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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

RESENHA

 

Por uma psicologia anticapitalista: vozes de nuestra america

 

Towards an anticapitalist psychology: voices of nuestra america

 

Por una psicología anticapitalista: voces de nuestra américa

 

 

Fernando Santana de Paiva

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora/MG. fernandosantana.paiva@yahoo.com.br

 

 


Resenha de: Pavón-Cuéllar, D. (Org.). (2017). Capitalismo y Psicología Crítica en latinoamérica: del sometimiento neocolonial a la emancipación de subjetividades emergentes (1ª ed.). Kanankil Editorial.


 

 

Superar o Modo de Produção Capitalista [MPC] e construir outro modelo de sociabilidade pode ser considerada uma das questões mais amplamente debatidas nos últimos séculos. Atores políticos, filósofos, artistas e mesmo psicólogos tem se debruçado sobre esta importante tarefa. Não se trata, portanto, de algo novo no pensamento social, haja vista as análises e denúncias já outrora propagadas por Marx (2011), em pleno século XIX, no tocante aos efeitos perversos produzidos pelo capital nas relações humanas, e, consequentemente, no processo de subjetivação.

Pois bem, em que medida a Psicologia, como práxis social, diretamente presente no âmbito da sociedade capitalista pode contribuir nesta tarefa? De maneira a não encerrar o debate e apontar uma alternativa unívoca, tal indagação é ampla e diversamente discutida no livro Capitalismo y Psicología Crítica en latinoamérica: del sometimiento neocolonial a la emancipación de subjetividades emergentes, organizado por David Pavón-Cuellar, publicado em 2017. Trata-se de uma obra que apresenta um conjunto de reflexões e direcionamentos ético-políticos que visam edificar um horizonte para a Psicologia, que tenha como parâmetro central a superação do capitalismo. Ademais, reconhece a necessidade de se aliar à luta anticapitalista, a superação concomitante das práticas que favorecem sua perpetuação, como o racismo e os seus efeitos sentidos em nosso cotidiano, bem como o patriarcado, que se expressa na divisão sexual da vida.

Os 12 capítulos que compõe o livro, apesar da diversidade temática explorada pelas autoras e autores, apresentam linhas convergentes de ação-reflexão-ação. De maneira geral, compreendem que a Psicologia, a partir de uma análise social de sua história, se configurou como uma ciência comprometida com os desígnios do capital. Especificamente, em nosso continente, o desenvolvimento de um aparato estatal que é fruto de uma herança colonizadora, sanguinária e autoritária, prescindiu de diferentes ferramentas para sustentar seu projeto de poder. A Ciência, com suas raízes positivistas e bem ao gosto do homem burguês liberal, foi (e continua sendo em alguns casos) uma linguagem altamente importante para a mensuração e o controle do que é tido como diferente e indesejado aos olhos da classe dominante. Nesse sentido, a Psicologia que emergiu no cenário latino-americana, foi historicamente, atrelada a um projeto de Estado autoritário e violento, avesso às diferenças e ocupado com a normatização e a padronização.

Conforme já destacara Martín-Baró (1986), o saber psicológico, concatenado com uma perspectiva a-histórica, míope em relação às mazelas sociais e econômicas, bem como pretensamente neutra no tocante ao processo de produção do conhecimento, foi hegemônica por décadas em nossa realidade. Prevaleceu a importação a-crítica de teorias dos chamados países desenvolvidos (colonizadores), o que, indubitavelmente, produziu efeitos deletérios na capacidade de compreensão das reais necessidades do nosso povo.

Na esteira destas reflexões, o primeiro capítulo do livro, intitulado Capitalismo y psicología en la historia latinoamericana: esbozo de recapitulación histórica para proyectos liberadores anticapitalistas, de David Pavón-Cuéllar, explora as raízes do processo de colonização do continente latinoamericano, ressaltando a relação entre psicologia e capitalismo ao longo de mais de 500 anos de exploração e espoliação. O presente, marcado por um projeto neoliberal em marcha, é herdeiro de um passado, no qual a dominação, a submissão e o extermínio dos povos originários foi fundamental para o advento do projeto capitalista em nossa realidade social com as características que o torna particular na geopolítica mundial. Conforme bem salientou Galeano (2010), a colonização latinoamericana é marcada pela violência de Estado, pelo esmagamento das tradições, saberes e riquezas indígenas e sua apropriação pela força colonizadora, que perpassa desde o passado hibérico até o imperialismo capitaneado principalmente pelo projeto estadunidense de sociedade, bem como os projetos nacionalistas e afeitos a lógicas fascistas em evidência ao redor do mundo, assim como em nosso continente.

