INTRODUÇÃO
A Covid-19 se caracteriza como uma doença respiratória grave. As primeiras manifestações dessa síndrome ocorreram na cidade de Wuhan, na China, no final de 2019. Autoridades previam a configuração de um novo surto epidêmico, o que levou o mundo ocidental a voltar os seus olhos para as ações desenvolvidas por todo o território chinês. Essas medidas foram acompanhadas, desde sua emergência, por uma avalanche de informações contraditórias sobre os efeitos, a transmissão e a letalidade dessa nova doença.
Em 22 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) nomeou a Covid-19 como uma emergência de saúde pública de âmbito internacional. Essa ação estava voltada para a elaboração dos primeiros protocolos internacionais de enfrentamento a uma situação que se agravaria pouco tempo depois. A declaração sobre o início da pandemia, em 11 de março de 2020, levou a constatar que a Covid-19 já se espalhava por todos os países. Para Truong (2020), essa condição implicou na produção de novas estratégias de controle sobre a vida. Segundo essa perspectiva, a emergência de tal acontecimento elevaria as condições de aplicabilidade do controle sistemático sobre os corpos das populações a um nível refinado na sociedade do século XXI. É deste modo que Mansano, Carvalho e Carvalhaes (2021, p. 307) sinalizam que: “Em nome da vida, a governança adotou estratégias contraditórias não apenas entre seus níveis (federal, estadual e municipal), mas também na sua interface com a população, com as demais instituições sociais e com o sistema jurídico”.
Em linhas gerais, cumpre-se perguntar: a pandemia da Covid-19 caracteriza-se como uma crise sanitária ou como uma (nova) aplicabilidade do poder soberano sobre a vida? Muitas vezes, as situações de calamidade pública são momentos propícios para a alavancagem de novas estratégias que servirão aos programas de seguridade por diferentes regimes de governos. Nesse sentido, uma pandemia pode configurar-se como pretexto ideal para a implementação de novos gerenciamentos de governança à vida e para a aplicação de um giro estratégico em torno das práticas de exceção promovidas pelo poder soberano.
Para Agamben (2004), no século XXI, a soberania acaba por ocupar uma posição paradoxal, qual seja, a tese de que seus ordenamentos estão dentro e fora dos dispositivos jurídicos. Isso significa que acontecimentos, como a Covid-19, podem suscitar os efeitos de suspensão da validade do que nomeamos como lei em nome da aplicação de decretos parciais que, logo se convertem, em modulações permanentes das condutas. É dessa forma que se constituem formas de controles, nas quais as medidas excepcionais tornam-se a grade de inteligibilidade de um novo normal1.
O presente artigo possui a finalidade de analisar as emergências das experiências promovidas pelos governos de alguns países no enfrentamento à Covid-19 nos primeiros meses de 2020. Nesse sentido, buscamos apresentar um quadro geral de ações governamentais, a partir de alguns registros difundidos nas mídias digitais. Tal objetivo desdobra-se na possibilidade de analisarmos, por meio de registros discursivos, as estratégias implementadas por diferentes países, logo após a eclosão da pandemia2. A partir dessa delimitação podemos nos perguntar: qual a linha que separa o cuidado da heteronomia diante de uma emergência sanitária? Qual a fronteira delimitada entre um fazer viver e um deixar morrer a partir da Covid-19? É em torno de tais problematizações que buscamos analisar os conteúdos presentes em reportagens publicadas na internet, ao longo do primeiro semestre de 2020, que registrassem as diferentes ações de combate à pandemia.
Ao todo, foram coletadas 45 reportagens e 14 ensaios dedicados especificamente, às correlações entre a pandemia, a soberania e o estado de exceção biopolítico. Essa perspectiva sinaliza os elementos imprescindíveis para se pensar como os dispositivos de poder, provenientes da pandemia, contribuem para a potencialização das formas de exceção no debate sobre o controle da população e suas estratégias de governamentalização sobre a população. Supondo que a governamentalidade ocupa uma posição mais porosa e complexa do que a mera dicotomia entre liberdade e autoritarismo, bem como a recusa e a preservação das garantias cívicas, podemos perceber como um conjunto de tecnologias das condutas atesta a complexidade dos elementos ligados ao gerenciamento das populações e a modulação das subjetivações, pois como atesta Foucault:
Supondo-se, portanto, que “governar” não seja a mesma coisa que “reinar”, não seja a mesma coisa que “comandar” ou “fazer a lei”; supondo-se que governar não seja a mesma coisa que ser soberano, ser suserano, ser senhor, ser juiz, ser general, ser proprietário, ser mestre-escola, ser professor; supondo-se, portanto, que haja uma especificidade do que é governar, seria preciso saber agora qual é o tipo de poder que essa noção abarca. (Foucault, 2008, pp. 155-156)
Da mesma maneira, é possível contextualizar esse momento da Covid-19 pelo enunciado formulado por Agamben (1995) em torno das relações entre o poder soberano e a governamentalidade. Para ele, o problema fundamental destas estratégias reside no fato de que a soberania se empenha na politização da biologia e na biologização da política, cujo ápice não é a estruturação democrática – cuja proveniência remonta a polis -, mas sim os campos de concentração. Desta forma, é no centro desse debate que se encontram formuladas as experiências ligadas às práticas refletidas de governamentalização da vida, promovidas desde a propagação da pandemia por parte da OMS.
