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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.47 São Paulo jan./abr. 2020

 

ARTIGOS

 

Dança circular e política: inventando mundos

 

Circular dance and politics: inventing worlds

 

Danza circular y política: inventando mundos

 

La danse circulaire et de la politique: pour l'invention des mondes

 

 

Tatiana Siqueira TrindadeI; Adriane RosoII; Deisi Sangoi FreitasIII

IPsicóloga, mestre em Psicologia, especialista em Arteterapia / tatianastrindade@gmail.com
IIDoutora em Psicologia, docente no PPG em Psicologia (UFSM). Pós-doutora em Psicologia Social (Harvard University) e Pós-Doutora em Comunicação (UFSM). Bolsista em Produtividade do CNPq / adriane.roso@ufsm.br
IIIDoutora em Educação, docente no departamento de Metodologia de Ensino (UFSM). Pós-doutora em Educação (Universidad de Sevilla/Espanha) / deisisf@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se a refletir sobre possíveis entrelaçamentos da prática de danças com a política na interface com certas cosmovisões. Situando-se na área da Psicologia Social, a partir de uma abordagem crítica, discute-se a relação da dança com os paradigmas da ciência, a saber, paradigmas liberal capitalista, coletivista- totalitário e comunitário-solidário. Especificamente, sob o referencial de noção de política de Hannah Arendt, enfocaram-se as danças circulares como potênciapolítica. Conclui-se que as experiências das danças circulares movimentam possibilidades de visões de mundo, inventando formas de vivenciar a política, as danças e o mundo, uma vez que a política proposta por Arendt é produzida em conjunto, na pluralidade.

Palavras-chave: Psicologia social; Danças circulares; Visão de mundo; Política; Hannah Arendt.


ABSTRACT

This article proposes to reflect on possible interlacing of the practice of dances with the politics in the interface with certain worldviews. Situated in the area of Social Psychology, from a critical approach, it discusses the relation between dance and science paradigms as well as capitalist liberal, collectivist-totalitarian and communitary-solidary paradigms. Specifically with Hannah Arendt's notion of politics, the article focused on circular dances as a political power. Once the politics proposed by Hannah Arendt is jointly produced in plurality, it is concluded that the experiences of circular dances form possibilities of worldviews by inventing ways of experiencing politics, dances and the world.

Keywords: SSocial psychology; Circular dances; Worldview; Politics; Hannah Arendt.


RESUMEN

Este artículo se propone reflexionar sobre posibles entrelazamientos de la práctica de danzas con la política en la interfaz con ciertas cosmovisiones. Situándose en el área de la Psicología Social, a partir de un enfoque crítico, se discute la relación de la danza con los paradigmas de la ciencia: paradigmas liberal capitalista, colectivista- totalitario y comunitario-solidario. Específicamente, bajo el referencial de noción de política de Hannah Arendt, se enfocó las danzas circulares como potencia política. Se concluye que las experiencias de las danzas circulares mueven posibilidades de visiones de mundo, inventando formas de vivir la política, las danzas y el mundo, una vez que la política propuesta por Arendt se produce en conjunto, en la pluralidad.

Palabras-clave: Psicología social; Danzas circulares; Visión de mundo; Política; Hannah Arendt.


RÉSUMÉ

Cet article présente quelques remarques sur l'éventuelle imbrication de la pratique de la danse avec de la politique et des interfaces avec certaines visions du monde (visions du cosmos). À partir des études de la psychologie sociale dans une approche critique, on discute la relation entre la danse et les paradigmes de la science, à savoir le paradigme capitaliste libéral, le collectiviste-totalitaire et le communautaire-solidaire. De façon plus précise, l'article prend la notion de politique d'Hannah Arendt pour analyser les danses circulaires comme des potentielles politiques. On défend que les expériences des danses circulaires mettent en mouvement les possibilités de visions du monde et créent des façons de vivre ensemble de la politique, les danses et les mondes, compte tenu que la politique proposée par Arendt est produite toujours ensemble, dans sa propre pluralité.

Mots-clés: Psychologie sociale; Danses circulaires; Visions du monde; Politique; Hannah Arendt.


 

 

Introdução1

No século VI a.C., o filósofo Confúcio proferiu: "mostre-me a dança e a música de um povo e eu lhes direi o estado de saúde, da moral e do governo deste povo" (Sten, 1989, p. 08). Confúcio, neste sentido, sugeriria uma conexão entre política e dança? O que a dança tem a dizer sobre nossa sociedade? São essas questões que impulsionam este artigo a versar sobre as relações entre dança, dança circular e política. Para isso, iniciamos com uma fábula antiga, conhecida, com variadas versões e recorrentemente contada nas práticas de danças circulares, não sendo informada a origem e o autor.

Uma enorme mobilização acontecia naquela cidade. Muitos vieram de longe, a praça estava cheia, todos alvoroçados e cheios de expectativas. Passaram dias conversando e elaborando perguntas ao grande sábio. Enfim, chegou o dia, e iriam ter as respostas para os seus questionamentos e impasses. Na presença calma e silenciosa do esperado mestre, instaurou-se um silêncio, que parecia ainda mais perturbador e tenso. O sábio começou a cantarolar, e, gradualmente, a multidão foi se acalmando e se envolvendo, acompanhando a canção. Levantou-se, deu as mãos às pessoas próximas, até que, formando uma roda, começaram a dançar. Outros círculos, em torno dos círculos, foram se estabelecendo até que todos dançavam. As pessoas permaneceram, por horas, de mãos dadas, dançando, unidas, alegres e tranquilas. Até que o sábio sentou novamente e falou, num tom suave: "espero ter sanado todas as suas dúvidas". E as pessoas sentiram a experiência de forma tão recompensadora e profunda que reconheceram que tiveram a resposta para todos os dilemas das suas vidas.

Essa fábula parece ir ao encontro do que Nietzsche escreveu sobre as forças apolíneas e dionisíacas no seu livro Nascimento da Tragédia: na medida em que se rompem as delimitações criadas entre os seres humanos, eles tornam-se livres, sem mais precisar ter necessidades, sofrer arbitrariedades e modas impostas. Sem barreiras, as pessoas sentem-se mais que conciliadas e fundidas, sentem-se uma só, reconhecendo-se como membros de uma comunidade superior, nas quais são mais que artistas que dançam e cantam, tornam-se a própria "obra de arte: a força artística de toda a natureza" (Nietzsche, 1992, p. 31).

