INTRODUÇÃO
A população em situação de rua é um fenômeno urbano milenar e complexo. Esta complexidade é expressão de diversificadas formas de existência, de representações, de categorias e de estigmas relacionados às pessoas alijadas do processo de desenvolvimento nas sociedades capitalistas por uma série de fatores de ordem individual e estrutural. Partindo de uma perspectiva histórica, a existência de pessoas que tomam as ruas como abrigo pode ser compreendida através da sobreposição e concatenação de diversos processos sócio-históricos, políticos e conjunturais.
Na América Latina, os longos processos de colonização, de escravização e a forma de estruturação do sistema capitalista impactaram profundamente a existência de grupos subalternizados, tais como povos indígenas e aqueles trazidos de África. A violência colonial desestruturou comunidades, subjugou modos de vida, usurpou territórios, vilipendiou a cultura, a língua, as crenças de sujeitos racializados durante anos a fio. Nos dias atuais, sujeitos não-brancos enfrentam com maior frequência a falta de acesso à saúde e à educação de qualidade, ao direito ao trabalho formal e à segurança alimentar e nutricional. Uma realidade que é muito comum para a população em situação de rua. Consequentemente, é fundamental evocarmos à memória as marcas profundas que séculos de colonialismo, escravidão, patriarcalismo e imperialismo deixaram na formação das sociedades latino-americanas. Além do acirramento das desigualdades, esses processos históricos deram lastro para o alijamento de pessoas racializadas de cargos e dos processos de decisão estatal. Isso teve uma série de implicações para a conformação das ideologias dominantes, discursos midiáticos hegemônicos, ou ainda para o tipo de abordagem que os meios de comunicação escolhem para retratar os fenômenos sociais cotidianamente. Em última instância, a constituição histórica e social do continente configura mentalidades e percepções sobre as estruturas e os arranjos do poder.
É justamente no panorama da reconfiguração das estruturas de poder que se inserem as lutas sociais dos movimentos. A arena política ganha novas dimensões, pesos e contrapesos a partir da atuação e das pressões exercidas pelas mobilizações sociais, principalmente, em um cenário de democracia participativa no qual as vozes e as demandas das lutas populares passam a fazer parte da agenda e do planejamento das decisões governamentais. No Brasil, apesar das contradições e limitações do projeto democrático-participativo, o Partido dos Trabalhadores (PT) fomentou, na esfera federal, a construção de instâncias de controle social e mecanismos legais de garantia de direitos para a população de rua a partir da primeira década do milênio, como apontado por Ferro (2011). No campo da produção do conhecimento, diversas abordagens e paradigmas têm sido formulados para dar conta de um fenômeno tão complexo e multidimensional como as mobilizações sociais.
Na atualidade, os desafios para a ação e a teorização dos movimentos sociais se intensificam significativamente em uma conjuntura sócio-política de ascensão do autoritarismo, aumento na quantidade de pessoas em insegurança alimentar e nutricional e crescimento exponencial de famílias que vão parar nas ruas como forma de sobrevivência. Como bem apontado por Amorim e Nobre (2018, p. 348):
A relação entre a crise mundial no campo dos direitos humanos, o aumento da desigualdade na distribuição das riquezas, os sistemas políticos antidemocráticos, associados às questões de gênero, etnia e saúde mental, são condições que refletem o estado atual do capitalismo, no qual as dimensões econômicas, sociais e culturais dos direitos humanos são negligenciadas, particularmente no que diz respeito ao direito à saúde, moradia e alimentação.
Diante desse quadro de fortalecimento das políticas neoliberais e da perda constante de direitos e de empregos formais, a ação coletiva dos movimentos sociais é pressionada a se atualizar frente às demandas trazidas pelos desafios das mudanças sociais. Somam-se a isso, os processos de criminalização das ações coletivas, como protestos e ocupações, através de processos de deslegitimação e de incriminação. Segundo Viana (2018), a deslegitimação visa transformar determinadas ações em ilegítimas e ocorre através da classificação negativa das reivindicações e dos atos dos ativistas, principalmente por ação dos meios de comunicação, que os contrapõem aos valores dominantes e aos interesses de uma coletividade abstrata. Nessa mesma toada, o processo de incriminação consiste em imputar a alguém uma ação criminosa e tem o objetivo de convencer a população de que se trata de um crime previsto em lei. A incriminação possui duas dimensões: justificar o porquê de tal ação ser considerada criminosa e validar a lei que qualifica alguém como criminoso. Portanto, representa um processo intelectual de convencimento da opinião pública (Viana, 2018).
Nos anos recentes, a lei antiterrorismo sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) gerou intensos debates sobre a possibilidade de ser utilizada por governantes autoritários para perseguir as manifestações e os ativistas sociais no Brasil, principalmente, pelo fato de ser ampla e vaga a definição de terrorismo disposta na lei (Rebolla, 2014; Viana, 2018).
É neste cenário de acirramento das lutas de classes e de perseguição aos ativistas dos direitos humanos, que surge a necessidade de construção de ações de fortalecimento e de formação de novas lideranças para compor os quadros do MNPR no Brasil.
Tal necessidade é evidenciada no projeto de fortalecimento do Movimento na região Nordeste, sinalizado pelas lideranças regionais do MNPR, durante o encontro em 2019 em Salvador (Bahia). É a partir daí que surge a pesquisa de mestrado intitulada: “A atuação do Movimento Nacional da População de Rua - região Nordeste: um estudo sobre o fortalecimento e a formação de lideranças”, com o objetivo de compreender o processo de formação de lideranças e o fortalecimento do Movimento Nacional da População de Rua nesta região.
O presente artigo foca nas dimensões do fortalecimento que demonstra como a atuação das lideranças na região é agenciada pelo resgate da memória histórica da luta social, principalmente influenciada pelos signos defendidos por uma das suas fundadoras. Para tanto, apresenta um breve panorama histórico e os desafios atuais dos movimentos sociais na América Latina e Brasil, discorre sobre a constituição histórica do MNPR e o analisa a partir do paradigma latino-americano dos movimentos sociais, mostra como o MNPR foi surgindo nos estados do Nordeste, além disso, apresenta os elementos que as lideranças do MNPR utilizam como estratégia de resgate da memória histórica de luta social.
A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DO MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA
A vida nas ruas expõe homens, mulheres, crianças e idosos a uma série de riscos e violências perpetradas ora por agentes de repressão estatal (Polícia Militar, Guarda Civil) ora por pessoas da própria sociedade civil. Seja com a doação de comida estragada de propósito, tentativas de homicídio - com os mais terríveis métodos, desde jogar álcool para atear fogo ou mesmo jatos de águas em dias frios - são corriqueiros para pessoas que estão em situação de rua. Os ataques a essa população se traduzem em formas de aniquilamento ao outro que incomoda, ou que não tem valor para o sistema de produção capitalista, uma vez que a grande maioria da população não possui emprego ou mesmo renda fixa. Foi um desses episódios de tentativa de aniquilamento do outro, o estopim para as mobilizações em prol da criação de um movimento social formado por pessoas em situação de rua.
