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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021

 

ARTIGO

 

Fazer viver e deixar morrer: os mecanismos de gestão das desigualdades em tempos de pandemia

 

Making live and letting die: the mechanisms of management of inequalities in times of pandemics

 

Hacer vivir y dejar morir: los mecanismos de gestión Desigualdades en tiempos de pandemia

 

 

Emerson Oliveira NascimentoI; Lucileia Aparecida ColomboII

IProfessor do Instituto de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas. Mestre e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Laboratório de Estudos em Segurança Pública / emersondonascimento@yahoo.com.br
IIProfessora do Instituto de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas. Mestre e doutora em ciência política pela Universidade Federal de São Carlos. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Federalismo, Políticas Públicas e Desenvolvimento / lucileia.colombo@ics.ufal.br

 


RESUMO

O presente estudo objetiva analisar os mecanismos de gestão da pandemia do Covid-19, a partir do conceito de biopolítica, desenvolvido por Michel Foucault. As políticas do Estado moderno, ampliadas no rol dos chamados Welfare State estão delineadas de modo a atender a todos os indivíduos, universalmente, especialmente quando o que está sendo debatido é a preservação da vida. Além disso, se considerarmos a formação da sociedade a partir da formação de indivíduos e de seus corpos, partimos do pressuposto de que a proteção social alcança todos os cidadãos. Entretanto, a pandemia agudizou condições sociais já marcadamente desiguais, como é a sociedade brasileira. A partir de tais assertivas, como resultados preliminares, podemos pressupor que a negligência estatal está intrinsecamente atrelada ao conceito de biopolítica, desenvolvido pelo filósofo francês.

Palavras-chave: Biopolítica; Desigualdades sociais; Pandemia; Covid-19.


ABSTRACT

This study aims to analyse the management mechanisms of the Covid-19 pandemic, based on the concept of biopolitics developed by Michel Foucault. The policies of the modern State, expanded in the list of the so-called Welfare State, are designed to serve all individuals, universally, especially when what is being debated is the preservation of life. Furthermore, if we consider the formation of society is based on the formation of individuals and their bodies, we assume that social protection reaches all citizens. However, the pandemic has exacerbated social conditions that are already markedly unequal, such as Brazilian society. From such assertions, as preliminary results, we can assume that state negligence is intrinsically linked to the concept of biopolitics as developed by the French philosopher.

Keywords: Biopolitics; Social differences; Pandemic; Covid-19.


RESUMEN

El objetivo de este estudio es analizar los mecanismos de gestión de la pandemia Covid-19, basados en el concepto de biopolítica, desarrollado por Michel Foucault. Las políticas del Estado moderno, ampliado en la lista de los llamados Estados de bienestar, están diseñadas para servir a todos los individuos de manera universal, especialmente cuando lo que se debate es la preservación de la vida. Además, si consideramos la formación de una sociedad basada en la formación de individuos y sus cuerpos, asumimos que la protección social llega a todos los ciudadanos. Sin embargo, la pandemia ha agravado las condiciones sociales que ya son marcadamente desiguales, como la sociedad brasileña. A partir de estas afirmaciones, como resultados preliminares, podemos suponer que la negligencia estatal está intrínsecamente vinculada al concepto de biopolítica, desarrollado por el filósofo francés.

Palabras Clave: Biopolítica; Diferencias sociales; Pandemia; Covid-19.


 

 

A modo de apresentação

A pandemia inaugurada pelo novo coronavírus tem impactado substancialmente as populações ao redor de todo o mundo, causando transformações nas rotinas pessoais e nas dinâmicas sociais. Esse movimento tem convocado estudiosos e analistas dos mais diferentes matizes para pensar o mundo que renascerá depois da pandemia do coronavírus (Mercer, 2020; Reich et al., 2020; Santos, 2020). Foi nesse movimento que as reflexões do filósofo francês Michel Foucault têm tomado popularidade para além do circuito acadêmico, onde os conceitos foucaultianos guarda expressiva posição de destaque, especialmente entre as ciências humanas e sociais.

É nesse sentido, que o uso em especial de um conceito do autor, a noção de biopolítica, tem encontrado sua ressonância amplificada. A implantação e expansão dos mecanismos de controle e vigilância por parte dos Estados para contenção no novo coronavírus têm sido relacionados diretamente a esse conceito que, de um momento para o outro, virou a palavra de ordem do momento. Em pouco mais de 120 dias, o conceito de biopolítica tornou-se a ilustração fantasmagórica do novo tempo.

Sem desconsiderar o impacto que a ampliação destas medidas de vigilância impõe ao momento, acreditamos que o conceito de biopolítica do autor tem mais a nos oferecer sobre a interpretação deste contexto específico no qual estamos imersos do que a mera associação às medidas panópticas que a circunstância enseja. Operacionalizando o conceito de biopolítica para pensar a pandemia de covid-19, discutimos a inspiração originária do filósofo francês para problematizar a recente crise sanitária a partir da relação intrínseca entre as noções de biopolítica, neoliberalismo, racismo e a gestão da vulnerabilidade diferencial a que estão expostos os grupos menos privilegiados na ordem capitalista.