As danças de roda dos povos nasceram de comunidades, do ímpeto do ser humano de expressar emoções e sentimentos e de se reconhecer como um todo, confortar-se mais que unificado e ligado pelas mãos, tornar-se um. Como na fábula, vai da agitação ao silêncio, do vazio à experiência profunda, da solidão ao encontro, dos problemas às resoluções. Em conjunto, pôde ser vivenciada a força da roda, a força de toda a natureza. Em conjunto, o ser humano não é sozinho, é relação.

Bernhard Wosien (2000), bailarino, coreógrafo e professor de balé, pesquisando sobre danças dos pequenos povoados da Europa, vivenciou diversas culturas e suas danças de roda. Acostumado com danças dos palcos, clássicas e sofisticadas, presenciou, nessa peregrinação, danças que nasceram de comunidades. Encantou-se ao reconhecer que existia uma enorme vibração, uma imensa força nessas práticas. Danças nas quais "as pessoas encontram-se num círculo, olham-se", rituais que retratam a "essência de um povo e a sua tradução artística", danças "com efeito curativo e terapêutico" que passam do sentido "singular para o comunitário para estar junto em vibração". Danças que traduzem povos, seu "caráter, a imagem anímica, a vida e seus enraizamentos" ( p. 109).

Assim, Wosien (2000) torna-se um estudioso dessas danças, apropriando-se de coletâneas de músicas, danças, mitos, poesias e rituais tradicionais de diferentes comunidades, com a finalidade de entender, conhecer e resgatar essa atividade, transmitindo-a para outras civilizações (Wosien). As primeiras experiências do seu trabalho com as danças circulares foram na comunidade de Findhorn, Escócia, e pela notoriedade que tiveram, foram espalhadas pelo mundo através das pessoas que entraram em contato com Wosien e sua prática (Barton, 2012).

Para Deborah Dubner (2015, p. 17), "o círculo é claramente o formato do século XXI", época em que se procura minimizar e dissolver as práticas lineares. Como na fábula do mestre sábio, as "respostas" não querem ser encontradas em um mestre superior, mas dentro de cada um, na medida em que existem oportunidades de compartilhar, pois "ter consciência de que fazemos parte de uma grande rede está se tornando a maneira natural de interagir" (Dubner, 2015, p. 17). Podemos pensar que, neste viés, as práticas de pessoas juntas, em círculos, em grupos, sejam virtuais ou não, difundem-se rapidamente na nossa sociedade, como, por exemplo, as atividades de danças circulares que se encontram em expansão no Brasil (Dubner, 2015) e no mundo (Barton, 2012). Danças que, segundo Anna Barton, têm como intuito despertar as sensações de pertencimento e confiança, pelas quais é possível todos dançarem juntos solidariamente, reconhecendo-se como parte do todo, na medida em que mantêm contato com o local, com outros participantes, assim como um contato interno. Além disso, ensejam benefícios que vão além da prática, pois as qualidades despertadas nas danças podem ser incluídas no cotidiano.

Dubner (2015) acredita que o Brasil é uma terra fértil para as danças circulares, pois o movimento está em grande expansão! São dezenas de focalizadores, milhares de danças, centenas de rodas" (p. 189) no país. E complementa: "é no Brasil que o sonho dançante e terapêutico de Bernhard Wosien se manifestou. Porque é aqui, nas praças, hospitais, escolas, centro de saúde e outros locais públicos e privados que as rodas se multiplicam" (Dubner, p. 189).

Ainda que a dança circular não seja um método psicoterapêutico previsto na lei que regulamenta a profissão de psicóloga(o) (Lei Nº 4.119, 1962), recentemente entrou no rol das Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde (Portaria nº 849, 2017)e tem sido pensada por psicólogas(os) em publicações (e.g. Andrada & Souza, 2015; Dubner, 2015). A presença dos profissionais da psicologia em domínios pouco ortodoxos do campo "psi" anuncia as dificuldades de regulamentação de um campo de fronteiras tão porosas como é o psicológico e, com isso, o Conselho Federal de Psicologia tem promovido, ao longo dos últimos anos, debates entre a categoria, envolvendo as terapêuticas não convencionais, designadas de modo impreciso por terapias alternativas ou emergentes (Tavares, 2003).

Ao aproximarmos a Dança à Psicologia e tomá-la como objeto de estudo científico, estamos corroborando as preocupações epistemológicas para a necessidade da investigação das técnicas alternativas na Psicologia. Acreditamos que as danças circulares, por suas potencialidades, podem se apresentar como uma prática de dança que não se define unicamente como uma modalidade de dança nem somente como uma técnica terapêutica, que poderia ser apreendida pela Psicologia. Essa prática habita nesse "entre", nesse espaço que produz hibridações da dança com outras práticas, podendo, assim, potencializar movimentos nas dimensões do sujeito, do outro e do mundo.

A teoria política de Hannah Arendt (2013), apesar de não aprofundar o conceito de comunidade e muito menos estudar a dança, elucida a importância de estarem disponíveis espaços públicos para que as pessoas possam comunicar-se e posicionar-se sobre seus modos de existência. Para a autora, é essencial, para a política, o pensar, o diálogo e a ação das pessoas em conjunto, com a finalidade de construir formas de vida que incluam as diversas necessidades e expectativas em suas diferentes épocas e contextos.