Estamos nos referindo ao episódio ocorrido em São Paulo entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004 e que ficou conhecido como Massacre da Sé. Lucca (2016) relata com riqueza de detalhes o momento em que as pessoas em situação de rua, dormindo, receberam pauladas na cabeça. Este fato repercutiu na mídia local, nacional e até internacional, e mobilizou as entidades que trabalhavam com a população de rua no Centro de São Paulo na época deste horrendo episódio. A morte dessas pessoas também ensejou trocas de acusações entre as gestões municipal e estadual. Todas essas mobilizações geraram uma arena de disputa política sobre quem, de fato, foi responsável pela chacina. No campo religioso, as cerimônias e rituais fúnebres eram celebradas no dia 19 de cada mês, tendo como figura fundamental o padre Júlio Lancellotti, que desempenhava o papel de porta-voz nas manifestações quando eram veiculadas pela imprensa. Ainda sobre o campo religioso, Lucca (2016, pp. 28-29) destaca o quanto o enterro é um ritual valorizado pelas pessoas em situação de rua uma vez que “reconhecem e consagram cerimonialmente uma morte cuja existência foi desconsiderada quando em vida ... há quem fale, inclusive, em inserção pela morte, já que pelo menos neste momento a pessoa em situação de rua pode ser considerada como igual às outras”.
Com o impacto e a abertura de uma arena pública que trazia a importância de se construir políticas de segurança e assistência social para a população de rua, as entidades que trabalhavam com essa população vislumbraram uma possibilidade de ruptura com a indiferença dos atos de violência corriqueiramente praticados contra as pessoas em situação de rua, e instituíram a data do dia 19 de agosto como uma referência que passou a integrar o calendário de lutas da população de rua. Dessa forma, a chacina foi revertida em memória e potência de mobilização dos atores da rua. Sobre isso, Lucca (2016, p. 34) reflete expressamente:
A publicização das mortes, além de ampliar a escala das forças sociais enredadas no evento, permitiu uma outra característica própria da noção de acontecimento: a ideia de ruptura. Ruptura e descontinuidade em relação àquilo que se fazia e dizia, fazendo do momento presente o espaço de insurgência do novo. Vemos então como a violência não implica unicamente destruição, mas também criação, tentativa de dar continuidade à vida, ressignificando a e reconstruindo uma nova ordem sobre as ruínas do que foi destruído. O massacre fora, então, a condição de possibilidade para o nascimento de algo novo: um movimento social da própria população de rua.
PERCURSO METODOLÓGICO
O primeiro estado a implantar o MNPR no Nordeste, foi a Bahia. Oficialmente implantado em 2010 após a aquisição da sede, um salão pertencente à Igreja e Convento de São Francisco próximo ao Largo do Pelourinho, no centro histórico da cidade de Salvador. No entanto, as primeiras movimentações para implantar o MNPR no estado remontam ao ano de 2007, quando um grupo de pessoas que estavam acolhidas na Comunidade da Trindade, em Salvador começaram a percorrer as ruas, as praças e marquises para falar de direitos e políticas públicas para as pessoas que se encontravam em situação de rua. Dentre as pessoas desse grupo, estava Maria Lúcia dos Santos, a primeira coordenadora nacional e regional do Movimento no Nordeste.
Dessa forma, um dos eixos da atuação de Lúcia enquanto uma liderança da população de rua era a formação de novas lideranças como uma via de fortalecimento do Movimento nos estados e, por conseguinte, em toda a região Nordeste. Entendemos a liderança como o sujeito que compreendeu a linguagem dos direitos da população de rua e dialoga com os pares sobre a condição de vulnerabilidade que se encontram. As lideranças podem vir a se tornar coordenadores reconhecidos e integrados aos quadros do Movimento. A legitimação de coordenadores e coordenadoras no MNPR ocorre através de uma dinâmica de deslocamento de um ou mais coordenadores nacionais até a localidade de atuação da liderança e do potencial futuro coordenador do MNPR. A aprovação e a ratificação de novos coordenadores e coordenadoras ocorrem durante os Congressos Nacionais que acontecem a cada dois anos.
Atualmente, a região Nordeste conta com 4 coordenadores/coordenadoras nacionais: Sueli Oliveira (Bahia), Vanilson Torres (Rio Grande do Norte), Rafael Machado (Alagoas) e José Marques (Maranhão) e com diversas outras lideranças em situação de rua nos outros estados: Paraíba, Ceará, Sergipe e Pernambuco. Ainda não foram identificadas/formadas lideranças em situação de rua que se engajaram na luta junto ao MNPR no Piauí.
Foi justamente pensando na importância do fortalecimento e na formação dessas diversas lideranças no Nordeste, que foi realizado o Seminário Maria Lúcia Presente que aconteceu nos dias 6 e 7 de setembro de 2019 e, posteriormente, no I Encontro de Lideranças do MNPR da região Nordeste em Salvador/BA. Naquele momento, Sueli Oliveira foi eleita a coordenadora regional e Vanilson Torres, o vice coordenador regional. Foram acordados também 3 encontros formativos das lideranças em 2020, um em cada estado do Nordeste. Esses encontros tiveram que ser adiados por conta da pandemia da Covid-19. É importante ressaltar que com o avanço da vacinação e a diminuição do risco de contágio, foi realizado o II Encontro Maria Lúcia em Aracaju-Sergipe durante os dias 06, 07 e 08 de outubro de 2021.
Diante deste cenário, adotamos enquanto método a Investigação Ação-Participante proposta por Borda (1980, 2009). Em termos gerais, a Investigação Ação-Participante leva em consideração a construção do conhecimento intersubjetivo, de forma horizontalizada e reconhecendo os sujeitos participantes da pesquisa como protagonistas do processo da formação. Assim, as lideranças do MNPR participaram como atores ativos em todo o processo da nossa pesquisa.
Além disso, essa perspectiva nos conduziu a desconstruir a relação hierarquizada do sujeito-objeto, valorizar o saber popular destas lideranças, reconhecer a importância da sua atuação na construção do campo das lutas e das conquistas em torno da população de rua e, colocar a ação no lugar central da nossa investigação.
As ferramentas para a coleta e construção coletiva dos dados foram as de entrevistas semiestruturadas e da participação-militante junto às lideranças do Movimento da População de Rua na região Nordeste, por meio do envolvimento nas ações desenvolvidas pelo movimento, aqui denominado de “caminhar com o movimento”. Sobre as entrevistas, foram realizadas com 08 (oito) lideranças de diferentes estados da região, identificadas a partir da sua atuação e reconhecimento pelos demais pares como articuladora no MNPR no seu estado específico. A pandemia ensejou a adoção e a adaptação de novas formas de realização das entrevistas e acompanhamento das atividades do movimento.
