INTRODUÇÃO
Para situar possíveis diálogos entre o campo psi1 e os Estudos da Deficiência (Disability Studies) é fundamental partir da consideração da historicidade da própria definição de deficiência, que depende do contexto em que foi engendrada. A ênfase no diagnóstico e a consideração do sujeito com deficiência como dependente, na perspectiva da “tragédia pessoal”, marca o modelo médico da deficiência. O modelo social, por sua vez, sustenta que a deficiência não pode ser reduzida ao nível biológico, articulando relações entre deficiência e cultura situadas como questão social e política (Diniz, 2003; Gomes, Lopes, Gesser, & Toneli, 2019; Ortega, 2009).
Se tais discussões não são novas no campo dos Estudos da Deficiência, o campo psi contemporâneo não se mostra ainda circunscrito a uma perspectiva de normalização, ancorada no modelo médico? O caminho para formular reflexões nesse sentido passa por interrogar a própria concepção de deficiência, problematização que já vem dos Estudos da Deficiência e que ganha cada vez mais destaque nos dias atuais, sobretudo com a teoria crip. No campo psi, essa discussão já era colocada em cena há décadas por Lígia Assumpção Amaral, mulher com deficiência que foi professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Ao evidenciar o que denominava “diferenças significativas”, Lígia Amaral (1998) identificava de maneira bastante precisa a produção da deficiência a partir da operação de padrões tomados como “normais”. Na tentativa de delinear o campo da Psicologia Política, Camino (2001, p. 5) identifica duas perspectivas: uma que mobiliza conceitos psicológicos para explicar comportamentos políticos e outra que “propõe-se a iniciar a análise pelo fenômeno político e não pelos aspectos psicológicos”, considerando concepções do político a partir de relações de poder. Ao revisitar as contribuições de Lígia Amaral, destacamos sua inscrição no sentido dessa segunda abordagem, ou seja, de recusar compreender deficiências a partir de uma orientação individualizante e psicologizante.
Essa perspectiva revela-se fundamental para interrogar o funcionamento hegemônico do campo psi, daí sua atualidade. Por isso, este artigo busca revisitar suas contribuições, colocando sua obra em diálogo com as proposições dos Estudos da Deficiência e da teoria crip. Talvez as contribuições da pesquisadora não encontrem o reconhecimento que mereceriam nas discussões atuais, tanto no âmbito dos Estudos da Deficiência, quanto no campo psi, o que nos leva a interrogações sobre processos de invisibilização. À semelhança dos esforços envidados nas últimas décadas de retomada da obra de Virgínia Bicudo (Braga, 2016), propomo-nos a revisitar a obra de Lígia Assumpção Amaral, com o intuito, mais do que apenas de retomada histórica, de explicitação da atualidade do seu pensamento para confrontarmos saberes e fazeres do mundo psi.
Ana Paula Musatti Braga (2016, p. 2), considerando a possibilidade de que muitos nunca tenham ouvido falar sobre Virgínia Bicudo, questiona: “como nunca soubemos disso? Como não nos falaram antes? Como, na origem da psicanálise, alguém tão atento ao preconceito de cor esteve tão atuante e presente e, ainda hoje, a psicanálise se faz tão daltonica em suas pesquisas?”. Inspiradas por essas inquirições, nos perguntamos: Por que tão poucos profissionais psi conhecem Lígia Assumpção Amaral? Por que as discussões sobre deficiência no campo psi permanecem, sobremaneira, no lugar de uma aplicação de saberes? Pensar processos de invisibilização nos leva à interrogação sobre a (re)produção do capacitismo no campo psi.
Em consonância com a proposta deste texto, é essencial que situemos o lugar de onde falamos. Como mulheres e pesquisadoras sem deficiência, por que nos posicionamos sobre as questões aqui apresentadas? Nossa resposta é de que o fazemos por nos sentirmos interpeladas em nossas práticas como profissionais psi. Não propomos, como pessoas sem deficiência, falar sobre deficiências, mas, ao contrário, recolher possíveis incidências dos discursos sobre deficiências para interrogar as práticas psi.
Ao lançar, em sites de buscas, palavras-chave relacionadas ao nosso campo (psicologia, psicanálise, analista etc.) e deficiências, encontramos produções que referem contribuições deste campo psi para pensar as deficiências. Trata-se, então, de tentativas de “levar saberes” deste campo para o estudo das deficiências. Neste artigo, buscamos o movimento contrário: como o campo das diferenças humanas, em particular a perspectiva das deficiências, possibilita pensar o campo psi? Como essas questões nos deslocam, como profissionais psi? Por isso, nossa perspectiva neste artigo será de nos interrogarmos a partir desse lugar, em diálogo com a obra e o pensamento de Lígia Assumpção Amaral.