Em A Invenção de uma Epidemia, Agamben3 (2020a, para. 5) sinaliza que: “Parece que uma vez esgotado o terrorismo como causa de medidas excepcionais, a invenção de uma epidemia poderia oferecer o pretexto ideal para estendê-los além de todos os limites”. Conforme essa fala sugere, os elementos ligados aos dispositivos de controle sobre a vida relacionam-se perfeitamente aos modelos propostos pelos governos ao redor do mundo, no que se refere ao controle da pandemia. Esse cenário acentua a exceção como uma regra permanente no conjunto de exercício da razão de estado. Ao retomarmos as problematizações desenvolvidas por Foucault (2008) acerca do papel da razão de estado, podemos observar que tal modelo de governamentalidade preocupa-se, desde sua emergência, em fixar as bases da conduta política de si e dos outros como grade de inteligibilidade, cujo fim é a salvação do próprio Estado. Nesse sentido, elaborar uma reflexão sobre os impactos das ações governamentais é de fundamental importância para sinalizarmos os modos pelos quais os regimes de exceção ganham novos contornos no contexto da governamentalidade contemporânea graças à pandemia de Covid-19, visto que:
A pandemia do coronavírus desestabiliza, ainda que momentaneamente, o funcionamento da economia e da política, ao colapsar os sistemas de saúde, desordenando as relações e as organizações internacionais, despertando novos tipos de confrontos ao revirar o cotidiano dos relacionamentos sociais e afetivos e dos modos e estilos de vida. Com isso, ela acaba por atingir as relações de poder e saber na legitimação das ações de enfrentamento da pandemia em questão. (Prado & Justo, 2021, p. 342)
Ao longo dos primeiros meses de 2020, inúmeras ações foram implementadas para promover a regulação da vida e o controle sobre a conduta da população, a partir das experiências de múltiplas formas de governo. Assertivas ou não, essa pluralidade de estratégias percorreu os contornos de um regime de veridicção, sinalizando uma nova grade de inteligibilidade em torno do que Foucault (1977) chama de corpo-espécie.
Desse modo, é interessante destacar como essas práticas foram aplicadas a partir do conjunto de informações veiculadas nas mídias digitais. Essas ações eram voltadas desde o fomento de estratégias sanitaristas de cuidado, vigilância e saúde, até ações espetacularizadas em torno de uma realidade singular pela qual a nossa geração teve de se habituar. Nessa conjuntura, o panorama da exceção atual incidiu sobre essas ações, qual seja, o de instrumentalizar os elementos de novas formas de governar as condutas, mediante o agravamento do quadro sanitário provocado pela Covid-19.
Circula sobre esse panorama, o duplo efeito do enfrentamento à pandemia. Por um lado, as estratégias de controle estão ligadas aos dispositivos de enfrentamento, a partir dos elementos relacionados a uma crise sanitária, desdobrada em uma guerra que operacionalizou a morte daqueles que contraíram tal enfermidade. Por outro lado, também relegou ao estado de exceção as vidas precárias, os corpos abjetos e toda a carne rejeitada e excluída pelos dispositivos econômicos. A pandemia inaugurou métodos de condução da exceção, cujo momento foi perfeito para o ajuste de contas contra os mais pobres.
Diante do exposto, o estado de exceção, tido como um dispositivo provisório por meio do qual a soberania regulamenta suas ações, tornou-se regra permanente de controle sobre os sujeitos. Neste âmbito, circula em torno de tal efeito, o fato de a pandemia da Covid-19 potencializar os elementos de justificativa do aumento gradual da liberdade vigiada pelas regras de proteção à saúde, à política e à economia, ao menos para uma parcela muito reduzida da população.
Apresentamos neste texto uma estrutura que envolve, em um primeiro momento, o nosso percurso metodológico, no qual identificamos as categorias de composição dessa pesquisa, bem como os seus critérios de inclusão e de exclusão. O segundo momento é dedicado a relacionar as categorias de trabalho aos textos e ensaios escritos por intelectuais que partilharam uma leitura crítica em torno da emergência da Covid-19. Nossas considerações finais são dedicadas a pensar os possíveis desdobramentos da pandemia em torno das inflexões sobre os regimes de governamentalidades e do estado de exceção na sociedade do século XXI, bem como suas implicações em torno dos processos de subjetivação.
MÉTODO
Nosso método de trabalho caracterizou-se por uma pesquisa documental. Em um primeiro momento, a pesquisa envolveu a leitura, o agrupamento e a seleção de alguns ensaios publicados por intelectuais logo após a eclosão da pandemia. Esses ensaios reúnem os possíveis sinais de desdobramentos nos campos do estado de exceção, da espetacularização da sociedade de controle e da crise dos sistemas democráticos nas sociedades ocidentais.
Ao todo foram lidos 14 textos, conforme apresentação a seguir: 1. A Invenção de uma epidemia (Agamben, 2020a); 2. A emergência viral e o Mundo de Amanhã (Han, 2020); 3. Para Agamben, Pandemia Funciona Como Pretexto Para o Poder Satisfazer sua Sede de Mais Domínio (Calligaris, 2020); 4. Contágio (Agamben, 2020c); 5. A Necropolítica das Epidemias (Diniz & Carino, 2020); 6. Reflexões Sobre a Peste (Agamben, 2020e); 7. Giorgio Agamben e o Novo Estado de Exceção Graças ao Coronavírus (Castro, 2020); 8. Byung Chul-Han e o Coronavírus de 2020 (Arditi, 2020); 9. Esclarecimentos (Agamben, 2020d); 10. O Estado de Exceção Provocado Por Uma Emergência Imotivada (Agamben, 2020b); 11. O Paradigma Imunológico na Era da Globalização (Martins, 2020); 12. Questões éticas da biopolítica na pandemia que nos assombra (Bartolomé Ruiz, 2020); 13. Giorgio Agamben: “A epidemia mostra claramente que o estado de emergência se tornou a condição normal” (Truong, 2020); 14. Direito Universal à Respiração (Mbembe, 2020).