Nosso objetivo aqui é formular, a partir do conceito de biopolítica de Foucault, uma reflexão crítica sobre a gestão das desigualdades sociais, as quais foram agudizadas e realçadas pela pandemia de Covid-19, com destaque para a relação desta crise com o receituário neoliberal. Considerando que o filósofo francês compreende que o neoliberalismo deve ser entendido como uma forma genérica de biopolítica, acreditamos que utilizar a sua teoria neste contexto, em especial, pode lançar uma luz tão surpreendente quanto atual sobre o fenômeno. O presente artigo está divido, portanto, em cinco seções. Na próxima seção apresentamos uma breve introdução à analítica do poder em Foucault. Na segunda seção, discutimos as vicissitudes em torno do conceito foucaultiano de biopolítica. Em seguida, problematizamos a relação entre biopolítica, racismo e os Estados liberais e neoliberais. Posteriormente, tratamos, a partir da noção de prevenção e riscos do autor, a gestão da desigualdade em relação à pandemia de Covid-19. Na última seção, são apresentadas as conclusões do texto e as considerações finais.

 

A analítica do poder

A obra de Foucault é uma propositiva reflexão sobre os limites do poder. Todavia, ao contrário dos seus antecessores, sua análise não está centrada numa principiologia do mesmo, mas no seu modo de funcionamento. Isto quer dizer que Foucault nos convida a pensar o problema do poder para além dos parâmetros da lei ou da soberania. Na visão do autor, o poder, em sua forma moderna se exerce, sobretudo, a partir da norma. Não se trata mais de um poder que se imprime através dos mecanismos de uma repressão individualizada, mas a partir ou por meio de normas (Alvarez, 2004; Foucault, 1975). Normas que não agem em sentido negativo, comprimindo, mas sim, em sentido positivo, moldando, dando sua forma e regulamentando as ações.

Há que se destacar que positivo e negativo aqui não têm qualquer conotação valorativa, mas relaciona-se tão somente ao sentido de promoção do poder e visa, em consonância ao que tratara Foucault, expandir a noção tradicional de repressão, até então, recorrentemente associada à representação negativa dos seus mecanismos. Falar no poder em sentido positivo, portanto, apela para o entendimento oposto desse sentido inicial. Trata-se do poder que coage corpos, formatando-os, disciplinando-os a partir de um conjunto de normas que conformam e caracterizam as relações de poder nas sociedades modernas (Foucault, 1998).

É neste sentido que Foucault distingue duas formas principais de exercício do poder nas sociedades ocidentais, a disciplina e a biopolítica (Foucault, 1975, 2008b). O primeiro referir-se-ia ao poder que se exerce sobre os indivíduos, enquanto o segundo, o poder que se exerce sobre populações. Juntas, a disciplina e a bipolítica inauguram aquilo que o autor convencionou chamar de biopoder. A noção de biopoder compreende o entendimento de que nas sociedades modernas o maior e principal objeto do poder agora seria a vida biológica. A sociedade moderna, enquanto uma sociedade normalizada, em sentido foucaultiano, diz respeito ao exercício do poder através do processo de regulação da vida dos indivíduos e da sociedade.

É possível afirmar, de acordo com Foucault, que a disciplina está para os corpos dos indivíduos assim como as normas estão para os corpos coletivos, para a sociedade (há norma tanto na disciplina como na biopolítica, é a diferença entre normatização e normalização). Esse movimento de extensão do poder do orgânico ao biológico, representa para o autor o epicentro de um processo de possessão da vida que começa com o fenômeno da disciplinarização e se estende para as práticas de normalização. No conjunto da obra do autor, ainda que os estudos sobre disciplinarização e normalização compreendam exercícios investigativos distintos, é importante considerar que ambos fazem parte de um processo maior que o autor compreende como a extensão e a materialização de uma nova tecnologia social do poder.

Para o filósofo francês, não se pode dissociar o nascimento da biopolítica e do biopoder do marco da racionalidade política dentro da qual surgiu o liberalismo e o neoliberalismo (Menezes, 2014; Nali et al., 2016). Na história do Estado moderno, o biopoder representaria uma nova etapa no desenvolvimento das tecnologias de gestão da vida, a qual corresponderia o chamado Estado governamentalizado. A governamentalidade seria a etapa final na evolução do Estado moderno e caracterizar-se-ia pela distinção em relação às formas políticas tradicionais de dominação (Foucault, 2008b). O Estado governamentalizado tem como objeto uma população, não somente um território; governa através dos saberes (economia, medicina, psiquiatria, estatística, epidemiologia, por exemplo) e se articulam em torno de dispositivos de segurança.

 

O homem-corpo e o homem-espécie

Decerto que transpor conceitos de um período para outro implica em custos e cuidados, visto que, certamente, neste caso, nem mesmo o autor poderia antecipar a repercussão que suas reflexões poderiam ter para o presente momento, sobretudo pela emergência que sugerem. Pode-se mesmo dizer que, aquilo que as intuições foucaultianas previam em relação à biopolítica no mundo contemporâneo extrapolou e muito as expectativas do autor e os rumos que essa forma de gestão da vida tomaria.

Na segunda metade da década de 1970, a pesquisa foucaultiana se voltou para a análise das coordenadas econômicas e político-sociais mais recentes da biopolítica nas sociedades ocidentais e foi sobre essa base que o autor apoiou a originalidade da sua reflexão sobre o efeito histórico das novas tecnologias de poder centradas não somente na gestão das vidas individuais, mas também da coletividade (Foucault, 2008a, 2008b). É nessa transição da gestão da humanidade enquanto corpo, para sua gestão enquanto espécie, que o filósofo apoia seu trabalho de interpretação genealógica dos primórdios da sociedade moderna disciplinar e normalizadora iniciada com a prestigiosa publicação de Vigiar e punir (1975).

