nossa atual sociedade conta com uma "ética neoliberal de intenso individualismo possessivo, e a correlata renúncia política às formas de ação coletiva" que se tornou padrão para a socialização humana. Nessa mesma esteira, Chauí (2016) destaca que neoliberalismo se reforça na mesma proporção dos desastres que engendra, atuando em uma lógica parasitária que busca esvair a democracia em sua forma política e social.
Sendo assim, o terreiro pode se configurar, em alguns momentos, como um sujeito político que produz uma reconfiguração estética na vida coletiva, inscrevendo no simbólico novas inteligibilidades e sensibilidades na partilha comum, fazendo operar uma outra racionalidade ético-afetiva na cidade (Sawaia, 1995). Dessa forma, o terreiro faz o "sem-parte" (negro, pobre e de religião afro) se tornar visível e audível em uma sociedade que, hegemonicamente, vive sob os princípios eurocentrados do branqueamento, do ocidentalismo, do colonialismo e do racismo.
Considerações finais
A partir de um relato de experiência, este artigo trouxe algumas reflexões teóricas e metodológicas sobre o trabalho da psicologia voltada para a atuação junto às comunidades de matriz africana. A partir do nosso foco de intervenção que foi aproximar o CRAS aos terreiros de uma determinada comunidade atravessada por múltiplas vulnerabilidades sociais e localizada na região central de Florianópolis, trouxemos à tona o debate sobre as perversas e sutis formas de segregação que vivem estes grupos por conta de sua condição de classe, raça, etnia, território e religião.
Por outro lado, buscamos ressaltar a potência do terreiro enquanto um espaço de calor e de acolhimento que favorece a proteção e revitalização da identidade negra e da religião de matriz africana. Possibilitando uma conexão afetiva e política entre seus frequentadores, o terreiro se revelou como um rico espaço de reinvenção da existência coletiva.
Em tempos de acirramento do capitalismo em sua atual faceta neoliberal, onde o individualismo e consumismo vem se intensificando de modo visceral, torna-se fundamental a formação de espaços coletivos que potencializam os sujeitos a expandir seus sentidos e ações em suas vidas por meio da conexão intersubjetiva com a alteridade. O terreiro, além de propiciar este vínculo identificatório que favorece o fortalecimento da identidade coletiva, também promove cenas dissensuais que vem problematizar a hegemonia eurocentrada, branca, ocidental, cristã e racista, atuando na construção de mecanismos democráticos no espaços da urb.
Com isso não queremos romancear este espaço como se não houvesse assimetrias e disputas de poder nestes territórios- teoricamente já argumentamos no início deste artigo que todo espaço coletivo é, por condição, desigual e assimétrico-; o que estamos defendendo é que, enquanto lugar de calor, de afeto, de pertença e de resistência política, os terreiros podem se configurar em espaços territoriais de bons encontros, conexões afetivas e militância política.
Entendemos que esta proposta de trabalho atua em uma perspectiva psicopolítica em que saúde mental e cidadania se interseccionam e favorecem o processo de legitimação e de garantia de direitos a uma população historicamente segregada, tanto em níveis materiais como simbólicos. Apostamos na ideia de que a psicologia se faz política quando provoca deslocamentos e desterritorializações na partilha do sensível, inscrevendo fissuras na cultura hegemônica e possibilitando a criação de novos modos do viver no e com o coletivo. Torna-se mister à psicologia contemporânea pensar em intervenções que sejam combativas às desigualdades sociais, atuando de forma criativa e inventiva apostando na potência de existir e expandir dos sujeitos singulares e coletivos.
Referências
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Recebido em: 24/04/2019
Aprovado em: 28/06/2019
1 Como foge do objetivo deste trabalho, não será realizado um debate sobre as possíveis definições e distinções acerca de "terreiro" e "casa de santo"; a depender da cosmovisão de cada espaço no qual visitamos, um destes termos era utilizado pelo "babalorixá", "sacerdote" ou "pai de santo". Assim, optamos em respeitar a nomenclatura utilizada em cada um destes espaços, trazendo para este texto ambas as expressões encontradas em nosso trabalho de campo.
2 Este conceito será desenvolvido no tópico "Terreiro como lugar de resistência política".
3 Dia de "gira" é um dos momentos de festa, celebração, sessão e/ou ritual- a depender da cosmovisão de cada terreiro ou casa de santo- onde se encontram os orixás, sacerdotes, iniciados e frequentadores da casa.
4 Transferência e identificação são conceitos chave na obra de S. Freud e temos os utilizado inspiradas em psicanalistas contemporâneos (Broide & Broide, 2015; Rosa, 2016) para compreender e intervir em trabalhos comunitários; ou seja, podemos pensar a relação transferencial e identificatória no sujeito tanto quando se apresenta de forma individual, assim como coletiva- como é o caso do trabalho junto às comunidades.
5 No período de um ano deste projeto, participamos de diversas atividades desenvolvidas por estes 8 terreiros, tais como: dias de gira e outros rituais; rodas de conversas; seminários; oficinas de música e culinária africana; ações comunitárias e a participação assídua no Fórum Municipal de Religiões de Matriz Africana.
6 A SOS Racismo é fruto de um projeto de extensão vinculado à Universidade Estácio de Sá da cidade de São José- localizada na grande Florianópolis- que presta atendimento jurídico e psicológico às vítimas do racismo.
7 A reflexão sobre a distinção entre "terreiro de morro" e "terreiro de asfalto" foi trazida na fala de um participante deste projeto.
8 Conforme os dados divulgados pelo disque 100 - canal do Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos em janeiro deste ano, em 2018 tivemos um aumento de 47% de denúncias vinculadas à chamada "intolerância religiosa" por este canal quando comparado com o ano de 2017, sendo que a maior parte das denúncias se referiam aos ataques às religiões de matriz africana. Um grave caso ocorreu em janeiro de 2019 quando seis homens armados invadem uma cerimônia de saudação a Oxalá em Camaçari (Bahia). Roubam as pessoas, as agridem verbalmente vinculando a religião ao demônio e espancam o babalorixá (líder religioso desta casa de candomblé). Para maiores informações: https://oglobo.globo.com/sociedade/denuncias-de-ataques-religioes-de-matriz-africana-sobem-47-no-pais-23400711.