A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. Molambos erigem fumaça no ar. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é. Na televisão deu: Mataram a mulher, puseram o corpo na lixeira e atearam fogo! (Evaristo, 2016, pp. 99-100)
A Lei do Feminicídio (Lei n. 13.104/2015) alcançaria a mulher incendiada na lixeira do conto de Conceição Evaristo? O conto “A gente combinamos de não morrer” retrata as narrativas de personagens de uma mesma família na difícil tarefa de sobreviverem em um cenário precário entrelaçado a disputas de territórios, dívidas e enfrentamentos com a polícia. A posição específica das personagens mulheres desse conto, que produzem também vulnerabilidades e riscos não circunscrevem esse assassinato no enquadre do feminicídio?
No debate sobre violência contra a mulher, as discussões sobre feminicídios são relativamente novas no cenário internacional e bastante recentes no contexto brasileiro, tendo se intensificado após a promulgação da Lei do Feminicídio (Lei n. 13.104/2015). Os materiais teóricos produzidos sobre a temática do feminicídio, em geral, giram em torno da conceituação, da sua pertinência enquanto figura penal e das causas e consequências de sua ocorrência enquanto fenômeno social (Gomes, 2017). Diante da diversidade de abordagens possíveis desta temática, este estudo busca as narrativas de profissionais da segurança pública e da justiça que trabalham ou já trabalharam em casos de feminicídio. O objetivo geral da pesquisa foi analisar como esses profissionais compreendem esses casos. Na preparação da pesquisa e elaboração do roteiro de entrevista esperávamos que as narrativas indicassem a mudança de atuação das instituições jurídicas em casos de feminicídios após a publicação da lei, os instrumentos utilizados para a adequação à nova norma jurídica, bem como opiniões dos profissionais sobre as condições sociais relacionadas ao feminicídio e a pertinência do novo tipo penal. No entanto, analisando as entrevistas nos deparamos com narrativas que produziam outras diferenciações.
Chamou-nos atenção não a forma como os profissionais se referia aos feminicídios, principalmente aqueles ocorridos como desdobramento de violência doméstica, mas a maneira como compreendiam os feminicídios domésticos em contraposição a mortes de mulheres em contextos de criminalidade, principalmente em situações que envolvem o comércio de drogas e as políticas de segurança pública de combate ao tráfico, denominadas como guerra às drogas1. Neste enquadramento bélico associado às drogas, as mortes das mulheres são enquadradas também de forma diferenciada, muitas vezes não compreendidas como efeitos das desigualdades de gênero. Diante disso, algumas inquietações surgiram no sentido de refletir sobre os significados e os possíveis efeitos dessa lógica de separação das mortes em dois campos: a violência doméstica e a violência urbana.
Essas temáticas possuem importantes pontos de interseção para entendermos em que medida a “guerra às drogas” acaba se tornando uma guerra também às mulheres - em sua maioria, negras e pobres. Assim, se olharmos atentamente as dinâmicas que englobam as políticas de combate à violência doméstica e ao comércio de drogas, veremos que são contraditórias entre si e resultam em uma exposição maior ao risco de mulheres que se encontram em contextos marginalizados. Salientamos, ainda, que abordar essas questões no Brasil é lidar com o racismo estrutural e a lógica colonial que perpassam as práticas policiais e de justiça e se deparar com a perversidade de seus efeitos para a população negra e pobre (Almeida, 2018; Flauzina, 2016).
Dessa forma, neste artigo abordaremos a contraposição entre mortes de mulheres no cenário doméstico e mortes em outros contextos relacionados à rede de drogas e às políticas de segurança pública e justiça. Em um segundo momento, problematizamos como as políticas de segurança pública se articulam com as questões raciais, não apenas no sentido de manter a população negra em situações de precariedade, mas também de manutenção dos privilégios de classe e de branquitude.
PERCURSO METODOLÓGICO
Levando em consideração que o discurso teórico e normativo do Direito não corresponde às práticas jurídicas, muitas vezes dependentes da subjetividade de quem as aplica (Carvalho, 2015), optamos pela metodologia de entrevistas semiestruturadas com profissionais que atuam ou atuaram em casos de feminicídio. Marcela Zamboni, Helma Oliveira e Emylli Nascimento (2019) chamam atenção para a importância de analisar as narrativas dos agentes jurídicos para além dos processos documentais. Segundo as autoras há uma disputa linguística entre os dois canais de comunicação utilizados durante um processo: enquanto na fala aparecem construções que escancaram certos estereótipos, na passagem para os autos documentais esses termos são abrandados como tentativa supressão de preconceitos e juízos de moralidade.
Há, então, certa adequação para uma linguagem mais neutra. Salientamos que a neutralização da linguagem é uma tentativa de atender às formalidades jurídicas e, nesse sentido, concordamos com Adilson Moreira (2019) ao afirmar que essa busca pelo formalismo e pelo apagamento da subjetividade dos operadores do Direito nada tem de neutra, uma vez que
Interpretam normas a partir dos conteúdos cognitivos internalizados no processo de socialização, além dos interesses dos grupos sociais que eles representam. Ao contrário do que dizem os defensores atuais do formalismo jurídico, juristas não são pessoas que interpretam normas a partir de critérios racionais. Muitas vezes, eles atuam com o intuito de reproduzir as relações de poder que estruturam a sociedade na qual vivem. (Moreira, 2019, pp. 134-135)
Sendo assim, estamos de acordo com Roberto Lima e Roberta Baptista (2014) quanto à importância de utilizar, no campo jurídico, outras metodologias que ampliem a pesquisa bibliográfica frequentemente utilizada em produções acadêmicas no âmbito do Direito. Os autores destacam que é necessário estranhar as respostas padronizadas do Direito a partir da análise crítica das práticas jurídicas contando, para tanto, com um olhar antropológico, “partindo, sempre necessariamente, de um surpreender-se com tudo aquilo que aos olhos dos outros parece natural” (p. 10).
Apesar da importância desse deslocamento metodológico, ele ainda é um desafio enfrentado no campo jurídico. Um dos obstáculos é a resistência dos profissionais do campo em relação à pesquisa empírica que, acostumados com ideais normativos, muitas vezes a compreendem como ferramenta de denúncia e acusação das práticas profissionais (Lima & Baptista, 2014).