Mesmo antes da teorização sobre a biopolítica, inaugurada em O nascimento da biopolítica, de 1979, Foucault já dava sinais, de algumas hipóteses que acabariam por tomar especial relevância nos anos subsequentes. Em A vontade de saber (1977), por exemplo, o autor afirmava que o caráter normalizador das sociedades modernas estava relacionado à promoção de novas tecnologias de poder, distintas das formas pré-modernas de dominação. É nesse sentido que se pode compreender que, embora esteja fora de qualquer propósito do filósofo oferecer uma interpretação linear das relações de poder na sociedade ocidental, há, entre o estudo das normas no século XVIII e, posteriormente do biopoder e da biopolítica no mundo contemporâneo, um relativo prolongamento dos mecanismos tecnológicos de sujeição.

De acordo com Foucault, o biopoder pode ser compreendido como o conjunto de mecanismos por intermédio dos quais aquilo que, na espécie humana, constitui os seus traços biológicos fundamentais, vai poder entrar no interior da política, dito de outro modo, a forma como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de o ser humano constituir uma espécie humana (2008b, p. 38). Foucault assinala, a partir desse conceito, a inauguração de uma chave de interpretação distinta para compreender as relações de sujeição na modernidade que foram aglutinadas a partir do assente entre a acumulação de novos conhecimentos, o desenvolvimento de novas tecnologias e a origem do crescimento da produtividade econômica.

Essas transformações alteraram as relações de poder e a multiplicação dos seus efeitos e, por consequência, as tecnologias políticas de gestão da vida e da relação delas com o desenvolvimento da economia política. Trata-se, no conjunto da obra foucaultiana, da primeira incursão do autor pela história contemporânea, mais precisamente sobre as tecnologias liberais de governo e pela modificação da noção de economia política (Foucault, 2008a, 2008b; Menezes, 2014). O antigo direito de deixar viver e fazer morrer, próprio do poder soberano do monarca, foi progressivamente suplantado pelo direito de "fazer viver e deixar morrer", próprio dos modos de gestão dos corpos e da população por parte da biopolítica. É como se o antigo poder soberano, segundo o autor, não mais fosse capaz de lidar com os desafios insurgentes da chamada sociedade industrial.

As tecnologias disciplinares do século XVIII de que trata Foucault em Vigiar e punir não foram abandonadas ou esquecidas no século XIX. Na verdade, melhor seria dizer que foram acomodadas à nova realidade, moldando-a. Enquanto os dispositivos disciplinares se dirigiam aos corpos dos indivíduos, como forma de multiplicar sua força de trabalho e enfraquecer seu potencial político, o biopoder atualiza sua aplicação agora sobre um novo objeto, a saber: a população e seus processos biossociológicos. Essa nova tecnologia posta em prática refere-se aos homens não mais como corpos individuais, mas como um corpo coletivo, um corpo espécie, uma massa global sujeita aos efeitos e processos comuns de produção, nascimento, adoecimento e morte (Bert, 2013; Foucault, 1998, 2003).

Estas estratégias de poder são distintas, mas não auto-excludentes. No primeiro caso, a estratégia é individualizada, na segunda, massificada. Enquanto o poder disciplinar referia-se ao homem como um ser individual e possuidor de um corpo, o biopoder refere-se a este homem enquanto parte de um todo, a espécie humana. Para gerir esse "novo" homem, esse novo entendimento de humanidade, as tecnologias de poder demandarão a produção de novas formas de conhecimento que pensem o homem dessa forma, enquanto ente coletivo. A gestão do Estado confunde-se agora com a gestão da vida coletiva e é nesse interim que a arte de governar tratará o corpo social como um organismo vivo, requerendo do mesmo uma descrição minuciosa e precisa dos registros estatísticos e demográficos desse corpo coletivo.

É a partir da produção de registros estatísticos e demográficos que a biopolítica pensa e arquiteta a gestão de Estado e as decisões intervencionistas sobre essa realidade. É a partir do conhecimento detalhado do comportamento biopsicossocial da população que a "mão invisível" do Estado atuará sobre a sociedade. A alusão à metáfora smithiana aqui é proposital, visto que a biopolítica se constitui como uma tecnologia científica e política que se exerce sobre as populações enquanto coletivos biológicos a partir da intervenção indireta do Estado no intuito de maximizar as potencialidades vitais das populações ou, simplesmente entregando à própria sorte, conduzi-las ao extermínio por meio da negação, da exclusão e do abandono.

A lógica da distribuição privilegiada das intervenções do poder público acompanha o pressuposto de que o Estado existe não para proteção dos indivíduos, como quisera a principiologia hobbesiana, mas para a garantia de antecipação dos riscos que ameaçam as populações. Os conhecimentos elaborados pela medicina social, pela demografia, pela estatística e por outras ciências especializadas na regulação e gestão dos riscos sociais moldarão o desenvolvimento de políticas de controle de natalidade, de letalidade, de morbidades das mais variadas espécies e das endemias. Para garantir o pleno desenvolvimento do capitalismo será necessário estudar e controlar as patologias biológicas e sociais. Traçar estratégias para atenuar a debilidade e os custos econômicos que tanto os fatores internos (biológicos), quanto os fatores externos (sociais), imprimem ao homem e ao meio. É nesse sentido que a biopolítica redefine o papel do Estado moderno como um mero controlador de riscos, um esquema de garantias e nada mais (Díaz, 2012; Nali et al., 2016).