A forma de seleção dos ensaios escolhidos foi delimitada pelos horizontes epistemológicos que ligam as problematizações sobre os efeitos da biopolítica na sociedade do século XXI ao fio condutor das reflexões longitudinais promovidas por intelectuais. Os autores dos ensaios se inspiram nas pistas deixadas em aberto pelo projeto desenvolvido por Michel Foucault ainda na segunda metade do século XX, qual seja, a constituição de uma genealogia das formas de governo e da biopolítica. As análises dos ensaios foram agrupadas em duas categorias fundamentais: a descrição resumida de cada texto e o agenciamento das ideias principais contidas em cada ensaio, nas relações entre a pandemia e o estado de exceção sobre a vida da população.
Paralelamente realizou-se um levantamento de reportagens, que anunciavam as primeiras medidas governamentais produzidas em diversos países no enfrentamento à pandemia. As reportagens foram encontradas a partir de uma ferramenta de buscas, utilizando descritores relacionados ao tema, como “pandemia”, “países”, “governo”, “Covid-19”, “medidas restritivas”, “medidas” e “estratégias”. Os seus enunciados destacavam ações governamentais adotadas logo após a declaração de emergência sanitária e, posteriormente, à institucionalização da pandemia de Covid-19. Apontamos que as reportagens foram veiculadas a portais de mídias eletrônicas hospedadas em sites no Brasil e de grande repercussão na internet. Esse critério foi definido pelo grau de confiabilidade e de credibilidade dessas agências no desenvolvimento e na divulgação de notícias em veículos jornalísticos4.
Ao total, foram selecionados 45 materiais difundidos pela imprensa nos seguintes portais: G1, Veja, BBC News Brasil, Folha de São Paulo, Época, O Globo, Uol, Época Negócios, Exame, A Gazeta, R7, Canal Tech, GaúchaZH, Agência Brasil, El País, ND Mais e o Portal do Governo/SP. Por sua vez, essas reportagens foram divididas nas seguintes categoriais: (a) medidas restritivas de circulação contra a disseminação da Covid-19; (b) desenvolvimento de tecnologias digitais de monitoramento da população; (c) medidas jurídicas de controle da pandemia; (d) medidas negacionistas e espetacularização em relação ao combate da Covid-19.
Em relação à categoria “a”, registrou-se 21 reportagens sobre a aplicação de medidas restritivas de circulação da população. A categoria “b” apresentou 8 reportagens direcionadas ao desenvolvimento de tecnologias digitais. A categoria “c” foi permeada por 14 reportagens ligadas ao desenvolvimento de medidas jurídicas de combate à pandemia. A categoria “d” apresentou 4 reportagens dedicadas à produção de medidas negacionistas ou espetacularizadas da Covid-19. Destaca-se que três reportagens foram enquadradas em mais de uma categoria e que, duas reportagens foram excluídas da análise por não se enquadrarem nos critérios definidos para a construção desse trabalho, seja pela falta de informações ou pela repetição em relação a outras notícias. Com relação aos critérios de inclusão, eles foram delimitados a partir da seguinte estrutura: (a) Reportagens hospedadas em portais de grande circulação no mundo virtual. (b) Reportagens publicadas somente no ano de 2020. Quanto aos critérios de exclusão, eles envolveram: (a) Editoriais; (b) Notas informativas; (c) Reportagens sem identificação de autoria, ou ainda, sem data especificada.
MEDIDAS RESTRITIVAS DE CIRCULAÇÃO CONTRA A DISSEMINAÇÃO DA COVID-19
A primeira categoria compilou medidas restritivas de circulação contrárias à disseminação da Covid19. Nessa categoria, foram registradas reportagens publicadas no portal G1, as quais faziam menção às primeiras medidas adotadas por diversos países a partir de 02 de fevereiro de 2020. Essas ações buscavam intensificar o controle de áreas fronteiriças, com a aplicação de medidas sanitárias de combate à pandemia. A proibição da entrada de sujeitos provenientes da China, a elaboração dos primeiros protocolos de isolamento social e a disseminação das políticas de higiene pessoal são alguns exemplos dessas ações.
A GaúchaZH registrou, em 04 de março, que a quarentena obrigatória aplicada na Argentina conteve a explosão do contágio da doença, evitando que o sistema de saúde daquele país colapsasse. Da mesma forma, em 12 de março, a Agência Brasil apontava que a população argentina deveria promover a quarentena obrigatória, a partir das manifestações dos sintomas próprios da Covid-19. Ainda em território latino-americano, no dia 14 de março, o El País apontava a decisão do fechamento das fronteiras colombianas com a Venezuela, como medida de proteção da sua população.
Em 12 de março, o portal da BBC News Brasil registrava o fechamento das fronteiras terrestres em 14 países, assim como a intensificação do monitoramento e da testagem em massa da população na Coreia do Sul. O governo italiano passou a instituir a verificação de temperatura corporal nos transportes públicos. Nos Estados Unidos foram restritos os voos provenientes da Europa. Em abril de 2020, o jornal O Globo divulgava que os governos chinês e japonês produziam o escrutínio de estrangeiros, com a finalidade de contenção de novos casos de Covid-19.
O site do Canal Tech registrava, em 13 de março, as estratégias adotadas pelo governo de Taiwan no combate à Covid-19. Os mecanismos de ações governamentais envolveram desde o fechamento total da fronteira, até a ampla divulgação e aplicação de protocolos de saúde e avaliação permanente dos recursos hospitalares. Já no Brasil, em 17 de março, o site G1 destacou as primeiras medidas adotadas pelo estado da Paraíba no controle de disseminação da Covid-19.