Essa foi uma dificuldade que encontramos no momento de contato para apresentação da pesquisa e convite à participação, sobretudo com as(os) juízas(es) e promotoras(es) do Tribunal do Júri do Estado de Minas Gerais. Mesmo com diversas tentativas de contato presencial e por telefone com esses profissionais, sequer conseguimos encontrá-los pessoalmente, já que toda a comunicação foi feita por intermédio de assessores, colocando as(os) magistradas(os) e promotoras(es) em uma redoma de difícil acesso, comum na cultura jurídica (Sinhoretto, 2005). Por essa dificuldade, a ideia inicial de entrevistar todos os atores jurídicos presentes nas diversas fases do processo (policiais, promotoras(es) e juízas(es)) foi modificada e ficou restrita aos policiais da delegacia de homicídios, onde a receptividade à pesquisa foi maior, sobretudo pelas policiais mulheres, e a uma promotora que já havia tido contato profissional com uma das pesquisadoras.
A pesquisa foi desenvolvida na capital de um estado do Sudeste e buscou entrevistar os profissionais encarregados dos casos de feminicídio. Nesta cidade, em 2015, foi criado um núcleo especializado na investigação de casos de feminicídio, com a finalidade de adaptar as práticas das instâncias jurídicas à Lei do Feminicídio (Lei n. 13.104/2015). Após aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais as entrevistas foram realizadas entre agosto e setembro de 2019. Ao todo, participaram da pesquisa seis profissionais, sendo cinco policiais civis atuantes em Delegacia Especializada em Homicídios e uma promotora da Promotoria Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. As entrevistas foram realizadas individualmente, no local de trabalho das(os) participantes, após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As(os) profissionais possuíam, na época das entrevistas, idades variando entre 28 e 51 anos e tempo de carreira na instituição variando entre 3 e 26 anos de atuação. Todos possuem formação em Direito. Três se declararam pardos e três se declararam brancos.
Salientamos que não há pretensão de generalização das narrativas desses profissionais. A questão que colocamos não é sobre quantos profissionais pensam de determinada forma, mas sobre como as pistas encontradas nessas narrativas permitem pensar o debate do feminicídio e da segurança pública e justiça articulados com as desigualdades de gênero, classe e raça no Brasil. O objetivo da pesquisa foi analisar, a partir da narrativa destes profissionais, enunciados que são acionados nos encaminhamentos dos casos de assassinatos de mulheres, especialmente as diferenciações entre feminicídio e homicídio e a relação com as questões raciais e de classe. Assim, as narrativas produzidas nas entrevistas foram analisadas a partir das ferramentas da análise de discurso (Foucault, 2005), na qual os enunciados são pensados não apenas na relação com o sujeito que o enuncia, mas como o ponto de conexão com um campo enunciativo adjacente.
USOS DO CONCEITO DE FEMINICÍDIO: ALGUMAS INQUIETAÇÕES
Durante as entrevistas foi possível perceber que todos os casos relatados pelas(os) profissionais como feminicídios se tratava de contextos de violência doméstica e familiar, nos quais as partes possuíam algum tipo de relação, seja ela afetivo-sexual ou outro tipo de parentesco. A vinculação entre feminicídio e o relacionamento íntimo entre as partes está relacionada ao fato da violência doméstica ser um dos requisitos colocados pela legislação brasileira para que um assassinato seja enquadrado como feminicídio (Lei n. 11.340/2006; Lei n. 13.104/2015), além do fato de grande parte dos feminicídios ocorrerem nesse contexto (Waiselfisz, 2015). No entanto, esse não é o único cenário em que as desigualdades de gênero se fazem presentes, sendo possível, inclusive pelo texto da Lei do Feminicídio, que o enquadramento deste crime não esteja restrito aos relacionamentos afetivos e familiares das vítimas: “Considera-se que há razões de condição do sexo feminino2 quando o crime envolve: [...] menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (Lei n. 13.104/2015)
A centralidade que o lar ocupa nos estudos sobre violência contra a mulher contribui para sua compreensão enquanto espaço isolado, além de ratificar as narrativas que o colocam como dimensão privada da vida (Gago, 2020). A defesa da ideia de que “o pessoal é político” não basta se não considerarmos que o combate à violência contra as mulheres é atravessado não apenas pelas dinâmicas internas da casa e dos relacionamentos, mas também pelas violências compreendidas como públicas e frequentemente presentes, mas invisibilizadas, nas práticas sociais, jurídicas e institucionais que possuem fortes atravessamentos de raça e de classe.
Em outros contextos históricos, condutas feminicidas foram utilizadas, inclusive, como uma das estratégias estatais para o desenvolvimento do capitalismo e, mais adiante, do neoliberalismo. Silvia Federici (2017) demonstra como a caça às bruxas serviu para a domesticação dos corpos de mulheres na Europa, sendo que essas dinâmicas vêm se atualizando com novas roupagens, proporcionando uma escalada de vítimas da América Latina e Africa: “Assim que despojamos de parafernália metafísica a perseguição às bruxas, começamos a reconhecer nela fenômenos que estão muito próximos a nós” (pp. 416-417)
Assim, uma perspectiva mais abrangente da violência contra a mulher e, consequentemente, dos feminicídios, que não enxergue a casa como seu único cenário nos parece necessária porque possibilita uma análise mais ampla sobre outras formas de violência, já que “dar conta da pluralização das violências é uma medida estratégica: uma forma de conexão que produz inteligibilidade e permite um deslocamento da figura totalizante da vítima” (Gago, 2020, p. 72). Essa proposta é uma tentativa de compreender os outros e muitos âmbitos da vida em que o gênero, atrelado aos marcadores de raça e classe, produzem violências que podem culminar em feminicídios.
Caracterizar as violências machistas como algo vinculado apenas ao espaço doméstico ratifica o isolamento no lar e confirma as fronteiras que o veem como 'privado'. É o grande confinamento das mulheres dentro de casa que permite também o confinamento da violência como uma mazela que se padece 'das portas para dentro ', isto é, de modo privado, íntimo. (Gago, 2020, p. 89)
Embora seja um desafio a proposta de deslocar e descentralizar o cenário doméstico quando problematizamos casos de mulheres assassinadas em vários contextos, é um exercício importante para a compreensão de dinâmicas de precarização da vida dessas mulheres por condições sociais, políticas, econômicas e históricas, assim como por práticas institucionais que possibilitam a ocorrência da enorme quantidade de feminicídios no Brasil. As narrativas dos profissionais parecem não abarcar feminicídios que ocorrem fora da configuração doméstica, indicando-nos que o entendimento da violência contra a mulher se restringe ao lar como cenário exclusivo de sua ocorrência
Bruna3: Quando envolve mulher, 90% praticamente a motivação é violência doméstica. Então já tem autoria definida, se não conseguiu prender em flagrante aí a gente já pede a prisão, já inicia o pedido das cautelares todas, uma delas é a prisão e prende o autor.
