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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.58 São Paulo  2023  Epub 08-Jul-2024

 

Artigo Original

PERSPECTIVA DECOLONIAL E EDUCAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DE EXPERIÊNCIAS

Perspectiva decolonial y educación: reflexiones a partir de experiencias

Decolonial perspective and education: reflections from experiences

LEONARDO COLOSSI TORRES1  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-7030-5622

JANINE MOREIRA2  , Concepção, Revisões críticas de conteúdo intelectual, importante: Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-8421-277X

1https://orcid.org/0000-0002-7030-5622 Psicólogo, formado pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Atualmente trabalha no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) na cidade de Morro da Fumaça/SC. E-mail: leo.colossi.t@gmail.com

2https://orcid.org/0000-0001-8421-277X Doutora em Educação pela Universidade de Córdoba, na Espanha (2000), e convalidado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Realizou estágio pós-doutoral na Faculdade de Educação na Universidade de Murcia, na Espanha (2016). É professora do curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) de Criciúma. E-mail: jmo@unesc.net


RESUMO

O presente artigo teve como objetivo realizar um estudo bibliográfico, a partir de obras de referência, acerca das consequências da colonialidade, seu efeito na subjetividade do povo colonizado, e como sua influência impacta a proposta educativa do país. Foi concluído que a colonialidade ainda exerce grande influência tanto na estrutura social quanto no pensar e ser dos povos subalternos, incluindo aqui a estrutura escolar, que desumaniza e pacifica o educando através de uma lógica similar à utilizada pelos colonizadores na dominação dos povos colonizados, onde apenas a figura de autoridade é detentora da sabedoria, portanto, sendo única referência válida do que é ser de verdade. É apontada a necessidade de a educação ser reconstruída através da participação popular, pautada nas singularidades materiais, históricas e dialéticas do local, onde os educandos não sejam apenas objetos da educação, mas sim atores de sua própria constituição social.

Palavras-chave: Anticolonialidade; Decolonialidade; Educação; Colonialidade; Eurocentrismo

RESUMEN

Este artículo tuvo como objetivo realizar un estudio bibliográfico, basado en obras de referencia, sobre las consecuencias de la colonialidad, su efecto en la subjetividad del pueblo colonizado y cómo su influencia impacta en la propuesta educativa del país. Se concluyó que la colonialidad aún ejerce una gran influencia tanto en la estructura social como en el pensamiento y el ser de los pueblos subalternos, incluida aquí la estructura escolar, que deshumaniza y pacifica al estudiante a través de una lógica similar a la utilizada por los colonizadores en la dominación de los pueblos colonizados, donde sólo la figura de autoridad ostenta la sabiduría, siendo por tanto la única referencia válida de lo que significa ser verdaderamente. Se staca la necesidad de que la educación sea reconstruida a través de la participación popular, a partir de las singularidades materiales, históricas y dialécticas del lugar, donde los tudiantes no sean sólo objetos de educación, sino actores de su propia constitución social.

Palabras clave Anticolonialidad; Decolonialidad; Educación; Colonialidad; Eurocentrismo

ABSTRACT

This article aimed to carry out a bibliographical study, based on reference works, about the consequences of coloniality, its effects on the subjectivity of the colonized people, and how its influence impacts the country’s proposal. It was concluded that coloniality still exerts a great influence both the social structure and the thinking and being of subaltern communities, including here the school structure, which dehumanizes and pacifies the student through a logic similar to that used by colonizers in the domination colonized peoples, where only authority figure holds wisdom, therefore, the only valid reference of what it to be. The need for rebuilding education through popular participation is highlighted, based on their material, historical and dialectical singularities place, where students are not just objects of education, but actors of their own social constitution.

Keywords Anticoloniality; Decoloniality; Education; Coloniality; Eurocentrism

INTRODUÇÃO

Este artigo advém de um Trabalho de Conclusão de Curso em Psicologia, realizado na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), em Criciúma, Santa Catarina.

Ao longo das últimas cinco décadas, paira sobre este território, hoje chamado de Brasil, uma enorme ferida. A história do país é marcada não só pelo derramamento de sangue do povo preto e indígena, mas também pela desvalorização e tentativa de supressão da cultura destes povos. Esse movimento acontece em virtude do colonialismo, processo histórico de dominação europeia sobre colônias. Mesmo com o fim desse regime na maioria dos países, salvo algumas exceções, as cicatrizes deixadas pela barbárie dos colonizadores latejam até os dias atuais, mesmo que de maneiras mais sutis. A isso se dá o nome de colonialidade. Nas palavras de Pinto e Mignolo (2015, p. 283, grifado no original):

colonialidade ou colonialidade do poder transcende a mera noção de colonialismo para referir-se ao conjunto de princípios baseados nos quais a narrativa salvacionista e triunfalista de renascimento e modernidade foi construída justificando expropriação, exploração e toda sorte de violência em nome de uma salvação cristã ou de um renascimento e progresso seculares. Colonialidade do poder refere-se, pois, a um código conceitual fundamentado no qual a ideia de civilização ocidental legitima a si mesma – por meio de atores, instituições, linguagens – como controladora não só da economia e da autoridade, mas também da subjetividade e do conhecimento de povos e etnias não ocidentais.

As formas que a colonialidade assume na atualidade ainda são muito similares às que assumira nos séculos passados, quando ainda nossas terras eram colônias. Como alguns exemplos, podemos observar sua influência no preconceito contra qualquer tentativa de preservar a cultura indígena, na ridicularização presente em sátiras e piadas racistas, nas veias do povo preto que são constantemente abertas por ações policiais de “pacificação”, na desumanização da população em situação de rua. Contudo, é preciso reconhecer que seu impacto vai além das questões étnicas, atingindo toda a estrutura de organização social, formas de produção, educação, relacionamento, culinária, entretenimento e cultura no geral.

Para lutar contra isso, é preciso repensar a cultura, hoje hegemonicamente dominada pelos referenciais imperialistas dos europeus e estadunidenses, guiados pelos interesses capitalistas, que vendem um sonho de sucesso e rendimento sobrehumano que não condiz com a realidade material e histórica de todos, principalmente quando envolve as camadas mais pobres da sociedade. Observando isso, percebe-se a necessidade de repensar uma identidade própria a partir das necessidades materiais de cada comunidade, a fim de que sejam propostas soluções para os seus problemas.