No dia 25 de março, o jornal A Gazeta voltou o seu noticiário internacional às medidas adotadas por alguns governos da África. Essas medidas variavam desde a aplicação de decretos de calamidade pública até o fechamento de fronteiras de países como Costa do Marfim, Senegal, República do Congo e Marrocos. A esse respeito, Calligaris (2020) argumenta que esses processos de regulação se desdobram a partir do aprofundamento sobre o controle da vida humana. O processo de pandemia inaugurou o elemento de que o prolongamento da vida passa, necessariamente, pelo assujeitamento da população às formas de convencimento adotadas pelos governos.
Ora, percebe-se que tais estratégias contemplam diretamente a produção de um regime de governamentalidade, cujo epicentro passa pela estruturação de um duplo efeito de racionalidade. Isto é, as características totalizantes responsáveis por estruturar os seus procedimentos no nível de uma razão de estado, e as características individualizantes responsáveis por tensionarem os modos pelos quais os sujeitos devem modular as suas experiências éticas (Foucault, 2015). A força de um estado governamentalizado consiste em intensificar as estratégias de vigilância das condutas, já que a população é um problema de natureza política a ser continuamente gerenciada. O Estado governamentalizado pela pandemia carrega a dinâmica das modulações jurídicas nos seus contornos e relevos, mas ao mesmo tempo, a fixação de um regime de verdade por meio do qual é possível gerenciar ativamente a vida dos sujeitos e da população. Essa vigilância atenta compreende a difusão dos dispositivos de segurança e de normalização frente às dinâmicas e/ou formas de exceção (Neves & Gomes, 2021).
Ainda em 25 de março, o UOL delimitava a adoção de medidas, por parte do Ministério da Saúde do Brasil, em relação à prática extensiva de uma rede de diagnósticos precoce. Sendo que, em 27 de março, o G1 apontou que aproximadamente um terço da população mundial se encontrava em isolamento social.
Já, em 13 de abril, o mesmo portal veiculava a adoção da estratégia low cost, produzida pelo governo vietnamita. Essa estratégia consistia em priorizar o isolamento dos doentes e a localização dos sujeitos com as quais os infectados entraram em contato. Ainda no Vietnã, houve o início do isolamento de bairros inteiros após confirmação de um caso positivo e da aplicação da quarentena imediata de 14 dias a todos os viajantes que chegavam do exterior.
No dia 01 de abril, o portal G1 destacou que 64 países decidiram por fechar totalmente as suas fronteiras, enquanto outros 79 países adotaram pelo bloqueio parcial. Nesse sentido, em países que já apresentam um controle intensivo de sua população como a China, não houve uma resistência aparente às medidas de controle que se intensificaram neste período. Conforme cita Han (2020):
Na China essa vigilância social é possível porque ocorre uma irrestrita troca de dados entre os fornecedores da Internet e de telefonia celular e as autoridades. Praticamente não existe a proteção de dados. No vocabulário dos chineses, não há o termo “esfera privada.” (Han, 2020, seção: As vantagens da Ásia, para. 4)
Essa fala registra a postura adotada pelos países asiáticos e europeus, logo no início da pandemia. Para Han (2020), na China, não existe a expressão esfera privada, pois há uma estrutura intensiva de vigilância social e troca irrestrita de informações por meio da tecnologia entre os prestadores de serviços de Internet e o governo. Desse modo, percebe-se que, mesmo no período anterior à pandemia, a modulação de uma vigilância digital não era criticada pela população chinesa, devido ao contexto do autoritarismo presente nesse país. Como se houvesse, portanto, uma espécie de sensibilização sistemática da vigilância das condutas, existente anteriormente ao próprio processo de disseminação do vírus.
Han (2020) também aponta que, no contexto europeu, as primeiras medidas de contenção foram executadas a partir do fechamento das fronteiras. Valendo-se das suas soberanias, países como Itália, Bélgica, Espanha e França organizaram, por meio de um trabalho inútil, a reativação das fronteiras que implodiram todo o discurso de anos em defesa de uma “Europa Sem Fronteiras”, a partir do slogan da Comunidade Europeia. Nesse sentido, para Han (2020, seção: As vantagens da Ásia, para. 9): “Pela epidemia talvez devêssemos redefinir até mesmo a soberania. É soberano quem dispõe de dados. Quando a Europa proclama o estado de alarme e fecha fronteiras continua aferrada a velhos modelos de soberania”.
A perspectiva de tal afirmação acabou sinalizando que, o primeiro momento da pandemia, se configurou como um investimento sobre os limites territoriais no qual o poder soberano passa a ser exercido em torno dos elementos ligados aos fluxos dos regimes de algoritmos. Ainda se observou a restrição da circulação acelerada de mercadorias e de capital, resultantes de um mundo globalizado em plena agonia. Face aos problemas de gerenciamentos econômicos, emergem os sentidos dessas limitações territoriais aos novos modelos de governamentalização das desigualdades em tempos de pandemia (Nascimento & Colombo, 2021).