Aquilo que poderia ser um mero infortúnio de ordem pessoal, não o é quando pensado como um fenômeno que se reproduz sobre uma população enquanto categoria coletiva. A preocupação imediata deste Estado, no entanto, não é reprimir ou eliminar esse fenômeno. A arte de governar liberal da biopolítica levou a máxima da não intervenção do Estado para a seara dos temas públicos e não só econômicos. É nesse sentido que o Estado passa a assumir a função de mantenedor e de provedor das necessidades dos indivíduos. Aquele que transformando a "bios" (vida) em objeto de conhecimento, poderá esquadrinhar todos os riscos a que a população estará submetida e implantará um mecanismo de segurança para atenuação de cada perigo.

Acontece, todavia, que o interesse pela promoção dessa expectativa de segurança não se distribui de forma equânime pela sociedade e, pode-se dizer que, para determinadas corpos e coletividades, o abandono faz-se parte planejada também de uma estratégia de aniquilamento e de seleção entre os que receberão ou não a intervenção do Estado. A categoria do abandono, do esquecimento ou mesmo do Estado de exceção como definira Agamben, não é acaso ou circunstância. O esquecimento do Estado não é uma não-ação, muito pelo contrário. Esta indiferença por parte daquele que deveria amparar os seus cidadãos, é uma ação planejada, orientada a um fim específico, figurando-se também enquanto mecanismo de poder de natureza biopolítica. Falamos aqui daqueles indivíduos que o Estado considera supérfluos, para os quais o Estado não dispõe de qualquer auxílio ou recurso de proteção, aqueles considerados indesejados e prescindíveis (Agamben, 2010).

O ato de "deixar morrer", em sentido foucaultiano, pode ser compreendido a partir da cadeia de vulnerabilidade que de determinadas parcelas da população estão condicionadas, mais do outras. Essa distribuição desigual dos riscos e da vulnerabilidade pode ser pensada tanto entre os Estados, quando tratamos, por exemplo, das diferenças em torno da renda, da expectativa de vida ou dos usufrutos do acesso a mais ou menos anos de estudo, quanto, dentro de um mesmo Estado-nação e em uma sociabilidade construída coletivamente, mas não repartida da mesma forma, dadas as ações contrastantes entre os seres. No caso das realidades particulares de cada Estado há que se destacar o impacto que a história social e política dessas sociedades imprime à dinâmica das vantagens e desvantagens de um grupo sobre outro. Foi nesse sentido que, para melhor compreender a dualidade dessa forma de gestão das populações, Foucault explorou também no seu trabalho o papel exercido pelo racismo como eixo de articulação das estratégias de poder e dos dispositivos de segurança nos estados liberais e neoliberais.

 

O racismo de estado

Para Foucault, a biopolítica está para os Estados modernos como o racismo está para a arte de governar inaugurada pela modernidade. Nas palavras do autor, o racismo seria o meio pelo qual a bipolítica poderia ser exercida sobre a vida das populações (Foucault, 1999). Neste sentido, o racismo estaria no epicentro da moderna forma de Estado enquanto uma técnica de governo, por meio da qual o governo é capaz de maximizar a força de trabalho das populações e estabelecer uma espécie de equilíbrio entre os grupos. Equilíbrio esse pautado não por qualquer princípio normativo de justiça, mas pela ideia de que a inclusão de uns se faz, necessariamente, a partir da exclusão de outros. Por isso mesmo, seguindo o autor, todas as sociedades modernas conviveriam com algum grau ou forma de racismo, explícito ou implícito.

Talvez o racismo seja uma das fontes mais perversas da biopolítica, exatamente por que é através do racismo que se institui toda a lógica interna de regulação da exclusão e da morte como estratégia de gestão das populações. Foucault falará do racismo, portanto, não como uma simples distinção de raças, mas como uma estratégia de articulação de uma hierarquização das raças, por meio da qual é possível ao Estado promover a negação, a exclusão e a condenação da vida de determinados grupos humanos. O racismo seria, nesse sentido, uma condição do Estado moderno, uma das configurações mais importantes e contínuas da biopolítica (Foucault, 2008b). O recurso por meio do qual é facultado ao Estado determinar quem deve viver e quem deve morrer. Seria a expressão máxima da inversão do sentido histórico do Estado configurado agora pelo advento da modernidade como a entidade política que detém, em absoluto, o poder de matar.

Se a biopolítica trouxe a vida biológica para o centro da gestão do Estado, o racismo possibilitou a repartição do campo biológico a partir de um discurso evolucionista, biologizante e colonialista que na segunda metade do século XIX atravessou não somente as ciências médicas e biológicas, mas até mesmo o discurso das ciências sociais. A ideia de uma hierarquização dos grupos humanos, como sugere o racismo, orienta na prática, de acordo com Foucault, aquilo que deve ser eliminado e aquilo que deve ser preservado, maximizado e garantido. É pautado nessa perspectiva que o Estado moderno fará uso político do racismo para justificar a promoção do genocídio sistemático dos grupos ditos inferiores e biologicamente perigosos.

O racismo enquanto mecanismo ou tecnologia de poder seria a quintessência do Estado moderno e da biopolítica. Longe de ser uma mera tradição velha ou uma ideologia datada, Foucault toma o racismo na sua especificidade moderna (estatizante e biologizante) como um recurso fundamental do poder do Estado moderno, a ponto de considerar que não há funcionamento moderno do Estado sem que se faça referência ou alusão ao racismo. Dito de outra forma: não há Estado moderno sem racismo. Sua utilização foi levada a cabo de forma irrestrita, tanto à esquerda, quanto à direita, embora ele destaque que será através do nazismo que a disciplina, o racismo e a biopolítica serão levados até o seu paroxismo por meio de um discurso de guerra de raças de caráter profético e apocalíptico (Bert, 2013; Nali et al., 2016).