A essência anticolonial consiste na avaliação da situação de cada comunidade, localizando-a histórica, geográfica e politicamente, a fim de compreender que soluções, métodos e estruturas importados de outras realidades materiais podem não comungar bem com o contexto dos lugares que o recebem, trazendo sofrimento a uma população através de uma adoção forçada destes modelos estrangeiros.

A escola, como ambiente formador e transformador de indivíduos, propicia um espaço para a exploração de novas perspectivas de ser e saber. Pensar de forma anticolonial permite a práxis de uma possível reconstrução de uma realidade material mais humana a um povo que, por séculos, vem sendo extirpado de suas raízes.

Para pensar este problema, este artigo adotou a metodologia do estudo bibliográfico, que busca em fontes já publicadas – sejam estes materiais livros ou artigos de periódicos – o referencial teórico para pensar de forma crítica nosso objeto de estudo, o sujeito e a educação num contexto de um país massacrado pela colonização, com o fim de levantar e inspirar questionamentos sobre o funcionamento do modelo atual e as consequências de sua adoção. Para isso, foram selecionados autores que abordam a brutalidade do período colonial, colonialidade interna que ainda paira sobre as nações colonizadas, e as consequências deste fenômeno nos processos de subjetivação do indivíduo (Frantz Fanon, Walter Mignolo,

Santiago Castro-Gómez, Gayatri Spivak, Danilo Streck), e autores que buscaram novos métodos de enxergar o povo oprimido em sua integridade, com foco na educação (Paulo Freire, Orlando Fals Borda, Elizardo Pérez). Trata-se, assim, de um estudo bibliográfico, e não de revisão bibliográfica, tendo sido selecionadas obras de autores considerados de referência sobre o tema, há um tempo já sendo estudados por nós. A partir disso, é feito o relacionamento do pensamento dos autores com a realidade material e histórica singular do país, localizando não só esta realidade, mas também os conteúdos aqui elencados, possibilitando um diálogo construtivo entre ambos. São realizados também os recortes sociais necessários para a análise da situação, por fim contribuindo no pensamento do problema em questão.

Por fim, este artigo tem como objetivo observar a atuação da educação na atualidade através de um prisma decolonial, entender o processo de colonização que envolveu o sul global ao longo das últimas cinco décadas, explorar alguns de seus efeitos na educação e na subjetividade, e identificar possibilidades de transformação da proposta educacional atual.

Para isso, este artigo se divide no estudo da colonialidade e seus efeitos psicossociais, e na análise da atual dinâmica escolar vigente, observando sua relação com a colonialidade, e explorando tentativas de quebra pedagógica com a lógica colonial.

AS MAZELAS DO COLONIALISMO

A modernidade é um período histórico caracterizado pelo avanço do desenvolvimento tecnológico, industrial, econômico e da sociedade como um todo. É tido como uma verdade universal, mas pouco se é falado sobre o outro lado da moeda da modernidade: a colonialidade.

Pinto e Mignolo (2015) denominam que a colonialidade – ou colonialidade do poder – transcende a própria noção de colonialismo, não se referindo apenas ao fenômeno histórico, mas também às consequências da práxis do mesmo, onde “a narrativa salvacionista e triunfalista de renascimento e modernidade foi construída justificando a expropriação, exploração e toda sorte de violência em nome de uma salvação cristã ou de um renascimento e progresso seculares” (2015, p. 383).

A base de funcionamento da colonialidade diz respeito à relação entre os colonizadores, exploradores a serviço de seus países europeus, e os povos originários, habitantes dos países colonizados. Tal relação é pautada na “legitimação-de-si” da sociedade ocidental, que defende que sua língua, vestimenta, culinária, arquitetura, arte, estrutura social, economia e saberes sejam o retrato da superioridade, atuando de forma racista no controle autoritário desses povos (Pinto & Mignolo, 2015, p. 383).

Com o domínio colonial, as nações europeias tomam como universais os seus próprios costumes, ciência e tecnologia, modelos econômicos e políticos. Denomina-se quem fica no Norte, acima dos outros países, e quem fica no Sul, esmagado pelo peso da colonização. Denominam-se o povo colonizado como bárbaro, “índio”, “negro”, “mestiço”, sinônimos de selvageria, enquanto a alcunha de “europeu”, que outrora servia a uma função geográfica, passa a ter conotação racial de superioridade (Quijano, 2005).

Essa desumanização não parte de um puro preconceito dos europeus frente a outras etnias, já que empenha um caráter prático nas políticas coloniais, legitimando a exploração e o extermínio dos povos colonizados sob a égide da purgação dos bárbaros, selvagens e hereges. Ora, se o extermínio que a metrópole coordena tem o intuito de purificar o mundo dos selvagens que ameaça sua soberania, então não há como condenar os nobres esforços dos heroicos colonizadores. Portanto, o racismo não possui uma origem biológica, mas sim epistêmica:

Racismo . . . é a classificação e a hierarquização de umas pessoas por outras que controlam a produção de conhecimento, que estão em posição de atribuir credibilidade a tal classificação e hierarquização e que estabelecem a si mesmas como o padrão: “os humanos” – todos os demais são apenas diferentes graus de quase ou semi-humanos. (Pinto & Mignolo, 2015, p. 383)

Com o controle dos povos originários, apenas o conhecimento, a influência e o modo de viver europeu tornam-se válidos. As ideias da população autóctone são metaforicamente sufocadas, assim como os seus precursores o são de forma literal. Como os europeus consideravam qualquer terra que não tenha sido dominada por outro país europeu como território livre a ser explorado, utilizam-se argumentos salvacionistas, depois civilizatórios, e por fins desenvolvimentistas para a desapropriação de terras já ocupadas. Com sua identidade dizimada pela ideologia e os tiros europeus, a “coisa” colonizado torna-se apenas mais uma ferramenta a ser utilizada pelo expansionismo europeu. Aos que sobreviveram ao massacre, ao longo dos séculos, sobrou o silenciamento de suas vozes e a internação de suas crianças em escolas-fábricas de ocidentalizados, privando-os de seu passado e de seu futuro, submetidos ao trabalho forçado (Pinto & Mignolo, 2015).