A epidemia tem se configurado como um novo estilo de controle social por parte dos governos. Essas medidas citadas, orquestradas pelos primeiros protocolos internacionais, constituem a base de um ciclo em que os governos, recorrendo a suas vocações soberanas, oferecem segurança em troca da liberdade e a defesa do biocapitalismo financeirizado, como também a composição de modulações de seguridade sob o pretexto da defesa da saúde pública. Os bancos de dados da governamentalidade algorítmica refletem o prolongamento das estratégias de controle do biocapitalismo:
Proteômica, genômica, farmacologia pós-genômica são os saberes nos quais o biocapital investe, retranscrevendo as fronteiras entre o direito público e o privado. Patentes, “bio-banking”, novos “enclosures” dos commons, são, portanto, possíveis. Isso, novamente, não acontece de acordo com uma sequência causal linear – como se fosse o próprio capital a promover este tipo de transformação, mas sim de acordo com a lógica de subdeterminação. A escolha das oportunidades de investimento, atratividade para o capital financeiro, inovação científica e tecnológica, projetos de abertura, agem circularmente, uns sobre os outros, abrindo novas fronteiras científicas e novas possibilidades de valorização ao mesmo tempo. Na composição técnica do “biocapital” são incluídas as máquinas (computadores, bancos de dados, laboratórios: uma enorme parcela de capital fixo), mas também uma parte significativa de capital de giro (venture capital, cuja mobilidade está relacionada à possibilidade de autovalorização e inovação, por exemplo). (Chignola, 2015, pp. 6-7)
Em 12 de abril, a Época Negócios veiculava a estratégia adotada pela Nova Zelândia, que confinou sua população por um período de um mês. No dia 22 de abril, o Reino Unido anunciava, segundo a revista Exame, a possibilidade da aplicação das medidas de isolamento social por mais de um ano. O problema fundamental da adoção desses dispositivos de vigilância e de controle, cujo emblema passa pelo crivo do estado de exceção, consiste no fato de percebermos que a pandemia compreende um limiar à vida dos sujeitos, tornando-se central na tomada de decisões produzidas pela razão de estado. Ou seja, talvez a partir da Covid-19, o problema da governamentalidade não seja mais o de opormos normalidade e excepcionalidade, mas sim compreendermos, efetivamente segundo orientações de Foucault (1977), que os interstícios da biopolítica produzem formas de subjetividades assujeitadas pela governamentalidade. Ou seja, não somos sujeitos da lei somente, mas também sujeitos da biopolítica do vírus.
Ainda em 22 de abril, o UOL destacava uma série de medidas aplicadas por diferentes países. Os Estados Unidos, por exemplo, suspenderam a imigração devido ao aumento de casos de transmissão. Já o Ministério da Saúde brasileiro indicava a distribuição e aplicação de mais de 100.000 testes rápidos. O governo mexicano promovia o aumento do orçamento para a difusão dos seus programas sociais de enfrentamento à pandemia. A Alemanha anunciava a obrigatoriedade do uso de máscaras para a prevenção à transmissão comunitária da Covid-19.
Em torno de todas essas medidas relacionadas à restrição da circulação da população e da utilização de equipamento de proteção individual, Han (2020) nos lembra que, enquanto os países asiáticos possuem uma maior familiaridade em torno da utilização desses dispositivos, os cidadãos europeus, latino-americanos e africanos deveriam instituir uma nova experiência em relação ao uso de máscaras protetoras. Entretanto, a falta desse procedimento não se deve ao individualismo da população dos países ocidentais, mas sim à ausência da fabricação desses equipamentos de proteção. Associa-se a esses aspectos, o problema econômico de países periféricos, diante da dificuldade de aplicação das medidas de segurança em saúde, sobretudo na África e na América Latina. Em torno dessa condição, Mbembe (2020) aponta que:
Algumas pessoas enunciam já um pós-Covid-19. Por que não? No entanto, para a maioria de nós, especialmente nas zonas do mundo em que os sistemas de saúde foram devastados por anos de negligência organizada, o pior ainda está para vir. Na ausência de camas hospitalares, máquinas respiratórias, testes em quantidade, máscaras, desinfetantes à base de álcool e de outros dispositivos de quarentena para quem já foi atingido, infelizmente prevemos que muitos não passarão pelo buraco da agulha. (Mbembe, 2020, seção: Eis o artigo, para. 2)
O site da Folha de São Paulo afirmou, em 24 de abril, que o confinamento da população foi responsável por evitar mais de 60 mil mortes na França. Com isso, o governo do país sinalizava o sucesso do endurecimento das regras de confinamento. Neste caso, não se trata de conter, suspender ou confinar tão somente, mas fazer valer a regra de que tanto o Estado, quanto a economia podem oferecer uma resposta rápida perante uma crise eminente. Inclusive, isso favorece que os indivíduos vislumbrem possíveis cenários de um mundo pós-pandêmico.
No dia 05 de maio, o UOL relatava que o Estado de Pernambuco estudava a promoção do lockdown, após o aumento sistemático de novos casos da doença. Ainda em território nacional, em 06 de maio, o G1 anunciava que a prefeitura de Chapada dos Guimarães adotou a medida de interdição da cidade com a instauração de grades, objetivando evitar aglomerações da população. Por fim, no dia 08 de maio, o G1 apontava que Rondônia anunciou um plano de combate à Covid-19, a partir do estabelecimento de três etapas: limitar a movimentação da população; aplicar o distanciamento social seletivo; e adotar a abertura comercial e seletiva de serviços, como bares e restaurantes.
O conjunto dessas medidas registra o panorama da governamentalidade a partir do que Castro (2020) nomeia como a formação dos dispositivos de seguridade, em que a racionalidade política opera pela circularidade entre as medidas de saúde e as práticas econômicas. Como se a Covid-19 escancarasse os elementos circulares entre as medidas restritivas de seguridade em torno da circulação da população por um lado, e a formação de um dispositivo sacrificial da economia neoliberal por outro.
