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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.56 São Paulo  2023  Epub 27-Maio-2024

 

Artigo Original

Cartografias da autonomia: tensões e construções no campo da saúde mental

Cartografías de la autonomía: tensiones y construcciones en el campo de la salud mental

Cartographies of autonomy: tensions and constructions in the field of mental health

Elisa Cainelli Andreola1  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0009-0000-1134-303

Elisandro Rodrigues2  , Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-9146-4841

1Especialista em Saúde Mental, GHC, Porto Alegre/RS https://orcid.org/0009-0000-1134-303 E-mail: elisa_andreola@hotmail.com

2Doutor em Educação, PPG ATSUS-GHC, Porto Alegre/RS https://orcid.org/0000-0002-9146-4841 E-mail: elisandromosaico@gmail.com


Resumo

O termo autonomia, apesar de associado ao protagonismo do usuário em seu tratamento, carece de uma definição clara e consoante dentro do campo psicossocial. Assim, a presente pesquisa se propôs a cartografar uma experiência de trabalho na saúde mental a partir dos encontros com a autonomia, suas diferentes facetas e sua relação indissociável com o cuidado em liberdade. A reflexão, oriunda do diário de anotações produzido durante o contexto da pandemia, demonstrou que a autonomia perpassa o processo de produção de cuidado e incide em todos os seus agentes, seja na construção do plano terapêutico, na relação dos profissionais com o próprio saber e na influência da instituição sobre a enunciação dos sujeitos. Conclui-se que a autonomia é construída e produzida na relação com o outro, sendo elemento imprescindível ao usuários e também aos profissionais que dela necessitam para a realização de um trabalho inventivo e implicado.

Palavras-chave: Autonomia; Saúde Mental; Luta Antimanicomial; SUS; Cartografia

Resumen

The term autonomy, despite being associated with the role of the patient in his treatment, lacks a clear and consonant definition within the psychosocial field. Thus, this research aimed to map a work experience in mental health based on encounters with autonomy, its different facets and its inseparable relationship with care in freedom. The reflection, derived from the diary of notes produced during the context of the pandemic, demonstrated that autonomy permeates the process of producing care and affects all its agents, whether in the construction of the therapeutic plan, in the relationship of professionals with their own knowledge and in the influence of the institution on the enunciation of the subjects. It is concluded that autonomy is built and produced in the relationship with the other, being an essential element for patients and for professionals who need it to carry out inventive and involved work.

Palabras clave Autonomy; Mental Health; Anti-asylum Fight; SUS; Cartography

Abstract

La autonomía, a pesar de estar asociada al rol del usuario en su tratamiento, carece de una definición clara y consonante dentro del campo psicosocial. Así, esta investigación tuvo como objetivo mapear una experiencia laboral en salud mental a partir del encuentro con la autonomía, sus diferentes facetas y su relación inseparable con el cuidado en libertad. La reflexión, derivada del diario de notas producidas durante el contexto de la pandemia, demostró que la autonomía impregna el proceso de producir cuidados y afecta a todos sus agentes, ya sea en la construcción del plan terapéutico, en la relación de los profesionales con su propio conocimiento y la influencia de la institución en la enunciación de los sujetos. Se concluye que la autonomía se construye en la relación con el otro, siendo un elemento imprescindible para los usuarios y profesionales que lo necesitan para realizar un trabajo inventivo e implicado.

Keywords Autonomía; Salud Mental; Lucha contra el asilo; SUS; Cartografia

INTRODUÇÃO

Defender a autonomia é posição muito cara àqueles que se propõem a um fazer em saúde mental que subverta o discurso biomédico e centralizador do cuidado, próprio da herança manicomial. Pensar sobre a questão da autonomia é também pensar o trabalho que se almeja no cuidado em saúde pública na atenção psicossocial. Há na especificidade técnica do tratamento em saúde mental um importante ingrediente: a imprescindibilidade do enfoque na singularidade do sujeito que busca assistência. Nesse sentido, a política pública indica um tratamento em saúde humanizado, integral e igualitário, que, em suma, prevê o usuário do SUS como parte absolutamente integrante do processo de cuidado de si (Ministério da Saúde, 2005). Como alguém participante do seu tratamento, o dito “paciente” da saúde mental não deve ser lido no registro da passividade, mas sim da apropriação da própria história e sofrimento.

Para entender a autonomia como elemento fundamental no tratamento em saúde mental é preciso lembrar dos atravessamentos socioculturais, políticos e históricos que narraram o lugar do sujeito com sofrimento psíquico na sociedade ao longo do tempo. Por ser um indivíduo considerado irremediavelmente doente e desprovido de razão, o dito louco era segregado da comunidade, relegado a instituições manicomiais e privado de sua cidadania e de sua subjetividade (Amarante, 1995). Diante disso, a Reforma Psiquiátrica brasileira (RPB) cumpriu um importante papel ao pontuar e problematizar a desenfreada interdição de sujeitos que sofrem psiquicamente, abrindo caminho para a desinstitucionalização e o combate ao estigma da loucura em uma sociedade afeita a lógicas patologizantes e corretivas.

Apesar de ter suas primeiras origens nos anos 1970, a Reforma Psiquiátrica passou a inscrever-se oficialmente na política apenas em anos seguintes. Destaca-se aqui a promulgação da Lei estadual n° 9.716, de 1992, que abarca o estado do Rio Grande do Sul e, em escala nacional, a Lei n° 10.216, de 2001. Esta, considerada a Lei da Saúde Mental, inaugurou uma expressiva mudança no paradigma de cuidado aos usuários, orientando o tratamento dos sujeitos para serviços inseridos em seu território e, assim, reivindicando a integração do sujeito à família e à sociedade. Logo, o modelo manicomial e excludente passou a ser substituído por dispositivos e serviços de saúde mental que prezassem pela autonomia e reinserção do usuário à cidade e ao seu tratamento (Tenório, 2002).

A inserção da autonomia como algo a ser protegido e buscado produziu um giro na forma como se cuidava da saúde antes da implementação da RPB, demandando um olhar direto e focado ao usuário e a sua implicação no tratamento médico e multiprofissional que lhe diz respeito. Os manicômios, exemplos de instituições totais orientadas pelo intolerante e violento princípio de proteger a cidade e os sujeitos da loucura, caracterizavam-se por serem ambientes em que “um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade [...] levam uma vida fechada e administrada” (Goffman, 1961, p. 11). Não havia, então, a enunciação das subjetividades, perdidas entre a homogeneização de corpos, rotinas e diagnósticos.