Frantz Omar Fanon, psiquiatra nascido na Martinica – uma ilha caribenha ainda sob o domínio da França - e militante revolucionário da luta pela libertação da Argélia contra o colonialismo francês, descreve em seu livro Condenados da Terra (1968, pp. 29-30) a influência da igreja no reforço da narrativa do nativo como inerentemente inferior, falando que “o servo é de essência diferente da do cavaleiro, mas uma referência ao direito divino é necessária para legitimizar essa diferença estatutária”. A mesma dinâmica é vista no Brasil com as missões religiosas, que tinham como objetivo catequizar os indígenas, trazendo-os para o reino de Deus. Com isso, sacrifica-se sua cultura e religião por motivo de sobrevivência. Essa influência da igreja católica se dá pelo poderio da mesma sobre os reinados europeus, sendo necessária a bênção papal para o início das navegações iniciais que buscavam uma rota de comércio com as Índias (Pinto & Mignolo, 2015). A religião também utiliza o martírio como ferramenta para convencer os colonizados, sofridos, que se aproxima do divino aquele que dá a outra face, perdoa as ofensas e insultos, tomando como exemplo os canonizados da igreja católica (Fanon, 1968).

O controle religioso não fora a única ferramenta utilizada no processo de colonização.

Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, ao contrário, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contacto com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. (Fanon, 1968, p. 28)

Fanon (1968) traz que a violência não é do mundo dos povos originários, mas é introduzida em seus cérebros através do emprego da mesma pelo colonizador, que a exibe “com a boa consciência das forças da ordem” (p. 28). Com isso, o autor não nega a existência de conflitos violentos na história das civilizações pré-coloniais, mas exalta a intensidade da violência empregada pelos colonizadores europeus, que não agrediam apenas os corpos dos colonizados, mas como também sua própria humanidade em prol dos ideais europeus.

Isso, porém, não quer dizer que não houve resistência por parte das nações colonizadas. Podemos tomar como exemplo o aumento das revoltas indígenas ocorridas nas capitanias portuguesas – hoje, território brasileiro – durante a década de 1540, motivados pela “disputa de alimentos, a destruição do ecossistema, a imposição de uma convivência regida pela hierarquia social e política e novos padrões comportamentais e formas de produção, introdução de doenças infectocontagiosas e a apropriação das terras, mulheres e das riquezas naturais” (Paraíso, 2011, p. 7).

Hoje, o responsável pela manutenção da modernidade não é mais o colonialismo europeu, mas sim o herdeiro de sua lógica, chamado Imperialismo, que atua através do domínio econômico e poderio militar, ameaça países que contrariam sua vontade através de bloqueios econômicos e coerções militares, sendo o maior representante dessa lógica os Estados Unidos (Pinto & Mignolo, 2015). Sua presença constante é inegável, com franquias das mais variadas redes de fastfoods espalhadas pelas esquinas das cidades; com as fábricas de seus conglomerados presentes em todo o mundo; com refrigerantes, balas, produtos de limpeza, celulares, computadores e toda sorte de produtos ianques abarrotados nas estantes dos supermercados e nos lares brasileiros; e com a importação em massa de entretenimento hollywoodiano que se dedica a promover a bravura do seu exército, a utopia do sonho americano e a vilania dos países estrangeiros.

A propaganda imperialista constante que bombardeia o país colonizado tem efeitos na estruturação da sociedade como um todo, assim como na subjetividade do indivíduo. Fanon (1968) descreve as diferenças entre a cidade do colonizado e a do colono, apresentando-se de formas opostas, mas não complementares, e sim com uma sobrepondo a outra. A cidade do colono é bem estruturada, confortável, iluminada, saciada, com uma variedade de sobras de comida nos lixos da cidade, repleta de boas coisas. De forma contrastante, a cidade do colonizado é constituída de homens sobre os outros, um lugar escuro, faminto de pão, carne, luz e carvão. Enquanto a cidade do colono é descrita como um lugar próspero para brancos e estrangeiros, a cidade do colonizado é descrita como um lugar acocorado, ajoelhado e acuado, lugar de negros e árabes. A cidade do colonizador traz inveja ao colonizado.

O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar, constata amargamente, mas sempre alerta: “eles querem tomar o nosso lugar.” É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar no lugar do colono. (Fanon, 1968, p. 29)

Para o autor martiniquenho, a tentativa de aproximação à imagem do colonizador é um desejo íntimo, luxurioso. É o desejo de ser tratado como um ser humano, já que o colonizador declara o colonizado alguém “impermeável à ética, ausência de valores, como também negação dos valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. Neste sentido, é o mal absoluto.” (Fanon, 1968, p. 30). Num movimento de reconstrução da identidade do povo oprimido, Streck, Adams e Moretti (2010) apontam uma movimentação parecida, na qual o povo também incorpora características da cultura e religião colonizadoras como forma de resistência, mas desta vez em adição à sua cultura, fazendo com que as características colonizadoras não sejam a totalidade do ser colonizado, mas sim concessões necessárias para o convívio numa sociedade colonizada.

Esse “almejar ser” colonizador é evidente na constituição das cidades e das culturas brasileiras. Não só os costumes e as estruturas são dominados por empresas estrangeiras, como há a “estrangeirização” dos conhecimentos e da cultura aqui produzidos. Podemos tomar o funk ostentação como exemplo, estilo musical originado na periferia carioca que tem como tema principal a exibição do acúmulo de posses como forma de legitimação do ser. A narrativa que afirma que “só é valoroso quem tem o melhor carro, as melhores roupas, os melhores acessórios, as bebidas mais caras e as mulheres mais cobiçadas” está em consonância com a citação acima. Pereira (2014, p. 8) traz que a produção do funk ostentação é conduzida por jovens artistas da periferia (em raros casos, jovens da classe média baixa), e que é pautado fundamentalmente na imaginação como ferramenta de vislumbrar um mundo de riqueza, com abundância dos bens materiais aos quais foi negado acesso, e a conquista dos holofotes do protagonismo da sua própria história. Para Pereira, “o imaginar-se não implica apenas o estar em outro lugar ou país, mas o imaginar-se em outra classe social, em outro contexto sociocultural, em outra realidade material, em outro mundo do consumo”. Zea (1976 citado por Alves & Delmondez, 2015) afirma que, historicamente, o latino-americano buscou (e continua buscando) um si-mesmo que se espelha num ideal de ser ocidental, forjando um si-mesmo de acordo com o processo hegemônico de subjetivação.