DESENVOLVIMENTO DE TECNOLOGIAS DIGITAIS DE MONITORAMENTO DA POPULAÇÃO
Com relação à segunda categoria, qual seja, o desenvolvimento de tecnologias digitais de monitoramento da população, registrou-se a reportagem vinculada no site Veja, em 02 de março, em que o governo chinês decidiu pela implantação de um aplicativo de controle social. Por meio desse aplicativo, tornou-se possível rastrear os sujeitos, obtendo informações sobre onde e com quem estavam. Caso o sujeito recebesse uma bandeira amarela ou vermelha, deveria se isolar e realizar um check-up médico. A rigor, a implementação de monitoramento eletrônico não é uma novidade entregue pela pandemia. Intelectuais, como Campello (2019), indicam que, desde as últimas décadas do século XX, governos e corporações vêm investindo na viabilização de tecnologias de monitoramento em larga escala. Entretanto, essa ampliação/intensificação era comumente aplicada à resolução de problemas ligados às instâncias do direito penal como: o combate às pequenas transgressões urbanas, à criminalização dos movimentos sociais e às experiências ligadas à corrupção.
A novidade apresentada pela pandemia compreende o desdobramento dos dispositivos de monitoramento em torno da alegação sanitária, responsáveis por identificar casos suspeitos de Covid-19. No dia 18 de março, a BBC Brasil delimitava que Israel aprovou o rastreamento mediante adoção de dispositivos móveis por parte das suas agências de segurança, objetivando identificar casos suspeitos. No dia 21 de março, a revista Época apontava que o governo francês resolveu adotar o uso de drones equipados com alto-falantes. Esses drones alertavam a população sobre as restrições de mobilidade e sobre a aplicação de multas a todos que violassem o confinamento social.
Em 24 de março, o UOL apontava que o governo do Panamá iniciaria a instalação de câmeras térmicas no metrô, capazes de detecção de possíveis infecções no contexto da crise pandêmica. Quanto a essas medidas tecnológicas, Han (2020) opina que:
Ao que parece a big data é mais eficaz para combater o vírus do que os absurdos fechamentos de fronteiras que estão sendo feitos nesses momentos na Europa. Graças à proteção de dados, entretanto, não é possível na Europa um combate digital do vírus comparável ao asiático. (Han, 2020, seção: As vantagens da Ásia, para. 6)
Em 05 de maio, o ND Mais registrava que todos os casos confirmados em redes privadas ou obtidos por meio de testes rápidos em farmácias deveriam ser obrigatoriamente notificados à Vigilância Epidemiológica na cidade catarinense de Blumenau. O portal também destacou a obrigatoriedade da utilização de um aplicativo por todos os casos confirmados, o qual possibilitaria o monitoramento de 02 em 02 horas do estado de saúde e da localização em tempo real do doente. Em consonância, o Portal do Governo de São Paulo noticiava, em 06 de maio, o uso do Sistema de Monitoramento Inteligente, o qual analisaria os dados de telefonia móvel para indicar tendências de deslocamento e apontar a eficácia das medidas de isolamento social.
Em 09 de maio, o G1 apontou que o governo vietnamita iniciava o rastreamento intensivo do contato dos doentes pela Covid-19. A partir de tal rastreamento, foi desenvolvido um histórico detalhado da população por meio da divulgação nas redes sociais e na imprensa local. Esse mesmo governo também inaugurou o desenvolvimento de um aplicativo no qual os próprios cidadãos poderiam alertar as autoridades sobre possíveis infecções próximas às suas residências. Ainda em 09 de maio, o G1 anunciava que o governo do estado da Bahia desenvolveu um aplicativo que possibilitava o registro de informações de sujeitos com suspeita da doença, viabilizando o atendimento remoto, além do monitoramento e acompanhamento dos casos.
Os aspectos que envolveram o desenvolvimento da vigilância digital, como estratégia de combate à pandemia, ressaltam o contexto cultural vivenciado nos últimos anos, por meio do desenvolvimento dos dispositivos de governança por algoritmos. Tais mecanismos apresentam uma estreita relação de proximidade com os dispositivos de soberania e, cabe destacar que, esse novo modelo estratégico se configura como um problema ético e político neste contexto da pandemia.
Segundo Agamben (2020c), há uma possibilidade de reflexão no entorno desses tensionamentos éticos e políticos provenientes da Covid-19, sobretudo no desenrolar de uma potencialização da vida nua, isto é, uma vida desprovida de direitos, sendo constantemente vigiada pelos cálculos refletidos da governamentalidade algorítmica. É em torno dessa problemática e, por meio dessas regulações, que a liberdade é assujeitada sob a pretensão da garantia da ordem e da seguridade. O perigo do adoecimento põe em relevo necessidades a serem revistas nas relações de trabalho, de amizade, religiosas e políticas, que serão configuradas pela exceção. Corroborando com essa tese, Agamben (2020d) destaca que a racionalidade biopolítica vem sacrificando a liberdade em nome de uma governança das condutas, em que impera o estado permanente de medo e de insegurança.
O fundamento dessas medidas apresenta, para Agamben (2020b), a radicalização do estado de exceção, em virtude da pandemia, responsável por operacionalizar uma vida em que a liberdade jurídica é substituída pela vigilância biológica, despotencializando as questões políticas, em nome do sacrifício das liberdades individuais. Constatação semelhante possuem Diniz e Carino (2020) no que se refere aos elementos de vigilância tecnológica da pandemia se configurarem como um momento oportuno para a biopolítica.
MEDIDAS JURÍDICAS DE CONTROLE DA PANDEMIA
Em relação aos aspectos jurídicos, no dia 10 de março, a Agência Brasil noticiava que, em uma medida sem precedentes, todos os habitantes da Itália teriam de ficar em casa e só poderiam sair por motivos comprovados de saúde ou trabalho. O UOL divulgava, em 25 de março que, por decreto do governo alemão, todas as atividades produtivas não essenciais no país seriam suspensas. Além de tal decreto, passariam a ser proibidas viagens para outros municípios de forma que se aplicariam multas para quem descumprisse as regras.