SOBRE LÍGIA ASSUMPÇÃO AMARAL E CONCEPÇÕES EM TORNO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Lígia Assumpção Amaral nasceu em São Paulo, em 2 de fevereiro de 1941. Acometida por pólio aos 15 meses de idade, quando mal começara a andar, teve sua infância e adolescência marcada por cirurgias – ora bem-sucedidas, ora nem tanto – e longos períodos de convalescença. É o que Lígia nos conta em sua obra Resgatando o passado: deficiência como figura e vida como fundo (2004). Ao abordar a própria história em sua dissertação de mestrado, transformada em livro, produziu uma análise crítica sobre a condição de deficiência (Amaral, 2004). Ao invés de apresentar um trabalho acadêmico tradicional, ela opta por fazer uma obra literária, de cunho autobiográfico. Sua justificativa e intenção é deixar falar a pessoa com deficiência, ao invés de apenas discorrer sobre elas. Lígia já antecipava aí, de alguma forma, o que veio a se tornar um importante lema dos movimentos das pessoas com deficiência: “Nada sobre nós, sem nós”. Deslocava, portanto, o lugar de suposta neutralidade e imparcialidade típicas da academia, para dar vida e materialidade a seu objeto de estudo – no caso, ela mesma.
Ir às brechas e às fissuras, trazer à tona o que chamava de “diferenças significativas” (Amaral, 1998), é uma das marcas da obra de Lígia. Fez isso na vida pessoal e o fez em sua trajetória acadêmica. Após a graduação, prosseguiu no mestrado na PUC-SP e no doutorado em Psicologia Social na USP, com tese intitulada Espelho convexo: o corpo desviante no imaginário coletivo pela voz da literatura infantil (1992). Na apresentação do livro Resgatando o passado: deficiência como figura e vida como fundo, Maria Júlia Kovács (2004) apresenta a trajetória de Lígia Assumpção Amaral. Relata que, em sua banca de doutorado, quando perguntada a respeito do porquê de o espelho escolhido ter sido o convexo e não o concavo, responde: “o espelho convexo deforma e ressalta um aspecto, exagerando determinadas características em detrimento de outras, que é o que acontece com pessoas com deficiências ou com certas doenças” (Amaral, 2004, p. 11).
Sua história de docência na USP começou em 1989, ao ser contratada para trabalhar no Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, e nossa nova colega estimulou o desenvolvimento da área de estudos sobre as deficiências enfocando a questão da atitude, do preconceito e do estereótipo, no trato com as diferenças. E fez muita diferença, que digam os alunos de graduação e pós-graduação! (Kovács, 2004, p. 9)
É com posicionamento crítico e saídas incomuns que Lígia se debruça sobre temas recorrentes no âmbito das discussões – acadêmicas e de senso comum – sobre as pessoas com deficiência. Por exemplo, Lígia estabelece três posições comumente atribuídas às pessoas com deficiência: herói, vilão ou vítima (Amaral, 1992). Ao primeiro corresponderia a saga pessoal pela superação, festejada como esforço pessoal diante dos obstáculos. Contrapondo-se à necessidade individual de superação de obstáculos diários, por parte da pessoa com deficiência, Lígia enfatiza mitos que dão origem a preconceitos, estigmas e estereótipos. E essa seria uma tarefa da sociedade como um todo e não individual e localizada. Para representar esse fenomeno, Lígia elege a figura dos crocodilos nos fossos de castelos medievais.
Ainda brincando com a ideia, tenho visualizado uma ponte movediça que possibilita o trânsito entre a cidade e o castelo, permitindo, ao mesmo tempo, escapar dos ferozes animais e conhecê-los a uma distância segura. Essa ponte movediça é toda oportunidade de encontro (“ao vivo e em cores” ou por intermédio de um livro!) de pessoas que vivem a questão ou interessam-se pelo tema; é todo progresso no mundo teórico-científico; é toda vitória no contexto da prática; é todo momento de impasse que leva a reflexões. (Amaral, 1998, p. 16)
Também ao falar a respeito de mecanismos de defesa, o foco não recai sobre mecanismos de compensação da deficiência engendrados pelas pessoas com deficiência sobre si mesmas, e, sim, sobre aqueles que, não possuidores de diferenças significativas, se defendem do efeito de desconforto gerado. De acordo com a autora, deparar-se com a diferença significativa é mobilizador, podendo desorganizar e trazer o sentimento de ameaça (Amaral, 1992): “se reconhecer a diferença significativa do outro (ou nossa rejeição a ela) nos causa profundo mal-estar, tensão e ansiedade, uma das possibilidades é o acionamento do mecanismo de defesa da negação” (Amaral, 1998, p. 20). Esse pode se materializar como compensação (não da pessoa com deficiência, mas daquele que com ela interage), simulação ou atenuação.