Em dezembro de 2020 foi criado o grupo de Whatsapp chamado “Nordeste Fortalecimento” por Sueli Oliveira. O objetivo era otimizar as discussões, ações e encaminhamentos com relação ao II Encontro Maria Lúcia. A participação neste ambiente virtual gerou uma interação maior entre as lideranças, assim como potencializou o contato com elas na etapa de campo. Vale ressaltar que no momento do mapeamento em 2019 não conseguimos contatar lideranças nos estados da Paraíba, do Ceará e ao serem questionadas, as lideranças que estavam contribuindo com a pesquisa justificaram afirmando que o MNPR estava “desestruturado” nestes estados.
O nosso comprometimento na elaboração coletiva do trabalho com as pessoas entrevistadas se traduz como forma de apresentar “o conhecimento prático, vital, empírico, que as permitiu sobreviver, interpretar, criar, produzir e trabalhar” (Borda, 1980, p. 305), entendendo-as como coautoras do trabalho. Vale ressaltar que essa autoria se deu através de processos de consultas e negociações de sentido não hierarquizadas na produção da pesquisa. Essas negociações foram realizadas durante as reuniões online de fortalecimento do MNPR e que objetivavam a construção do II Seminário Maria Lúcia em Aracaju ou em conversas presenciais com as lideranças. A exemplo de quando José Marques propôs o levantamento dos contextos históricos de surgimento dos Movimentos nos estados ou quando em conversa sobre a pesquisa com Edcarlos Venâncio ele propôs que fosse investigado o papel que Maria Lúcia teve para luta do Movimento na região Nordeste, ou mesmo quando Sueli recomendou que fossem explicitadas as relações de machismo dentro do Movimento.
Diante disso, ressaltamos a importância de deixar explícito que a participação de cada uma das lideranças na sistematização dos saberes produzidos foi viabilizada através de conversas pessoais presenciais ou online sobre o andamento, construção, tópicos que as lideranças consideravam importantes para serem abordados naquele momento, bem como aqueles processos internos ao Movimento que eles e ela preferiam que não constassem na redação final. De fato, Souza e Carvalho (2016) defendem que “o anonimato, com a intenção de proteger o sujeito da pesquisa, pode também sugerir uma desautorização do discurso alheio, desprestigiando o singular de cada história tornando nosso interlocutor invisível” (p. 103).
Dessa forma, no Termo de Consentimento Livre Esclarecido constou a possibilidade de divulgação dos nomes dos sujeitos entrevistados, quando fosse da vontade expressa de cada um. Foi o que, de fato, aconteceu, as lideranças optaram por ter seus nomes registrados na pesquisa. No presente estudo, os participantes-atores da pesquisa foram pessoas que tiveram trajetórias de rua e/ou vivência de rua e que, posteriormente, tendo saído ou não da condição de rua, se engajaram na luta sócio-política em prol dos direitos dos seus pares a ponto de se tornarem lideranças do MNPR. Esse processo de serem legitimados enquanto representante de um coletivo agrega reconhecimento e visibilidade para sociedade. Condição um tanto diferente de quando estavam em situação de rua.
Assim, se torna uma escolha ético-política darmos a opção de identificação a/aos participantes da pesquisa, retirando-os do anonimato científico e reconhecendo seus saberes experienciais e vivenciais. Dessa forma, as lideranças entrevistadas foram Edcarlos Venâncio (fundador do MNPR em Feira de Santana, Bahia), Renildo Silva (atualmente coordenador do MNPR no estado da Bahia), Sueli Oliveira (coordenadora nacional do MNPR- Bahia), Cleiton Oliveira (liderança do MNPR em Sergipe) Rafael Machado (coordenador nacional do MNPR- Alagoas), Jailson Santos e José Nilton (ambos lideranças do MNPR - Pernambuco), Vanilson Torres (coordenador nacional do MNPR - Rio Grande do Norte), José Marques (coordenador nacional do MNPR - Maranhão). Passamos agora a uma apresentação mais detalhada de cada participante:
Edcarlos Venâncio é um educador popular e militante que estava na Igreja da Trindade em Salvador na época das primeiras movimentações para a formação do Movimento na Bahia. Ele também foi a pessoa responsável por aglutinar pessoas para formar o Movimento em Feira de Santana (Bahia). Edcarlos se aproximou da realidade das ruas através de um convite de um amigo para viver uma experiência mística na Igreja da Trindade. Lá passou a conviver de forma mais frequente com as pessoas que tinham trajetória de rua. Edcarlos também foi um dos principais responsáveis pela formação de Renildo Silva.
Renildo Silva (Renny) é o atual coordenador estadual na Bahia. Ele passou 16 anos em situação de rua, até receber sua casa através do programa habitacional.
Sueli Oliveira, coordenadora nacional no estado da Bahia, passou o mesmo período de tempo nas ruas. Ela atua principalmente na cidade de Salvador e foi eleita a coordenadora regional no Nordeste em 2019.
Cleiton Oliveira é uma das lideranças mais novas, ainda não foi reconhecido enquanto coordenador no estado de Sergipe. Tendo sua trajetória política marcada pelos ensinamentos do hip hop, Cleiton se engajou no MNPR, principalmente, após o I Encontro Maria Lúcia em Salvador no ano de 2019.
Rafael Machado se orgulha ao se declarar o primeiro LGBTQIA+ em situação de rua a ser reconhecido coordenador nacional no Nordeste. Atualmente, Rafael tem formado e aproximado pessoas cis, trans, não binárias na luta social do Movimento.
José Nilton e Jailson Santos são as duas lideranças de Pernambuco. Conheci eles durante as reuniões de fortalecimento já em 2020. Com a trajetória de militância dentro da luta manicomial, José Nilton e Jailson formaram o Coletivo Maria Lúcia em Recife para aproximar as demais pessoas em situação de rua na cidade.
Conheci o coordenador nacional do Movimento no Rio Grande do Norte, Vanilson Torres em Salvador no final de 2018. Ele tinha vindo para um evento sobre a população de rua a convite da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Dentre as atuais lideranças no Nordeste, foi a pessoa que passou mais tempo em situação de rua: 27 anos.
Já José Marques teve uma experiência de rua quando era criança. Se engajou no Movimento junto a outra liderança após realizar um trabalho sobre Turismo no centro de São Luís.
Por fim, é mister registrar que, em observância à Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, o Projeto de Pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte com o número CAAE 30105620.0.0000.5537. Ressaltamos ainda o compromisso ético-político do proponente em compartilhar os resultados obtidos a partir da pesquisa (feedback) para todos e todas participantes que contribuíram para seu planejamento e execução.