No mesmo dia, A Gazeta apontava medidas impostas pelos países da África do Sul e da Nigéria, as quais variavam desde a imposição do confinamento por 21 dias e o fechamento das fronteiras terrestres, até a proibição de voos internacionais e de aglomeração em locais públicos. De acordo com Ode, Shitta, Peter, Amupitan e Yilleng (2021), as primeiras medidas experienciadas nesses países revelaram uma corrida contra o tempo no sentido de se mitigar o contágio de pessoas nos sistemas de saúde dos países africanos. Nesse mesmo contexto, o Portal R7 divulgava, no dia 28 de março, o endurecimento das medidas de contenção por parte do governo canadense, a partir do fornecimento de novas ferramentas de triagem para companhias aéreas e ferroviárias, e da proibição de embarque em voos domésticos ou trens intermunicipais a todos que possuíam sintomas de Covid-19.
A revista Veja divulgou, em 31 de março, uma série de medidas adotadas pelo governo australiano. Dentre eles, o fechamento de estabelecimentos comerciais, praças de alimentação, instituições culturais e parques, e a apresentação de um pacote de ajuda no valor de 180 bilhões de dólares australianos, de modo a auxiliar a economia e as empresas afetadas. Além disso, foi desenvolvida uma política de multas a quem violasse as regras de quarentena obrigatória, destinadas aos que voltavam do exterior. A Austrália também fechou um acordo com a rede de hospitais particulares para contratar 100.000 novos profissionais de saúde, obter mais 34.000 leitos de hospital e 2.200 novos ventiladores mecânicos para as Unidades de Terapia Intensiva, bem como o investimento em testes diagnósticos.
O jornal O Globo divulgou, no dia 03 de abril, a Invocação da Lei de Produção de Defesa para forçar a indústria 3M a aumentar o ritmo de fabricação de máscaras, por parte dos Estados Unidos. O governo estadunidense também exigiu a suspensão das exportações de máscaras da empresa, destinadas principalmente à América Latina e ao Canadá.
Ainda em 03 de abril, o site UOL apontava a homologação do decreto de obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção para todo cidadão marroquino que saísse de casa durante o período de confinamento. Em caso de descumprimento dessa medida, os sujeitos poderiam ser penalizados com um a três meses de prisão, ou multa no valor de 300 a 1300 dirhams. O governo também apontava que seriam condenados os que incitassem a não utilização das máscaras, seja em espaços públicos ou nas redes sociais. O mesmo portal registrou, no dia 22 de abril, que os Estados Unidos promoveram a assinatura de um decreto proibindo a imigração permanente para o país por pelo menos 2 meses, em face do aumento do desemprego causado pela Covid-19.
No dia 03 de maio, o portal R7 afirmava que o governador do Maranhão decretara o lockdown em quatro cidades, por conta da pandemia do novo coronavírus. A todos que descumprissem as recomendações propostas no decreto, seriam aplicadas advertências, multas e interdição parcial ou total do estabelecimento.
Em 04 de maio, o UOL reportou que o governo argentino adotava novas medidas restritivas com base na aplicação do artigo 205 do Código Penal, vinculando a prisão de seis meses até dois anos aos que violassem a quarentena impositiva. O G1 noticiou que o governador João Doria havia informado que, a partir de 07 de maio, seria obrigatório o uso de máscaras por todos sujeitos que andassem pelas ruas do estado de São Paulo.
Em 05 de maio, o mesmo portal divulgou que o governador do Ceará, prorrogou por mais 15 dias o decreto de isolamento social no estado. Com o novo decreto, Fortaleza passou a ter medidas mais rígidas de quarentena, como a restrição de mobilidade de sujeitos e de veículos que não estivessem cumprindo atividades essenciais. Da mesma forma, era noticiado o início do lockdown no Maranhão e, em 07 de maio, o Pará também deu início a processo semelhante.
De acordo com Diniz e Carino (2020), essas estratégias acabaram por promover uma regulação da governamentalidade pandêmica da Covid-19, responsáveis por estabelecer a relação entre a proteção coletiva e o controle jurídico de corpos, territórios e subjetividades. A partir desses movimentos ondulatórios, percebe-se a formação de uma prática refletida responsável por assujeitar os sujeitos. Consoante a isto, Agamben (2020b, seção: Eis o artigo, para. 5) ressalta: “Assim, em um perverso círculo vicioso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos próprios governos que agora intervêm para satisfazê-lo”. Dessa forma, promove-se uma consciência de pânico, sinalizada pelas experiências desenvolvidas pelos governos.
A esse respeito, Agamben (2020d) aponta que as medidas de judicialização no combate à pandemia converterão as formas de exceção em modos de governamentalização permanentes. Nessa mesma direção, Souza (2021) aponta que os traços fundamentais da governamentalidade colocam a vida como dispositivo rarefeito da biopolítica responsável por operar um regime de verdade das formas e das discursividades jurídicas.
MEDIDAS NEGACIONISTAS E ESPETACULARIZAÇÃO EM RELAÇÃO AO COMBATE DA COVID-19
Quanto às medidas negacionistas e espetacularização, destaca-se a publicação em 31 de março, no site da Folha de São Paulo, a qual descrevia medidas adotadas pelos governos da Colômbia, de Belarus e do Turcomenistão. Essas atitudes variavam desde a preparação de um documento por parte do governo colombiano, com orientações sobre formas seguras de relações sexuais durante o isolamento, até o envenenamento do vírus por meio do consumo de 40 a 50 mililitros de vodca por dia, em Belarus. Também foi noticiado o banimento da palavra coronavírus no Turcomenistão, tanto em publicações oficiais, quanto em conversas informais entre a população.