A expressão cultural é também uma forma de buscar ter sua voz ouvida. Spivak (2010) afirma que não é dado ao subalterno o direito da fala, já que, mesmo ao falar, não será ouvido, sendo considerado apenas uma coisa, um sub-humano. Isso se dá porque, de acordo com a autora, a Europa e seus intelectuais colocaram-se historicamente como Sujeito, consequentemente colocando a integridade do mundo subdesenvolvido como seu Outro.

[Para Spivak] O sujeito que é apresentado como complexo é sempre o sujeito do Ocidente. Assim, o que vários intelectuais ocidentais fazem é consolidar o sujeito ocidental como O Sujeito. Os subalternos, por outro lado, são sempre apresentados de maneira essencializada, reificada, vistos como idênticos entre si e previsíveis. (Alves & Delmondez, 2015, p. 652)

Castro-Gómez (2005, p. 92) reforça os argumentos, apontando a criação de “um perfil de sujeito universal que se adaptara facilmente às exigências da produção: branco, homem, casado, heterossexual, disciplinado, trabalhador e dono de si mesmo”. Tais características do “homem racional” implicam que, aos que não se encaixam dentro das mesmas, nomeiam-se o “outro da razão”: o indígena, o negro, as pessoas com deficiência física e/ou intelectual, os detentos e ex-detentos, a população LGBTQIA+, as pessoas em sofrimento mental.

Ao final dos anos 1990, são promovidos encontros entre intelectuais que possuem como ponto focal a crítica contumaz às visões euro centradas da modernidade, de forma a compreender este fenômeno pelo ponto de vista daqueles que foram periferizados por sua outra faceta, a colonialidade. A esse grupo de pensadores se dá o nome de Grupo Modernidade/Colonialidade. Mota Neto (2015) traz que, embora denominado “grupo”, o movimento constitui-se mais por uma rede de pensadores do que um coletivo uniforme. Embora existam breves discordâncias teóricas dentro do movimento, a busca por uma decolonialidade epistêmica permanece como objetivo comum.

O movimento tem como uma das suas principais diretrizes a localidade do saber: toda e qualquer episteme filosófica não tem como ser universal porque é fruto da cultura e da história de um povo e diz respeito àquela realidade local. Então, assim como os conhecimentos condizentes à realidade de algum país da América do Sul são prontamente apontados como específicos daquele lugar, a mesma afirmação de localidade deve ser feita aos conhecimentos europeus tidos como universais.

Outro ponto seria a necessária historicidade das análises realizadas a partir desse novo projeto intelectual. Isso se refere à localização geo-histórica de dito conhecimento, falando “desde” a América Latina, mas não só “pela” América Latina, e sua crítica ao eurocentrismo (ou euro americanismo) da academia. (Restrepo & Rojas, 2010, p. 51, tradução livre)

Porém, reconhecer a origem social de um conhecimento não implica num inquestionável descarte do mesmo. Streck, Adams e Moretti (2010, p. 23) acreditam que “a atitude adequada não seja negar o legado da modernidade, mas reconhecê-lo e contextualizá-lo histórica e epistemologicamente questionando, contudo, a lógica da monocultura eurocêntrica e abrir caminhos para outros paradigmas”. Quando Fanon (1968, p. 29) fala que “as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas cada vez que abordamos o problema colonial”1, o autor utiliza as ferramentas desenvolvidas por um teórico europeu, dentro de um contexto europeu, construída para uma realidade europeia, mas que pode ser moldada de forma a utilizar a realidade, história e cultura do povo oprimido como base principal de análise da situação, tornando o colonizado o protagonista deste ponto de vista, e não o colonizador.

Fanon afirma, acertadamente, que as análises marxistas devem ser sempre distendidas quando tratar de entender o capitalismo e a dominação pelo trabalho nos territórios colonizados. Estimula-nos, desse modo, a empreender uma leitura não eurocêntrica do marxismo e evitar o determinismo econômico e a cegueira a questões como cultura, raça e gênero presentes em conjunto significativo do marxismo ocidental, ainda que não necessariamente. (Mota, 2015, p. 60)

A crítica da modernidade e dos efeitos do colonialismo nos proporciona a oportunidade de observar o mundo subalterno de outra forma, compreendendo seu contexto histórico e buscando dentro de si a inspiração para romper com os grilhões do eurocentrismo. Ao observar este mundo, é possível perceber a influência estrangeira nas mais diversas esferas do convívio social: a estruturação urbana voltada para o capital, a arquitetura europeia, a gastronomia que exalta o estrangeiro, o entretenimento importado e carregado de mensagens patrióticas de outros países, as formas de expressões culturais consideradas esteticamente corretas, os códigos de leis inspirados no exterior, o ensino bancário arcaico. Estes são poucos exemplos, mas que dão uma dimensão do que pode ser repensado a partir dessa lente. Por agora, vamos nos deter na educação.

PENSANDO A EDUCAÇÃO POR UM PRISMA ANTICOLONIAL

A lógica responsável pela estrutura do sistema educacional brasileiro é denominada pelo pedagogo Paulo Freire (1974/2006) como “concepção bancária da educação”. Nela, o estudante é considerado pela instituição de ensino como um pequeno banco de informações, onde os dados sobre o mundo são simplesmente depositados em suas cabeças pelo professor, detentor do conhecimento. Essa lógica demonstra uma visão do professor como um ator superior ao educando no processo pedagógico, sendo este uma via de mão única.

Nela [concepção bancária], o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. (Freire, 2006, p. 65)

A dinâmica da educação bancária, na qual o conteúdo é depositado pelo educador nas vasilhas (educandos), conta com um esvaziamento do conteúdo ensinado. Isso se dá através da repetição da informação, de forma que a única absorção que ocorre é a de sua sonoridade, e não de seu contexto no mundo, reduzindo educador e educando a meros “depositários” e “depósitos” de informações ocas (Freire, 2006, p. 66).