Erving Goffman (1961) aponta para a periculosidade delegada ao sujeito louco, considerado inapto a gerir a si mesmo e, portanto, ameaçador aos demais. Se por um lado necessitava de um local que o protegesse do mundo - e de si mesmo - por outro era primordial defender a cidade do encontro com o diferente percebido na loucura. Assim, os muros construídos pelos hospitais psiquiátricos não acarretavam apenas o distanciamento físico entre os internos e a comunidade. Havia também uma distinção no discurso social que produzia formas de existir e de responder às demandas da sociedade. Silvio Benelli (2014) aponta que as regras e posturas institucionais dos manicômios foram incorporados no modo de agir dos sujeitos, que acabavam interiorizando uma lógica de comportamento adaptado e submetido às relações de poder do confinamento. Porém, a marginalização dos usuários de saúde mental a partir da institucionalização de suas subjetividades segue ainda hoje presente, encontrando possibilidade de vazão nas vulnerabilidades da rede de saúde (Simoni & Moschen, 2020).

Portanto, o movimento da Reforma Psiquiátrica convoca constantemente a uma desinstitucionalização da loucura que vai além da extinção dos chamados hospícios. As estruturas manicomiais a serem combatidas não são apenas aquelas materiais e concretas, mas também as simbólicas e por vezes imperceptíveis, incrustadas no imaginário social. Dessa forma, desinstitucionalizar significa abrir caminho para a produção de vidas mais autônomas e menos submetidas à lógica de controle que paira sob as existências que fogem à norma.

A construção dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) se deu a partir dessa urgência em reestruturar o tratamento em saúde mental, devendo este ser compatível a um acompanhamento integral e absolutamente oposto ao modelo segregatório realizado nos manicômios. Enquanto um dos principais serviços substitutivos ao manicômio, os CAPS prezam pelo cuidado em liberdade, dentro da comunidade do usuário e direcionado a fortalecer seus laços com os demais, apoiando a busca da autonomia (Ministério da Saúde, 2004). Cabe destacar, entretanto, que há um movimento de expressivo desmonte desses serviços a partir do subfinanciamento e implementação de Organizações Sociais (OS) que nem sempre estão alinhadas à ética da saúde mental pública. No presente ano, 2021, em que a RPB completa seus 20 anos de implementação é temeroso acompanhar a desvalorização da política pública de saúde mental.

Diante de uma história de silenciamento e marginalização seguida de conquistas, reestruturações e novas ameaças, defender e promover a autonomia é crucial ao fazer que se propõe antimanicomial. Refletir sobre esse tema torna-se importante nos dias de hoje para que o passado não volte à tona, tendo em vista o atual cenário brasileiro. A Nota Técnica nº 11/2019, já retirada dos veículos digitais, justifica essa preocupação, uma vez que abriu caminho para mudanças na política de saúde mental no que se refere ao tratamento do uso de substâncias psicoativas, trazendo à tona o retorno dos hospitais psiquiátricos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o fomento do uso da Eletroconvulsoterapia (ECT). Conforme indicam Mariá Sampaio e José Bispo (2021), os últimos anos, em especial aqueles que sucedem 2016, tem sido acompanhados de transformações na política de drogas, enfatizando a abstinência, as internações psiquiátricas e o encaminhamento para comunidades terapêuticas.

Destaca-se também a ameaça que paira sobre os trabalhadores desde a divulgação nos meios de comunicação de um possível revogação por parte do governo de numerosas políticas de saúde mental construídas entre 1991 e 2014. O prenúncio de tais desmontes, atrelado a um movimento global de medicalização dos sintomas (Onocko-Campos et al., 2013), contribui para que métodos prescritivos que não implicam o sujeito usuário em seu tratamento sejam cada vez mais incentivados.

Frente a esse cenário, é vital que a luta antimanicomial e seus preceitos se façam ouvir. A defesa da autonomia consiste na indissociabilidade do sujeito e seu tratamento/sofrimento, sendo impossível pensar em intervenções estritamente corretivas, estando sob o risco, assim, de reacender instituições totais que isolam e assujeitam. Portanto, é por meio de discussões sobre autonomia e seus atravessamentos que a Reforma Psiquiátrica pode se manter inquieta e ativa, fazendo frente aos resquícios manicomiais para que estes não encontrem lugar cativo nas brechas institucionais e discursivas do cuidado em saúde.

Por fim, o presente texto objetiva cartografar uma experiência de trabalho em saúde mental a partir dos encontros com a autonomia, suas diferentes facetas e sua relação indissociável com o cuidado em liberdade. Levando em consideração os referenciais teóricos e os tensionamentos suscitados pela vivência no território, o texto foi construído no intuito de fomentar e problematizar a discussão sobre as possibilidades de enunciação da autonomia na atenção psicossocial.

MAS AFINAL, A PARTIR DE QUAL AUTONOMIA ESCREVO?

Apesar de ser um conceito pilar a uma variada gama de ações, o termo autonomia não é entendido de forma unânime na literatura. Há consenso quanto a sua força e sua importância na discussão sobre a Reforma Psiquiátrica, mas a noção de autonomia não é descrita em pormenores e comporta variados significados. Conforme indicam Marciana Zambillo e Analice Palombini (2017), se de um lado o vasto uso do conceito aponta para múltiplos sentidos, por outro pode-se entender que não há uma problematização de fato do termo, correndo, assim, o risco de tomá-lo como dado e naturalizá-lo. É preciso, então, explorar as variadas definições atribuídas ao conceito.

A autonomia pode ser conceituada como: “(a) Faculdade de se governar por si mesmo; (b) Direito ou faculdade de se reger (uma nação) por leis próprias; (c) Liberdade ou independência moral ou intelectual” (Ferreira, 2010, p. 246). Nesse sentido, o conceito aproxima-se da ideia de que um sujeito autônomo é aquele capaz de decidir sobre sua vida a partir de escolhas conscientes e racionais, estando apto na utilização de suas faculdades mentais. José Lima (2019), ao discorrer sobre as proposições kantianas sobre autonomia, aponta que os sujeitos são dotados do imperativo categórico da razão, capazes, portanto, de agir moralmente e autogovernar-se.

Assim, por um lado há a ideia, embasada na noção de racionalidade cognitiva, de que autonomia relaciona-se à capacidade de autogoverno, tomada de decisão e aptidão em gerir os aspectos da vida prática. A partir dessa perspectiva, a autonomia se dá por meio do uso adequado e funcional das faculdades mentais e de seu controle. Entretanto, se entendermos que autonomia no contexto da saúde mental pertence apenas ao registro da racionalidade alguns impasses se apresentam. Ao descolar-se de uma perspectiva unicamente cartesiana, é necessário olhar para o campo psicossocial a partir de prismas que transcendam a mera leitura de sintomas e critérios diagnósticos. Uma possibilidade é enxergar a produção de autonomia em saúde mental a partir de dois pontos: “primeiro o abandono da expectativa de resolutividade e eficácia a partir da comparação com o nosso desempenho; e segundo a criação de outras possibilidades de vida a partir deste outro padrão de subjetivação” (Leal, 1994, p. 153).

André do Eirado e Eduardo Passos (2004) escrevem sobre a noção de autonomia e autopoiese, oriunda da teoria da Biologia do Conhecimento de Maturana e Varela, apontando que autonomia não é o contrário de heteronomia, ou seja, não é o oposto do estado de regramento ou de determinação por outro. A autonomia não se restringe ao ato de determinar para si as próprias regras, uma vez que esse raciocínio pressupõe a dualidade de construir a lei e submeter-se a ela, conformar-se à própria determinação.