Psicologicamente, tal projeto se apropriou do corpo e da força dos povos originários, descartando, portanto, sua alma, ou seja, sua cultura, seus saberes, seus modos de vida, traduzidos como algo a ser superado. Bestificar (desumanizar) os indígenas foi uma estratégia eficaz no processo de dominação dos colonizadores, na medida em que se coisificavam os sujeitos, possibilitando a expressão de formas de violência e controle necessários à imposição do projeto colonizador. Uma das consequências é a conformação de uma psicologia racista, que ideologicamente foi necessária para sustentar politicamente o projeto de deterioração do outro, visto como inferior.

Fernando Gonzáles Rey escreve o capítulo que se intitula "Los desafíos de la psicología frente ao capitalismo subdesarrollado de América Latina: los déficits para generar una práctica profesional diferente. O autor parte da compreensão de que o capitalismo no território latino-americano é dependente, oriundo de uma inserção subalterna de nossos países no cenário capitalista mundial. Essa posição dependente influencia, de maneira negativa, sobretudo, a produção de conhecimento em Psicologia e demais ciências humanas, que consigam propor ações que superem o quadro em tela. O efeito se dá na formação de profissionais pouco críticos e criativos para enfrentarem as reais necessidades das sociedades latino-americanas. Segundo o autor, historicamente, a psicologia tem adotado uma perspectiva de manutenção da ordem e status quo, não se orientando para a transformação social, tampouco assumindo um projeto claramente anticapitalista. O papel da Psicologia neste cenário é justamente se contrapor a um projeto de ampliação da barbárie social e construir junto à sociedade alternativas a este projeto capitalista que ameaça as diferentes formas de vida.

O autor destaca ainda a importância da subjetividade como produção histórica e cultural que pode contribuir para as análises da psicologia sobre como as condições de vida incidem sobre os sujeitos, que não são simplesmente passivos ao que ocorre, mas resistem e respondem a partir da produção de sentidos sobre os acontecimentos com os quais necessitam lidar. Ou seja, a subjetividade é cultural e socialmente produzida, e, isto implica em criar novas possibilidades de emergência para os sujeitos, e, ao mesmo tempo para a própria Psicologia, que deve seguir em sua rota de reinvenção do seu que fazer.

Hegemonía y contra-hegemonía del pensamiento psicosocial latinoamericano é o capítulo escrito por Jorge Mario Flores Osorio. O autor aborda como a intervenção psicossocial pode adotar como matriz analítica o indivíduo em seu modelo liberal, ao sabor de organizações mundiais de combate às mazelas produzidas pelo próprio capitalismo. A indevida apropriação do termo psicossocial pode conduzir costumeiramente à que os psicólogos, contribuam, a partir de suas ações, no processo de adaptação do sujeito à desigualdade social, pela velha e nebulosa fórmula: basta consertar o indivíduo que resolvemos a sociedade! Ele ainda faz uma importante afirmação quando indica que organizações internacionais de pretenso ideal humanitário se utilizam de categorias como empoderamento, resiliência e acompanhamento psicossocial como formas de manter a ordem e não superá-la.

Conforme já mencionado, não é possível dissociar o desenvolvimento do capitalismo em nosso continente do próprio desenvolvimento da psicologia. Ou seja, é preciso contextualizar como se deu a conformação da ciência psicológica a partir de um projeto de sociedade que se pauta pela exploração, opressão, individualismo e meritrocracia. Edgar Barrero Cuellar, no capítulo La psicología en América Latina: el giro revolucionario, considera que a Psicologia científica, com seu caráter racista, machista e classista (aqui pelo espectro da classe dominante) e não da classe trabalhadora, tem sido um instrumento fundamental para a adaptação e submissão dos sujeitos a um projeto que impede a criação e a potência do humano.