Em 31 de março, o G1 publicava que, a partir desta data, o governo do Panamá promoveria a criação de rodízios entre homens e mulheres, visando à diminuição da circulação da população. Neste sentido, foi delimitado que as mulheres poderiam sair às ruas nas segundas, quartas e sextas; enquanto os homens teriam a permissão de sair às ruas nas terças, quintas e sábados. Nos domingos, todos deveriam permanecer nas suas casas.
O site Veja, em 02 de abril, reportou que o presidente das Filipinas autorizou as forças armadas e as autoridades policiais a matarem as pessoas que violassem a quarentena imposta pelo governo, por conta da pandemia de Covid-19. Em 07 de maio, o governo do município de São Paulo anunciou o rodízio de carros, ampliando a restrição da circulação de sujeitos.
Neste contexto, segundo aponta Bartolomé Ruiz (2020), a evolução histórica das epidemias tem se configurado como a oportunidade ideal para a criação de dispositivos de segurança e de controle social. Em Segurança, Território, População,Foucault (2008) sinaliza os aspectos da relação entre os dispositivos de seguridade, a partir da formação do que ele nomeia como estado de polícia. Esse estado de polícia deve ser entendido como uma complexa maquinaria responsável por intensificar os elementos ligados ao esquadrinhamento das populações. Em linhas gerais, o procedimento dessa categoria pode ser compreendido a partir da seguinte estrutura:
Trata-se nesses regulamentos relativos à peste de quadrilhar literalmente as regiões, as cidades no interior das quais a peste, com uma regulamentação indicando às pessoas quando podem sair, como, a que horas, o que devem fazer em casa, que tipo de alimentação devem ter, proibindo-lhes este ou aquele tipo de contato, obrigando-as a se apresentar a inspetores, a abrir a casa aos inspetores. (Foucault, 2008, pp.13-14)
Isto é, uma prática reflexiva de governo que opera a seguridade como fundamento para a defesa da vida, a partir das formas de controle, cujos efeitos fazem da saúde pública um pretexto para a potencialização da capilaridade das práticas de governamentalidade, tal qual destaca Agamben (2020b). Em linhas gerais, as ações pirotécnicas promovidas nessas categorias em torno da Covid-19 refletem a condição ética da biopolítica. Ou seja, sinalizam que os governos atuam na tomada de decisões em momentos de emergências e desastres por meio dos seus dispositivos, abrindo o caminho para ações muito mais midiáticas, do que, propriamente, efetivas. Desse modo, perfila-se nas entrelinhas dessas estratégias, uma tendência cada vez mais difundida em práticas de governança, que controlam a cidadania a partir das suas configurações mais radicais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crítica em relação aos dispositivos de controle difundidos pela biopolítica acentua-se com a Covid-19 (Martins, 2020). Sem sombra de dúvida, os impactos dessa pandemia extrapolam os contornos da saúde pública e da economia para adentrarem nos regimes de novos modos de subjetivação, fazendo da pandemia uma questão relacionada a uma história do nosso tempo presente.
O coronavírus escancara ao menos três outros modelos paradigmáticos de governamentalidade no século XXI. Em primeiro lugar, somos dependentes da relação com uma ética da alteridade. Descortina-se, com tal processo, a falácia neoliberal do homo economicus, que maximiza os seus ganhos com o menor esforço possível (Foucault, 2012), ou seja, ela desvela a governamentalidade neoliberal.
Em segundo lugar, essa crise sanitária revela o possível esgotamento dos recursos naturais do nosso planeta, obrigando-nos a assumir uma agenda social e coletiva de novas formas de sustentabilidade no contexto do desenvolvimento econômico e cultural. Por fim, há que se mencionar os elementos de um desdobramento da crise econômica, sentida por várias economias desde 2008 e que, acentuar-se-á no tempo pós-pandemia, pois como aponta Bartolomé Ruiz (2020, seção: Implicações ético-políticas, para. 1) “a pandemia nos mostrou o quanto somos próximos do outro, e quanto o outro está próximo de mim. As nossas divisões identitárias, raciais, ideológicas ou nacionais mostram-se porosas perante a necessidade de interdependência global na pandemia”.
Ocorre que os elementos de governança sinalizados por essas reportagens abrem a possibilidade de pensarmos na forma com que os regimes de exceção vêm se aproveitando desse cenário. Nesse sentido, volta-se ao paradigma imunológico, destacando que se vivia há bastante tempo num cenário de positividade, dominado pelo capitalismo e pelo excesso de produção e comunicação e, portanto, sem inimigos.
Por conta desses aspectos, as diferentes formas de reação a este suposto inimigo invisível enxergam a emergência do vírus como um novo sentido para o combate ao terror. O terror que prefigurava as minorias étnicas é abruptamente substituído pela iminência de um inimigo biológico. Neste sentido, cabe destacar que o paradigma da Covid-19 sinaliza os traços de apoio no desenvolvimento de ações de cerceamento da liberdade a partir de uma guerra biológica. Esta afirmação é corroborada por Arditi (2020), que dá ênfase ao questionamento de que há de ser feito a tal prerrogativa, no sentido de se combater as novas formas de racismo e de xenofobia provenientes do cenário biopolítico após a emergência da Covid-19.
Segundo Kind e Cordeiro (2020), a pandemia favorece o desdobramento das experiências ligadas a um modo de gerenciamento sobre a vida a partir da morte dos socialmente indesejáveis. Momento oportuno de regulação sobre a população, mas também indicação de que a morte será o tributo a ser pago pelos mais pobres em nome da continuidade econômica da racionalidade neoliberal. Desse modo, não estamos diante de uma revolução viral, não haverá uma superação do capitalismo financeirizado e dos seus modos de produção. Contudo, isso não significa que não possamos pensar os contornos de uma revolução humana, mais sensível e solidária de sustentação e de defesa da vida em todos os seus aspectos.