Nosso desafio, então, é tentar pensar a autonomia como primeira em relação à heteronomia [....] de tal modo que o ato de dar a lei e o ato de se conformar a ela fossem um só ato em via de se fazer. Para tanto, é preciso que se pense a autonomia não apenas como o ato de se determinar a si mesmo, no sentido fraco, mas como o ato de criar-se a si mesmo, no sentido forte. (Eirado & Passos, 2004, pp. 78-79)

Os autores, portanto, aproximam o entendimento de autonomia ao de autocriação, autopoiese, em que criador e criatura representam uma indissociabilidade que não pode ser compreendida a partir de uma relação causal.

Zambillo e Palombini (2017) discorrem e questionam um devir-autônomo possível em saúde mental, indicando que a pergunta não é se os usuários são ou não autônomos, mas sim quando há autonomia em saúde mental. As autoras apresentam críticas à leitura de autonomia da visão kantiana por esta fundar-se na valorização da racionalidade e da determinação prévia. Segundo elas, a autonomia pode ser descrita como “um exercício possível e complexo para qualquer ser humano, para o qual a capacidade de deliberação envolve uma gama de forças, não podendo ser medida unicamente pelas condições cognitivas do indivíduo” (Zambillo & Palombini, 2017, p. 86). As autoras entendem a autonomia como algo que se faz e se oriunda da experiência, sendo então, performática. Nesse sentido, não é possível falar em autonomia total, mas sim em um constante caminhar que se desenha e redesenha a cada passo do caminho.

Diante do exposto, é necessário fazer uma escolha do trilhado a seguir em relação ao entendimento do que é ser autônomo. Dessa forma, o presente texto se alia aos autores que descolam a noção de autonomia da leitura estritamente atrelada à cognição – parte-se aqui de um campo mais abstrato e inapreensível a escalas e protocolos: o campo do desejo. Escolher essa perspectiva significa associar-se a uma postura política implicada na luta antimanicomial, compreendendo que o sujeito autônomo transcende suas funções mentais e sua categorização diagnóstica, visto que é capaz de autocriação, fortalecimento de laços e construção de experiências. O usuário enaltecido pela Reforma Psiquiátrica é um sujeito de direitos e é um sujeito de desejos. Desse modo, é no movimento de exercitar e construir a autonomia que o sujeito usuário entra em contato consigo, apropriando-se de sua historicidade e tornando-se cada vez mais capaz de experimentar a si mesmo nos percalços do tratamento em saúde mental e da vida para além deste.

MÉTODO: PRODUZIR UM TEXTO E OS CAMINHOS ATÉ LÁ

A presente pesquisa utilizou-se da cartografia como norte metodológico. O delineamento qualitativo faz-se interessante diante de fenômenos não quantificáveis que, conforme Maria Cecília Minayo (2001), podem ser analisados com foco na explicitação da dinâmica das relações sociais e organizações, tendo a subjetividade e o envolvimento do pesquisador papel participante na pesquisa. O método cartográfico propõe-se a acompanhar processos e não se fechar em resultados ou conclusões, uma vez que, para essa metodologia, a pesquisa ocorre no entre pesquisador-território. A tarefa do pesquisador, portanto, se dá em captar e maquinar os afetos que permeiam determinado campo, entendendo, assim, que “o cartógrafo é antes de tudo um antropófago” (Rolnik, 1989, p. 16).

Nessa metodologia a ênfase não está no objeto, mas sim no processo de produzir e ser produzido no/pelo terreno a ser investigado. A pesquisa não é realizada pela busca fechada de elementos a priori, ocorrendo conforme o pesquisador é atravessado e afetado pelos elementos do território, em uma rede processual de interferir e se deixar ser interferido pelo campo (Kastrup, Passos, & Escóssia, 2009). Lucviano da Costa (2014) aponta a cartografia como uma prática de pesquisa suja, uma vez que esta não se curva ao método cartesiano de neutralidade e imparcialidade – ao contrário, na cartografia é necessário que o pesquisador se implique e se coloque nas investigações, misturando-se e produzindo os dados a serem coletados.

Portanto, o presente texto foi produzido a partir da experiência de formação em serviço no contexto da saúde mental dentro da RAPS de uma cidade do sul do país. A coleta dos dados ocorreu a partir de um Diário de Anotações (DA), em que a vivência de inquietações oriundas do trabalho ganhou o contorno e o colorido das palavras. Os registros foram realizados pela psicóloga residente a partir de seu cotidiano junto aos usuários, técnicos e demais residentes, tendo como parceiro de reflexões seu orientador. O DA foi construído entre julho de 2019 e outubro de 2020 na medida em que as experiências no campo de atuação suscitavam questionamentos frente a temática da autonomia.

O contato com os usuários em atendimentos individuais e coletivos foi importante matéria prima para as inquietações abordadas no texto. Além disso, as reuniões de equipe, as discussões de caso, os tensionamentos com a gestão do serviço e as conversas com os usuários durante almoço atravessaram o processo de escrita e o próprio fazer profissional da residente. Foi a partir de tais vivências e do registro das afetações sentidas e produzidas pela pesquisadora que se deu o processo de cartografar a experiência.

Os excertos expostos abaixo dizem respeito às impressões vivenciadas no encontro com o próprio fazer que se buscou antimanicomial. No início de cada eixo são apresentados fragmentos do DA no intuito de enlaçar o que foi vivido/sentido a discussão teórica1.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O PROJETO TERAPÊUTICO DO USUÁRIO

Valentim2, após contar episódios bem humorados da juventude, pede-me ajuda para desmarcar uma consulta com especialista que ocorreria em três dias. Sem entender, titubeei e reforcei, um pouco impaciente, a importância daquele atendimento, marcado após tanta espera. Valentim entregou um olhar desapontado com minha preocupação e explicou que a consulta não era prioridade, já que tinha sido agendada no mesmo dia do grupo no CAPS. Percebo que sua decisão em parar de beber era tão significativa para ele que o primeiro dia de seu tratamento era um compromisso absolutamente inadiável. (DA-01)

Promover e valorizar a voz do usuário e sua desinstitucionalização não são tarefas lineares e acabam, por vezes, esbarrando em impasses. A perspectiva do usuário e do profissional podem partir de óticas bastante distintas – a visão enquanto trabalhadora, ciente das dificuldades da rede de saúde especializada parecia dar uma posição privilegiada em relação à Valentim - a de que um técnico saberia qual era a melhor escolha para ele naquele momento.