Entrevistadora: E os 10% são o que? Tem algum exemplo?
Bruna: Na época, até hoje eu não detectei ainda... pode ser que no decorrer da investigação a gente consiga entender se foi por outra razão que tá descrita na qualificadora.
Aí fala que feminicídio é matar mulher por ser mulher, mas aí eu entendo que seria essa questão da violência doméstica mesmo, de questão de ódio, né? Tem gente que vê mulher dessa forma ainda, como um objeto e quer, sei lá, ter poder sobre ela de alguma forma. Acho que a gente tá caminhando, né? A lei veio pra tentar, acho que diminuir um pouco esse, sei lá, esse modo que a gente vem trazendo desde então, né, na história de como tratar a mulher. (Miguel)
Nesse sentido, chamou atenção durante a conversa com as(os) profissionais a separação que fizeram entre feminicídios e homicídios ocorridos em outros contextos. Essa diferenciação, conforme a narrativa das(os) profissionais, produz efeito na investigação de autoria: “Esses casos (de feminicídios) a autoria já tá meio que definida, são pessoas próximas da vítima. Não é como um caso de homicídio que a pessoa morre e aí tem envolvimento com tráfico normalmente” (Sofia). “É diferente de uma investigação de um homicídio contra uma mulher envolvida no tráfico de drogas, que não caracteriza o feminicídio” (Laura).
O homicídio como desdobramento do comércio e uso de drogas é relatado como em oposição ao feminicídio, como se essas mortes não pudessem estar atravessadas também por questões relacionadas às desigualdades de gênero: “É fácil quando é violência doméstica. [...]. Difere-se por exemplo de uma vítima que tem envolvimento com tráfico de drogas. Aí normalmente é de tiro, normal, como se fosse qualquer outra pessoa envolvida ali na criminalidade” (Bruna).
Era um [sic] travesti, dois casos. Um a gente conseguiu solucionar o outro não conseguimos achar. Mas isso até foi uma guerra, um [sic] travesti matando o outro [sic] por conta de ponto de tráfico de drogas. (Miguel)
Um dos argumentos favoráveis à tipificação do feminicídio é que ela seja acompanhada da elaboração de protocolos que incluam a perspectiva de gênero tanto na confecção de laudos médicos e policiais quanto nas práticas investigativas e julgamentos, a fim de evitar o campo minado de dados e informações em documentos oficiais das instituições policiais e jurídicas (Gomes, 2017). Há direcionamentos estabelecidos pelas “Diretrizes Nacionais: Feminicídio”, formuladas pela ONU Mulheres (2016) e citados por duas das profissionais entrevistadas como um instrumento utilizado para seus estudos e atualizações. Nesse documento os feminicídios não estão restritos ao ambiente privado e às hipóteses previstas na Lei Maria da Penha.
Em 2016 eu inclusive participei do curso, porque a ONU Mulheres estabeleceu as diretrizes pra processar, investigar e punir a morte violenta de mulheres, esse é um documento que foi apresentado em 2016 e eu participei. Essas diretrizes são fundamentais. Ela incorpora a perspectiva de gênero na investigação dessas mortes. (Cecília)
As diretrizes, inclusive, utilizam as mortes em situações relacionadas ao narcotráfico para exemplificar essa perspectiva. Dessa forma, embora seja um enfoque ainda tímido, concordamos com Puta Segato (2016) quanto à urgência da desprivatização das análises sobre violência de gênero, compreendo-a também como pilar estruturante de políticas de controle e de morte, sobretudo quando falamos de novas formas de violação dos corpos feminizados ligadas à expansão neoliberal, que incluem a maior inserção de mulheres, em sua maioria negras e pobres, no trabalho informal e ilegal no tráfico de drogas, razão pela qual
Não há que se falar em perfis ontológicos de mulheres que atuam no 'mundo do crime '. As mulheres selecionadas pelo sistema de justiça criminal como traficantes são trabalhadoras e, quase sempre, chefes de família, criando formas de viver com um pingo de possibilidade e, quem sabe, dignidade. (Martins, 2020, p. 2660)
As medidas neoliberais de minimização de políticas sociais, a precarização do trabalho e o aumento desemprego em massa das últimas décadas têm nos levado a um cenário de feminização da pobreza (Alves, 2017). Como resultado, há um aumento na participação de mulheres no comércio ilegal de drogas, sobretudo em ocupações coadjuvantes de transporte e venda de pequenas quantidades (Martins, 2020; Segato, 2016). De uma maneira ampliada, é possível pensar na aproximação maior das mulheres na complexa rede que o comércio de drogas envolve como uma análise importante para compreender o cenário não doméstico de feminicídio.
Nesse contexto, a divisão sexual do trabalho se faz presente, uma vez que as mulheres geralmente estão em funções relacionadas à circulação da mercadoria e, portanto, mais precárias, menos protegidas e mais suscetíveis às abordagens policiais (Arguello & Horst, 2020). Além disso, em regra, são essas mulheres as responsáveis pelo cuidado com crianças e outras pessoas dependentes, fazendo com que se mantenham em locais mais fixos, facilitando que sejam usadas como campo de disputa entre grupos rivais envolvidos no tráfico de drogas (Meneghel & Portella, 2017). Juliana Horst (2019) aponta que, se antes havia um código de conduta a ser seguido entre homens pertencentes a grupos responsáveis pelo tráfico no qual, a partir de uma visão sexista, a proteção de pessoas consideradas frágeis (mulheres, crianças, idosos) era um dos pilares, atualmente esse quadro têm se modificado.
Com o surgimento de um modelo neoliberal dessas organizações a rede de proteção se fragiliza e a rentabilidade dos negócios se torna protagonista. A lógica se inverte: as mulheres que tinham suas vidas protegidas agora se tornam parte da disputa, além de se encontrarem em situações de maior vulnerabilidade em razão das responsabilidades assumidas em relação aos cuidados com os filhos e com a família, o que diminui as possibilidades de fuga ou de se esconderem. Esse cenário se relaciona com a performance da hipermasculinidade, compreendida socialmente como sinónimo de poder e virilidade, não apenas nas disputas entre as facções, mas também na violência estatal contra os corpos femininos.