No caso nazista, o direito sobre a vida e sobre a morte não era somente exercido pelo Estado, mas por todos os indivíduos através das denúncias. Trata-se do desenvolvimento no extremo das práticas racista e biopolíticas oriundas da modernidade. É por isso mesmo que Foucault atestará que no caso alemão, o Estado nazista foi a consecução de modelo de Estado mais assassino da história. Uma experiência extrema de aplicação da disciplina e do biopoder em toda sua magnitude. Um exemplo da disseminação do poder de matar e do poder soberano por toda a extensão do corpo social. Neste contexto a guerra de raças e a morte não é um simples objetivo da política, mas antes o resultado último de todo e qualquer processo político. A sociedade nazi seria o exemplo fundamental da generalização política do biopoder e do racismo de Estado (Foucault, 2008a, 2008b).

O fastígio da experiência nazista, ainda que não seja o núcleo da pesquisa foucaultiana, é um ponto importante dentro do seu modelo explicativo do racismo enquanto promotor da exclusão e da morte nas sociedades modernas. É através da experiência nazista que o autor discutirá as formas pelas quais o racismo biológico foi incorporado como estratégia global do Estado. Fala-se em estratégia global aqui por que, como pondera o autor, o racismo pré-moderno, caracterizado pela luta de uma raça contra a outra é distinto do racismo de Estado moderno. Este último, caracterizar-se-ia como uma estratégia que a sociedade exerce sobre si mesma em termos de purificação permanente e de normalização social. A raça aqui é entendida a partir de um ideal de monismo biológico permanentemente ameaçado por elementos heterogêneos que se infiltram e ameaçam a integridade do grupo.

O Estado não será para Foucault um instrumento de uma raça contra outra e insistir nessa perspectiva seria insistir sobre uma interpretação ingênua do racismo e dos seus mecanismos de sujeição. O Estado seria sim o garantidor da integridade e da pureza da raça. O antigo discurso do poder soberano que se utilizava da imagem da guerra de raças como base para constituição do princípio da soberania foi, na modernidade, superado pelo discurso de raça no singular. Essa inversão de sentido patrocinou a promoção de um modelo de gestão policial orientado em favor da fabricação de dispositivos e tecnologias de controle internos dessa população, fazendo funcionar dentro de um mesmo povo a antiga relação de guerra ("se queres viver, é necessário que possas matar"). A eliminação do outro, sua morte não é condição da minha vida, mas a fará mais segura, mais saudável e, portanto, pura.

Ainda que não faça parte dos propósitos de Foucault elaborar uma história ocidental do racismo e de suas práticas, o racismo é um ingrediente político indispensável do processo de configuração das novas formas de gestão de governo. O racismo, mais precisamente o racismo biológico, entra para o autor no bojo da analítica do exercício do moderno direito de matar. Um modo de matar peculiar, sui generis, caracterizado não mais pelo poder soberano que flagela e tortura corpos individuais, mas através da exposição de uma raça à morte. Aquilo que pode ser conquistado pelo Estado não mais perseguindo a eliminação de uma dada raça, mas tão somente abstendo-os de qualquer forma de proteção e empatia. O racismo aparece, portanto onde a morte é requerida: na guerra, na colonização, na criminalidade, na doença mental e hoje, de modo mais sofisticado, mas não menos eficiente, na gestão dos ditos inimigos do Estado (Foucault, 2008b; Menezes, 2014).

A questão do racismo, colocada pela biopolítica, não compreende uma disputa para derrotar um adversário, nem um conflito entre sujeitos de direito, mas uma estratégia de poder pautada na exclusão de indivíduos que representam um perigo biológico, um perigo à segurança da vida daqueles que se quer preservar e maximizar. Tratando todos os indivíduos como espécie, como nada além de vida biológica, a modernidade promoveu uma redução e identificação entre a vida biológica e a política, condicionado, na verdade, a política a uma condição de subordinação em relação aos fatos biológicos. Esse processo teria esvaziado o sentido tradicional da esfera política e relegado os homens à efemeridade da pura e simples existência biológica. É curioso observar, no entanto, que esse processo foi desencadeado pelo liberalismo do século XVIII, que ao passo que apela para universalidade dos direitos do homem e do cidadão, restringe o domínio político à gestão das necessidades biológicas.

Essa distinção entre a esfera da pólis e a esfera da vida biológica e das suas necessidades faz importante aqui por que aponta para essa peculiaridade do limiar da arte liberal de governar: se por um lado o liberalismo entronizou o direito negativo e da liberdade individual como princípio da conquista de direitos, por outro, transformou o sentido clássico da esfera pública, sujeitando a atividade política aos desígnios da vida doméstica, superando a oposição tradicional dos antigos entre público e privado e condicionado a ação política a um modo de gestão e administração de corpos-espécies. É nesse sentido que Foucault destaca o processo de esvaziamento da atividade política propriamente dita, a capacidade de diálogo e existência política dos cidadãos, em favor de uma política que é, literalmente, "política de ou sobre a vida".

Hannah Arendt (2002, 2012), assim como Foucault se debruçou sobre a análise do mal total e do paroxismo do nazismo alemão, em proximidade ao que foi também destacado por Foucault, apontou, no caso da experiência política dos apátridas e daqueles que foram desterrados para os campos de concentração, o quanto a mera designação dos indivíduos como "seres vivos" mostrou sua absoluta debilidade e perigo, haja vista que a suposta existência de seres humanos em si não é suficiente para garantir a quem quer que seja qualquer prerrogativa ou proteção legal. Nas palavras de Arendt, em se tratando dos sobreviventes dos campos de concentração, dirá a filósofa, "o mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano", "os internados nos campos de concentração e de refugiados, a até os relativamente afortunados apátridas, puderam ver ... que a nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam" (Arendt, 2002, p. 82).