Entretanto, o cuidado em saúde mental só é de fato cuidado se está atrelado àquilo que é importante para o sujeito e não deve ser confundido com o ato de cuidar via maternagem. Rafaela Amorim e Maria Cristina Lavrador (2017) apontam que é imprescindível aos trabalhadores perguntarem-se de que forma suas práticas estão na direção da autonomia ou da tutela e infantilização dos usuários. Para os autores, as práticas tutelares podem ocorrer de forma não consciente, mas devem ser identificadas pelos profissionais para que não confinem mais uma vez o sujeito da saúde mental, restringindo-lhe a capacidade de criação de novos modos de existir. Uma prática tutelar pode ser lançada para proteger o usuário da sociedade (e vice-versa), marginalizando-o mais uma vez ao aproximar-se da ideia de que ele não é capaz de compreender o que é melhor para si mesmo (Onocko-Campos et al., 2013).

Tal perspectiva aproxima-se do que Jurandir Costa (1996) aponta como ética da tutela na prática psiquiátrica, em que o sujeito é visto como alguém acometido por patologias biológicas que lhe privam da razão e da vontade, incapaz de ser responsabilizado pelas consequências dos seus atos. Esse entendimento torna-se imensamente problemático pois retira do usuário de saúde mental qualquer possibilidade de protagonizar o próprio tratamento e, em suma, a própria vida.

Ao entender que a consulta especializada era de maior importância para Valentim, não percebemos que, para ele, comparecer ao primeiro atendimento marcado no CAPS era um passo grande e muito significativo na sua decisão de mudar a própria relação com as drogas. Dessa forma, vale aqui a retomada daquilo que se entende por Projeto Terapêutico Singular (PTS), ferramenta que se propõe a auxiliar na organização do percurso de tratamento de determinado sujeito e que deve contar imprescindivelmente com sua contribuição e corroboração.

De acordo com a Cartilha da Política Nacional de Humanização (Ministério da Saúde, 2008), o PTS deve ser construído coletivamente pela equipe, apresentado e negociado com o usuário, levando em conta suas especificidades e os caminhos elegidos por ele. Nesse sentido, é preciso promover um encontro entre aquilo que é proposto pelos profissionais e aquilo que é possível ou, até mesmo, desejado pelo usuário - de outro modo, corre-se o risco de que sua capacidade de decisão e de exercício da própria autonomia tornem-se comprometidas.

Para além do olhar técnico, um dos ingredientes fundamentais no desenho do caminhar terapêutico do usuário é o seu desejo. Incluir as escolhas do sujeito como parte integrante da formulação do PTS é o que possibilita pensar um acompanhamento que de fato faça sentido para quem lhe diz respeito. Jairo Goldberg (2016), ao discorrer sobre as noções de cura e alta dentro dos CAPS, indica que o percurso do tratamento em saúde mental almeja a expansão da autonomia, da governabilidade sobre si e, em última instância, do fazer escolhas. Nesse sentido, o sujeito não é meramente um ser-objeto de nossas intervenções, mas sim alguém que se apresenta de forma singular a cada passo do caminho.

O EMBATE ENTRE OS SABERES

No fim da reunião estávamos no banheiro e eu olhava o espelho que refletia os jalecos brancos e meu rosto surpreso. Não só com o uniforme que eu há meses antipatizava, mas com o que tínhamos acabado de discutir. O plano terapêutico para Pedro era Comunidade Terapêutica, era abrigo, era albergue, era rotina semanal no serviço. A gente não quer que ele fique na rua, a gente quer que ele fique bem, sempre pensei. Eu sei o que a rede oferece, eu sei o que pode ajudar, eu sei que ele precisa do nosso trabalho. Às vezes ele decide ir por um dos caminhos que a gente indica, mas às vezes ele para de trilhar e escolhe outro. Ele escolhe. Eu sei o que é melhor pra ele, mas talvez não seja o que ele queira. Opa. Será que eu sei tanto assim? (DA-02)

O saber técnico, antes imbuído de práticas que reduziam e fragmentavam a subjetividade daqueles entendidos como doentes mentais hoje traz consigo um arcabouço teórico que valoriza e pretende compreender as diferenças e complexidades do campo da saúde mental. Defende o cuidado em liberdade, a escuta das singularidades e integralidade do usuário. Entretanto, há momentos em que o saber técnico parece sobrepor-se à voz do usuário, que expressa em palavra ou, por vezes, em ato, a discordância em relação ao percurso terapêutico planejado.

Pedro não concordava com o PTS pensado pela equipe, tal qual Valentim, mas, diferentemente deste, não sinalizava em palavras qual caminho gostaria de seguir. Portanto, seu plano terapêutico, ao invés de negociado, estava repetidamente sendo imposto e, como consequência, constantemente “falhava”. Pedro não aderia às indicações terapêuticas, apesar de apresentar um ótimo vínculo com muitos membros da equipe. Era claro que os encaminhamentos não carregavam sentido para ele, que buscava ajuda, mas encontrava apenas consecutivos encaminhamentos para internação, que, de fato, não pareciam auxiliá-lo.

Tal excerto do DA traz à tona a angústia frente a uma situação difícil que pouco respondia ou se moldava ao saber teórico profissional. Questionamo-nos se, no afã de alcançar resultados ou pôr em prática o protocolo, agimos de forma a não escutar o saber e conhecimento de Pedro sobre si, como se desses elementos prescindíssemos. Corroborando com essa reflexão, Ana Severo e Magda Dimenstein (2009) indicam que a primazia do saber técnico em relação às experiências dos sujeitos fomenta “uma relação hierarquizada onde só o médico sabe aquilo que é importante para a saúde tornando o usuário objeto passivo de intervenções e desapropriado de saber sobre sua própria vida” (p. 64). Nesse sentido, torna-se fundamental que os profissionais se perguntem sobre sua relação com o próprio saber.

Paulo Amarante (2010) defende a importância de que a formação em saúde mental comporte discussões sobre epistemologia, ciência, objeto neutro. O autor aponta para a necessária problematização desses elementos, para que possam ir além da noção de verdade e de poder própria da ciência. Isso é muito caro para o trabalho em saúde, uma vez que se tomarmos o prisma do saber científico sem a reflexão mais detida sobre ele

poderemos superar certos paradigmas psiquiátricos mais tradicionais, mas estaremos recaindo em outros paradigmas substitutivos, mas que, da mesma forma, têm essa noção de verdade, essa noção de que a ciência [...] não necessita efetivamente dos sujeitos, das experiências, dos familiares, da sociedade para partilhar. (p. 99)

Portanto, se o trabalhador estiver calcado apenas em evidências que prometem constatações inquestionáveis ocupará todo o espaço do saber, impossibilitando a enunciação dos sujeitos sobre suas vivências.

Amarante (2010) ainda aponta que há em muitos profissionais uma mera atuação do conhecimento, em que o técnico apenas põe em prática o que sabe, reproduzindo o conhecimento, mas não o produzindo. Não é protagonista e nem faz parte daquilo que sabe. Benilton Bezerra (2004) vai na mesma direção ao indicar que a formação universitária e oriunda das residências direciona o aprendizado para uma concepção tecnicista de saúde, bastante distante do olhar mais reflexivo a que diz respeito a saúde mental.