Se ao abrigo do espaço doméstico o homem abusa das mulheres que se encontram sob sua dependência porque pode fazê-lo, quer dizer, porque estas já formam parte do território que controla, o agressor que se apropria do corpo feminino em um espaço aberto, público, o faz porque deve para mostrar que pode. (Segato, 2006, p. 275)
Considerando essas reflexões temos pistas de que uma parcela dos feminicídios ocorridos no Brasil nos últimos anos possam ter relação com as disputas internas em relação ao comércio de drogas, tendo em vista que as mulheres “muito facilmente se convertem em território de vingança e, pela maior facilidade de serem localizadas, são executadas em lugar dos companheiros, fazendo com que esse tipo de crime também se caracterize como feminicídio, embora não seja visto como tal” (Meneghel & Portella, 2017, p. 308). Assim, a descaracterização automática de feminicídio no caso de assassinato de mulheres no contexto da venda de drogas parece não estar atenta às possíveis dinâmicas de gênero que podem colocar as mulheres em posições mais vulneráveis.
Além disso, em estudo quantitativo Stela Meneghel, Bruna Rosa, Roger Ceccon, Vania Hirakata e Ian Danilevicz (2017) demonstram que uma maior ocorrência de feminicídios está intimamente ligada às outras formas de violência. Segundo as autoras há um maior índice de feminicídios em territórios onde a incidência de mortes masculinas também é alta e frequentemente resultante da violência policial, escancarando o genocídio contra a população negra em curso no país sem que haja responsabilização do Estado. Esse cenário nos remete novamente ao conto de Conceição Evaristo, quando a jovem Bica lista os amigos de infância.
A casa de Neo caiu. Aprontou, dançou! Mais um, que não será o último, outros virão. Ele, Dorvi, Idago, Crispim, Antônia, Cleuza, Bernadete, Lidinha, Biunda, Neide, Adão e eu temos ou tínhamos (alguns já se foram) a mesma idade. Um ano e às vezes só meses variavam o tempo entre a data de nascimento de um e de outro. Alguns morreram também em datas bem próximas. Apalpo o meu corpo, aqui estou eu. (Evaristo, 2016, p. 107)
Essa não nos parece ser uma relação dada ou natural, mas fruto de políticas e instituições que, ao focalizarem, como alvo, sujeitos de raça e de classe determinadas, impedem a proteção de mulheres inseridas em algumas realidades: “O que se observa é que, no horizonte do genocídio, a liberdade é produto não disponibilizado no mercado dos indigentes que povoam a zona do não ser, sendo a dor e a degradação as sentenças impostas pela branquitude” (Flauzina & Pires, 2020, p. 1233).
Nesse ponto, salientamos que a reflexão sobre a maior participação das mulheres no tráfico de drogas nos últimos anos não pretende ser determinista, como se a participação no comércio de drogas fosse o único destino possível no contexto da feminização da pobreza, mas o compreendemos como uma forma possível de fonte de renda em um contexto de precarização do trabalho e da vida. Chamamos atenção, inclusive, que nesses contextos as mulheres ocupam a ponta de um sistema que, em seus escalões mais altos, enriquecem, majoritariamente, homens brancos, mas que raramente são alvos das políticas de segurança pública e justiça. Esse contexto, aliado às políticas seletivas de criminalização do comércio de drogas, tem causado aumento significativo da quantidade de mulheres encarceradas por tráfico de drogas, sobretudo em relação às mulheres latinoamericanas, criando um cenário também de feminização da punição (Alves, 2017).
Nessas novas dinâmicas bélicas, com baixo grau de formalização e sem uma delimitação espacial e temporal claras, a política de guerra às drogas ocupa um lugar central tanto em sua dimensão interna, nos conflitos entre facções, quanto na participação de agentes da segurança pública, nas milícias e nas práticas de violência disfarçadas de proteção, expandindo a exploração e violências aos corpos femininos para além do cenário íntimo (Segato, 2014). Ingrid Sousa, Larissa Nunes e João Paulo Barros (2020), analisando mortes de meninas e mulheres nesse contexto no Ceará problematizam a dinâmica desses assassinatos que entrelaçam a violência contra as mulheres e a violência urbana, se tornando necessário que os debates acerca das violências sofridas pelas mulheres transponham o âmbito exclusivamente doméstico.
Dessa forma, a separação entre feminicídios íntimos e as violências e mortes de mulheres em outros contextos, presente tanto nas narrativas das(os) participantes da pesquisa quanto na produção acadêmica, na mídia e na jurisprudência sobre violência contra a mulher, limita o debate. Esse cenário nos dá pistas de que parece haver uma dupla invisibilidade das mulheres no debate teórico, midiático e jurídico: aquelas que morrem fora de suas casas não são contabilizadas como vítimas de feminicídio e não é frequente que apareçam nas denúncias relativas ao genocídio negro no Brasil, fortemente associado a jovens homens negros, silenciando sobre os efeitos destas violências para as mulheres negras.
ENTRE A PRECARIZAÇÃO DA VIDA E O GENOCÍDIO
Eram vítimas negras, a maioria era negra. Desde que eu entrei pra polícia eu trabalhei em 15 homicídios de mulheres e eu acho que foram três tentativas no interior. Mas a maioria é negra. Se fosse pra eu chutar aqui, eu posso até consultar, mas se for pra eu chutar, desses 15, duas ou três foram brancas. (Sofia)
O relato de Sofia corrobora o que os dados sobre feminicídio quantificam. Analisando os relatórios recentes sobre violência contra mulheres podemos compreender que os mecanismos protetivos têm servido majoritariamente às mulheres brancas4. Segundo o Atlas da Violência (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2019), enquanto a taxa de homicídios de mulheres brancas teve crescimento de 4,5% na década compreendida entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9% no mesmo período. Ainda, a pesquisa realizada por Débora Diniz e Sinara Gumieri (2018) ratifica os números apresentados e demonstra que a probabilidade de uma mulher negra ser morta por feminicídio é três vezes maior que a de uma mulher branca, além de apresentarem o dado de que tanto as mulheres brancas quanto as negras morrem dentro de casa, mas as mulheres negras morrem, também, em espaços públicos, reforçando a necessidade de aprofundar as análises para além do espaço doméstico.
Como pontuamos no início deste trabalho, a análise isolada dessas mortes, seja na quantidade, seja nas características das mulheres mortas deve estar ligada às condições que antecedem o crime e que permitem que ele ocorra de determinadas formas e contra determinados corpos. Nesse sentido, considerando o racismo estruturante e a desigualdade de classe no Brasil, se torna inviável a análise de violências de gênero sem que se trate com igual protagonismo as violências as quais as mulheres negras e pobres são submetidas, uma vez que a omissão ou o silêncio em relação ao racismo nos torna ética e politicamente responsável por sua manutenção (Almeida, 2018).