Essa transformação da esfera da reprodução da vida, o mundo da necessidade, no princípio elementar da atividade política foi indispensável para vinculação da gestão das populações ao racismo de Estado. No momento que o domínio da ética e da política clássica foi substituída por uma espécie de governo sobre a vida, próprio da biopolítica, a partição da sociedade em normal e patológica a partir de um discurso médico e especializado naturalizou as desigualdade entre os grupos sociais e a hierarquização dos ditos mais e menos saudáveis, mais e menos desejáveis, mais e menos perigosos ou ainda aqueles que são mais e menos dignos de viver e conviver com todos os outros.

 

A distribuição desigual dos riscos e a Covid-19

A aceitação da morte ou da exclusão para alguns em detrimento de outros, enquanto estratégia estatal, só se faz possível a partir da implantação do racismo como estratégia de poder do Estado, mas há que se destacar ainda que essa associação entre a arte de governar e os discursos eugenistas de melhoramento e aperfeiçoamento da espécie só foram possíveis com o advento do liberalismo e, depois, do neoliberalismo. Ainda que os estados totalitários do século XX tenham implantado a biopolítica em toda sua magnitude, dirá Foucault, foi através do Estado liberal que a biopolítica encontraria uma pluralidade quase infinita de formas tão hábeis quanto sutis de sujeição das populações (Díaz, 2012; Foucault, 1992, 2008a).

Mas o que o autor quer dizer com formas mais hábeis e sutis de sujeição? Em Segurança, território e população, de 1978, Foucault nos deixa algumas pistas nesse sentido. A partir dessa obra é significativo o esforço do autor em discutir e problematizar o alcance do seu conceito de biopolítica para a sociedade contemporânea. É nesse sentido que ele irá se afastar da primeira interpretação racialista e eugenista do conceito, para aplicá-lo para além dos modos de governar dos chamados Estados totalitários. Foucault deixará claro que o nazismo, por exemplo, foi uma experiência extremada, mas que não pode ser equacionada aos usos e aplicações do racismo e da biopolítica no mundo do segundo pós-guerra. Não porque o racismo tivera desaparecido, mas, contrariamente, porque era necessário agora discutir o processo de adaptação da biopolítica às ordens políticas das chamadas democracias liberais.

Como a biopolítica operaria fora do cenário dos discursos eugenistas do século XIX? Quais seriam suas novas bases de perpetuação? É perceptível que o racismo está explicitamente excluído da dimensão jurídica e constitucional destes regimes, todavia, seus efeitos persistem e se multiplicam no tempo, por quê? Que outra ou outras tecnologias de poder tem substituído, figurativamente, o racismo em favor da manutenção da lógica da exclusão e genocídio de determinados grupos ou raças? Enfim, como manter a máquina de trituração de corpos-espécies sem ferir a aparente legalidade da ordem democrática?

Foucault nos dirá que as sociedades liberais e neoliberais continuam sendo imbuídas da lógica da biopolítica, mas destacará que no lugar da dualidade normal-patológico, estas sociedades apoiam-se agora sobre uma espécie de economia dos riscos, apoiada sobre o medo como forma de gestão das relações sociais e políticas. Segundo o autor, é como se as sociedades liberais e neoliberais estivessem menos interessadas em promover o melhoramento genético da sua população e mais empenhadas em delegar essa missão aos próprios indivíduos, levando-os que persigam aquilo que lhes garantirá mais vida, mais estabilidade e, portanto, menos exposição ao risco e aos perigos internos da própria sociedade (Foucault, 2008a).

E qual seria o papel do Estado dentro dessa nova biopolítica dos riscos? O Estado será um antecipador de riscos, será o responsável por calcular os desvios, por relacionar as situações de perigo, por discriminar quem são e onde estão os possíveis inimigos, enfim, restará ao Estado, sobretudo, a promoção da informação. Essa ideia que relaciona risco e prevenção, somada à ideia de liberdade em sentido negativo, de que tratam os liberais, irá permitir a população como um aglomerado de seres biológicos particulares que, em nome de uma pretensa liberdade e autonomia, responsabilizar-se-ão pelo cumprimento da normalização da vida e por perseguirem e se responsabilizarem pela própria segurança.

Essa fantasiosa representação do laissez-faire, de indivíduos que fazem o que querem de si, por que não mais estariam submetidos ao autoritarismo do poder soberano é tão enganosa quanto cruel, posto que se apoia sobre uma redução da liberdade à operacionalização dos mecanismos de risco e segurança. Trata-se de um sistema que se diz defensor das liberdades e das iniciativas individuais, mas que, na verdade, entrega os indivíduos à própria sorte, sob as vestes de uma falsa condição de igualdade, como se todos estivessem sobre as mesmas condições de proteção e sobrevivência. É nesse sentido que Foucault, considera que no caso das sociedades liberais e neoliberais, as condições de sujeição dos indivíduos ao biopoder são ainda mais sutis e eficientes do que no caso dos Estados totalitários, seja porque tudo isso faz-se com um apelo reduzido ao poder coercitivo, seja porque essa exclusão e abandono se integram à preservação da democracia.