Ao alienar-se diante do próprio saber, é possível questionar se o trabalhador consegue enxergar saber no outro. Para além do saber profissional, há também o saber do usuário, um saber oriundo de um conhecimento que, apesar de não ser necessariamente teórico, é preenchido por uma história de experiências com a própria saúde mental. Desse modo, entrar em contato com vivências e saberes tão diferentes daqueles encontrados na letra fria dos manuais e protocolos pode ser desafiador para os técnicos.

É importante contextualizar o fazer dos profissionais com as formas de subjetivação enaltecidas na sociedade. Tem-se atualmente o discurso hegemônico que busca incessantemente o bem-estar e a anulação da dor, seja esta física ou psíquica, desconsiderando sua inevitabilidade e essencialidade própria ao transcorrer da vida (Bezerra, 2004). Na mesma direção, Bruno Emerich (2007) entende que práticas manicomiais são corporificadas pelos profissionais da saúde a partir da intolerância à diferença, ilustrada pela dificuldade ou recusa em aceitar o sofrimento como parte da existência humana. Para o autor, tal recusa é expressa em profissionais-oráculos que supostamente sabem determinar como ser feliz. Entretanto, a ilusão de que a dor não precisa ser vivida - e que a ciência pode eliminá-la - impacta tanto o cuidado com os usuários quanto a subjetividade dos próprios profissionais.

Em outras palavras, a ideia de que a ciência detém todas as soluções sobre a vida e sobre o sofrimento retira dos sujeitos a possibilidade de construção de alternativas ou enfrentamentos frente às próprias mazelas. Diante de situações desafiadoras, abrir mão da tutela pode significar uma importante estratégia, podendo concretizar-se em uma pergunta ou “a afirmação da própria castração (a não onipotência: não sei mais como ajudá-lo, por exemplo, pode abrir o caminho para que o sujeito se implique de novo com a própria vida antes entregue aos técnicos)” (Onocko-Campos et al., 2014, p. 36).

A partir do exposto, depreende-se que o saber, e em especial o saber da saúde mental, não pode ser totalitário e absoluto, como bem defendem Amarante (2010) e Bezerra (2004). Deve estar disponível ao encontro com a falta, com as brechas do conhecimento, com as diferenças do olhar. Se o serviço e o profissional sentem que devem “tudo” prover, não há espaço para o questionamento, para a produção de sentidos, para a busca de novos caminhos. Os saberes ilusoriamente completos da ciência-saúde podem falar tão alto a ponto de retirar do sujeito a necessidade da palavra ou a possibilidade do desejar.

É de suma importância que os profissionais reflitam com vistas a lidar com o furo no saber, no poder e nas decisões. É preciso instituir e encarar a falta, oriunda da inexistência do saber absoluto e da inevitabilidade da dor, como inerente ao processo de cuidado e de produção de saúde. Pedro não respondia a aplicação de nosso conhecimento teórico e pouco nos mostramos abertos a escutar suas experiências e expectativas de tratamento. Túlio Franco (2015), ao defender que o cuidado é produzido por trabalhador e usuário conjuntamente, indica que quando o sujeito se nega a adotar determinadas condutas isso significa uma resposta a uma indicação terapêutica que “não lhe convenceu, não fez sentido para ele, ou contrariou seu modo de produzir sua própria vida” (p. 104) e que deve, portanto, ser revista. Por fim, frente a afirmação descrita no DA Eu sei o que é melhor pra ele, mas talvez não seja o que ele queira, agora, de forma mais humilde, entendemos Golberg (2016) ao dizer que “chega-se onde o paciente quer chegar e não onde a equipe de cuidados previamente estabelece” (p. 59).

O SILÊNCIO FRENTE À INSTITUIÇÃO

Em meio a muitas tentativas exitosas e outras tantas frustradas, nesse mês construímos outra proposta para contornar as limitações impostas pela pandemia do Covid 19 em prol da manutenção do cuidado em saúde mental. Chegado o 18 de maio, dia Nacional da Luta Antimanicomial, não podemos celebrar a data no formato que lhe faz jus - em função das precauções sanitárias, não é possível sair dos muros institucionais do CAPS para ocupar a cidade. Fartos das mãos atadas frente a um cenário que transcende nosso controle ou vontade, organizamos um cronograma para abordar junto aos usuários o valor e o significado do marco antimanicomial. O nosso entusiasmo, porém, pouco a pouco foi se encontrando com o silêncio de quem nos escutava. Após dois encontros e grande insistência nossa para que os usuários falassem, percebemos que a demanda daqueles sujeito estava em outro lugar. Após escuta obediente dos nossos temas, passaram a usar o espaço para contar os conflitos familiares, as ambivalências com o tratamento, as formas de encarar a fissura. Tentamos retomar à discussão que era nossa - não deles - até nos darmos conta que o silêncio dos sujeitos existia porque estávamos os calando. (DA- 03)

A organização de atividades para discussão da data 18 de maio, embora parecesse de suma importância para a implicação dos usuários em uma história que lhes diz respeito, acabou revelando que estes estavam sentindo suas próprias histórias desimplicadas do tratamento. Em função das adaptações exigidas pela pandemia, todos os grupos e oficinas do CAPS foram suspensos, assim como aqueles ofertados aos sujeitos que estavam em acolhimento noturno (7 dias de desintoxicação). No afã de celebrar a data, buscamos dar voz a uma luta histórica, mas o silêncio dos usuários acabou por revelar que suas palavras não vinham sendo escutadas.

Relembrar o passado de submetimento e de pouca autonomia, ironicamente, foi o que nos fez perceber a reprodução da lógica prescritiva atualizada no próprio CAPS. Notamos, então, estar trilhando caminhos semelhantes ao hospital/manicômio ao não facilitarmos espaços de voz e, após levar tal reflexão à equipe, reestruturamos radicalmente a rotina do CAPS, organizando pequenos grupos e oficinas que dessem espaço para a expressão dos sujeitos.

Maria da Graça Costa, Rafael Figueiró e Flávia Freire (2014) apontam elementos da prática nos serviços substitutivos que parecem reforçar justamente aquilo que foram designados a combater: a cronificação do usuário diante da instituição. Nesse sentido, fatores como a hierarquização entre técnicos e usuários e a eleição de atividades terapêuticas que não levem em conta o desejo dos sujeitos corroboram para que a tutela e a despolitização dos agentes ocorra. Dessa forma, a institucionalização dos usuários impacta a potência libertadora e criadora da aposta em saúde mental. Há, portanto, modos de fazer cuidado que podem cronificar os sujeitos (e a equipe).

Percebe-se, portanto, que o CAPS, apesar de ser um serviço substitutivo ao modelo totalitário que reduz a subjetividade pode carregar resquícios de um pensamento excludente, como comenta Peter Pál Perbart (1991) ao se referir à manutenção de um manicômio mental enquanto prática de cuidado em saúde. Conforme aponta Emerich (2007), “não basta derrubar os muros para acabar-se com os manicômios. O que é hospitalocêntrico são as práticas, mais sutis que as estruturas físicas” (p. 5). Ao falar sobre os desafios enfrentados pelos CAPS, Bezerra (2004), também menciona uma cultura manicomial que se atualiza em novos formatos, atravessada pela medicalização com o foco no esbatimento da sintomatologia, associada às disfunções orgânicas e dissociada do sofrimento subjetivo.