Esse autor salienta a importância de reconhecermos as contradições internas à Psicologia como forma de superá-las, tendo em vista a necessidade de uma Psicologia que se reconheça como processo dentro de um sistema de violências e disputas políticas. Salienta a participação de psicólogos como apoiadores de ações violentas, de tortura e de propagação de mentiras ao servir a um Estado opressor e autoritário no decorrer da história da América Latina. O autor advoga a necessidade de uma psicologia anticapitalista, apostando em três aspectos centrais para se atingir tal objetivo: (a) o desenvolvimento do coletivo em detrimento do projeto individualista liberal burguês; (b) a superação da ideologia mercantil que fetichiza o corpo e a subjetividade humana; c) não se pode avançar naquilo que se considera crítico sem uma análise pormenorizada do sistema capitalista, sua ideologia e os usos que são feitos da Psicologia para sua manutenção.

El sentimiento y piensamiento antiestadounidense en "nuestra" América, de Ángel Rodríguez Kauth soma-se aos autores anteriormente elencados, e, sinaliza a importância de uma luta constante contra as diferentes expressões do domínio capitalista, sendo os Estados Unidos da América um forte expoente, especialmente em sua relação de domínio econômico e cultural exercida com a América latina. Mas Allá de la psicología del mestizaje: capitalismo, colonización y singularidad latinoamericana, escrito por David Pavón-Cuéllar e Mario Orozco Guzmán, discorrem sobre a singularidade latino-americana, que é perpassada por mazelas e agudos problemas sócio-políticos, que contribuem para a formação de uma identidade sócio-cultural entre aqueles que a vivenciam. Ao mesmo tempo, tal cenário nos diferencia dos vizinhos do norte, em especial, do imperialismo expresso pelos Estados Unidos. Os autores salientam as diferenças entre o processo de construção identitária nos países latino-americanos, em que se observa um processo de mestiçagem, a partir da violenta, porém presentes e importantes incorporações de diferentes traços culturais indígenas, negros e europeus.

Subjetividades emergentes del siglo XXI é escrito por Raquel Ribeiro Toral e discorre sobre o processo de subjetivação no capitalismo. A autora argumenta sobre a estrutura econômica e social que sustenta o processo de alienação, que culmina em um processo de obediência cega em contraste a um movimento de rebeldia e de reinvenção de si e do mundo. A autora promove uma instigante análise do processo de subjetivação de figuras exponentes e contraditórias do nosso tempo, como Donald Trump, Papa Franciso e Evo Morales, refletindo sobre as condições existentes para a emergência de tais sujeitos no cenário político e social.

Psicoanálisis y marxismo: historias y propuestas para el siglo XXI, de Enrique Carpintero e Alejandro Vainer. Neste capítulo, os autores procuram resgatar e elucidar alguns limites e possibilidades para a conexão entre psicanálise e marxismo. A discussão sobre a constituição do sujeito ganha relevo, na medida em que, sinteticamente, tais paradigmas partem de polos não concordantes. Se a psicanálise freudiana, no caso, busca analisar em que medida o social/cultural se inscreve na subjetividade, e, isto se reflete na constituição do sujeito, para uma análise dialética marxista, as relações sociais de produção, que não se identificam com a ideia de cultura freudiana, são imprescindíveis para a formação da subjetividade, e, portanto, dos sujeitos no âmbito da sociedade capitalista. A despeito de possíveis desencontros, os autores advogam para a necessidade de um diálogo entre tais campos do pensamento, uma vez que isto pode contribuir para ambos, em um processo de complementariedade, havendo, indubitavelmente, a necessidade de sua adequação à realidade atual.

O capitulo Saberes despojados y despertar político de las mujeres en Latinoamérica: una revisión feminista de los paradigmas científicos, del patriarcado y del capitalismo, escrito por María Arcelia Gonzáles Butrón, Flor de María Gamboa Solís, Sofía Blanco Sixtos e María Concepción Lizeth Capulín Arellano, trazem à baila o debate sobre a estrutura patriarcal e capitalista que explora e oprime as mulheres, e, também os homens. Enfatizam a necessidade de consideramos o processo de divisão sexual do trabalho na produção de subjetividades das mulheres como uma necessária tarefa para o enfrentamento ao capitalismo. Psicología comunitaria de lo cotidiano: potenciando la creación de alternativas a la violencia, escrito por Alejandra León Cedeño, Maristela Montenegro e Sergio Kazuyoshi Fuji, apresenta algumas ricas experiências de um que fazer sócio-comunitário, que procura a adoção de uma ação dialógica entre os atores em cena, buscando promover encontros potentes nos diferentes espaços de ação profissional.