A ANÁLISE DO MNPR SEGUNDO O PARADIGMA LATINO-AMERICANO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
No Brasil, uma das estudiosas mais renomadas no campo dos estudos de movimentos sociais é Maria da Glória Gohn. Nesse sentido, é importante falar que o conceito de movimento social depende do próprio paradigma que o/a pesquisador(a) se baseia para realizar a investigação do fenômeno. Por utilizarmos o Paradigma Latino-Americano, entendemos os movimentos sociais como:
ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos [grifo nosso] pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo de força social [grifo nosso] na sociedade civil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva [grifo nosso] para o movimento, a partir dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo [grifo nosso], em espaços coletivos não-institucionalizados. Os movimentos geram uma série de inovações nas esferas públicas (estatal e não-estatal) e privada; participam direta ou indiretamente da luta política de um país, e contribuem para o desenvolvimento e a transformação da sociedade civil e política. Estas contribuições são observadas quando se realizam análises de períodos de média ou longa duração histórica, nos quais se observam os ciclos de protestos delineados. (Gohn, 1997, p. 251)
Uma das primeiras questões que emergem ao falarmos da criação de um paradigma dos movimentos sociais próprio da América Latina é quanto à sua necessidade e pertinência. Não querendo ser apressado em tentar construir uma resposta a esta possível inquietação, mas é importante assinalar que toda a tradição epistemológica do “Pensar a partir da América Latina”, parte da premissa que este continente tem uma realidade histórica e social muito particular. Nesse sentido, a Teoria da Marginalidade, a Teoria da Dependência, a Teologia da Libertação, a Pedagogia do Oprimido e os Estudos Decoloniais estão no bojo da conformação do Pensar a América Latina.
Quanto à constituição histórica e social dessa região, Gohn (1997) elenca alguns elementos: o passado colonial, escravocrata e/ou de servidão indígena, a regulamentação das regras de civilidade e cidadania por parte do Estado, o clientelismo e o paternalismo e ainda o coronelismo no modus operandi de se fazer política, principalmente nos períodos eleitorais e nas distribuições de cargos na execução do mandato. A pressão exercida pelos movimentos populares para que o Estado crie mais espaços institucionais de participação social expressa o panorama de inconformidade, por parte das populações vulnerabilizadas, com o local de subjugamento e com a concepção de um Estado verticalizado, autoritário, burocrático e centralizador. Em última instância, as ações de negociação e reivindicação por maior participação social cumprem o objetivo de interferir na gestão estatal a fim de construir uma nova forma de institucionalidade, através “de uma perspectiva de redistribuição do poder em favor dos sujeitos sociais que geralmente não têm acesso” (Jacobi, 2002, p. 447) às instâncias deliberativas e decisórias da formulação de políticas públicas que afetam diretamente sua condição de vida. No caso específico dos estudos sobre os movimentos sociais, Gohn (1997, p. 240) instrui:
os estudos sobre os movimentos sociais latino-americanos devem ter um enfoque multidisciplinar, envolvendo a sociologia, a ciência política, a antropologia, a história, a econômica e a psicologia social. A política deve ser destacada por ser a grande arena de articulação, pelo fato de os movimentos sempre estarem envolvidos ou ligados a relações de poder. Deve-se considerar: ideologias, valores, tradições e rituais da cultura de um grupo; a cultura política como um todo etc.; assim como a estrutura sociopolítica e econômica em que os movimentos estão inseridos, numa abordagem histórico-estrutural renovado.
É compreensível que não temos a pretensão de destrinchar cada um desses elementos no presente texto. Mas tendo falado da Teoria da Marginalidade, é importante destacar que a existência de pessoas em situação de rua nas sociedades capitalistas deve ser compreendida muito menos a partir das causalidades pessoais e da ordem das rupturas familiares, e muito mais como “dentro da própria lógica do processo de acumulação” (Gohn, 1997, p. 213) uma vez que o processo de exclusão está no cerne deste sistema. Dessa forma, uma das grandes contribuições dessa teoria, foi a compreensão de que a marginalidade não era somente resultado de processos de exclusão, mas também a condição prévia para a acumulação, num processo de superexploração da força de trabalho nos centros urbanos e de disponibilidade de um grande exército de reserva de mão-de-obra desqualificada, oriunda do campo - dado o processo de desagregação das relações socioeconómicas no meio rural (Gohn, 1997).
No caso do MPRN, a partir do Massacre da Sé surge a necessidade de organização de um movimento que incorporasse a linguagem dos direitos humanos e lutasse por mais segurança, dignidade e políticas públicas para população em situação de rua. Neste sentido, os ensinamentos de Gohn (1997) demonstram que os movimentos não surgem como resultado de um acontecimento abrupto ou dramático, mas devido ao acúmulo de experiências tidas como injustas e desiguais que estimulam e aumentam a capacidade de ação coletiva.
O fato de ser um movimento composto especialmente por pessoas em situação de rua ou pessoas que já estiveram nesta situação, transforma este coletivo político no primeiro movimento social formado exclusivamente pela própria população de rua no Brasil. A formação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) é um importante ponto de inflexão e redimensionamento da história política das pessoas em situação de rua no continente latino-americano. Como bem apontado por Melo (2016), se antes as histórias dessas pessoas estavam marcadas pelo termo de “sofredor da rua”, passando a “povo de sofredores”, o surgimento do movimento social insere as pessoas em situação de rua na arena social como sujeitos políticos, possuidoras de direitos, capazes de ativamente configurarem uma coletividade que luta para ser reconhecida enquanto seres que têm direito à viver e a receber as condições mínimas existenciais, independentemente da situação de pobreza em que se encontram. Desponta conjuntamente com a configuração do MNPR, a solidariedade enquanto princípio agregador das diferentes histórias e trajetórias de rua, que forma um amálgama capaz de gerar o reconhecimento da alteridade através da condição específica, ou seja, da “situação de rua/morador de rua”.
Dessa forma, as carências inerentes à condição de vida nas ruas foram se transformando em demandas e em pautas políticas, que se tornaram a força motriz e carregaram de sentido as estratégias de luta, a formação de alianças, as formas de protestos e a busca de expressividade nos meios midiáticos para dialogar com a opinião pública sobre a realidade concreta da vida nas ruas.
É importante dizer, no entanto, que a atuação das lideranças não é totalmente homogênea e unificada, o Movimento como qualquer outro processo político e social é repleto de conflitos e antagonismos, desacordos e dissensos o que, em alguns casos, pode ser positivo para o próprio desenvolvimento da mobilização com as bases. A fundação de princípios organizativos e articulatórios, a criação de demandas e reivindicações, o diálogo com a base (que tem uma composição social própria) são fatores que precisam ser levados em consideração para a luta por direitos e dignidade das pessoas em situação de rua.