O antigo contrato social do século XVIII foi suplantado por uma espécie de pacto perpétuo de segurança, onde as intervenções do Estado agora restringem-se a ações não mais impositivas, mas tão somente reguladoras. Os Estados liberais e neoliberais admitem que todos os indivíduos são perfeitamente capazes de realização de um cálculo racional, por meio do qual, se devidamente informados, os indivíduos poderão responder por suas estratégias individuais de prevenção. No caso específico das sociedades que atravessaram reformas neoliberais, onde o modelo de Estado de bem-estar social foi desmontado, essa economia dos riscos ampliou ainda mais as responsabilidades individuais dos sujeitos que, embotados, pelo discurso pretensamente neutro do mérito, cedem ao discurso impositivo do pseudo "cuidado de si" (Foucault, 2008a).

Essa lógica de que somos os únicos responsáveis por nós mesmos, imputa o compromisso pela saúde e a antecipação dos riscos a nós mesmos. A vida e a morte seriam de responsabilidade estrita dos próprios indivíduos. De um lado aqueles que buscam a maximização da vitalidade e dispõe de estratégias hiperpreventivas. Do outro, aqueles que seguem recorrentemente expostos às situações de risco, vidas vulneráveis, descartáveis e, portanto, matáveis. Estamos falando aqui daqueles ou daquela parcela da população para qual o Estado não dispõe de políticas, atenção ou qualquer mecanismo de proteção. São os indivíduos entregues à natureza. Desprovidos de qualquer discurso de direito ou de deveres, indignos da intervenção ou do interesse do Estado. Aqueles que entregues à sobrevivência biológica encontram nas adversidades resultantes da desigualdade social e econômica, o principal desafio da sobrevivência (Santos, 2020).

No caso da pandemia de Covid-19 que atingiu o planeta nos últimos meses, é possível observar que, seguindo a lógica da distribuição desigual das desvantagens, o novo vírus não atingiu todas as sociedades da mesma forma. Em determinadas partes do globo, a pandemia atingiu algumas sociedades e Estados mais do que outras. Um raio-x destas comunidades em detalhe nos revelaria ainda que o vírus, mesmo dentro da mesma realidade, mata mais alguns grupos do que outros. O discurso propagado por representantes políticos e figuras públicas no início da crise, de que todos estão igualmente expostos aos efeitos do novo vírus é uma fraude. Os mais pobres e miseráveis, aqueles que vivem para sobreviver, na verdade, a grande maioria da população, dispõem de menos condições de proteção e segurança contra o novo coronavírus, sobretudo, por que não dispõem de condições para garantir o cumprimento das medidas de isolamento social, visto que não possuem renda para ficar em casa ou fazer compras por aplicativos.

No caso do Brasil, por exemplo, a população economicamente ativa gira hoje em torno de 79 milhões de pessoas. Comparado com outros países em desenvolvimento, é relativamente pequena. Isso significa que 46,7% da população brasileira atua, de alguma forma, no setor produtivo, enquanto 53,3% fica, literalmente, à mercê daqueles que são economicamente ativos. Essa realidade, no caso da pandemia, amplifica os efeitos perversos da desigualdade social, posto que dentre os ditos economicamente ativos, pelo menos 50 milhões destes não tem contrato formal de trabalho ou sobrevivem a partir de vínculos precários de trabalho que inviabiliza qualquer estratégia preventiva contra o novo vírus. À despeito do impacto que essa matriz econômica e social imprime sobre as condições de prevenção da população, os gestores políticos e sanitários insistem em apresentar um cenário onde os efeitos do novo vírus parecem estritamente relacionados às decisões de ordem técnica e administrativa. Segue nos discursos políticos do momento a indiferença quanto aos efeitos que o capitalismo, mais precisamente, a hegemonia neoliberal inaugurada na década de 1980, imprime ao cotidiano da crise (Mercer, 2020; Reich et al., 2020).

Como dito anteriormente, a pandemia do novo coronavírus trouxe à cena política os modelos explicativos de Foucault e amplificou os usos do seu conceito de biopolítica. O Estado que apela para redução da curva de contágio é, nesse sentido, menos uma instituição de cuidados humanitários e mais, uma entidade preocupada em atender as condições emergenciais do capitalismo. Ademais, embora se associe Foucault como um autor anti-Estado, ele não está interessado em avaliações prescritivas do Estado de modo a considera-lo algo bom ou ruim. Seu propósito é apontar as transformações em torno da arte de governar caracterizada pelo fenômeno de estatização da vida biológica. No caso do novo coronavírus, por exemplo, a maioria dos Estados vêm promovendo variadas medidas de controle sanitário e populacional. Todavia, há que se destacar que estas ações são dirigidas para evitar um maior número de mortes, mas não exclusivamente, pois compreendem também, medidas focadas no melhor condicionamento e aproveitamento das forças vivas da sociedade.

O apelo pelo cumprimento das medidas de controle por todo o mundo, faz-se cada vez mais crescente durante a pandemia, embora os Estados negligenciem o fato de que a eficiência das medidas parece estar diretamente relacionada às condições econômicas e sociais da população. Os Estados onde a maioria da população padece na pobreza e na desigualdade de oportunidades, o apelo às medidas de controle é inócuo e o número de mortes se avoluma. O fato é que a maioria da população nestes Estados, a exemplo do Brasil, não dispõe das mesmas condições sociais que a minoria dispõe para se proteger: a adaptação do trabalho às condições domésticas, o acesso a condições sanitárias favoráveis, a garantia de moradia digna onde se possa cumprir as medidas de isolamento social etc. A lógica da distribuição desigual dos riscos de que fala Foucault está matando mais alguns grupos do que outros. Dentre os mais vulneráveis à morte por Covid-19 cresce o registro de idosos pobres, pessoas com comorbidades também em situação de precariedade e, especialmente, a população preta, está em suas mais variadas representações.