Pensar essa perspectiva do ponto de vista do sistema de justiça criminal nos leva a compreender as desigualdades raciais e de classe que ele promove e mantém. Isso porque tanto nas abordagens policiais, quanto nas dinâmicas processuais e de julgamento são pessoas negras e pobres o alvo da criminalização e do anseio punitivista no Brasil. O movimento negro vem denunciando constantemente o genocídio que está em curso no Brasil, tendo as instituições policiais um papel fundamental em sua concretização e as demais instituições jurídicas e legislativas em seu respaldo (Alves, 2017; Flauzina & Pires, 2020). Em relação às mulheres negras, são submetidas a inúmeras violências físicas, sexuais, psicológicas, patrimoniais e letais não apenas por seus parceiros, mas também por agentes do Estado. Além disso, a necropolítica atua em suas vidas quando têm seus familiares mortos pela violência policial ou submetidos a condições extremamente precárias pelo encarceramento em massa.
No entanto, nas narrativas hegemônicas sobre violência contra a mulher nem sempre os marcadores de raça são colocados em análise, num movimento que apaga precariedades vividas pelas mulheres negras5. Esse silenciamento é um dos perversos efeitos do mito da democracia racial que vem mantendo a cegueira, sobretudo da branquitude, sobre o racismo cotidiano e estrutural e nos coloca frente a um modelo universal e colonizado de mulher que pouco se aproxima da realidade em que vivemos, sendo pertinente o questionamento de Sueli Carneiro (2003): “afinal, que cara tem as mulheres deste país?” (p. 15)
Nas entrevistas com as(os) profissionais, as falas em relação à questão racial foram, em muitos momentos, ambíguas, mesclando informações mais técnicas, mas também associadas a formulações do senso comum. Diante dessas nuances, intensificadas nas polarizações políticas atuais, a análise é sempre difícil. A fala de Sofia carrega essa tensão. Ao mesmo tempo em que relata que o racismo é um ponto central na produção de desigualdades, tem também um tom de associar raça à violência, além de haver uma noção de impossibilidade de mobilidade social e de escolaridade que parece colocar a responsabilidade nos próprios sujeitos ao invés de compreendê-la enquanto efeitos de desigualdades sociais e estruturais
É, no Brasil a gente tem a vinculação de raça com desigualdade, as pessoas têm menos oportunidades por causa da cor da pele e aí elas vivem assim, sabe? Tipo uma continuidade de desigualdade. Seus pais são negros, eles não têm condição, vão morar num aglomerado com baixas condições de escolaridade, aí você vai nascer uma pessoa negra, cê vai se relacionar com pessoas negras, cê vai se casar, e aí vira um ciclo de desigualdade e de raça. Negra. Que ninguém questiona raça branca. E eu acho que existe essa vinculação negra de violência só que não só no feminicídio, no homicídio comum a maioria das pessoas também são negras e quem mata são pessoas negras. Então, tipo assim, tanto no feminicídio quanto no homicídio pessoas negras estão matando pessoas negras. Eu acho que por ser vinculado, um crime muito vinculado, é o crime mais violento, ser vinculado com a desigualdade, eu acho que tá crescendo. (Sofia)
Além disso, em outro momento da entrevista, Sofia analisa a política de segurança pública nesses termos: “a polícia militar é uma polícia ostensiva, ela tá lá pra prevenir o crime. Então na política de segurança, quanto mais policial na rua fardado, mais prevenção de crime cê vai ter [grifo nosso]” (Sofia). A partir dessa fala há uma crença na efetividade do combate aos homicídios por tráfico de drogas, sem levar em consideração que a forma como vem sendo executada a política de drogas se aproxima mais de uma política de morte contra corpos negros que de uma política de proteção à vida ou de prevenção à criminalidade. Entretanto, no trecho a seguir fica nítida a necessidade de mudança nas condições que antecedem o feminicídio e na estrutura das políticas públicas de proteção e prevenção à violência contra a mulher.
O feminicídio não vai prevenir, sabe? Porque por exemplo, cê tem um homicídio por tráfico, a maioria deles são assim: tem uma política de combate ao tráfico, então combatendo o tráfico cê vai diminuir o índice de homicídio por tráfico. Aí tem o feminicídio, que são questões de dominação masculina, de violência doméstica. Ninguém previne a causa, sabe? A delegacia de mulheres, se cê for na delegacia de mulheres dá tristeza. (Sofia)
A ideia de proporcionalidade entre quantidade de policiais na rua e segurança talvez faça sentido se focalizarmos a quem se direciona a proteção. Essa reflexão deve, necessariamente, considerar a raça como produtora das categorias de sujeitos protegidos e sujeitos alvo que, consequentemente, mantém uma hierarquia de vidas que são dignas de serem vividas, preservadas e lamentadas (Butler, 2016). Assim, temos a realidade de que pessoas brancas são constantemente protegidas em detrimento do extermínio de quem historicamente é colocado à margem: “o genocídio é o preço a se pagar pela segurança do cidadão de bem” (Gaspar & Oliveira, 2020, p. 22).
Quando um corpo negro é estirado no chão, a primeira constatação do 'estado brasileiro genocida'é celebrar o fim de um suspeito. Menos um suspeito no Brasil. O país do cidadão de bem irá seguir mais seguro. Menos um corpo negro no mundo. A escória sendo exterminada. O governo federal genocida celebra o fim de mais um vagabundo-favelado-futuro-criminoso. A prevenção do estado brasileiro genocida é dar fim aos modos de vida. A preservação da vida vem por meio do fuzil. (Miranda, 2020, p. 49)
Durante as entrevistas o mito da democracia racial se materializou em algumas das falas dos participantes. Ainda, a fala de Bruna carrega certo desconhecimento do fato que, pela classificação vigente no Brasil e utilizada pelo IBGE, a categoria negra abarca tanto pretos quanto pardos.
Bruna: Grande parte das vítimas são pardas, são consideradas pardas e negras, né? Aí juntando o montante é o que todo mundo considera como negra se não me engano.
Entrevistadora: Mas você vê essas diferenças aparecendo nos casos?
Bruna: É, não porque a gente não trata. A gente trata como mulher. Eu não tenho a visão “ah, é negra, é rica, é pobre “, não tenho visão nem econômica nem nada.
Essa indiferença em relação a influência do racismo no sistema de justiça é mencionada pela promotora de justiça quando relata que apenas em 2019, ano de realização da entrevista, houve iniciativa no sentido de inserir o debate racial nos instrumentos de combate à violência contra a mulher.