De igual modo, a composição social do Movimento Nacional da População de Rua é um fator a se considerar quando buscamos compreender a formação dessas lideranças. Segundo Gohn (1997), a composição social de um movimento pode ser analisada a partir da origem social dos participantes ou do princípio articulatório que os aglutina. Quanto à origem social dos participantes do MNPR, podemos falar que ela é bastante heterogênea, mas delimitadora do locus dentro do quadro organizativo do Movimento. Em outras palavras, o MNPR é formado pelas lideranças, apoiadores e a base do movimento. É um requisito para se tornar uma liderança dentro do movimento a pessoa ter trajetória de rua. Os/as apoiadoras são pessoas que se somam à luta do MNPR, com diversas profissões e advindas das mais diversas classes sociais. Enquanto profissionais representam: assistentes sociais, advogadas e advogados, sociólogos e sociólogas, antropólogos e antropólogas, psicólogos e psicólogas, defensoras e defensores públicos, professores e professoras universitárias, enfermeiras e enfermeiros, procuradores e procuradoras. A base é composta por pessoas diversas que estão em situação de rua.
No tocante ao princípio articulatório está a solidariedade. Na Carta de Princípios do Movimento, a solidariedade desponta como um dos fatores preponderantes. De fato, de acordo com Gohn (1997) o princípio da solidariedade é o núcleo de articulação central entre os diferentes atores envolvidos, a partir de uma base referencial comum de valores e ideologias construídas na trajetória do grupo, ou advindas dos usos e tradições compartilhadas pelo conjunto. Assim, as lideranças tentam seguir valores tais como escuta às bases, transparência e honestidade.
Outra categoria que pode ser analisada no MNPR é a de força social. Segundo Gohn (1997), a força social pode ser medida através de um conjunto de fatores, tais como carências, legitimidade da demanda, poder político das bases, cenário conjuntural e cultura política do grupo. Como expomos anteriormente, as carências que a população de rua enfrenta para se manter viva é necessidade de primeira ordem para a sobrevivência, isso corrobora o segundo elemento que é a legitimidade da demanda. De modo que a luta por políticas públicas, melhoria da qualidade de vida das pessoas em situação de rua são demandas reconhecidamente pertinentes. No entanto, o poder político das bases é um fator que pesa desfavoravelmente para a força social do MNPR, com raras exceções do apoio de alguns vereadores(as), deputados(as) e senadores(as) que se somam ao Movimento para acolher as pautas das lideranças.
Em termos da cultura política do Movimento, tem-se a atuação no controle social através da tomada de assento em conselhos e comitês, a articulação com as universidades para produção de pesquisas, bem como a convivência com as pessoas em situação de rua. Faz parte da cultura política também uma certa individualização das ações das lideranças, o que gera muitas vezes uma sobrecarga de tarefas.
Por falar em tarefas da militância, Gohn (1997) propõe a análise do conceito de práticas de um movimento. Estas práticas podem ser formais, tais como reuniões, assembleias, congressos e eventos, ou podem ser informais tais como marchas, acampamentos, teatro ou encenações, concentração em órgão público. Quanto às práticas formais do MNPR, o regimento interno prevê como instâncias deliberativas o Congresso, as coordenações nacionais, estaduais e municipais e a Assembleia. Nesse sentido, é importante falar que desde 2005, ano de surgimento do Movimento, já aconteceram 4 Congressos Nacionais da População em Situação de Rua, o primeiro deles em Salvador em 2012. O segundo Congresso foi realizado no Paraná em 2014. O terceiro Congresso aconteceu em Belo Horizonte em 2016 e o quarto Congresso foi realizado em Cidreira, Rio Grande do Sul, em 2018. Esses congressos funcionam como definição de estratégias políticas para o próximo biênio, compartilhamento dos objetivos alcançados, e processo de interação e fortalecimento entre os membros que o compõem. Eles também demonstram o grau de formalização da organização do Movimento. Além disso, os congressos, por meio dos encontros e convivência com as pessoas em situação de rua, constituem importantes espaços de socialização política. Nestes espaços são realizados os processos de trabalho de base e, por conseguinte, de formação política.
O espaço interativo é um contínuo processo de aprendizado. O sentido da interação está nas trocas de experiências, no conhecimento das trajetórias de vida, na conscientização da condição de expropriados e explorados, na construção da identidade daqueles que são despojados de aspectos que lhes são necessários. O conteúdo das reuniões dos trabalhos de base é a recuperação das histórias de vida, associadas ao desenvolvimento das várias questões colocadas pelos movimentos sociais. Assim, a vida é experimentada como produtora de interações. Fazem suas análises de conjuntura, das relações de forças políticas, da formação de articulações e alianças para o apoio político e econômico. Desse modo, desenvolvem as condições subjetivas por meio do interesse e da vontade, reconhecendo os seus direitos e participando da construção de seus destinos. Defrontam-se com as condições objetivas das lutas, do enfrentamento que pode ser com a polícia ou com o Estado. (Pontes, 2015, p. 98)
Enquanto condições objetivas das lutas, a conjuntura política de desmontes das políticas públicas e de ataques violentos contra ativistas dos direitos humanos requer dos membros do Movimento a reestruturação das estratégias para disputar a hegemonia política e arregimentar novos membros para luta política dentro ou junto ao Movimento, não à toa o tema do último Congresso em 2018 foi de “Organização e fortalecimento do Movimento”. Na região Nordeste foi criada em 2019 uma coordenação específica para formular e aplicar estratégias de fortalecimento.
Como costumam dizer os coordenadores do MNPR, para reforçar a constante busca por protagonismo social e a garantia da autonomia, “Nadasobre nós, sem nós”, ou ainda quando intencionam reforçar o caráter emancipatório da ação coletiva organizada: “só a luta muda a vida”. E, de fato, é a luta que tem mudado a vida de milhares de pessoas em situação de rua que um dia entraram no Centro Pop, foram atendidos pelo consultório na rua, ou foram dignamente atendidos por uma defensora pública que foi sensibilizada a partir do contato com o Movimento. A mesma coisa acontece com os coordenadores e coordenadoras do Movimento que acharam na luta um motivo para sair da condição que estavam, muitas vezes abandonar ou reduzir o uso de drogas para lutar por políticas públicas construídas a partir das especificidades da população de rua. Demonstrando, portanto, o processo de transformação de suas subjetividades, o autorreconhecimento enquanto sujeitos políticos e a conscientização da condição que se encontravam.
Diante do exposto, é possível afirmar que os movimentos sociais têm sido espaços de defesa da democracia fundamentais na América Latina. Como bem lembra Melucci (1989, p. 62) “a mera existência de um movimento é uma reversão dos sistemas simbólicos dominantes”. São esses atores coletivos que têm tentado impedir o avanço desmesurado das políticas neoliberais no continente. No caso do Movimento da População de Rua, seus atores sociais têm lutado através de estratégias coletivas pelo reconhecimento da cidadania e da compreensão das pessoas em situação de rua como sujeitos políticos e de direitos. O processo de afetação muitas vezes é lento, principalmente, em um cenário adverso politicamente como o atual. No entanto, o projeto de país e de sociedade mais justa e igualitária é totalmente antagônico ao capitalismo financeirizado, neoliberal e colonial tal como tem sido implementado de forma mais acelerada nesses últimos anos.