Dentro da concepção, portanto, a relação entre professor e aluno acaba adotando semelhante dinâmica àquela exposta anteriormente entre o colonizador e o colonizado, onde o “selvagem, herege e incapaz de raciocínio” deve aprender a agir como um “ser humano de verdade, europeu, requintado”. Para o detentor da força hegemônica, o europeu, a sua cultura é a detentora do conhecimento, enquanto o nativo não possui sabedoria alguma, é incapaz de contribuir. Na escola, quem sabe, educa, pensa, vocifera, disciplina, escolhe, determina e detém sua autoridade é o professor2. Ao aluno, resta apenas ser passivo ao processo e seguir o que fora atribuído a ele (Freire, 2006, p. 68).

A atitude passiva, de acordo com Paulo Freire (2006), leva o educando a adotar uma postura de adaptar-se cada vez mais ao mundo e às suas injustiças, carecendo de consciência crítica necessária para transformá-lo. A passividade é benéfica aos opressores, que encontram menos resistência na manutenção de sua hegemonia. Para isso, o opressor atua na mudança da mentalidade dos oprimidos, ao invés de atuar na realidade que os oprime.

Tal paradigma de educação age de forma a categorizar os oprimidos como pessoas marginalizadas (“de fora da sociedade”), sendo considerados como uma patologia-mor de uma sociedade “sã, boa e justa”. São implantadas políticas públicas com o objetivo de “reintegração” dessa parcela da população à sociedade como se de um dia dela houvessem partido, escondendo que as verdadeiras engrenagens da sociedade são lubrificadas pelo sangue e suor frutos da opressão do povo trabalhador. A educação bancária cumpre a função de transformar o oprimido em um “ser para outro”, onde sua existência é colocada em prol de uma classe da qual foi excluído. Para reclamar seu lugar, é preciso que a educação faça do oprimido alguém capaz de radicalmente transformar a realidade de forma que possa, enfim, “ser para si” (Freire, 2006).

Paulo Freire (2006) ressalta a importância da relação homem-mundo. A concepção bancária da educação traz o mundo como algo internalizado dentro de uma consciência (esta vista como um recipiente dentro do ser), embora o mundo não esteja objetivamente localizado dentro do indivíduo, mas sim em sua presença.

Para esta equivocada concepção dos homens, no momento mesmo em que escrevo, estariam “dentro” de mim, como pedaços do mundo que me circunda, a mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos todos que aqui estão, exatamente como dentro deste quarto estou agora. Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada na consciência. A mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que me cercam estão simplesmente presentes à minha consciência e não dentro dela. Tenho a consciência deles, mas não os tenho dentro de mim. (Freire, 2006, p. 72., grifos no original)

O indivíduo está numa relação conjunta com o mundo, ou seja, pode interagir com o mundo, estando com ele, sendo parte dele, mas não sendo passivo a sua definição, nem entendendo de forma passiva, cristalizada, o que o mundo é. Se o ser humano está com o mundo de forma não passiva, torna-se possível criticá-lo e alterá-lo e, para que isso seja possível, é preciso enxergá-lo dessa forma, algo que é desenvolvido através da convivência e comunicação com o mundo. Comunicação essa que não consiste numa transposição de saberes, já comentada neste texto, mas numa intercomunicação entre educandos e educadores, onde o diálogo ganha autenticidade no compartilhar do pensamento espontâneo sobre a realidade (Freire, 2006). O objeto da comunicação espontânea, portanto, passa a ser também algo a ser estudado e problematizado. Penna (2014) traz que a problematização dos aspectos da realidade dos oprimidos através da pedagogia libertadora permite aos educandos aprender o processo de construção da estrutura opressora, as categorias e mitos que fundamentam tal estrutura, dando-lhes a oportunidade de se localizarem dentro da estrutura de opressão, tornando-se seres ativos de transformação dentro da mesma.

Para que esse diálogo aconteça, é preciso rever a estrutura educacional como um todo de forma a explorar os elementos impeditivos a esta comunicação, como o conteúdo pedagógico de cunho bancário e expositivo, que não explora as múltiplas realidades existentes dentro de um país continental como o Brasil, e universaliza um conhecimento desconectado da realidade como verdade absoluta sobre o mundo. Não obstante, barreiras são colocadas na trajetória estudantil, que só podem ser superadas através da demonstração de maestria sobre estes mesmos conhecimentos desconectados. Obstáculos estes exemplificados pelas atuais formas de ingresso no ensino superior, que exigem um desempenho excepcional no ambiente escolar (histórico escolar), ou que estimulam a rivalidade entre alunos na disputa por vagas, utilizando estes mesmos conhecimentos vazios como critério de avaliação de valor (vestibular), sendo alguns destes questionários a nível nacional, reforçando a falácia do conhecimento universal.

Souza e Teixeira (2016) trazem o vestibular como um fator de desenvolvimento de sintomas ansiosos mais graves frente ao medo do fracasso, e ao fracasso em si. Com a ideia de que apenas quem é competente é capaz de passar no vestibular, surge a seguinte conclusão: se não foi possível ter sucesso no vestibular, consequentemente o aluno é incompetente. Surgem sintomas como solidão, insegurança, pânico, sentimentos de incapacidade, podendo resultar em quadros depressivos.

Do ponto de vista da análise psicossocial da situação, é preciso considerar a materialidade onde o estudante vive, levando em conta os fatores econômicos, culturais, geográficos, sociais e psicológicos que constituem a realidade que o permeia (Souza & Teixeira, 2016). O problema se dá no fato de que os processos seletivos pouco levam em consideração as condições materiais dos indivíduos que deles participam, o que dificulta as chances de êxito de pessoas que enfrentam dificuldades na educação de quaisquer naturezas, como o caso de estudantes que trabalham por necessidade, que encontram dificuldades estruturais na escola, como falta de materiais didáticos; que lidam com a dificuldade de acesso a uma instituição de ensino por questões geográficas. Tais diferenças são exacerbadas quando estes alunos são colocados em direta competição com estudantes oriundos de famílias com maior aporte financeiro, com disponibilidade de tempo para dedicação ao estudo, facilidade de acesso à informação e às escolas com melhor infraestrutura. Até mesmo a utilização indevida de remédios para aumentar o rendimento estudantil e acadêmico, como é o caso da popularmente conhecida Ritalina (Souza & Teixeira, 2016), só pode ser realizada caso o interessado tenha os meios materiais disponíveis a serem gastos com esta droga.