Diante disso, este artigo propõe-se a refletir sobre possíveis entrelaçamentos da prática de danças com a política na interface com cosmovisões, de modo a problematizar as danças circulares como potênciapolítica. Potência por que se constitui como possibilidade de inventar mundos alternos, diferentes do que está institucionalizado; política porque pressupõe a prática da liberdade. Primeiramente, serão explorados três diferentes paradigmas ou cosmovisões que regem a nossa sociedade, segundo Pedrinho Guareschi (1998, 2008): liberal capitalista, coletivista-totalitário e comunitário-solidário.Nas sociedades ocidentais modernas sabe-se que, usualmente, predomina o primeiro paradigma (liberal capitalista), ainda que coexista com os demais.Para esse autor, um paradigma/cosmovisão, compõe-se de quatro elementos: a concepção de ser humano, a dimensão ética, a dimensão social e a dimensão das condutas, dos comportamentos e das relações. Ainda que a divisão dos três paradigmas tenha um cunho mais "didático" do que expressivo da complexidade dos fenômenos sociais, ela contribui para pensarmos sobre as visões de mundo, os comportamentos e as relações que eles geram, e organizarmos uma reflexão analítica que inclui aspectos históricos e políticos. Em seguida, discutimos a relação da dança com o pensamento político de Hannah Arendt e os diferentes paradigmas, descritos por Guareschi. E, por fim, exploramos os aspectos que nos auxiliam a pensar as potencialidades políticas nas práticas das danças circulares, de modo a entender os processos nos quais são possíveis vivenciar e apreender visões comunitárias e solidárias, que poderão ser transpostas para o cotidiano, apostando na transformação do mundo. Neste sentido, refletir sobre os paradigmas dentro desta temática pode ser uma forma de compreender como inventamos mundos.

Na medida em que as danças circulares são práticas sociais e têm conexões com as comunidades, com as culturas e com o meio ambiente, assim como intencionam alteridade, sentimento de pertença e transformações que acontecem no cotidiano, acreditamos que os pensamentos de autores da Psicologia Social Crítica (e.g., Guareschi, 1998, 2005, 2008; Jovchelovitch, 2004, 2008; Moscovici, 1998) podem contribuir com as nossas reflexões. Nestas abordagens, o sujeito não é constituído nem pela sua interioridade nem pela sociedade, mas na relação entre os dois (Jovchelovitch, 2008), mais precisamente naquela "zona nebulosa e híbrida que comporta as relações entre os dois" (Jovchelovitch, 2004, p. 21). O sujeito é visto de forma psicossocial, é coletivo e constitui-se nas relações cotidianas e nas construções sócio-históricas (Guareschi, 2005). Compreender as "respostas" que a prática das danças circulares disponibiliza, como na fábula do mestre sábio, e as aspirações e inspirações que as pessoas buscam através dela é entender os seres humanos e seus anseios e poder contribuir para transformar as nossas práticas, visões de mundos e relações sociais.

 

Circulando Pelos Paradigmas

A concepção que temos hoje de indivíduo como um ser separado da sociedade nem sempre existiu. Nas comunidades referidas como"tradicionais", cujas características consistem no uso de tecnologia simples, na dependência da relação de simbiose entre a natureza, na importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco, entre outras (c.f., Brandão, 2012), não faz sentido alienar as pessoas dos seus grupos; suas imagens estão atreladas a papéis, como parte de uma família, tribo ou Estado. Não que as pessoas sejam desconsideradas das suas particularidades; porém, é dispensável pensar numa individualização, pois o sentido de integridade grupal representa um papel preponderante sobre as lógicas individuais. A sobrevivência da comunidade, tanto física, quanto de memória coletiva, depende de e sustenta-se na união (Elias, 1994).

Com as transformações da nossa sociedade, alteram-se esses vínculos que subordinam e unem as pessoas às comunidades, e o indivíduo passa a ser o principal protagonista como um ser social. As qualidades pessoais, a liberdade individual e os esforços das pessoas passam a ser os seus principais guias (Arendt, 2013). Na busca individual, livre e autônoma, tornam-se dispensáveis a união das pessoas e, portanto, a comunidade. "Cada um cuida de si, deixando 'Deus' cuidar de todos" (Guareschi, 1998, p. 152), instaurando, assim, os preceitos do paradigma liberal capitalista (individualista), fortemente presente na nossa sociedade.

Nessa cosmovisão, segundo Pedrinho Guareschi (1998, 2008), o ser humano porta-se como um indivíduo uno, que não precisa dos demais, é ele por ele mesmo. É isolado de todas as outras pessoas, separado, não fazendo sentido sua ligação com o resto. Fechado em si mesmo, é o único responsável pelas suas formas de existência. Com isso, a concepção de sociedade configura-se na soma de indivíduos, que precisam ser encarregados por si mesmos a lutarem pelo seu sucesso. Esse status caracteriza-se, especialmente, por relações individualistas, egocêntricas, excludentes e competitivas. "Na máquina liberal em que nós estamos, sempre tem que haver excluídos... não há espaço para colaboração, cooperação e solidariedade. Vale a lei do mais forte" (Guareschi, 2008, p. 30).

Na direção oposta do individualismo, Guareschi (1998, 2008) conceitua outro paradigma, o coletivista-totalitário, em que "não interessa o ser humano em si", pois este "é um pedaço de um todo, é "uma peça da máquina" (Guareschi, 2008, p. 30). As pessoas que não se enquadram são descartadas, excluídas, somente o todo importa: "o grupo, a organização, a instituição, o partido, o Estado" (Guareschi, 2008, p. 30). Esse paradigma concebe a sociedade como "uma coisa só".

Esta crença em prol do coletivo e totalitário caracteriza-se pelo anonimato, transformando "as pessoas em coisas, onde a ordem, a organização, estão acima de tudo" (Guareschi, 2008, p. 31). "Para este olhar, o outro não existe, e com seu desaparecimento simbólico, comunidades são destruídas, direitos individuais postos em questão, saberes sociais tornam-se uma ameaça, e o viver, de fato, torna-se um inferno" (Jovchelovitch, 1998, p. 82). Como no nazismo e no fascismo, o que importa é a nação (Guareschi, 1998, 2008).

O terceiro paradigma descrito por Guareschi (1998, 2008) é denominado comunitário-solidário. Nessa cosmovisão, a pessoa é entendida, mais que em relação com as outras pessoas, pela forma como ela própria se constitui na relação. Ela é relação; um "ser relação". As pessoas são vistas em construção umas com as outras, caracterizando-se pela solidariedade e cooperação (Guareschi, 2008). Não é coletivista, nem individualista, mas comunitária, baseada numa relação de alteridade na qual o ser humano dialoga com o outro para "ser" (Guareschi, 1998). "A participação se dá em nível simétrico a partir da ação e do diálogo comunicativos" (Guareschi, 2008, p. 33). A construção do que se é e do que pode vir a ser só é possível no reconhecimento da pluralidade nas relações sociais, marcada pelo encontro permanente e incessante com muitos outros que configuram a cultura (Zanella, 2005).