Outro posicionamento contundente de Lígia dizia respeito à materialidade da deficiência: “Em relação à ‘deficiência’ e à ‘incapacidade’ (que, como já dito, entendo como ‘deficiência primária’), não desejo alongar-me, até porque sou ardorosa defensora da ideia de que as deficiências existem (e não são socialmente construídas), assim como existem incapacidades delas decorrentes” (Amaral, 1998, p. 25). Lígia cita então o conceito de desvantagem, que diria respeito à condição social de prejuízo, conformando a deficiência secundária.
O posicionamento de Lígia vai ao encontro do modelo social da deficiência, que busca deslocar o lugar conferido a esta pelo modelo chamado médico ou biomédico. Enquanto este último localiza a deficiência no indivíduo e em seu corpo, com foco no esforço pessoal, médico e educacional para corrigir as falhas e adaptar a pessoa ao contexto dito normal, aquele chama a atenção para a interação sujeito-ambiente (Gesser, Nuernberg, & Toneli, 2012). É importante ressaltar, conforme sinaliza Amaral (1998), que o modelo social da deficiência não implica desconsideração da condição da deficiência – o que significaria recair no mecanismo de defesa denunciado pela autora e pela própria teoria crip (Magnabosco & Souza, 2019).
Com o advento do paradigma preconizado pelo modelo social nos Estudos da Deficiência, passa-se, então, a compreender que as diferenças são interpretadas na cultura e a exclusão não é inevitável (Bisol, Pegorini, & Valentini, 2017; Gesser, Nuernberg, & Toneli, 2012). Enfatiza-se, assim, as necessidades de que a sociedade garanta acessibilidade aos sujeitos com deficiência, não só arquitetonica, mas também atitudinal e comunicacional.
Os avanços introduzidos pelo modelo social na compreensão da deficiência foram referendados no âmbito das Nações Unidas, quando a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009), entende que pessoas com deficiência “são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. Desloca-se, então, o foco da pessoa para o ambiente e suas barreiras.
Alguns teóricos, ao abordar recentes mudanças de paradigmas no âmbito dos Estudos da Deficiência, falam em um modelo pós-social (Bisol, Pegorini, & Valentini, 2017), caracterizado pela incorporação de críticas vindas de estudos contemporâneos. Por outro lado, não há um consenso sobre uma nova nomenclatura, uma vez que não se trata de desconsiderar o modelo social, mas expandi-lo. Destacamos aqui a crítica dos Estudos Feministas da Deficiência (Diniz, 2003; Gomes, Lopes, Gesser, & Toneli, 2019; Magnabosco & Souza, 2019), que chamam a atenção para a necessidade de compreensão da deficiência no bojo de um enfoque de gênero – e, de modo mais amplo, com intersecções também de raça, classe social, orientação sexual, dentre outros atravessamentos. A ênfase na independência do sujeito e o rechaço à necessidade de cuidados esconde uma noção liberal estreitamente calcada na norma cujo centro é o homem branco, sem deficiências, produtivo e independente. Esse seria o tipo ideal do sistema capitalista, conforme alerta feito por Amaral (1998) que discutiremos a seguir.
DEFICIÊNCIA COMO ESSÊNCIA OU MARCADOR SOCIAL DE DIFERENÇA?
Na contemporaneidade, tanto no âmbito acadêmico quanto nos movimentos sociais, considera-se, de maneira geral, que não há nada de natural em categorias como “as mulheres” ou “os negros”. E no que se refere às pessoas com deficiência? Teríamos aqui algo de uma essência a priori, uma suposta “realidade” biológica, ou trata-se igualmente de um marcador social de diferença? No campo dos estudos de gênero, desde as formulações de Judith Butler2 em “Problemas de gênero”, nos anos 1990, a crítica do essencialismo das identidades coletivas se coloca no âmbito da teoria queer3.