Dessa forma, torna-se crucial que as equipes de saúde mental estejam atentas ao seu fazer para que não cedam a práticas excessivamente prescritivas em um sistema tão afeito a respostas prontas, soluções rápidas e promessas de existências indolores. É importante salientar que adotar tais práticas não significa assumir intencionalmente uma postura disciplinar e manicomial - as equipes são constantemente atravessadas pelas forças hegemônicas sociais e podem, no intuito de cuidar, produzir uma tutela prejudicial no contexto da saúde mental, como já explorado em trechos anteriores desse trabalho. A comemoração do 18 de maio pretendia ajudar a dar voz aos sujeitos, mas acabou desvelando a condição institucionalizada em que os usuários estavam colocados, obedientes aos horários e rotinas do serviço, mas pouco agentes em seu tratamento.

A vinculação de dependência diante do serviço produz entraves no processo de construção da autonomia. A relação absoluta entre usuário e serviço pode acarretar em um empobrecimento de investimentos a outros pontos de apoio - e pode dificultar o próprio investimento a si. De acordo com Daniel Goulart (2013) há certo engessamento em alguns serviços ao demandarem que os usuários adaptem-se ao seu padrão de funcionamento sem atentar para as reais necessidades dos sujeitos. Para o autor, as atividades terapêuticas devem visar a gradual independência do usuário em relação à instituição em direção a novos pontos de apoio.

Conforme apontam Eduardo Torre e Paulo Amarante (2001), o tratamento em saúde mental busca a produção da cidadania, de participação e ação no campo social, retirando o usuário de uma posição assujeitada. Na letra dos autores, a “cura cede espaço à emancipação, mudando a natureza do ato terapêutico, que agora se centra em outra finalidade: produzir autonomia, cidadania ativa, desconstruindo a relação de tutela e o lugar de objeto que captura a possibilidade de ser sujeito” (p. 81).

Ao convocar quase que de forma compulsória os usuários a participarem ativamente da discussão sobre o 18 de maio, entendíamos que falar sobre esse marco significaria engajá-los como agentes políticos. Entretanto, como bem indicam Raimunda de Oliveira, Luiz Andrade e Neusa Goya (2012), a participação imposta em atividades, a postura dominadora e dogmática dos técnicos e a pouca clareza dos percursos terapêuticos são elementos que produzem sofrimento e confusão. Assim, nossa postura prescritiva deu pouco espaço para o que justamente seria o caráter político nas falas daqueles sujeitos: a possibilidade de narrar sobre si (o que inegavelmente é uma forma potente e significativa de fazer presente a luta antimanicomial).

Portanto, é fundamental que os espaços de fala nos serviços de saúde mental estejam abertos às contribuições dos usuários e à construção de múltiplos sentidos. Entendemos que uma forma de prevenir autoritarismos e a institucionalização é instituir um cuidado compartilhado e não hierarquizado para que os profissionais sejam facilitadores e não mestres frente ao processo autônomo dos sujeitos. Isso significa entender os usuários como absolutamente participantes do seu processo de cuidado (Franco, 2015). De acordo com Rosana Onocko et al. (2013), a experiência do sujeito deve ser sempre enaltecida no percurso terapêutico, cabendo aos profissionais incentivarem os usuários na busca de seus desejos e interesses, rumo a um retorno à própria cidadania.

A AUTONOMIA NAS MÚLTIPLAS DEPENDÊNCIAS

Das tantas pessoas que tenho acompanhado, Ana Paula parece desvelar o que um sistema capitalista recheado de desigualdades pode produzir aos mais vulneráveis. As comorbidades, a história de vida árdua, os vínculos perdidos, a rua como morada. Confesso que nossos primeiros contatos me despertaram bastante angústia por estar diante de uma mulher que era atravessada por tantas carências. Mas chegou ao serviço de saúde mental e conosco se mantém, em seu próprio ritmo e com suas particulares demandas. Como tantos, sofre e compartilha comigo o peso de, simbolicamente, caminhar contra o vento, sem lenço e, literalmente, sem documento. É fato que senti que deveria ser a guardiã dos vários caminhos do seu PTS, já que de mim ela muito precisava. Mas no momento em que fomos juntas confeccionar seus documentos, percebo que não depende unicamente de mim, pois tem a ela e a tantos outros. Ensina-me quais os fluxos para a produção de documentos na cidade, apresenta-me as linhas de ônibus mais rápidas e compartilha comigo grandes dicas de como sair bonita na foto 3x4 do RG. (DA-04)

A ideia de que Ana Paula, diante de tantas faltas, dependia inteiramente de mim e do serviço de saúde mental é bastante problemática, levando em conta as considerações já expostas sobre o risco de institucionalização e cronificação dos usuários de saúde mental. Porém, o oposto disso pode recair na ideia de que o sujeito deve prescindir totalmente dos cuidados externos para sua trajetória na produção de autonomia (em seu devir-autônomo). Relacionar autonomia com autossuficiência é excluir a importância do outro no processo de emancipação.

Nessa linha, Roberto Kinoshita (2016) diferencia a noção de autonomia da ideia de completude ou ausência de dependências. Ao contrário disso, o autor defende que “somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudermos ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida” (p. 71). Nesse sentido, um sujeito autônomo é aquele que conta com uma pluralidade de dependências; em outras palavras, tão mais autônomo será quanto mais elementos/pontos de apoio puder contar. Autonomia, portanto, se constrói em rede, em relação e tem no outro um de seus mais importantes pilares.

Ana Paula, portanto, dependia da equipe de saúde mental, mas também do motorista do ônibus dos trajetos que percorria, da assistente social da unidade de saúde, do amigo dono da padaria. A autonomia do sujeito deve perpassar um amplo entrelaçado de investimentos, de afetos múltiplos e compartilhados, uma vez que a circulação pelo mundo e pelo território nunca é só. Como dizem Zambillo e Palombini (2017), deve-se entender a autonomia como “capacidade de estabelecer redes e se retroalimentar – é pela insuficiência que se ajuda e se busca apoio nos demais; é pela ajuda recebida que se torna suficiente, nunca autossuficiente, sempre suficiente pelo que se compartilha” (p. 84). As autoras associam essa perspectiva de autonomia com a ideia de cogestão, trazendo para a discussão a importância do cuidado produzido coletivamente.