MOVIMENTO NACIONAL DE POPULAÇÃO DE RUA: O RESGATE DA MEMÓRIA HISTÓRICA COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA
O silenciamento das memórias coletivas das pessoas em situação de rua visa um objetivo perverso de apagamento tanto da história como da existência individual dessas pessoas; suas lutas, dores, modos de vida e estratégias de sobrevivência são relegados ao não-lugar no mundo, quando muito, são corroídas pelos processos de esquecimento ou esvaimento da memória. Daí surge uma das práticas de resistência dentre as lideranças do MNPR no Nordeste que é a de manter a memória ativa em prol do fortalecimento e de construir uma identidade coletiva interna ao Movimento. De fato, tanto durante as entrevistas com as lideranças quanto no processo de “caminhar com o Movimento”, a intenção de resguardar a memória da luta social e das próprias lideranças foi uma categoria que se apresentou recorrentemente. Essa forma de atuação coletiva das lideranças de resguardar e de recuperar a memória coaduna com uma das tarefas de uma Psicologia Popular latino-americana assinaladas por Gonçalves (2019, p. 90). Principalmente, quando a Psicologia atua para problematizar os padrões coloniais de dominação e subjugamento das pessoas em situação de rua, compreendendo esses sujeitos nas suas diversas formas existenciais. Esta categoria da memória da luta, inclusive, engendrou o delineamento de uma identidade de pertencimento entre as lideranças da região Nordeste: a identidade de pertencer, que os entrevistados e a entrevistada convencionaram denominar de “EscolaMaria Lúcia”.
A Escola Maria Lúcia é uma instância discursiva político-simbólica dentre as lideranças do MNPR que demarca o contato, a convivência, a incorporação dos valores, símbolos e códigos transmitidos “pela grande mestra” (nas palavras de Vanilson) que foi Maria Lúcia. A liderança exercida por ela ressaltava a necessidade do acolhimento indistinto de todas as pessoas em situação de rua. Esse acolhimento se expressava pela própria preocupação de Lúcia em manter a formação constante de novos agentes para integrar os quadros do Movimento. Nas palavras de Sueli:
Lúcia mesmo fazia várias oficinas. Ia para formação todo mundo. Sempre tinha um tema para ser discutido. Sempre envolvia a galera no debate para galera debater sobre alguns assuntos: violência, não sei o quê, adolescência, a mulher; sempre algo para galera debater, as oficinas, os seminários. Diversas formas. Sempre na sede. Ela fazia questão das reuniões na sede. Ela levava o Comitê de saúde, o CIAMP, o Fórum; tudo isso para a galera ficar antenada mesmo. Entender um pouco melhor o processo. A participação também. Eu não sei se você entende. Mas cada vez que você participa, você aprende mais. Acho que formação para mim é sempre. Está sempre em formação. (Entrevista de Sueli, 2021)
Esses agentes deveriam representar a própria diversidade de gênero e sexualidade existente nas ruas. Sueli fala expressamente em sua entrevista que um dos objetivos de Lúcia era ter um quadro de lideranças representativo e diverso. Assim, a Escola Maria Lúcia preza pela formação da diversidade de gênero em seu quadro de lideranças. Rafael Machado, coordenador nacional do estado de Alagoas e que participou das formações de Lúcia, ressaltou que elu1 se tornou a primeira liderança LGBTQIA+ do Movimento a nível nacional. A compreensão e aproximação de Rafael da discussão de gênero dentro do Movimento tem dado frutos a partir do momento que ele mesmo tem realizado formações com pessoas em situação de rua LGBTQIA+. Ao considerar Lúcia um ícone e uma inspiração, Rafael comenta que elu se espelha muito no exemplo e militância de Lúcia.
Ao fundar no plano do discurso uma escola de formação de lideranças com o nome de Maria Lúcia, as lideranças subvertem a lógica colonial ao gerar e transmitir o conhecimento sobre a sua própria história. Dessa forma, resguardam a memória curta (Cusicanqui, 2010a) que diz respeito ao próprio surgimento do Movimento nos estados e suas lutas cotidianas e reconhecem uma mulher negra, enquanto lutadora do povo de rua.
Em um importante momento histórico de questionamento e discussão dos símbolos pátrios de colonizadores, bandeirantes, ditadores e heróis que têm seus nomes perpetuados em nomes de ruas, monumentos e estátuas erigidas nas cidades, as lideranças do MNPR criam um recôndito de resistência decolonial ao criar estratégias e mecanismos de perdurar e fazer permanecer no tempo o nome de uma liderança. A capacidade de agregar e se reconhecer nas carências e ter símbolos que gerem a unidade na diversidade, que ao se dispersar pelos estados, voltam a se concentrar a fim de fortalecer, encontra guarida no papel desempenhado pela memória curta, enquanto elemento de agrupamento neste momento histórico.
Dessa forma, sincronicamente falando, um dos elementos que prevaleceu como elemento aglutinador das trajetórias das lideranças na região é este da memória curta através da memória de Maria Lúcia. Em Pernambuco, por exemplo, o nome do coletivo criado por José Nilton e Jailson para dar suporte a Octávio se chamava Maria Lúcia, que nas palavras de José Nilton está e sempre estará presente. Vanilson também faz questão de ressaltar a importância de Lúcia para o Movimento:
Matheus, vou ser muito sincero: nós não teríamos o movimento aqui se não fosse Maria Lúcia; se não fosse Fernanda Cavalcante; se não fosse Hellen e tantos outras e outros né do Centro de Direitos Humanos. Porque nós nascemos aqui no Rio Grande do Norte da Psicologia, do Serviço Social, através de Maria Lúcia Santos Pereira. E aí, eu sinto pela vida dela que ela é uma eterna formadora. Ela sabia que precisava formar pessoas para depois da partida dela. Ela fez a formação de muitos aqui no Rio Grande do Norte e na Bahia né, como Feira de Santana, no Brasil e do mundo. (Entrevista com Vanilson Torres, 2021)
É importante apontarmos que se espera que outros recursos agregadores da região possam surgir e que, as próprias lideranças com as suas diversas sensibilidades passem a perceber como eleger os elementos de fortalecimento nos próprios estados, e que estejam em contato e dialoguem igualmente com o histórico da população de rua na região. Até porque, a memória curta não é estática, ela vai sendo composta, reconfigurada e sintetizada através de diversos fatores. Sobre ela, influi, por exemplo, um outro tipo de memória, a memória larga (Cusicanqui, 2010a).