Fundamentada em Foucault, Judith Butler (1990/2013) adota a perspectiva de que o discurso não representa ou expressa algo previamente dado ou existente, mas, ao contrário, participa de sua articulação, produz aquilo que nomeia. Esse efeito produtivo é mobilizado por Butler (2018, p.199) para definir ato performático como “aquele que cria ou interpreta aquilo que nomeia”. No caso do gênero, não haveria uma essência (o “sexo”) sobre a qual este se apoiaria; ao contrário, a identidade seria efeito de práticas discursivas, ou seja, Butler (2013) analisa a repetição por meio da qual o sujeito seria compelido a repetir as normas pelas quais é produzido.
No que se refere à categoria “mulheres”, Butler (2013) parte do questionamento se haveria algo de “especificamente feminino” que constituiria uma suposta “identidade” para tal categoria. Recorrendo às intersecções entre pertencimentos de raça, classe, entre outros, afirma que não e coloca a seguinte questão: “existiriam traços comuns entre as ‘mulheres’, preexistentes à sua opressão, ou estariam as ‘mulheres’ ligadas em virtude somente de sua opressão?” (Butler, 2013, p. 21). Não haveria, então, nada de “especificamente feminino” que constituiria uma identidade, o que se contrapõe à noção de constituição da “identidade pessoal” a partir de características internas (Butler, 2013).
Produzida no diálogo entre a teoria queer e os Estudos da deficiência, a teoria crip busca articular múltiplas diferenças a partir da problematização da “capacidade corporal compulsória” como um sistema que produz a deficiência, e que está entrelaçado com o sistema de heterossexualidade compulsória (McRuer, 2006). A obrigatoriedade se produz por meio da introdução da normalidade no sistema, de modo que a capacidade corporal e a heterossexualidade compulsórias revelam-se como formações disciplinares que, ao naturalizarem aquilo que produzem, ocultam suas origens. No entanto, ainda que essa normalização se coloque como obrigatória, McRuer destaca “a inevitábel impossibilidade, mesmo se produzida como compulsória, de uma identidade corponormativa” (McRuer, 2006, p. 10, tradução nossa).
Por isso, McRuer (2006) considera que a formulação da performatividade de gênero pode se aplicar aos Estudos da Deficiência, possibilitando problematizar a heteronormatividade capacitista. Tecendo considerações sobre os efeitos da teoria queer nos Estudos da Deficiência e a emergência da teoria crip, Mello (2016) destaca como ponto de aproximação entre esses dois campos a problematização de categorias binárias (heterossexualidade/homossexualidade e capacidade/deficiência) e a afirmação de sua dimensão de produção histórica e social. Fazendo um paralelo com o termo queer, Mello (2019, p. 133) sublinha que “as terminologias crip (em inglês) e aleijada (em português) têm uma conotação propositalmente agressiva, pejorativa e subversiva”.
Amato, Carvalho e Gesser (2022) sustentam que o diálogo entre as teorias queer e crip vai no mesmo sentido das proposições de Débora Diniz (2003). Considerando a problematização das concepções de lesão e deficiência, no modelo social da deficiência, e de sexo e gênero, nos estudos feministas, ambas as perspectivas deslocam do corpo as barreiras que experienciam aqueles que se distanciam dos padrões estabelecidos como normativos. Nas palavras das autoras:
a organização das sociedades capitalistas é que passam a figurar como deficientes, genderificadas, corponormativas, cisheterocentradas e racializadas, aí sim, proporcionando experiências limitantes, opressivas e violentas para mulheres lésbicas, transexuais, deficientes, periféricas, gordas e/ou negras. (Amato, Carvalho, & Gesser, 2022, p. 11)
No entanto, apesar das potencialidades que se produzem na articulação entre esses campos, Mello (2019) situa a deficiência como tabu na teoria queer. Recorrendo a Lennard Davis e Jennifer Scuro, destaca o “silêncio estranho e inexplicável em relação à ausência da deficiência e do capacitismo nos estudos que tratam das questões do corpo e da construção social da sexualidade e do gênero” (Mello, 2019, p. 131). Davis (2002) alerta que, também nos Estudos da Deficiência, quando se pensa na normalidade, muitas vezes comete-se o erro de restringir o pensamento à discussão sobre doenças, lesões e impedimentos, perdendo a visão mais abrangente segundo a qual a deficiência questiona um discurso normalizador juntamente com outros comportamentos considerados desviantes. Já Scuro (2018) expõe os desafios do pensamento interseccional que, se por um lado não deve igualar as opressões, frequentemente deixa de lado a dimensão da deficiência.