Eu já tenho esse olhar, é uma coisa um pouco minha de enxergar e de ver a diferença, mas no dia a dia a gente não vê. Primeiro que no próprio sistema interno do Ministério Público não tem o campo raça e cor. Agora o novo, depois de muita ponderação de todos nós, vai ter o campo raça/cor. Então se eu não enxergo, se nas minhas estatísticas não aparece esse campo fica complicado desenvolver, enxergar o quanto da população negra aparece pra mim e traçar estratégias específicas [grifo nosso] [...] E a gente tá acostumada a ver os negros numa posição de inferioridade. Nós da justiça ainda somos piores, né? Porque a gente não enxerga e a gente tem que enxergar, né? Esse é um enorme desafio. A gente tem até, no âmbito do Ministério Público um grupo que chama Articule que é justamente feito pra esse debate. A gente acabou de firmar uma parceria com a comissão de igualdade racial da OAB pra justamente pensarmos ações que nos façam entender por que a lei Maria da Penha não produz os efeitos esperados pras mulheres negras da mesma maneira que produz pras mulheres brancas e pra gente pensar em mecanismos de atuação nesse sentido. (Cecília)
Quando apresentamos os dados do Mapa da Violência de 2015 à Marcela, nos referindo ao aumento dos feminicídios contra mulheres negras e diminuição em relação às mulheres brancas, a policial também demonstrou desconhecimento da categorização racial vigente no Brasil.
Entrevistadora: Então, nos relatórios, no Mapa da Violência e no Atlas da Violência tem aparecido a diferença entre mulheres brancas e mulheres negras, que mulheres negras, que em relação às mulheres negras os casos de feminicídio estão aumentando e de mulheres brancas tá diminuindo
Marcela: Não sabia.
Entrevistadora: É, cê tem alguma hipótese pra esse dado? Cê vê isso aparecendo?
Marcela: Não, não. Na verdade, eu não sabia, não sabia. Até porque os casos que eu peguei eram poucas mulheres negras. Eram mulheres brancas e pardas. Mas eu não sabia disso. Mas também, né? A violência tá tão maior nesse meio, né?
Além disso, a policial faz a problemática, mas frequente, associação entre raça negra e violência. Em termos de segurança pública, essa é uma relação que nos leva à própria atuação da polícia, instituição à qual a entrevistada está vinculada. Isso porque são frequentes as violentas ações policiais nas quais os alvos são majoritariamente sujeitos negros. Por trás dessas condutas está a ideia de periculosidade, na qual a preocupação não está no que o sujeito é ou nas suas ações em julgamento, mas sobre suas virtualidades e sobre o que poderá vir a fazer (Foucault, 2006).
Historicamente, as epistemologias elitizadas e embranquecidas de diferentes áreas, dentre elas o vasto campo do racismo científico, criaram, por diversos mecanismos, a imagem do sujeito negro perigoso que serve de pano de fundo para que a branquitude faça com frequência a cadeia associativa entre presunção de criminalidade, perigo e, como resultado, se sinta no direito de hostilizar, agredir e eliminar esses sujeitos (Davis, 2018). Mesmo na negação dessa relação, há uma presunção de violência e território: “Aí foi dentro do aglomerado, mas não era uma região de... apesar de ter sido dentro do aglomerado não era uma região onde tinha muito homicídio” (Sofia). Os estereótipos sobre raça não atuam sozinhos, já que “mescla-se com as questões da pobreza, fazendo surgir uma multidão que deverá ser objeto prioritário de controle e disciplinarização” (Moreira & Toneli, 2015, p. 191)
Na articulação entre raça, pobreza, periculosidade e violência os saberes jurídicos, atrelados a outros campos do conhecimento, vêm atuando no sentido de igualar lei jurídica e determinadas normas sociais que ditam formas idealizadas - e extremamente excludentes - em termos de subjetividade, estruturação da vida, organização familiar, financeira, emprego, moradia e escolaridade, que geralmente tomam como base realidades privilegiadas. Esses se tornaram padrões de legitimação social e, ao fugir desses modelos pré-estabelecidos, quase que automaticamente “entra-se para a enorme legião dos perigosos, daqueles que são olhados com desconfiança, evitados, afastados, enclausurados e mesmo exterminados” (Coimbra & Nascimento, 2008, p. 07).
Você fica pensando né, não só na vida que se perdeu, mas na vida que vai ter dali pra frente. Se o menino não tiver um acompanhamento. O pai tipo usando o menino, “cadê sua mãe? “. Eles tinham separado: “sua mãe tá em casa? “ Ou. o menino novo, uns 14 anos, um menino ótimo, apesar de morar no aglomerado, cê vê que o menino tinha toda. O menino super educado, não sei te dizer, ele tinha tudo pra ir pra outro caminho, igual quando a gente vê, sai por aí, vê né, tem muito contato, que menino dessa idade já tá querendo andar com roupa de marca, querendo aparecer, não sei o que, anda com más companhias. Ele não, ele todo certinho, ele realmente era uma criança, [grifo nosso] que é difícil hoje ver um menino de 14 anos com características de criança mesmo. Gente, eu fiquei chocada: o que que vai ser desse menino? (Sofia)
Nesse trecho da entrevista Sofia nos contava sobre um caso de feminicídio que tinha marcado sua carreira de forma intensa. O futuro do filho do casal foi colocado como um aspecto importante para que esse fato tivesse sido marcante, pois a fez refletir sobre como seria a vida do adolescente após o evento traumático pelo qual havia passado. No relato há uma predefinição do que representa a imagem de jovens pobres, entre as quais ser “ótimo”, “certinho” e “educado” não se incluem, razão pela qual o adolescente em questão causou certo choque na entrevistada.
Aqui vemos uma das faces do controle da população pobre, já que há a referência a condutas condizentes com as experimentações e lugares sociais da juventude (almejar roupas de marca, “aparecer”) mas que, na articulação com a pobreza, são lidas como como negativas pela policial e, portanto, passíveis de vigília, limitando a experiência da adolescência em comunidades pobres: “parece que lá, na favela, não se pode ser jovem, mas tão somente um trabalhador pobre e esforçado, sem idade e tempo para 'ficar de bobeirá” (Cecchetto, Muniz & Monteiro, 2020, p. 122).
Nesse sentido, o que se vê é que as políticas de segurança pública e de justiça não se constituem como políticas de proteção, mas de controle para as populações marcadas pela noção de periculosidade. Assim, se constroem obstáculos à qualquer tentativa de acionamento do Estado como estratégia de proteção. No que diz respeito à violência contra a mulher, as demais políticas de segurança pública que privilegiam ações violentas são uma barreira ao acesso das mulheres aos instrumentos de proteção previstos, por exemplo, na Lei Maria da Penha, fundamental para o combate aos feminicídios íntimos.