Sendo expostos alguns dos problemas supracitados, surge a necessidade de pensar novas alternativas ao sistema educacional vigente. Paulo Freire, portanto, defende a instauração de uma pedagogia libertadora, ou seja, comprometida com a quebra da ideia da realidade como algo eterno e imutável, trabalhando com a percepção de que a sua construção e transformação é guiada pelos homens (Penna, 2014).

Outro contribuinte da perspectiva da pedagogia libertadora foi Orlando Fals Borda, um sociólogo colombiano que defendia o emprego da Investigação-Ação Participativa (IAP)3 como método de análise e estudo da realidade material, principalmente das classes populares. Fals Borda (1985, citado por Mota, 2018) denomina os objetivos finais da IAP como sendo, em primeiro lugar, a capacitação das classes e grupos explorados a fim de engendrar o peso transformador que lhes corresponde através de projetos, obras, lutas e desenvolvimentos concretos; e por fim, a elaboração de um pensamento sociopolítico próprio das bases sociais envolvidas. Fals Borda (1998, citado por Mota, 2018) também descreve a IAP como uma filosofia altruísta da vida com o objetivo de obter resultados úteis e confiáveis no melhoramento das situações coletivas, exigindo que quem empregue o método o baseie no seu convívio ativo na comunidade e extraia disso os conhecimentos necessários, podendo ser aplicados de forma multidisciplinar a grupos de diversas dimensões, mas sem perder o compromisso com a filosofia na qual se baseia.

Mota (2018) aproxima as contribuições da teoria da IAP de Fals Borda como elemento complementar da educação popular proposta por Paulo Freire, de forma que seja possível delinear o perfil do educador comprometido com a prática pedagógica libertadora, de forma a transgredir as relações de dominação originárias da colonialidade:

Trata-se de alguém comprometido politicamente com as classes populares e os grupos oprimidos; com sensibilidade ética para lidar com a dor e o sofrimento do outro; que tenha capacidade de liderança democrática, impulsionando projetos coletivos e sendo guiado por eles; com humildade e fé na capacidade das pessoas mais sofridas; que possua respeito pelos saberes populares e conhecimentos ancestrais, embora sem ser populista; que desenvolva capacidade de trânsito em distintos espaços sociais, sabendo que seu lugar prioritário é ao lado dos movimentos de resistência; que seja autêntico nas suas relações com as camadas populares, ou seja, que demonstre seu compromisso orgânico, mas sem pretender se confundir com elas. (Mota, 2018, p. 10)

Tendo isso em vista, é possível falar sobre intervenções bem sucedidas que tiveram os preceitos acima como base, sejam tais experiências prévias à formação destes conceitos ou não.

Iniciamos com o projeto de alfabetização liderado por Paulo Freire na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, onde foi realizada a alfabetização de 300 dos 380 adultos partícipes do programa ao longo de quarenta horas-aula. Gadotti (2014) descreve que o programa foi iniciado no dia 18 de janeiro de 1963, contando não só com aulas destinadas aos moradores da cidade, como também aulas preparatórias aos monitores do projeto, sendo o conteúdo programático destas composto por: Atualidade brasileira; Economia brasileira; Planificação de desenvolvimento; Deficiência e inorganicidade da educação do Brasil; Análise e síntese das considerações gerais do método; Elaboração de material audiovisual, pesquisa vocabular, seleção de palavras geradoras e preparo de fichas; Prática e metodologia de ensino.

O objetivo de Freire com essa formação foi a de tornar a educação brasileira mais orgânica, ou seja, criando um caminho direto entre o sistema educacional e a realidade do povo. Essa organicidade “se traduzia pela Leitura do Mundo, isto é, pela maior sensibilidade em relação aos problemas da vida cotidiana” (Gadotti, 2014, p. 55). A abordagem construída pelo educador é demonstrada em sua práxis, e exemplificada pela palavra geradora escolhida na primeira aula, “belota”, sendo esta uma adaptação regional da palavra “borlota”, ambas remetendo a um enfeite de couro encontrado em redes e rebenques, artefatos comuns na região (Gadotti, 2014). Portanto, toma-se o mundo familiar com o qual o povo interage como ferramenta de aproximação do conteúdo à sua realidade, de forma que o conteúdo se torne também propriedade do povo. Conteúdo que parte do familiar local para se conectar com a realidade regional, nacional e internacional, e voltar ressignificado ao local, agora podendo ser visto com outros olhos, olhos que enxergam uma realidade conectada, em movimento e não determinada: histórica. E se a realidade é histórica, os seres humanos, que a fazem, também são seres históricos. Portanto, são esses seres que fazem e que têm o compromisso de refazerem a história. A eficácia em seu método é atestada pelos resultados obtidos: dos 380 adultos que ingressaram no programa, 300 foram alfabetizados com sucesso, ao longo de 40 horas-aula, culminando na entrega dos certificados no dia 2 de abril de 1963. A prisão do pedagogo no ano seguinte, em virtude do golpe de Estado de 1964, seguido de quase duas décadas de exílio, impediram a continuação do programa.

Na Bolívia, o professor Elizardo Pérez, juntamente com o educador aimara da região de Warisata Avelino Siñani, foi o responsável pela criação da Escola Ayllu de Warisata4. A palavra Ayllu significa “[uma forma de comunidade familiar extensa], onde teria palpitante a realidade indígena” (Pérez, 1992 citado por Streck, Azevedo e cols., 2010, p. 239), portanto, o objetivo de Pérez foi a criação de uma escola indígena pautada na realidade, ensinamentos, necessidades e epistemes indígenas, localizadas no seu ambiente de trabalho, nesse caso, o campo. Para isso, o idealizador do projeto estabeleceu princípios na formulação de sua escola, os quais são: a definição do problema educacional indígena; a doutrina biológica da escola indígena tipo Warisata; o estabelecimento de um governo coletivista e do que chamará de “Parlamento Amauta”; a autonomia econômica do núcleo escolar e sua função industrial; o aspecto social indígena da escola; a transformação da escola em um instituto de experimentação pedagógica; a visão da escola como defesa social; a função social da escola; e por fim, a filosofia da escola indígena (Streck Azevedo e cols., 2010). Os itens citados acima serão discutidos a seguir.