O sociólogo Michel Maffesoli (2006) apresenta reflexões sobre um processo de saturação do individualismo na pós-modernidade, um esgotamento de uma identidade isolada, fechada em si mesma, que denomina desindividualização. Emerge, nessa insatisfação, uma busca de relações baseadas na alteridade, em conexões de afetividade e interesses em comum com outros. A procura por essa conexão com o outro se dá através dos sentimentos em comunidades locais. Neste ensejo, para o autor, é visto que hoje as pessoas transitam entre diversos grupos, associando-se pelas emoções e sentimentos compartilhados, indo e vindo (Maffesoli, 2006).

Contudo, essas associações podem nada dizer sobre alteridade. Na medida em que os paradigmas individualistas e coletivistas se sobressaem, a alteridade fica distanciada, mesmo que se suscite que esteja sendo estimulada. Por exemplo, no paradigma individualista, participa-se de eventos sociais, mantendo diálogos frequentes, amizades, tolerância aos outros iguais e diferentes. Ainda assim, isso não significaria um processo solidário e de alteridade genuíno, como vemos na visão solidária. Há algo que ainda os separa: aquilo que constitui o outro não é levado em consideração, porque, antes de ponderar a sua constituição, é visto como um ser livre, independente e que tem o direito de fazer suas próprias escolhas. Quer dizer, o outro não é problema meu, como, da mesma maneira, não deve se intrometer em minha vida.

Assim, a dança como sociabilidade pode predizer uma condição de solidariedade e alteridade, mas, na prática, o que pode estar oculto é a crença da independência uns dos outros e o autoconhecimento cultivados no paradigma liberal capitalista. As pessoas estão juntas, porém, o outro é separado, isolado, não tendo nada que ver com os demais. O respeito é assegurado na distância que se mantém do outro, e a liberdade de um começa quando termina a do outro, como podemos ver, nos discursos reproduzidos e consolidados no individualismo: "Ele é ele e eu sou eu, nos damos muito bem, não nos metemos um na vida do outro". Ainda, há uns que delimitam espaços: "cada um no seu quadrado", e, por fim, um que gera orgulho ao ser pronunciado: "ninguém paga minhas contas".

No coletivismo, da mesma forma, podemos atentar para a crença de que se efetiva a solidariedade, visto que se esforça para ajudar as pessoas que são diferentes, almejando a sua igualdade ou o seu enquadramento nas regras da sociedade. As práticas não são voltadas para descartar as pessoas, como no nazismo, mas, sim, pelo desejo de que suas diferenças sejam eliminadas, existindo a crença de que a melhora será efetivada ao colocar em ordem a desordem que se avalia no outro. Acredita-se, nesse viés, que é preciso impor ideias de pensamentos e ações uniformes, com a finalidade de satisfazer a organização da sociedade. A diferença e outras formas de existência não são estimuladas, talvez pelo fato de que oferecem desafios, pois seria preciso conversar, ouvir, dialogar e pensar em ações em conjunto voltadas para a pluralidade, como sugere Arendt (2013). Talvez, ainda, pelos saberes construídos do que é certo, seja mais fácil decidir o que o outro deve ser e fazer, ajudando-o. Pode-se, neste caso, ter o intuito solidário com o outro e com o mundo, mas a consequência pode ser falsa, pois, em prol de tornar o outro e o mundo melhores, restringe-se, limita-se e luta-se por cessar as distintas maneiras de ser e existir. Por amor aos grupos, organizações, instituições, partidos e Estados, odeia-se os diferentes e tenta-se bani-los ou faz-se planos com a pretensão solidária de mudá-los ou ajudá-los a serem iguais ao grupo, organização, partido, enfim, ideais amados.

Assim, tanto no paradigma individualista como no coletivista, a suposta solidariedade pode impulsionar a exclusão do outro como "ser relação". Isto acontece porque, como pontua Guareschi (1998, p. 159), "ele (outro) não faz parte de nós, é um estranho, um alienígena. Ele é o índio, o negro, a mulher, o excluído". E, acrescentaríamos, é o vizinho, é o colega de trabalho, é a natureza, é o outro em todas as suas formas, que não fazem sentido para nós. É sempre o outro, não percebido como constituído na relação social.

Neste sentido, as intenções de solidariedade ou amor podem não ser as dirigentes para vivenciar o paradigma comunitário-solidário. O que discerne os paradigmas pode estar oculto na forma de compreender a constituição das pessoas: se o outro é constituído somente como outro, independente (liberal capitalista), se precisa ser igual (coletivista-totalitário) ou, ainda, se o outro é interdependente de todos e do todo (comunitário-solidário). A "perspectiva que tende a ver o outro na sua exclusiva alteridade, problematiza seu lugar ao encarar o outro enquanto constitutivo do sujeito e da vida social" (Arruda, 1998, p. 12).

 

Políticas Dançadas

A dança, como arte, não somente concede e reproduz o paradigma predominante. Ela move-se, resiste, discursa. É transformada pelo mundo, como o transforma, faz política. Para Guzzo e Spink (2015, p. 9), "a dança pode ser política a partir do movimento crítico que faz em relação à realidade, questionando ou propondo possibilidades de ação e transformação da maneira que existimos". Para Zanella, Levitan, Almeida e Furtado (2012), a resistência através da arte não tem o intuito de ser adversária e opositora, mas inventiva, que se engaja na criação de instrumentos poéticos para outros modos de existência. "Resistência constituída na produção da diferença, na demarcação de novos possíveis e, fundamentalmente, na afirmação da vida e do singular que se tece e entretece na relação com outros" (Zanella et al., 2012, p. 250).