A condição precária também caracteriza a condição politicamente induzida de maximização da precariedade para populações expostas à violência arbitrária do Estado que com frequência não tem opção a não ser recorrer ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção. Em outras palavras, elas recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o Estado é precisamente aquilo do que elas precisam ser protegidas. (Butler, 2016, p. 47)
Quais mulheres podem ser vítimas? A primeira vista esse questionamento pode soar estranho, já que ser vítima não é anseio de ninguém. No entanto, se pensarmos em termos de acesso à Justiça é possível colocar que há certo privilégio nessa conceituação, já que é pautada em normatizações colocadas pelo sistema de justiça criminal para a concessão de proteção, baseadas em certos enquadramentos sociais, como branquitude, pertencimento de classe e modos de vida dentro de determinadas normas. De certa forma, o reconhecimento da vitimização é atravessado pelo reconhecimento de um sujeito de direitos capaz de acionar mecanismos de solidariedade e empatia (Flauzina & Freitas, 2017).
Eu estava sendo ameaçada pelo meu marido. Eu ficava com ele ali na Praça dos Correios, eu, minha filha e ele. A gente tava morando na rua e eu fiquei com medo dele e fui nessa delegacia da mulher. Eu não sabia como era isso, então neste mesmo dia que fui ameaçada, juntei meu dinheiro, deixei a menina com uma camarada e fui prestar a queixa. Fui muito mal tratada. Estava querendo falar das ameaças e a delegada perguntando se eu fumava crack, se eu tinha filho, que eu não deveria andar em certos lugares. Pedi a ela ajuda quase chorando, precisava sair da rua e ir para algum lugar. Ela me disse que existia a casa abrigo, mas eu não podia entrar porque era moradora de rua e usava droga e lá não aceita. Sai cheia de ódio, aquela não era uma delegacia para mulher? Então eu sou menos mulher? Não sou mulher não? [grifo nosso] (Malheiro, 2018, p. 181)
Esse trecho é a narrativa de uma das usuárias de crack entrevistadas por Luana Malheiros (2018) em pesquisa etnográfica no centro histórico de Salvador e ilustra a marginalização e a supressão do direito de ser vítima e ter acesso à proteção de mulheres inseridas em determinados contextos. A semelhança desse questionamento com os incômodos colocados por Sojourner Truth (1851/2014) nos leva a refletir sobre como a figura da mulher é ainda atrelada a certas características e enquadres sociais hegemônicos.
Salientamos, ainda, que esse contexto se relaciona com a questão da criminalização e da raça/ classe como produtoras de precariedades no sentido de apagamento dos componentes de gênero em determinadas violências e mortes de mulheres, uma vez que a narrativa hegemônica coloca o envolvimento com a criminalidade em primeiro plano, restringindo as subjetividades dessas mulheres à categoria de 'envolvida' e negligenciando outras, num movimento que naturaliza suas mortes e as descaracteriza como feminicídio (Sousa et al., 2020).
Na análise das entrevistas e quando conversávamos com os participantes, pudemos perceber como as mortes relacionadas a casos de feminicídios íntimos direcionam a comoção de maneira distinta do que nos casos de envolvimento com o comércio de drogas. “As pessoas trazem informações, vem aqui na porta e bate pra falar, enquanto outros casos que a gente pega que é tráfico de drogas ninguém fala nada” (Miguel). Enquanto nas primeiras situações percebemos pesar e indignação, sobretudo pelas entrevistadas mulheres, nas segundas há certo tom de banalização.
O homicídio por tráfico de drogas de uma mulher por exemplo cê vê que cê quer matar aquela pessoa e só porque cê tem um motivo relacionado a tráfico. Então cê vai dar tiro nela e tal. O homicídio do feminicídio eles sempre são muito violentos. Cê restringe aquele corpo ali pra fazer o que cê quiser. Normalmente é facada pelas costas sabe? É um local de crime muito sujo, muito desorganizado, cê percebe isso. Nos de tráfico normalmente é no meio da rua, tiro, é um homicídio comum. (Sofia)
Judith Butler (2016) argumenta que uma vida só poderá ser considerada como tal na medida em que sua perda aciona o processo de luto, pois “sem a condição de ser enlutada, não há vida [...]. Em seu lugar, há uma vida que nunca terá sido vivida, que não é preservada por nenhuma consideração, por nenhum testemunho, e que não será enlutada quando perdida” (p. 32). No limite, poderíamos pensar se o enquadramento do luto e a comoção tem relação com a característica do feminicídio ou se seria o enquadramento do luto a condição de possibilidade da leitura de uma morte enquanto feminicídio?
Por conta disso, tantas mortes de mulheres poderiam escapar dessa tipificação. Nessa lógica, a comoção seria gerada não pelo crime de feminicídio, mas pela figura da mulher, considerada digna de luto ou não por causa de seu enquadramento social, racial, de classe, território etc. Nesse sentido, parece haver um consenso entre as entrevistadas de que as mulheres em situação de violência doméstica e vítimas de feminicídio íntimo necessitam de proteção e tenham suas mortes lamentadas. Ele não parece ocorrer quando as mulheres possuem um histórico de envolvimento em práticas delituosas, sobretudo com o uso ou tráfico de drogas.
Na hora do fato o feminicídio é uma coisa muito interessante porque é um crime tão abjeto mesmo que quando a gente chega no local de crime é muito raro não ter testemunha apontando o autor. Ao contrário do que acontece com crime de tráfico: “ah, vi, não vi “ “ah, não sei “ “ah, eu tava olhando pro céu vendo passarinho “. (Marcela)
Inclusive eu sempre gostei de investigar o crime em que a vítima é mulher porque a gente consegue mais informação porque as pessoas sentem mais vontade de falar. É um crime que gera uma repulsa muito grande pela sociedade, né? (Miguel)
Essa perspectiva das vidas que não são dignas e, portanto, a morte não será lamentada ficou muito clara em determinado momento na conversa com Miguel. Ao chegar na delegacia no dia marcado para a entrevista, o policial relatou que havia ocorrido uma morte naquele dia pela manhã e, quando perguntado se se tratava de um feminicídio, respondeu que não. Durante a entrevista Miguel voltou ao caso e relatou que a vítima era um homem que havia cometido o roubo de um carro e, dias depois, foi morto por dois policiais
Miguel: Esse de hoje eu achei os autores porque os autores são policiais militares
Entrevistadora: Ah tá.