Em suas contribuições sobre a questão da desinstitucionalização e reabilitação psicossocial da loucura, Kinoshita (2016) defende que esta perpassa a reconstrução do poder contratual do sujeito, antes desvalorizado e posto à margem das trocas sociais. Para o autor, o espaço manicomial que fomentava essa lógica não deve ser apenas extinto, mas sim substituído por um outro, que enfoque a ampliação da autonomia a partir da aposta do aumento possível do poder do usuário. Kinoshita (2016) entende que à equipe caberia usar o próprio poder contratual para ampliar o poder dos sujeitos que acompanha, auxiliando na construção de projetos e ações que aproximem os usuários do campo social e de suas trocas. Assim, os profissionais devem, a partir do lugar privilegiado que ocupam, utilizar seu saber para mediar a concretização de tais projetos - nos termos do autor, emprestar o próprio poder contratual.

Falar de poder contratual e trocas sociais remete à possibilidade de os sujeitos circularem e se apropriarem dos espaços que a eles cumpram o papel de pontos de apoio. Diante disso, torna-se imperioso mencionar que as privações e adaptações exigidas pela pandemia Covid-19 trouxeram categóricos empecilhos para que a contratualidade social de técnicos e usuários se fizesse como antes. A ampla gama de dependências e relações, crucial para a promoção de sujeitos autônomos foi radicalmente suspensa pela necessidade do distanciamento social. A vinda ao CAPS foi impossibilitada e os atendimentos restringiram-se ao contato telefônico. Como, então, pensar em autonomia em tempos de pandemia? Como contar com um outro que não está lá?

Diante de um momento histórico em que as trocas possíveis não podem passar pelo registro dos corpos físicos, revisitar alguns conceitos com o olhar atual torna-se essencial. Lima e Yasui (2014) trabalham a ideia de que o território transcende os limites geográficos e é produzido de forma dinâmica e relacional a partir das afetações, dos encontros e dos tensionamentos que coexistem no âmbito social e cultural. Conforme os autores apontam, o território que circunscreve o serviço de saúde é construído pelo cotidiano e pelas vidas das pessoas que ali ocupam. Há, portanto, um espaço simbólico no territorializar-se que diz respeito a modos de viver. Como o território é lugar aberto e atrelado ao jogo de forças que o habita, é campo de constante produção (e desconstrução) de sentidos.

Em meio a territórios que se cruzam de forma agora virtual, é preciso repensar os moldes do fazer saúde e do produzir cuidado. Oriundo do campo psicanalítico, Sándor Ferenczi (1928/2011) indicava a importância da elasticidade da técnica, operada pelo tato nas intervenções analíticas e pela ideia de sentir com o paciente, sensibilizando-se à subjetividade e às necessidades de cada analisando. De certa forma, entendemos a pandemia como um momento oportuno para operar essas ideias, uma vez que o exercício da empatia mais do que nunca se coloca diante de nós como um motor para o atravessamento das intempéries. Em suma, assim como não deve haver rigidez na técnica, a ausência de regras ou respostas determinadas para o momento atual demanda que o profissional use seu próprio tato para se recriar, se readaptar e encontrar a maneira possível para si e para o usuário de construção compartilhada do fazer saúde à distância.

A POTÊNCIA DA AUTONOMIA CRIATIVA DO TRABALHADOR

A pandemia teve um impacto muito significativo nos nossos próprios processos de trabalho no último mês. Os atendimentos presenciais daqueles que acompanhamos foram temporariamente suspensos, restando a voz no telefone como o grande ponto de apoio. Percebi a sede de ajudar mais, de estar mais presente, o que se traduziu de uma forma um tanto torta nas múltiplas orientações sobre medicação e porventuras revisões de prescrição. Nas impossibilidades impostas, tornamo-nos árduos defensores do uso medicamentoso, como se, na ausência física, o saber psiquiátrico de tudo daria conta. Pouco a pouco nos desvencilhamos da postura biomédica e ousamos descobrir o que era potentemente possível ao fazer multidisciplinar no cenário pandêmico (que pouco nos possibilitava o contato mas muito nos acrescentava de tempo). Aumentamos as ligações telefônicas, organizamos um grupo de whatsapp do serviço, conversamos com outros pontos da rede, intensificamaos as conversas com os usuários que realizavam desintoxicação no serviço. Enquanto residentes, construímos o Diário da Permanência 24h, ferramenta para que os sujeitos que ali passavam a semana pudessem refletir sobre si e o momento em um dispositivo terapêutico que fosse para além dos grupos. (DA-05)

As adaptações oriundas da necessidade de precaução diante da pandemia impactaram e tolhiram as intervenções terapêuticas pautadas no encontro e no coletivo realizadas no CAPS. Recorrer ao conhecimento e às avaliações médicas parecia ser uma forma de remendar as distâncias. Entretanto, perceber que nos refugiávamos no tratamento medicamentoso parecia significar que não tínhamos nada de mais valoroso a ofertar. Uma equipe multiprofissional enxergando a psiquiatria como único fazer possível é sinal de que as próprias práticas precisam ser repensadas. Assim, o cenário da pandemia exigiu que construíssemos novas formas de trabalhar e de nos relacionar com nossos saberes.

O trabalho em saúde não ocorre de forma estática e imutável, pois é constantemente atravessado pelo contexto sociocultural, pelas disputas entre os conhecimentos vigentes e pela ação e parceria dos usuários. O cuidado é construído em movimento e em todas as direções a partir dos encontros e das relações de afeto, não sendo originado de apenas um agente, mas sim dos múltiplos atores envolvidos -trabalhadores, usuários, gestores, familiares, serviço de saúde (Amorim & Lavrador, 2017). Há, portanto, uma dimensão compartilhada e móvel na atenção em saúde, que é afetada tal qual são afetadas as pessoas e instituições que lhe dizem respeito.

No contexto atual da pandemia, as transmutações do trabalho foram diárias e a necessidade de descobrir novos fazeres foi imperiosa. Conforme aponta Franco (2015), o cuidado em saúde ocorre a partir da criação conjunta entre técnico e usuário, que, por vezes esbarra em intempéries. No termo utilizado pelo autor, nesses momentos ocorre uma improvisação, traduzida em práticas inusitadas que fogem dos protocolos e normas pré-estabelecidas, corporificada em atos que visam responder da melhor forma os obstáculos encontrados. Tem-se, então, a essencialidade de um caráter inventivo no cuidado em saúde, capaz de se adaptar e acompanhar as diferentes circunstâncias.

No campo da atenção à saúde, há um constante jogo relacional entre a macropolítica e a micropolítica, produtora de tensionamentos que demandam um trabalho pautado na criatividade (Merhy, 2002). O trabalho vivo em ato, cunhado pelo autor, é marcado pela possibilidade de o trabalhador realizar sua produção a partir do um alto nível de liberdade. Aqui torna-se importante salientar que o trabalho vivo é composto especialmente pelas tecnologias leves (capacidades relacionais, de acolhimento e vinculação) de forma associada às tecnologias leve-duras (saberes e teorias que estruturam as práticas) (Merhy, 2002). Tais tecnologias, associadas às tecnologias duras, demandam uma importante dose de enunciação da subjetividade do profissional, sendo esta entendida como um elemento indissociável ao processo de trabalho que lhe implica (Vasconcelos, Jorge, Catrib, Bezerra, & Franco, 2016).