Podemos citar o movimento da dança moderna, que surgiu como forma de resistir a certas práticas, em busca de novas relações do ser humano consigo mesmo e com a sociedade (Portinari, 1985). Um novo laço com o corpo. O movimento foi liberto, e, com ele, a sapatilha, as barbatanas e corpetes obrigatórios. As emoções e suas expressões passaram a ser prestigiadas, instigando os próprios movimentos e sentimentos, não somente individuais, mas da humanidade. A dança considerada como arte da libertação, libertação comunitária, resistindo aos costumes opressivos e instituições (Garaudy, 1980).

Resistências, que criam movimentos, grupos de dança que se organizam, formam comunidades com um mesmo intento: "estar junto" pelo sentido comunitário, por pessoas que acreditam que o coletivo pode se transformar, construir e se inventar. Por exemplo, há o movimento da dança pós-moderna americana com a qual, segundo Guzzo e Spink (2015), foram criadas diferentes ações engajadas em práticas críticas aos padrões instituídos pela sociedade. Alguns espetáculos foram utilizados para refletir sobre corpo, revolução e crise econômica, assim como questões explicitamente políticas. Outros transformaram os ambientes e suas configurações: danças que não aconteciam em teatros e não tinham palcos. Alguns eventos proporcionaram espaços para os espectadores e a equipe dialogarem sobre aspectos políticos, sociais e estéticos envolvidos nas danças promovidas. No Brasil, a jornalista Iara Biderman (2017, 12 de março), escreve sobre algumas travessias políticas na dança de Lia Rodrigues, uma delas, por exemplo, é um projeto nas favelas do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, no qual a coreógrafa potencializa o diálogo da arte contemporânea com um projeto social.

Para Arendt (2013), comunidades devem existir para proporcionar diálogo e ação em conjunto. No seu livro O que é política? (Arendt, 2006), a autora inicia enumerando e ordenando algumas ideias que são desenvolvidas e questionadas ao longo da obra. Política, Arendt (2006) pontua, baseia-se na pluralidade dos seres humanos e, em seguida, acrescenta, "trata da convivência entre diferentes" (Arendt, 2006, p. 7). Assim, a "política, organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas" (Arendt, 2006, p. 8). E, ao longo das suas obras, a política vai sendo construída a partir das noções de liberdade, poder e autoridade, que se mesclam e se organizam. Ressaltando que a política, para a autora, não é utilizada somente na acepção político-partidária, como aquela exercida pelo governo, pelo Estado.

Na teoria de Arendt (2013), a visão individualista inviabiliza o fazer político, poisacredita a autora que o cidadão é um ser atuante do mundo e não deve colocar seu bem-estar acima do bem-estar público. O interesse no aspecto privado e individual compromete o empenho político, pois impede que a comunidade seja apreendida como um todo (Arendt, 2014). Para Arendt (2013), a política vai estar numa dimensão relacional, que deve preconizar o pensar, o diálogo e a ação em conjunto, não para contemplar a vida e encontrar verdades unânimes e universais, mas para fortalecer a pluralidade. Com isso, é preciso que as pessoas tenham liberdade, que é adquirida na comunicação com outras pessoas e na potência para agir, diferentemente da liberdade postulada pelo paradigma liberal capitalista, que prega uma liberdade interior, uma busca da interioridade para transformação, dentro da mente, nas próprias vontades.

Neste sentido, a autoridade teria a importante função de fomentar espaços públicos para discussões, assegurando às pessoas oportunidade de expressão da liberdade e do poder nas suas mais diversas opiniões e necessidades. Para tanto, a autora sugere a existência de locais ou espaços pequenos que pudessem ser organizados para os debates, assim como uma autoridade que se dispusesse a fazer a interlocução (Arendt, 2001), ressaltando que autoridade não deve ser relacionada com autoritarismo, que é tirânico e desconsidera opiniões das pessoas, impondo os seus pensamentos e decisões (Arendt, 2013).

A dança, mesmo que não tenha uma proposta política explícita, será autoridade de interlocução, potencialmente, uma vez que proporciona espaços para que as pessoas possam pensar, dialogar ou comunicar algo, ir além da interioridade do indivíduo e, inclusive, romper com o dualismo eu/sociedade, privado/público. A partir dos espetáculos ou experimentações, as pessoas apropriam-se de novas formas de relações, visões de mundo e ações, e estabelecem meios de desenrijecer, elucidar ou desconstruir representações de pensar, ser e existir. "Por ser uma manifestação artística complexa, ela [dança] possui uma rede de materialidades e sociabilidades que a sustentam, e a cada espetáculo constrói-se uma maneira coletiva de narrar, posicionar-se, recortar a realidade" (Guzzo & Spink, 2015, p. 9).

Desta forma, podemos reconhecer o quanto a dança é ameaçadora perante as sociedades totalitárias, já que a diversidade não pode ser contemplada nesse paradigma. A dança como diálogo, discursa, comunica e reflete sobre posicionamentos do cotidiano e do sentido da vida. Remexendo no que está instituído, ela pode deflagrar novas perspectivas e entendimentos. A função da autoridade na visão totalitária é cercear e proibir espaços que proporcionem esses encontros, destruindo a liberdade de poder das pessoas.

Liberdade de poder é entendida por Arendt (2013) como potência; isto é, um poder que viabiliza potencialidades para criação de alternativas de mudanças e elaborações do próprio destino, construído pelas pessoas juntas e gerado pela convivência. Contudo, no paradigma coletivista, este poder é cerceado para que não circule, pois são impostas verdades factuais a serem seguidas por todos. Palavras autoritárias são empregadas para velar intenções e realidades, e atos são empregados para violar ou destruir, não permitindo a criação de relações e novas realidades (Arendt, 2014). Assim, serão minadas e excluídas as práticas que se engendram na produção de modos de estranhar e rever orientações de ser e existir. Para Arendt (2015), poder é diferente de violência, onde há violência, não há poder. Neste viés, a coação e a violência cessam a construção da política (Arendt, 2015), impedindo que os sujeitos transformem o mundo, ao mesmo passo que possam ser transformados por ele.