Miguel: Foi um desacerto, aí a vítima, né, que eu não entendo como vítima, mas ele tava com a arma em punho, foi correr na direção dos militares, os militares efetuaram os disparos, ele caiu, aí que ele falou “ah não, perdi, perdi “ aí socorreram ele no hospital e ele veio a falecer agora, 8 dias depois, [grifo nosso]
Esse é um trecho que, apesar de não se tratar do assassinato de uma mulher é muito elucidativo. Podemos pensar que, se nos cenários enquadrados com a moldura da criminalidade, um sujeito assassinado não será reconhecido como vítima do próprio homicídio, a mulher assassinada nesse cenário também não é reconhecida como vítima e nem mesmo como mulher. Ou, por que a vida de uma mulher assassinada por seu parceiro causa mais indignação que a morte de uma mulher inserida em outros contextos, mesmo que a lei do feminicídio pudesse ser utilizada em ambos os casos?
Essas são algumas reflexões para romper a separação entre um “mundo do crime” e o “mundo da violência contra as mulheres”, já que o componente do gênero atua em ambas, produzindo terrenos férteis para a ocorrência de feminicídios também fora do contexto doméstico. É uma divisão que se mostra rasa para a compreensão dos diversos contextos em que mulheres são submetidas a situações extremamente violentas fora de suas casas e fora de seus relacionamentos afetivos.
Outro obstáculo que se coloca para mulheres em situação de violência e que também se relaciona com a “guerra às drogas” é a questão da territorialidade. Isso porque há uma enorme quantidade de mandados de intimação de medidas protetivas não cumpridos, sobretudo quando se trata de localidades onde o sistema de justiça tem se feito presente não em práticas protetivas, mas através de condutas violentas e repressivas fazendo uso, inclusive, de máquinas de guerra sob o argumento de combate ao tráfico e à criminalidade, mas que se baseiam em conceitos classistas e racistas como o de delinquência e periculosidade (Bicalho, Kastrup, & Reishoffer, 2012), numa guerra em que os alvos são sempre os mesmos. “Aqui no meu país a justiça tem classe, tem cor. Os detentores da justiça, do poder de proteger, confundem furadeira com pistola, guarda-chuva com metralhadora. Mas confundir branco com negro, não” (Ripardo, 2020, p. 29).
Dessa forma, para as mulheres negras a interface com as práticas punitivistas guarda uma relação de brutalidade evidenciando, mais uma vez, a distribuição desigual do direito à vida e à proteção. Assim, os componentes de gênero, raça e classe se fazem muito presentes tendo em vista as frequentes violações de direitos e violências arbitrárias do próprio aparato estatal às quais não apenas as mulheres são submetidas, mas também seus familiares. Nestas últimas situações, Márcia Bernardes (2018) alerta que são as mulheres negras que “estão mais expostas a condições de precariedade agudas, politicamente induzidas, o que aumenta a exposição à violência do tráfico e à repressão policial. Arriscam-se mais do que as brancas para esclarecer as circunstâncias da execução sumária de seus parceiros e filhos” (p. 185).
Esse cenário faz com que esteja presente um sentimento de descrença em relação a um sistema que funciona com base em práticas racistas e classistas, que encarcera e mata seus familiares, deixando-as expostas não apenas à falta de proteção, mas às dores da perda, do luto e da frequente falta de reparação por parte do Estado (Vianna & Farias, 2011).
Minha mãe recebeu a notícia que ela já esperava. Foi lá, acendeu uma vela perto do corpo. Uma fumacinha-menina dançava ao pé de Idago. Só ela, a fumacinha, a mãe e eu ali velamos o corpo de meu irmão. Um tapa, dois tapas, elefantes, patas pisam na gente. Escopetas, como facas afiadas, brincam tatuagens, cravam fendas na nossa tão esburacada vida. Balas cortam e recortam o corpo da noite. Mais um corpo tombou. Penso em Dorvi. Apalpo o meu. Peito, barriga, pernas [...] Estou de pé. Meu neném dorme. Ainda me resto e arrasto aquilo que sou. (Evaristo, 2016, p. 101)
CONSIDERAÇÕES
No conto que inicia esse trabalho Conceição Evaristo coloca que escrever é uma forma de sangrar. E de sangrar muito. Metaforicamente, colocamos essas considerações, que não se pretendem finais ou fixas, como a abertura de uma ferida, de uma ruptura na forma de pensar a violência contra a mulher. Buscamos problematizar algumas questões que se colocaram a partir das falas dos profissionais da segurança pública e do Ministério Público a respeito do feminicídio. Na contraposição entre violência doméstica e tráfico de drogas encontramos pistas de que há uma dimensão ainda muito privatizada no debate sobre a violência contra a mulher, negligenciando as formas de vitimização que ultrapassam o doméstico e os relacionamentos afetivos.
Esse contraste nos convoca não apenas a pensar no ambiente físico em que esses crimes ocorrem, mas em seus significados políticos. Circula na sociedade um forte movimento que propõe a denúncia e o combate da violência doméstica contra a mulher, mas nem sempre são colocadas em foco as violências sofridas em espaços compreendidos como públicos. A partir dessa inquietação, procuramos romper, ainda que de forma inicial, com essa lógica, trazendo ao debate alguns indícios de que as desigualdades de gênero se fazem presentes também em outras dinâmicas, como o próprio comércio de drogas e as políticas de segurança pública. Essa dicotomia aparece, inclusive, como forma de direcionamento diferencial da comoção e do pesar em relação às mulheres mortas.
Os desdobramentos desses primeiros incômodos nos levaram a refletir sobre outros aspectos em que as articulações com as questões raciais e de classe se fazem presentes. Não apenas o mito da democracia racial se fez presente em diversas falas, mas também associações que servem de base para o funcionamento desigual das políticas de segurança pública atuais como, por exemplo, o controle da população pobre e a associação entre negritude e periculosidade.
Assim, é importante ressaltar que o assassinato de mulheres em situações externas ao campo doméstico e de relações afetivas, especialmente a morte em contextos associados à venda de drogas, não deve descartar automaticamente o enquadramento como feminicídio, tendo em vista que os atravessamentos de gênero, raça e classe impactam o modo de inserção dessas mulheres nesses espaços, produzindo vulnerabilidades específicas. Nesse sentido, a questão a ser pensada no enquadramento deveria ser: “existem elementos que permitam descartar que o fato de ser mulher não contribuiu para esta morte?”
A partir disso, pertinente nos questionarmos: é possível garantir proteção efetiva às mulheres negras e pobres quando o próprio Estado as viola de diversas formas? Se a rede de instituições que as encarcera, criminaliza, expõe às dores da perda de familiares, violenta e mata, como recorrer às mesmas em busca de suporte e cuidado? Não pretendemos responder de maneira definitiva essas perguntas, mas são questionamentos que nos colocam a pensar em conjunto as práticas institucionais de segurança e justiça, retirando das caixas separadas a violência doméstica e as violências exercidas pelo próprio aparato jurídico na tentativa de combate a outras formas de crimes.