O penúltimo capítulo do livro é intitulado De la expansión internacional de la psicología a la simultaneidad de procesos: o de la investigación sobre la subjetividad en el trabajo, escrito por Hernán Camillo Pulido Martínez. O autor discute o impacto do trabalho no desenvolvimento da subjetividade em meio ao capitalismo, que investe em sua captura como estratégia de perpetuação. Ele considera que tradicionalmente a Psicologia, que atua no campo das organizações e do trabalho, ignora as contradições existentes nestes contextos, culminando em práticas meramente adaptativas com o verniz de promoção de bem-estar e ou de busca por realização pessoal. Considera a necessidade de compreendermos que a subjetividade é forjada a partir de relações de poder, que precisam ser desveladas como alternativas ao seu enfrentamento.

Por fim, Elio Rodolfo Parisí, Adrián Manzi e Marina Cuello Pagnone, realizam uma reflexão sobre o processo formativo em Psicologia, a partir do capítulo Política de la psicología: notas sobre la formación de grado en psicología en la Universidad Nacional de San Luis de Argentina. Partem do pressuposto de que a Psicologia hegemônica legitima relações de poder e normalizações que são funcionais ao sistema capitalista. Nesse sentido, salientam o papel desempenhado pela disciplina de Psicologia Política para a formação crítica em Psicologia, uma vez que se trata de uma disciplina importante e que pode contribuir para a produção de conhecimentos e práticas essenciais para o enfrentamento às mazelas impostas pelo MPC, e, portanto, precisam estar presentes durante a formação inicial em Psicologia.

Trata-se de uma obra de fôlego e entusiasmo, ao mesmo tempo com inquietação teórica que visa nos tirar de zonas de conforto, sejam elas asseguradas por posições teóricas pré-estabelecidas, ou mesmo por aparatos institucionais que protegem a alguns de nós, como os muros da universidade e seus rígidos modelos de fazer pensar e agir em meio ao caos e a desordem ordenada de nossas sociedades. Certamente, os textos que compõe o livro não esgotam as inúmeras possibilidades de análises de conjuntura e a adoção de estratégias de ação, que devem ser pensadas a partir de uma visão sobre a totalidade, considerando as mediações e particularidades de cada região e contexto no qual nos inscrevemos como atores da história.

É imperioso destacar que a Psicologia na América Latina tem acompanhado e se inserido nos movimentos de contestação e resistência ao MPC. Entretanto, o próprio sistema capitalista se movimenta, criando novas condições para sua manutenção, em meio às crises cíclicas que lhe são propícias. Nesse sentido, a Psicologia deve estar atenta a tais mudanças, com o intuito de não se enrijecer, mas pelo contrário, ser capaz de responder em tempo preciso aos efeitos que se produzem na vida das pessoas imersas nas artimanhas do capital, em sua sanha e voracidade.

As tarefas, bem como as inquietações produzidas pela obra em tela, devem, a meu ver, serem assumidas por toda a Psicologia. Entretanto, sabemos que não há um consenso em nosso campo a este respeito. Inclusive, não é incomum nos depararmos com áreas da Psicologia que são afeitas aos desejos do capital, e, atuam, inclusive, para sua promoção. Portanto consideramos que a Psicologia Política, em sua vertente crítica, é, indubitavelmente, um campo propício para espraiar e fomentar a necessidade de edificação de outro modo de vida para além do capital. Estimular este debate e favorecer para que a Psicologia, mesmo em suas contradições, possa assumir um projeto anticapitalista é certamente umas das mensagens mais marcantes dos textos escritos pelas autoras e autores da obra aqui, sinteticamente, apresentada. Indubitavelmente, como qualquer texto, esse livro pode ser concebido como um convite para que possamos seguir à sua escrita, completando possíveis lacunas e ampliando os debates suscitados. Acredito que este movimento realmente dá sentido a um texto, assim como à própria vida.

 

Referências

Galeano, E. (2010). As Veias Abertas da América Latina. L&PM.         [ Links ]

Martín-Baró, I. (1986). Hacia una Psicología de la liberación. Boletín de Psicología, 22, 219-231. file:///C:/Users/Fernando/Downloads/Dialnet-HaciaUnaPsicologiaDeLaLiberacion-2652421%20(1).pdf        [ Links ]

Marx, K. (2011). Grundrisse: manuscritos económicos de 1857-1858: esboços da crítica da economía política. Boitempo; Ed. UFRJ.         [ Links ]

 

 

Submissão: 12/05/2020
Aceite: 20/05/2020

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