Por outro lado, na visão individualista, a prática da dança é bem-vinda. Esta modalidadeé almejada na medida em que auxilia na dedicação do próprio crescimento individual (aperfeiçoamento corporal, autoconhecimento,entretenimento, prestígio etc.). Da mesma forma que relações entre as pessoas são estabelecidas, pois nesta cosmovisão, confraternizações, reuniões e encontros são frequentes, porém, são dedicados ao próprio indivíduo, isto é, quando convém, prima-se o viver em conjunto para melhorar o seu próprio bem estar, por exemplo.

Portanto, nos três paradigmas, a dança é contemplada de formas distintas. A maneira como a dança ocorre na prática é o efeito dessas cosmovisões. Segundo Guareschi (2008), é por meiodas cosmovisões que as pessoas guiam suas ações e comportamentos.Essas condutas e relações na prática das dançasnos possibilitam apreender a concepção de ser humano e social que estão sendo pressupostos. Como diria, Arendt (2014), nossas visões direcionam nossa prática e, consequentemente, o agir político.

 

Política: Os Círculos Que Dançam

"Aquele que sabe compreender a dança sagrada conhece o caminho que liberta da ilusão individualista, pois a dança é a sua própria natureza, sua vida espontânea e total, para além de todos os fins particulares e limitados: ele se identifica com o movimento rítmico do todo que o habita" (Garaudy, 1980, p. 16).

O movimento contemporâneo das danças circulares nasceu com Wosien; contudo, as danças circulares tradicionais dos povos nasceram há muitos milênios da comunidade social. São regionais, brotam "nas casas e nos campos das famílias, fora, nos lugares comuns a toda comunidade" (Wosien, 2000, p. 109). Pertencem a todos (crianças, velhos, homens, mulheres, leigos). Acontecem em círculos, nos quais todos de mãos dadas fazem os mesmos passos e a dança flui no ritmo da música.

As danças circulares constituem um caminho para a totalidade do ser, pois, além de permitirem despertar sentidos comunitários e singulares, têm potencialidades que podem ser terapêuticas, educativas, meditativas e sagradas, contemplando os aspectos físicos, emocionais, psicológicos, espirituais e sociais (Wosien, 2000). Assim, a experiência das danças circulares pode ser profunda, pois propõe que, vivenciando-as, seja possível ter o entendimento de movimentos que se referem ao mundo interno (emocional, físico, psicológico), e, da mesma forma, fazem significação com os outros e com o mundo. Pois "o desenvolvimento do vínculo social e das capacidades intelectuais e afetivas começa quando o indivíduo vem a perceber que o outro tem uma significação no seu próprio mundo interior" (Moscovici, 1998, p. 7). Por exemplo, na roda, o outro e o sentimento de pertença com o grupo podem aparecer, na medida em que alguém trava ou interrompe um movimento. "A experiência objetiva de que o passo de um interfere no resultado coletivo leva os participantes a uma percepção clara da conexão com o todo" (Dubner, 2015, p. 95).

Apesar de todos dançarem igualmente, a dança circular pode despertar a singularidade, pois, ao mesmo tempo que os passos são ritmados e repetidos sincronicamente por todos, há a particularidade de cada um de se expressar e absorver. Igualmente, existe a possibilidade de espontaneidade, como, por exemplo, tocar o pé no chão, balançar, sentir e se emocionar de formas completamente diferentes (Wosien, 2000). Assim, pode promover tanto o desenvolvimento individual, como aberturas sociais, rompendo com a cultura do isolamento e acrescendo o sentimento de pertença ao grupo e ao todo.

Essa dança, neste sentido, não somente contempla o paradigma comunitário-solidário, como nasce dele, na medida em que o outro também é a relação, é necessário. Quando cada um "é reconhecido como legítimo, e portanto, como sujeito de um saber e de um projeto, a realidade social e a realidade do eu se entrelaçam, mas não se reduzem uma à outra" (Jovchelovitch, 1998, p. 75). As pessoas, desta forma, constituem-se na interação, na pluralidade, isto é, na alteridade que têm "em comum com tudo que existe" (Arendt, 2014, p. 189) e, na distinção que partilham com tudo que vivem, "tornam-se singularidade, e a pluralidade humana é paradoxalmente pluralidade de seres singulares" (Arendt, 2014, p. 189).

Para que outros possíveis sejam construídos na singularidade e, principalmente, para que essa singularidade seja plural, Arendt (2001) vai reforçar o papel da autoridade, entidade que tem como função conduzir, organizar e traduzir os diálogos e ações das pessoas. Nas danças circulares, quem recebe essa função é o focalizador ou os focalizadores. São pessoas que têm conhecimentos e experiências em coreografias, sejam coletâneas aprendidas dos povos originários (indígenas, tribos) ou contemporâneas, ou ainda as que elas mesmas coreografaram. São designadas a conduzir o grupo, ensinando histórias, símbolos, significados, mitos, signos dos movimentos, das danças e/ou das músicas, deforma que também são o círculo, participam na mesma sincronia. "O focalizador não é de forma nenhuma o foco da roda,... Quando uma pessoa de fora olha ..., ela não verá um ponto se destacando na roda, porque, afinal, o círculo é feito por todos" (Dubner, 2015, p. 20).

Os focalizadores, geralmente ao final, proporcionam momentos de falas e trocas sobre as experiências na roda, sendo que são encontros que privilegiam e apostam em tópicos que possibilitem as vivências interculturais e socioambientais, como, por exemplo, danças de outros países e religiões com suas tradições ou danças que contemplam os ciclos e elementos da natureza. O contato com outras culturas, com seus símbolos, mitos, religiões e músicas permite aproximar, conhecer e criar outras representações sobre as histórias desses povos, que para Arendt (2014) são fundamentais para política, pois os mitos e as histórias, verdadeiras ou não, ressaltam aspectos importantes para a comunidade. Seus objetos, raízes e nuances recordam ações e momentos, perpassam por gerações e validam a existência humana. Para a autora, a autoridade seria imprescindível como emissora das tradições (culturais, religiosas), fazendo um elo com o passado e, desta forma, permitindo um mergulho nas complexidades da condição humana.