Com relação à população de rua, a memória larga vincula a sua formação social no Brasil com o longo processo de colonialismo, escravização e marginalização dos povos indígenas, negros e demais camadas sociais e raciais que se localizam na exterioridade/fronteira do processo de modernização. Na entrevista com José Nilton e Jailson, foi possível notar uma discussão já se consolidando sobre como leem a fenómeno da formação da população de rua:
A gente encontra a pop rua se degladiando entre ela, adoecida mentalmente. E se a gente está se degladiando a gente vai manter essa gente no poder. E se a gente se organizando, a gente vai desorganizar. Quando a rua está em processo evolutivo de organização, ela mexe com a estrutura. Quando ela mexe com a estrutura, ela vai mexer no bolso. No bolso daqueles que detém os pseudo-saberes que querem introjetar que é mais fácil estarmos nos degladiando entre nós. Esses atores e atoras são os que vivem nas secretarias, nas instituições, das câmaras de vereadores. Todo esse povo comunga com essa prática higienista manicomial, da qual lota o cárcere com pessoas pobres, pretas e periféricas [grifo nosso]. São eles que militam por essa causa do enclausuramento, da higienização, para o escalonamento da branquitude e isso é uma questão de classe. (Fala de José Nilton na Entrevista com ele e Jailson, 2021)
José Nilton, Jailson e Sandra Albertini são os fundadores de uma instituição chamada Ruas Museu que, segundo os entrevistados, tem o objetivo de preservar a memória e dialogar com a população de rua através das diversas dimensões. Nas palavras de José Nilton,
O Ruas Museu é um dispositivo de autorrepresentação, empoderamento, formação. Um espaço de voz que atua na sua integralidade na rua porque as pessoas que são invisibilizadas tem a voz e vez e de preservação da memória da pop rua [grifo nosso]. Hoje ele é o nosso sustentáculo. Ele não é somente um dispositivo de empoderamento, mas ele criou laços para além da luta... Diante desse contexto da organização social, a gente teve essa ideia. Nós criamos esse coletivo e por sinal a aderência foi muito grande e isso me deixou muito feliz. Feliz porque estamos dialogando com a questão de raça, cor, credo também é importante atentar aqui para a dimensão religiosa, dimensão sexual da pessoa, a pessoa LGBTQIA+, os indígenas, os quilombolas; para que eles sejam, de fato, evidenciados nesse coletivo porque nossa sexualidade, ela tem que ser reverberada hoje para nossa posteridade [grifo nosso]. (Entrevista com ele e Jailson, 2021)
Alvo da admiração conjunta de Jailson e José Nilton, Vanilson Torres faz uma reflexão crítica sobre o processo de subjugação de determinados grupos sociais ao longo da história, desde 1500, e como isso influencia na ocupação dos postos de poder na atualidade.
E que minoria nunca foi colocada em primeiro plano nesse país? Desde 1500 que formou esse país com a vida dos povos escravizados nos navios Negreiros que foram trazidos reis e príncipes dos seus países. A maioria que tem poder só as elites dominantes daquela época e que foram repassando hereditariamente de geração em geração [grifo nosso]. Aí hoje nós temos o coronelismo, até hoje temos uma gama de poder, passando por poder. Quando sabemos que 70% de mulheres podem se candidatar, quando nós vemos que foi a partir do século 20 que as mulheres puderam votar. Quando nós vimos que historicamente os grupos sociais são destinados ao calabouço social, aos matadouros né. Então esses grupos organizados que se dizem maioria só que nenhum momento a maioria tem poder decisório nas instâncias federais, nas instâncias estaduais que estão decidindo o futuro de uma nação. (Entrevista com Vanilson, 2021)
Dessa forma, vai se conformando dentro do MNPR no Nordeste uma leitura de sociedade que vincula os diversos processos sociohistóricos e como eles impactam na hierarquia, estruturação, configuração e distribuição do poder atual na sociedade brasileira. Mais do que isso, essas leituras conformam a visão das lideranças do Movimento sobre o impacto de longos processos históricos na formação da população de rua, compondo assim a memória larga do MNPR sobre o fenômeno da população de rua. Esta articulação conceitual entre memória curta e memória larga permite compreender o processo de transmissão de valores, pontos de vista e percepções históricas compartilhadas entre as lideranças através da oralidade.
De fato, uma das bases no processo de formação das lideranças dentro do Movimento é o papel que a oralidade exerce na transmissão do conhecimento, da construção da memória sobre a luta e sobre a forma de organização do Movimento e até mesmo sobre o que é ser uma liderança dentro do MNPR. Sejam nas praças, nos albergues, nas vias públicas, nas calçadas, há um meio comunicativo que prevalece entre as lideranças do Movimento: a linguagem falada é a via por excelência da formação de lideranças no Movimento. São nesses locais onde reside uma espécie de epistemologia fronteiriça plasmada por diversas tradições de descendentes, de diversos povos latino americanos e constituíram a partir do encontro um saber-viver próprio, com códigos, signos, neologismos que fazem parte do mundo simbólico das ruas. É a essa linguagem do mundo simbólico das ruas, que Cleiton recorre para comunicar com as demais pessoas em situação de rua nos Centros Pop de Aracaju.