Ao falar em liberdade na produção de cuidado, entende-se que o trabalhador é responsável por seu próprio processo de trabalho, capaz de decisão e autogoverno sobre ele (Franco, 2015). Seguindo esse raciocínio, é possível depreender que ao profissional também deve ser garantida a autonomia. Portanto, frente às dificuldades e inconstâncias inerentes ao campo da saúde mental é imprescindível que o trabalhador, para responder às demandas circunstanciais de forma inventiva e criativa, seja um sujeito autônomo no seu fazer e não se institucionalize cegamente diante de padronizações protocolares. Se na saúde mental o trabalhador deve ser visto como um atleta dos afetos (Lancetti, 2015), é preciso que este sinta-se livre para lançar seu saber de forma viva e criativa, sem estar engessado em prescrições enrijecidas.

A potência inovadora da prática micropolítica não se dá na direção contrária a macropolítica, mas sim a acompanha em uma dança elástica frente aos impasses, descompassos e contradições do fazer saúde. Para Mardênia Vasconcelos et al. (2016),

as normas político-institucionais que regulam os serviços de saúde têm eficácia, desde que elas habitem os próprios trabalhadores. Caso contrário, na liberdade do trabalho vivo, este vai realizar aquilo que considera pertinente, definido pelo seu conhecimento e o mundo de significações que o conectam à ideia geral de produção do cuidado. (p. 315)

Da mesma forma que o projeto terapêutico de cada usuário é singular e único, a prática de cuidado de cada profissional não pode ser homogeneizada, visto que se organiza em prol de responder a demandas diversas e plurais (Quinderé, Bessa, & Franco, 2014). Cabe destacar que as ações em saúde, apesar do caráter criativo, devem ser construídas sem perder o horizonte ético e, no contexto da saúde mental, a postura antimanicomial. O momento da pandemia lançou inúmeras dúvidas e impasses no cotidiano e nas práticas. A resposta inicial de colar-se às intervenções medicamentosas como se estas fossem as únicas pouco a pouco foi sendo substituída pela criação de novas alternativas para o cuidado. Para isso, a equipe teve de investir o próprio desejo em experimentações e novas formulações de atos em saúde. Nesse processo, a imaginação, a coragem e a singularidade de cada um foram o motor principal.

Finalmente, é fundamental ressaltar que a inventividade, a liberdade e a autonomia do trabalhador estão amplamente relacionadas com o seu próprio cuidado. Este é oriundo do técnico, da relação deste com os usuários, do vínculo com o serviço e colegas e das possibilidades de contratualidade com o nível gerencial. Como bem indicam Amorim e Lavrador (2017), o trabalhador deve também fazer parte de uma rede de cuidados para que possa realizar sua prática de forma cuidadosa com o outro. Conforme os autores, o cuidado nunca é individual e voltado apenas ao usuário - deve ser construído para todos, uma vez que os profissionais precisam receber suporte de seus pares e das instâncias superiores para efetivação do processo laboral. A pouca valorização do profissional e as formas de precarizar o trabalho são fortes elementos de adoecimento da equipe de saúde (Amorim & Lavrador, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Problematizar a questão da autonomia é tarefa desafiadora em meio a complexidade de suas definições, mas, sem dúvidas, é também reflexão imprescindível às práticas implicadas eticamente com a luta antimanicomial. Diante da multiplicidade de interpretações do termo, alinhamo-nos a uma gama conceitual que mais se aproxima do compromisso da Reforma Psiquiátrica: a compreensão de que autonomia deve ser entendida como a enunciação do sujeito da saúde mental, um ser de desejos, capaz de fazer escolhas e exercer sua cidadania.

O presente texto não almejou fechar-se em respostas ou soluções para os impasses e problemáticas encontrados. Ao contrário, a escrita foi construída para compartilhar interrogativas sobre as práticas, no intuito de que os questionamentos sobre a autonomia e seus desdobramentos pudessem abrir novos e incansáveis olhares sobre o cuidado em saúde mental. A defesa da atenção psicossocial deve incluir a constante reafirmação e revisão das próprias diretrizes, uma vez que a herança manicomial está sempre à espreita.

A partir dos excertos oriundos de tantas experiências vividas, percebe-se que a autonomia atravessa todo o processo de produção de cuidado. Perpassa a escolha e negociação do projeto terapêutico do usuário, mas também abarca as formas de domínio de um saber sobre o outro e a institucionalização nos serviços, responsável pela homogeneização das existências e o silenciamento das singularidades. O sujeito autônomo também faz furo nas posturas normatizantes e prescritivas que, por vezes, encarnam na figura do trabalhador de forma pouco consciente. Além disso, a autonomia ainda incide no profissional, que frente aos desafios e obstáculos da prática, recorre à própria inventividade para garantir uma atenção comprometida e dedicada ao usuário.

Assim, a autonomia não se restringe unicamente ao sujeito a ser ofertado o cuidado e precisa ser entendida como ingrediente imprescindível a todos aqueles que fazem parte do campo da saúde mental. Os técnicos necessitam lançar m ão de fazeres que transcendam a mera aplicação de seus conhecimentos, visto que é na relação singular com o usuário que o cuidado passa a fazer sentido. Ademais, momentos desafiadores e inéditos, como a pandemia do vírus Covid-19, exigem que os trabalhadores se conectem com a própria flexibilidade e criatividade para criar novas formas de produzir cuidado.

No que tange às múltiplas conceitualizações sobre o que significa ser um sujeito autônomo, depreende-se que esta não pode ser uma definição categórica ou fechada em significados prontos. A autonomização não se resume à capacidade cognitiva de autogerir a vida, pois vai além da ideia de domínio das faculdades mentais. Além disso, a autonomia não é produzida de forma individual e restrita ao próprio sujeito, visto que também depende da relação e vinculação com o outro para poder se estabelecer. Uma vida autônoma está ligada à possibilidade de construção de laços e apropriação da própria experiência, elementos estes que aproximam o conceito a uma vivência performática.

Para concluir, reitera-se a relevância do debate sobre a autonomia dentro das ações e dos serviços de saúde mental como caminho para a manutenção e fomento do cuidado em liberdade. O constante interrogar-se sobre as práticas é o motor para que a atenção psicossocial se mantenha forte e viva, apesar das ameaças às políticas vigentes. Pensar a saúde mental é entender que a autonomia do sujeito é elemento inegociável e absolutamente imprescindível em seu acompanhamento. Por fim, o desejo de produzir (e aprender) sobre a questão da autonomia está entrelaçado com a aposta em uma saúde livre, potente e implicada com as diferentes formas de existir.

Financiamento

Não houve financiamento

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica

1Esse projeto leva em conta o disposto na Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466, de 12 de dezembro de 2012 que aborda as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e, também, o que consta na Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016, que dispõe sobre a ética na pesquisa nas áreas de Ciências Humanas e Sociais.

2Os nomes são fictícios.

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Recebido: 04 de Maio de 2021; Revisado: 26 de Novembro de 2021; Aceito: 17 de Janeiro de 2022

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