O coronavírus expôs uma espécie de radiografia do capitalismo contemporâneo, mostrando aquilo que parte da humanidade, da ciência econômica e da economia política pareciam querer esquecer: o vírus pode ser indiferente ao modo de produção econômica, mas não o é em relação às estruturas sociais. As condições sociais tem determinado a forma com que a crise impacta a vida dos grupos e comunidades, seu grau de sofrimento e o perfil daqueles que, na ausência de políticas específicas, estão, por parte do Estado e da sociedade, entregues à própria natureza para que, por conta própria, pereçam. O elo inextricável entre biopolítica e racismo encontra modos eficientes de reprodução durante a pandemia, mostrando que durante a maior crise de saúde pública do novo século, alguns são mais iguais do que outros.

A crise não inaugurou essa desigualdade. Na verdade, a crise pôs à mostra aquilo que se insistia não ver. Aqueles que não comem durante a pandemia, já não comiam antes da pandemia. Aqueles que hoje não podem se isolar, já viviam antes sob condições precárias de sobrevivência. Os que habitam aglomerados subnormais, por exemplo, desconhecem desde muito o sentido da ideia de isolamento social. Somente no Brasil, são aproximadamente 4,5 milhões de pessoas desprovidas de condições elementares de higiene. Falta água encanada, saneamento básico, e de sobra indiferença do poder público. Nesse sentido, não precisa ser sociólogo para entender que a resistência às medidas de isolamento social, sobretudo nos bairros mais populares e periféricos das grandes cidades brasileiras, acompanha a lógica da indiferença de quem sempre foi invisível ao Estado e que hoje, pouco percebe a piora das condições de vida antes e depois da pandemia. Para essa parcela expressiva da população não se trata de uma crise, mas de uma crise dentro de outra crise. Uma tragédia natural que intensificou os contornos de uma catástrofe social que não é nova.

 

A modo de conclusão

O estudo procurou abordar a forma com que os conceitos elaborados por Foucault sobre a biopolítica podem ser interpretados e servir como baluartes postuladores da pandemia do Covid-19, que submeteu todos os países do globo e, em especial, o Brasil, para condições de vida ou de morte. Essas variadas condições advêm da grande desigualdade social que caracteriza a sociedade brasileira desde a sua formação e persiste com grande força nos dias atuais.

Uma das funções do Estado moderno e, principalmente, das políticas auspiciosas do chamado Welfare State, é proteger e amparar os seus cidadãos, os quais, ao abdicarem de suas liberdades individuais para estarem sob os auspícios do poder estatal, têm a crença da proteção deste, especialmente para a defesa de seus corpos e vidas. Entretanto, considerando que no interior deste mesmo Estado podem ocorrer relações de poder e de dominação, já preconizadas por Weber (1999) em Economia e sociedade, podemos traçar paralelos e considerar que nem todos os indivíduos possuem os mesmos graus de proteção do Estado. Esta gradação é decisiva para a vida ou a morte de grande parte da população que, desprovida das condições materiais de sobrevivência, exposta à grande vulnerabilidade social de uma sociedade marcadamente desigual, é relegada a própria sorte, sendo alocados para as margens desta mesma sociedade pseudo protetora.

É exatamente neste ponto teórico que a teoria foucaultiana sobre a biopolítica demarca claramente os limites de proteção deste Estado. A biopolítica seria a maneira pela qual o Estado regula os aspectos biológicos dos indivíduos, estando estes imersos nas próprias entranhas deste aparelho regulador estatal, sendo, ao mesmo tempo, sujeito (pois escolhem seus representantes) e objeto (receptores das normativas do Estado), mergulhados em determinações políticas mais amplas. E nesta relação de alteridade, os indivíduos também encontram tratamentos diferenciados por parte deste mesmo Estado que, firmador do pacto social preconizado pelos contratualistas, se propõem protetor.

Se a história abordou os efeitos do racismo e da dominação sobre os sujeitos, os quais desaguaram na formação de regimes genocidas como o nazismo, no contexto da sociedade atual, vida e morte dos cidadãos podem ser decididas pela persistência da desigualdade social. Ao insistir na persistência do acesso a uns e da negativa a outros, o Estado também impõe, naturalmente, a condição de proteção a uns e de elevada rejeição a outros. Tais limites, claramente evidenciados a partir da negligência estatal no tratamento de alguns indivíduos, tornam-se decisivos em condições extremadas de calamidade social, como a pandemia de Covid-19.

Desde o início dos protocolos sanitários, o isolamento social foi o grande protagonista do sucesso das políticas de combate ao vírus. Entretanto, os indivíduos mais vulneráveis não tiveram o mesmo tratamento do que aqueles com condições adequadas para "ficarem em casa", consumirem produtos oriundos de vendas on-line e de higienização adequada com álcool em gel e sabão. Se considerarmos que nem todos os indivíduos brasileiros possuem recursos financeiros para estarem amparados com tais condições (básicas é verdade), então devemos pressupor também que a pandemia atinge de maneiras abissalmente diferentes ricos e pobres.

Neste sentido, os marginalizados da sociedade possuem condições desfavoráveis de preservação de seus corpos e vidas, as quais deveriam ser condição sine qua non para o tratamento adequado para todos os indivíduos na pandemia. Mas a história e a contagem dos que viveram ou morreram narrarão o desfecho cruel de políticas que são marcadamente discrepantes.

 

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Recebido em: 21/07/2020
Aprovado em: 08/04/2021

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