Os temas socioambientais, como a sustentabilidade e a natureza, são imprescindíveis no movimento das danças circulares. Os elementos (ar, terra, água, fogo), que são trabalhados nos seus sentidos materiais, energéticos e subjetivos, podem fazer com que desperte a atenção à água, por exemplo, racionando-a, protegendo-a. A alteridade não se enclausura na roda, mas se expande para as relações com o mundo. O mundo também é o outro, e o outro é parte, é conectado. Como diz Arendt (2000), temos que ter amor ao mundo. Cuidar dele para os futuros seres, não esquecendo do vínculo que nos une a ele e a todas as pessoas. Dentro dos círculos existe um lema que é: "Podemos ajudar a mudar o mundo. Vamos dançar!" (Dubner, 2015, p. 113). Contudo, na dança circular não se trata de achar uma fórmula e ir mudar o mundo lá fora, nem dentro da roda, nas pessoas. A proposta de transformação social acontece na medida em que se é transportado para o mundo lá fora o experienciar da roda. O mundo é aqui, a troca é aqui, na roda, entre as pessoas, no vivenciar o círculo: a oportunidade de estar de mãos dadas e poder sentir pertencimento a algo maior que o indivíduo, o grupo; no diálogosobre visões de mundo e mundos diferentes, que podem gerar inspirações e ser levados ou não para o cotidiano. Portanto, experimentar novas formas de existir (cultura, mitos, natureza) pode oportunizar pensar em outras possibilidades de viver o mundo lá fora, de lidar com as diferenças, as injustiças e as adversidades que compõem o viver. O pensar, segundo Arendt (2000, p. 62), "exige um pare-e-pense". Deste modo, fora da roda, no cotidiano, novos pensamentos e ações poderão emergir sobre a experiência vivida, ou não. "Todo pensar é, estritamente falando, um re-pensar" (Arendt, 2000, p. 61). Para Arendt (2013), como nas rodas, as relações com as pessoas e com o mundo são fundamentais. Desta forma, pensar diferente não indicaria um problema, pelo contrário, opiniões diferentes seriam bem-vindas e enriquecedoras.Porém, é importante salientar que mesmo que as práticas das danças circulares tenham nascido do sentido comunitário, elas podem resvalar para os outros paradigmas. Na medida em que as pessoas nas rodas precisam ser iguais, tanto o focalizador como os participantes podem impor sonhos, crenças e comportamentos iguais para todos, aproximando-se, dessa forma, ao paradigma coletivista totalitário. Por outro lado, nos embasando em Arendt (2013) e Guareschi (2005), podemos pensar que quando a dança circularprioriza somente o próprio desenvolvimento individual, ela termina por ser consumida para entretenimento de si (como ocorre com a arte). Neste caso, podemos assumir que o paradigma individualista liberal predomina, contribuindo para que a dança perca seu aspecto cultural e tradicional que liga humanidade ao passado, entrando em crise, assim como a cultura e a educação. Esse movimento de inclinação para um paradigma ou outro não ocorre de modo linear ou estático, mas podemos entendê-lo como tendências que são particularmente interdependentes da visão de mundo predominante do focalizador, o qual é, por sua vez, um ser histórico e cultural.

Para que isso não aconteça, nas rodas, reconhecendo a força dos paradigmas individualista e coletivista, é imprescindível que haja uma autoridade (focalizador) que esteja engajada em concepções de mundo que despertem a pluralidade. Neste sentido, estar disposto a ser um focalizador é estar disponível a adentrar em novas práticas no cotidiano. É estar atento para resistir às naturalizações das práticas dominantes e de exclusão, estudar, vivenciar e transitar em diferentes possibilidades de existência (culturas, religiões, posições políticas, econômicas). É ser responsável pelo encontro com a alteridade na roda.

Neste viés, o movimento das danças circulares pode criar possibilidades de existência ao proporcionar que o grupo experiencie sensações de pertencimentos e conexões (eu, outro, mundo), de modo que oportuniza experiências solidárias e comunitárias, que poderão despertar o desejo de se viver nelas ou concretizá-las no cotidiano. Na medida em que o ser é efetivamente relação e não desaparece simbolicamente, como propõe Jovchelovitch (1998), as comunidades não precisariam ser destruídas, nem ser rechaçados os direitos individuais e saberes sociais. Portanto, entregam-se sementes nas rodas, que dependerão de outros meios e ações para serem efetivamente levadas, plantadas e se desenvolverem. O que se conquista na ação coletiva das rodas reverbera no contexto externo à prática da dança, com mais ou menos intensidade, conforme as relações de alteridade.

 

Finalizando: Dançar e Inventar Mundos...

Se as danças circulares se expandem no mundo (Barton, 2012), o que é que as pessoas buscam? Que círculos são esses? O que eles proporcionam? Como são no Brasil? Ao final, são muitas perguntas que ficam. Pensamos que o desejo da desindividualização, proposto por Maffesoli (2006), pode contribuir para o florescimento dessas danças. No círculo, tem-se a possibilidade de colocar em prática atividades que saciem os nossos anseios por outras visões de mundo, comportamentos e relações, em comunidades que compartilhem das mesmas emoções e sentimentos. Criam-se, dançando, diálogos e ações, em que a pessoa tem a possibilidade de não se entender somente como um ser humano isolado, cuidando de si. Pode oportunizar que as pessoas se reconheçam na pluralidade, resistindo ao coletivismo e ao individualismo. Como Maffesoli (2006) pontua, estamos cansados dessas visões de mundos que nos guiam. E para transformá-las, criamos e nos engajamos em outras práticas.

Assim, cansados dos paradigmas dominantes e com disposição para criar, dança-se. Inventam-se modos de construir outros possíveis e de fazer política. Na medida em que se resiste criativamente a compartilhar somente formas instituídas, inventam-se outros meios de pensar sobre si mesmo e de dialogar com todos que são "outros", recompondo sua visão de mundo no que concerne à dimensão social e à concepção de ser humano.