“Bom dia a todos e todas. Essa é nossa Rádio Lombra. Queremos lembrar você que ouve essa amanhã... nós queremos dizer que a partir do momento que o profissional recebe seu salário, mas não exerce sua função...” [grifo nosso]. Os caras: “oxe que conversa é essa?!”. Porque era eu que tocava Rádio Lombra. Toda manhã a gente tinha uma coisa para anunciar... toda manhã a gente não tinha alguma coisa para anunciar e a gente anunciava através do gargantão. Sei de um lugar dentro dos espaços e nós somos muitos [grifo nosso]. A gente ia para um lugar dentro do espaço que acontecia um eco. “Bom dia a todas. Essa é a Rádio Lombra. Eu quero dizer a vocês que o café do pop está servido, mas a batata está crua. Eu quero dizer que se você tiver coragem de pegar 20 ou 30 quentinhos e botar aqui para gente somar, mas se você quiser comer a quentinha da batata crua está sendo conivente com o erro deles” [grifo nosso]. E de lá para cá, a gente se mobilizou cada vez melhor. (Entrevista com Cleiton, 2021)
O caráter de insubordinação, resistência e inventividade ficam patentes no comportamento de Cleiton que recorre a um recurso de comunicação para criar um espaço de denúncia e de reflexão sobre o tratamento dado dentro do equipamento da assistência aos demais companheiros e companheiras. Essa linguagem própria das ruas, transmitidas de forma oral, também aparece na entrevista com Renildo Silva na qual ele relata o papel das formações de base para o aprimoramento das habilidades linguísticas que ele já possuía:
Aí a gente tem que se descobrir. Aí eu descobri que eu era o cara que fazia intervenção, intervenção de fala, de diálogo, de discursos, o debate. Eu sou um cara que vai para o embate. Um cara que provoca o debate. É o discurso que se a pessoa não abre o diálogo eu que tenho que provocar esse diálogo. Então eu descobri isso de bom em mim. Eu sou um bom formador de ideologia, como pensar, como agir, como mudar o jeito de agir na estratégia de uma vida melhor. Você me dá respeito, eu te devo respeito. Então descobri isso. E eu descobri isso na minha formação de base. Formação de base que eu preciso sair da minha cidade de origem e ir para outras cidades aprender isso lá [grifo nosso]. No caso, eu fui para muitas formações de base em outros estados também. Fui para 3 congressos. E lá eu conheci as outras vivências de rua através de pessoas que hoje são lideranças. (Entrevista com Renildo Silva, 2021, grifos nossos)
As descobertas de Renildo através das formações de base com o Movimento dizem respeito também a novas possibilidades de modos de vida e de existência para além da situação de rua, mas sem que se perca o vínculo com ela estabelecido. É a reconexão entre dois mundos que passam a coexistir. Um mundo no qual ele era invisibilizado, socialmente vulnerabilizado, desacreditado da sua existência através das lentes do mundo capitalista; e um outro mundo no qual ele acessa os seus direitos, discute políticas públicas e ganha visibilidade social através da sua militância. Renildo, inclusive, deixa expresso o projeto societário do Movimento em sua entrevista:
E o Movimento só existe porque existe a política de direito ligada diretamente à população em situação de rua. Se tivesse uma política efetiva, não existiria o Movimento. No dia que o Movimento parar de existir, é quando essa população vai ter todos seus direitos humanos dessas pessoas cumpridos, seja ela de rua ou não. Porque nós temos uma bandeira só. Nós defendemos a universalidade para todos, principalmente os mais vulneráveis. Quem são? Esses que estão nas ruas. Quantos tiraram? Nenhum. Mas muitos já foram mudados. Pessoas que entraram no Movimento e mudaram de vida [grifo nosso] Na nossa cabeça a gente pensa isso todo dia: “O que a gente vai fazer no Movimento? O que nos traz a ficar no Movimento?” Aí as pessoas falam: “Já conseguiu suas metas porque continuar no Movimento?” É porque tem pessoas sofrendo, continua sofrendo e que nem sua meta de sonho teve. Nem a sua dignidade de pessoa, uma água, um banho, não consegue [grifo nosso]. E aí, Maria Lúcia da Silva nos representa nacionalmente, no mundo todo. Ela se torna primeira mulher negra e em raiz de rua, defendendo os direitos humanos no mundo todo (Entrevista com Renildo Silva, 2021)
Tal como exposto nesta seção, a formação da liderança no MNPR é um contínuo e permanente processo que envolve a mobilização dos saberes, estratégias de sobrevivência nas ruas, capacidade de dialogar com a diversidade de sujeitos que estão em situação de rua, conseguir articular as demandas e necessidades da população de rua, de modo que encontre respaldo nas políticas públicas ou ainda consiga identificar os lapsos de garantia de direitos nas leis e decretos existentes para essa população. Esses processos é o que Lucca (2016, p. 35) chamou de tecnologias da militância e envolve o aprendizado da linguagem dos direitos humanos e das políticas públicas, a capacidade de aglutinar e dialogar com as bases, gestores e entre as demais lideranças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante meus anos de militância dentro do Movimento na Bahia, a figura de Maria Lúcia Santos Pereira recorrentemente despontava como um papel de destaque. Sua forma de luta, poder de negociação e articulação, o peso das suas palavras e ensinamentos, exemplo de vida e afetação no acolhimento das pessoas em situação de rua demonstravam o quanto Lúcia, a principal fundadora do Movimento na Bahia, dedicou sua vida na luta por direitos da população de rua e fortalecimento do MNPR no estado.
Lúcia se transformou no amálgama e o símbolo catalisador que transforma as memórias individuais das lideranças dos contatos e ensinamentos que partiram dela em memórias coletivas de luta e que, paulatinamente, se transformam em memória histórica entre as lideranças da região Nordeste. Em Feira de Santana, Edcarlos Venâncio criou o troféu Maria Lúcia, voltado para pessoas/projetos/instituições que contribuem de forma significativa para a luta do Movimento. É uma forma de reconhecimento e renovação dos laços que unem a relação de parceria.
Os processos de fortalecimento e de formação de novas lideranças para o MNPR envolvem diversos desafios. Podemos apontar o combate aos valores individualistas da cultura neoliberal, rever-tendo-os para os da solidariedade, do bem comum e no fomento a uma cultura contra hegemónica de engajamento político. É necessário também processos de formação política com a base do Movimento, ou seja, as pessoas em situação de rua, para uma compreensão ampla e profunda das relações de opressão que operam na sociedade capitalista-branca-patriarcal. Estas formações também podem fundamentar sobre os processos organizativos do movimento social bem como a conscientização dos papéis dos membros-militantes. Enquanto objetivos deste artigo esperamos ter conseguido apontar o papel e a importância do resgate da memória para o fortalecimento do MNPR.
No entanto, a pesquisa teve lacunas em alguns tópicos que podem ser melhor desenvolvidos a posteriori. Para estudos futuros, apontamos a necessidade de pesquisas que investiguem especificamente os papéis desempenhados pelas lideranças mulheres e LGBTQIA+ no MNPR, assim como as estratégias de engajamento político das bases do MNPR. Desponta também como objeto de estudo a categoria política da amizade como motriz da criação de vínculos afetivos e solidários mais profundos e que sustentem relações/ações mais próximas das bases, assim como uma pesquisa sobre possibilidades de geração de renda para as lideranças, sem que precisem necessariamente ser cooptadas pelo Estado.
Ao recorrermos às lentes de estudos decoloniais, contribuímos para a abertura de um novo campo de leitura sobre o fenómeno da situação de rua na América Latina, assim como realizamos análises tanto diacrónicas para demonstrar como longos processos históricos de colonização, exclusão e marginalização impactam na formação do fenómeno da população em situação de rua; como também análises sincrónicas relacionadas a como essa população tem se apropriado da linguagem dos direitos humanos e das políticas para disputar a arena social enquanto sujeitos políticos possuidores de direito. Isso se dá principalmente através do engajamento e aglutinação em movimento social, o Movimento Nacional da População de Rua.
Dessa forma, articulando a luta social cotidiana do MNPR, bem como, os papéis das memórias curta e larga para a formação de novas lideranças e o fortalecimento do Movimento na região Nordeste, finalizamos com Cusicanqui (2010b, p. 55): “A experiência atual nos compromete com o presente que, por sua vez, carrega consigo as sementes do futuro que emergem das profundezas do passado” (tradução nossa).