A delimitação do problema educacional indígena encontra-se no modelo de educação empregado na época às populações indígenas da Bolívia, o qual se tratava de um ensino colonizador, que roubava do indígena suas origens, direcionando-o ao trabalho na metrópole, longe do trabalho camponês característico da população indígena da região.

O ensino que se oferecia aos futuros professores para consagrá-los ao magistério indígena era absolutamente teórico, livresco e intelectualista, e os alunos recrutados nas aldeias seguramente sairiam dispostos a qualquer empresa menos ao ensino no campo. Assim, desde seu começo, ficavam defraudados os propósitos, talvez sinceros, de dom Daniel Sánchez Bustamante 5, e já então se manifestava nas escolas destinadas ao índio, a monstruosa farsa do “normalismo”, enfermidade que corrompeu toda uma geração de professores bolivianos. (Streck, Azevedo e cols., 2010, p. 238)

Portanto, surge a necessidade de uma educação voltada à população indígena que reflita a sua materialidade e identidade, como forma de manutenção de sua existência como povo indígena. Acerca da questão do problema educacional, Pérez aponta a necessidade da educação indígena e laica como forma de combater o pensamento colonizado, encabeçado pelos interesses latifundiários, responsáveis pela destruição violenta de vários ayullus, e pelas missões religiosas que adentram os ayllus com sua religião europeia. Portanto, para Pérez o estabelecimento da escola ayllu passa a ser uma necessidade socioeconômica de preservação. (Streck, Azevedo e cols., 2010).

Acerca da doutrina biológica da escola indígena, Pérez traz a continuidade do ponto anterior: é necessário o desenvolvimento da expressão máxima de riqueza indígena, ressaltando sua ancestralidade e tradição. Para isso, a escola ayllu busca formar homens práticos capazes de bastarem a si mesmos dentro do raio econômico de sua própria existência, sendo educado para a vida no campo, onde irá cultivá-lo, impulsioná-lo e enriquecê-lo. Dentro dessa dinâmica, o principal impulsionador é a própria iniciativa e esforço das crianças partícipes da escola, de forma que seus instrumentos de estudos – regras, formas geométricas, livretos, roupas, mesas, chapéus, sapatos – sejam construídos por si, com o professor atuando apenas como estimulador da ação. A produção também deve ser autossuficiente, onde se trabalha apenas quando necessário. O principal referencial técnico disponível é a natureza e as possibilidades de atuação sobre ela, conhecendo como tecer fios de lã para seus tecidos, como preparar o tijolo para sua uta (casa), como cultivar cerais de forma que tenha mais nutrientes.

Suscitar-se-á, pois, a formação de um homem cujas condições especiais o tornem inconfundível: sóbrio, esforçado, alegre, idôneo, limpo, são de corpo e de espírito, dono de sua personalidade e senso de responsabilidade, livre do egoísmo que o homem acumulou para se defender das invasões sufocantes da escravidão feudal. Homem de multidão, destinado a constituir no tempo distante a unidade do estado coletivista que apague todos os limites da ambição punível dos homens. (Streck, Azevedo e cols., 2010, p. 241)

O governo coletivista descrito por Pérez é representado pelo termo ulaka, que consiste num modelo organizacional escolar pautado na autoridade do diretor ou professor de plantão a fim de manter a disciplina, tendo como tarefa a determinação de subdivisões dentro da escola de acordo com as necessidades econômicas do local, chamadas de amauta (casa do saber). Portanto, são instituídas as amautas da disciplina, edificações, irrigação, agricultura, etc. O parlamento amauta consiste, então, na reunião semanal entre os representantes de cada um destes setores, formando o comitê administrativo da escola (Streck et al., 2010).

Os núcleos de escola devem ser seu próprio ecossistema regulado pelas necessidades que a sua localidade exige. Isso se dá porque a escola tem caráter industrial e utilitário, servindo de apoio aos métodos biológicos de ensino (caracterizados acima, o contato com a natureza e com a atividade) e, portanto, regula seu ensino de forma autônoma de acordo com as necessidades das suas respectivas áreas de produção, sempre com o objetivo de atualizar e renovar as práticas laborais. É considerado que o estudante é também trabalhador assalariado, sendo a sua bonificação os benefícios individuais e coletivos desenvolvidos e aprimorados dentro das escolas. A separação dos núcleos entre áreas de atuação é importante, visto que os problemas da escola do milho não são os mesmos da escola do arroz, da vitivinícola, da tecelagem, e assim por diante (Streck et al., 2010).

Sobre o papel social da escola, Pérez afirma:

Quando se concebe uma obra como Warisata e a realiza em troca de desafiar as iras de todos os sobreviventes reacionários, e até sem isso, quando se compreende que a humanidade padece desses periódicos acessos de loucura coletiva que são as guerras, um fundo e severo anelo humanista nos inspira o desejo de contribuir para salvar o homem. Salvar o homem em termos práticos é a mesma coisa que organizar o homem. Todos os nossos males vêm de nossa incapacidade de se organizar. Quem sabe o segredo final de cada história com homens seja este: organizar. (Streck et al., 2010, p. 243)

Portanto, a escola ayllu cumpre o papel social de organização do homem, agindo não só dentro de suas salas, mas além de si mesma. Sua influência permeia todo o viver, atingindo a economia, religião, lar, arte e política dos indígenas, “já que educar não é ensinar, mas despertar, suscitar, alentar, impulsionar...” (Pérez, 1992, citado por Streck et al., 2010, p. 243).

Quando fala sobre a possibilidade de experimentação pedagógica dentro da escola ayllu, Pérez traz luz à impossibilidade de ação verdadeira sem um estudo prévio das condições materiais do indígena, levando em conta sua etnicidade, teleologia, o seu ser individual e social. Porém, a análise das especificidades da comunidade não constrói a ação por si só, mas cumpre o papel de fundamentação do plano pedagógico, cuja efetividade não é garantida, necessitando de um espaço de experimentação das ideias de atuação em educação. (Streck et al., 2010).