Nos relacionarmos com o mundo, como se ele não fosse um outro distante, mas fizesse parte de nós, assim como nós fazemos parte dele - alteridade com o todo. Da mesma maneira, o contato com os símbolos das outras culturas pode permitir o entendimento de que todos perpassam pelo constitutivo tanto do ser singular quanto da vida social. No desejo da alteridade, a dança de roda oportuniza semear outras formas de existir, não só nos praticantes, dentro da roda, mas fora, pela reverberação que acontece nas pessoas e nas práticas pelos espaços privados e públicos. Podemos inferir que a experiência comunitária/solidária que a dança proporciona é transposta paraas relações que se dão fora desse espaço, contribuindo para a produção de subjetividades políticas. Essas (novas) formas de existir podem se constituir e se materializar nas lutas socioambientalistas, na defesa pelos direitos das minorias ou, simplesmente, no envolvimento com grupos sociais diversos. Essas novas formas de cuidar do mundo, da natureza, do planeta, de produzir, nutrir, consumir, gastar vão constituir tanto a dimensão das condutas e dos comportamentos, quanto a dimensão ética.

A dança em círculo, da mesma forma que outras danças e artes, pode ser política, uma vez que possibilita às pessoas experimentações de novas maneiras de viver um grupo, no qual são disponibilizados encontros com outros possíveis modos e meios de existir, mas não de forma individualista, pelo contrário, aprendendo sobre a própria existência dentro da existência coletiva e vice-versa. As mudanças no mundo, como diz Arendt (2013), não podem ser feitas de maneira individual e de dentro, essas nascem e florescem entre as pessoas, quando se comunicam e atuam na presença de outros. Porém,

relacionar-se com a diferença envolve desejo, e é a natureza dessa condição desejante que também define a forma como uma sociedade se engaja na rede de relações humanas que permite tanto a construção dos saberes como dos sentidos, eles próprios atividades cruciais para sustentar a formação de identidades, sentimentos de pertença e o sentido de comunidade. (Jovchelovitch, 1998, p. 74)

Com este estudo, pretendemos contribuir para a reflexão de como nós, psicólogas(os) sociais e outras(os) tantas(os) profissionais, nos engajamos para reconhecer o "ser relação". Como transitamos pelos paradigmas coletivista e individualista, tão fortemente impregnados em nós e na nossa sociedade. E, ainda, nos questionarmos sob quais paradigmas fortalecemos, reforçamos e conduzimos nossas práticas. Como diz Guareschi (2008), as discussões acadêmicas, intelectuais, filosóficas são importantes, mas podem permanecer no abstrato, sendo relevante, "na verdade... as práticas, as novas práticas, ou se quisermos, as diferentes relações que podem surgir" (p. 155) dos debates. Apesar deste artigo se limitar a uma discussão teórica, ressaltamos a importância da Psicologia estar atenta à necessidade de investigações empíricas das técnicas alternativas, como pontuam Gauer, Souza, Dal Molin, Gomes (1977).

Aqui, nos limitamos a abordar a dança circular como potênciapolítica. Porém, se as visões pessoais direcionam e redirecionam práticas, como diz Arendt (2014), é um universo infinito que pode se encontrar em discussão. E, assim, como nas danças circulares, o que influencia politicamente são os processos nos quais será possível dialogar, vivenciar e construir outras formas de relações e ações.

O outro, a diferença, ou melhor, a diversidade (povos originários, religiões, partidos, profissões e inúmeras possibilidades), quando vivenciados, tendem a movimentar representações sociais estagnadas (tradicionais, hegemônicas). Esse movimento pode despertar outros possíveis infinitoscontidos em nossa relação com os outros. Portanto, nas danças circulares é disponibilizado um experienciar no qual não existe lado de fora e lado de dentro, eu e outro, individual e social, físico e emocional, sem que possam ter conexões.

Em alguns momentos de nossa reflexão, podemos ter soado prescritivas ou até mesmo idealista ao não aprofundar as tensões, os conflitos, que estão presentes na política e nas práticas coletivas. Mas como considerar as tensões inerentes a todos os encontros inter e intrapessoais em uma prática que visa proporcionar o alívio das tensões, produzir paz? Não temos uma resposta exata para isto, mas se assumirmos que os círculos são criados justamente por causa das tensões internas e externas ao sujeito, do ponto de vista de uma psicologia social crítica, o que se faz necessário é criar condições para que cada um possa dizer a sua palavra. A dança, ainda que tenha limitações como qualquer outra prática humana, constitui-se como território de expressão de afetos, emoções e desconcertos. Sob este aspecto, a dimensão estética, não incluída na perspectiva Guareschiana como um dos elementos de cosmovisão, poderia enriquecer o estudo psicossocial da dança circular.

Podemos pensar que, por meio da vivência do paradigma comunitário-solidário, não precisam existir piores, nem melhores, pois o importante é participar e aprender com a diversidade, como nos conta Rubem Alves (2001, 6 de setembro), sobre uma atividade de corrida que ocorreu na história de Alice no país das maravilhas: Na floresta, diferentes animais participavam de uma competição de corrida em círculo, na qual corriam cada um do seu jeito, "pra frente, pra trás, pros lados, aos pulinhos, em zigue-zague... O pássaro Dodô gritou: 'A corrida terminou!' Todos se reuniram ao redor do Dodô e perguntaram: 'Quem ganhou?'. 'Todos ganharam', disse Dodô. 'E todos devem ganhar prêmios'". Como a intenção da roda é ser na pluralidade, ninguém perde, ganha-se novos exemplos e possibilidades. São círculos nos quais o mundo é nosso, em que "uns" se tornam "nós", como "canta", "dança" e "circula" a composição de Caetano Veloso (1983): "Uns vão / Uns tão / Uns são / (...) Uns mãos / Uns cabeça / Uns só coração / Uns amam / Uns andam / (...) Uns nada além / Nunca estão todos. / Uns bichos / Uns deuses / Uns azuis / (...) Uns teus / Uns ateus / Uns filhos de deus / Uns dizem fim / Uns dizem sim / E não há outros".

 

Referências

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Recebido em: 26/10/2017
Aprovado em: 26/12/2018

 

 

1 Este artigo apresenta resultados da pesquisa da dissertação de mestrado "Dança Circular: inventando afetos e construindo mundos". Pesquisa que se insere no projeto de pesquisa "Saberes, afeto e cultura material: experiências e vozes do consumo na era das conexões" (CAAE 45518415.5.0000.5346 - CEP/UFSM), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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