Pérez comenta sobre a escola como defesa social e função social. A defesa social diz respeito à preservação da vida e do viver indígena frente ao derramamento de seu sangue nas mãos europeias. Ao localizar a escola no campo – onde o indígena trabalha – e não na aldeia, evita-se que sua gestão seja tomada por castas de caciques com comportamentos herdados do domínio colonial. Acerca da função social, Pérez defende que a escola deve fornecer um corpo médico, boa alimentação integral, espaço para experimentação e inovação, etc. Para isso, faz-se necessária a reapropriação das terras indígenas ora tomadas por latifundiários e missionários ao longo da história do país (Streck, Azevedo e cols., 2010).

Por fim, Pérez determina que a filosofia da implantação das escolas indígenas, a nível nacional, seja pautada no esforço contínuo do trabalho – seja este intelectual, social, pedagógico ou braçal – como força-motriz do desenvolvimento e da inovação. Infelizmente, o programa de Elizardo Pérez foi encerrado devido ao sucateamento das escolas indígenas por parte do governo da Bolívia. De acordo com o autor, o fim das escolas ayllu causou dano irreparável, visto que foram perdidas “muitíssimas virtudes índias para serem substituídas pela acomodação mais fácil oferecida pelo vaivém político”. Porém, apesar das dificuldades institucionais e da breve duração de seu programa, esta experiência inspirou a ação da prática pedagógica construída por e para comunidades indígenas em outros países, notavelmente no México, Peru, Guatemala e Equador.

Apesar do caráter anticolonial do trabalho de Pérez, e de sua consonância com o programa da pedagogia pautado na liberdade dos oprimidos para a construção de sua própria realidade – assim como a pedagogia de Freire e a pesquisa de Fals Borda –, o programa ainda é passível de críticas. Em especial, sua visão ideal do ser indígena – “sóbrio, esforçado, alegre, idôneo, limpo, são de corpo e de espírito” (Pérez, 1992 citado por Streck, Azevedo e cols., 2010, p. 241) – coincide em partes com o padrão europeu do homem ideal. A delimitação de uma visão do que é ideal já revela na própria palavra o seu efeito, de-Limita, o que o indígena tem liberdade de ser, contradizendo a sua própria proposta pedagógica. Sua visão de trabalho também se contradiz ao longo de sua contribuição: ora é descrito o trabalho do indígena como algo realizado apenas quando necessário, quando descreve a natureza do indígena frente ao trabalho; ora como algo incessante e incansavelmente executado através do esforço, onde o aprimoramento de sua execução se torna urgência máxima, como se enfrentasse um déficit produtivo, ponto presente ao descrever a filosofia basal da escola ayllu).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que a proposta educativa atual não é capaz de complementar as necessidades pedagógicas da população brasileira. O seu funcionamento é pautado em lógicas que não condizem com a realidade dos atores que participam desse processo, ignorando necessidades que permeiam as esferas econômica, social, individual e ambiental do viver, em prol de um sistema desumano que se beneficia do desespero e da passividade da classe trabalhadora.

Os exemplos aqui apresentados são apenas alguns de muitas iniciativas tomadas mundo afora no combate à colonialidade. Porém, é preciso compreender que vias institucionais e suas políticas públicas não dão conta de transformar o mundo. A obra de Fanon (1968) é um bom exemplo disso: o autor discorre sobre a sociedade colonizada e violentada como principal fator etiológico no sofrimento psíquico do colonizado. A escola pautada na pedagogia da libertação, que valoriza a realidade dos educandos, ensina-os a problematizar esta realidade, e os torna sujeitos ativos de transformação é parte essencial dentro desse processo de transformação política. Todavia, é preciso compreender que escola é apenas uma das várias estruturas da sociedade que influenciam no viver em conjunto, portanto, não basta que apenas a escola seja alvo de uma descolonização sem que outros fatores sociais que impactam a vida das classes oprimidas – como sucateamento da saúde pública, violência por parte da polícia e exército militar, falta de acesso à cidade, distribuição desigual de terra, miséria e carestia – passem por um processo de reestruturação similar, algo que não é de interesse das classes dominantes.

O esforço de resgate e criação de uma humanidade autônoma, crítica, criativa, ativa e capaz de construir seu próprio futuro deve ser conjunto, deve ser revolucionário. Porém, isso não quer dizer que os estudos específicos de cada estrutura – como o que esse artigo se dispõe a fazer frente à problemática educacional – sejam em vão. Não é possível práxis sem análise da situação, e uma mudança social radical não acontece da noite para o dia.

Financiamento

Não houve financiamento.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

1Aqui o autor analisa a distribuição de riquezas nas colônias, concentradas nas mãos da elite branca, declarando que o “indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico” (Fanon, 1968, p. 29).

2É importante, aqui, fazer o recorte temporal de tal afirmação, realizada num contexto de ditadura militar (1968), onde o controle dentro da sala de aula era característico da época. Hoje, apesar de a concepção educacional hegemônica ser a mesma da época, o professor não detém tanto poder em sala de aula em virtude da desvalorização da profissão, enfrentando desafios como a baixa remuneração, falta de infraestrutura e limitações impostas pela própria instituição sobre metodologias de ensino e conteúdo programático.

3 Streck, Adams & Moretti (2010) traz que a IAP é popularmente conhecida no Brasil como pesquisa participante.

4Warisata é uma região próxima do Lago Titicaca e do Monte Illampu, na Bolívia. O Lago Titicaca é conhecido por ser rodeado por diversas etnias indígenas, atraindo a atenção de Elizardo Pérez para a implementação da escola indígena no local (Streck et al., 2010, pp. 233).

5 Daniel Sánchez Bustamante foi um dos principais nomes no desenvolvimento da educação pública boliviana, fundando a primeira escola nacional de professores do país no dia 6 de Junho de 1909 (“Daniel Sánchez Bustamante”, n.d.).

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Recebido: 14 de Agosto de 2022; Revisado: 13 de Dezembro de 2022; Aceito: 09 de Outubro de 2023

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