O silêncio dos estudos queer com relação à deficiência pode contribuir para (re)produzir discursos que não tomam a deficiência como categoria social de análise da diferença, resultando em despolitização da luta das pessoas com deficiência. Por isso, Mello propõe que uma:
guinada na política emancipatória queer implica politizar a deficiência, ao aleijar o queer. Provocar um aleijamento no queer tem o sentido de descolonizar, mutilar, deformar ou contundir o pensamento queer, provocando-lhe fissuras. A teoria aleijada foi pensada principalmente para questionar a exclusão do capacitismo como matriz de discriminação interseccional nas teorias feministas e queer. (Mello, 2019, p. 133)
Ou seja, a matriz de dominação que integra sexismo, racismo, heterossexismo e classismo deve incluir também a opressão vivenciada por pessoas com deficiência, em sua interdependência com demais sistemas de opressão. Trata-se de problematizar perspectivas essencialistas da deficiência e de compreendê-la como marcador social de diferença (Mello, 2019). Como interroga Ávila (2014, p. 132): “se lésbica, bissexual, terceiro mundo são posições políticas e não identidades meramente categóricas, por que não entender a deficiência também assim?”.
Trata-se, então, de problematizar normas majoritárias a partir de identidades minoritárias e de situar a abjeção reservada às pessoas com deficiência como reveladora da corponormatividade inerente a uma estrutura social onde não há lugar para a diversidade corporal (Magnabosco & Souza, 2019; McRuer, 2006). De acordo com Mello (2019, p. 133), o compromisso aleijado está no desenvolvimento de:
uma analítica da normalização dos corpos, a partir da crítica aos sistemas de opressão marcados pelo patriarcado, pela heterossexualidade compulsória (Rich, 2010) e pela capacidade compulsória (Mcruer, 2006) que não questiona a naturalização e hierarquização das capacidades corporais humanas nos discursos, saberes e práticas sociais. (Mello, 2018)
É interessante notar como a problematização da normatividade já aparecia em trabalhos de Lígia Amaral, ainda que sem recorrer explicitamente às categorias de análise aqui apresentadas. Pontuando a escassez, no âmbito da Psicologia Social, de estudos no campo da deficiência em perspectivas que subvertam o modelo biomédico, Gesser, Nuernberg e Toneli (2012, p. 562) situam a autora como exceção, juntamente com os estudos de Satow:
No Brasil, os estudos mais conhecidos neste âmbito foram os de Satow (1997) e de Amaral (2002). Esses contribuíram para mostrar a relação entre a deficiência e a sociedade, abordando temas como preconceito, construção da identidade na deficiência e falta de acessibilidade para as pessoas com deficiência.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA E O PROBLEMA DA NORMA
Quando abordamos uma multiplicidade de diferenças (físicas, socioculturais, de gênero e sexualidade, étnico-raciais, cognitivas, entre outras), um ponto em comum que possibilita articular o debate é o problema da norma, como afirma Amaral (1998, p. 12): “Para falarmos de diferença, precisamos falar de semelhança, de homogeneidade, de normalidade, de correspondência a um dado modelo. Mas quais conceitos utilizamos para ‘decretar’ que um objeto, um fenomeno, alguém ou algum grupo é diferente?”.
Fundamentada em Foucault, França (1998, p. 210) aborda “a produção da diferença como desvio e efeito de uma tecnologia disciplinar, ou seja, produto do trabalho normativo”. Por meio de processos que estabelecem lugares e indicam valores, estabelece-se aquilo que é supostamente “normal”, ao mesmo tempo em que se produz a diferença com relação a esse suposto padrão: “Na prática normativa, nada tem definição a priori, só se adquire sentido no interior de um processo de equiparação, onde um indivíduo é comparável ao outro” (França, 1998, p. 208).
McRuer (2006, p. 9, tradução nossa) fala de um sistema de corponormatividade compulsória que “repetidamente demanda que as pessoas com deficiência incorporem, para os outros, uma resposta afirmativa à questão não dita: ‘Sim, mas no final, você não preferiria ser mais como eu?’”. Não há, portanto, verdadeiramente escolha, por isso o autor sustenta que “ é com esta repetição que podemos começar a localizar tanto as formas pelas quais a corponormatividade e a heterossexualidade compulsórias estão entrelaçadas quanto as formas pelas quais elas podem ser contestadas” (p. 9, tradução nossa). Nesse sentido, podemos situar a deficiência como produzida nas relações sociais, a partir da operação da norma:
E os mesmos padrões normativos que fazem certos corpos parecerem normais também geram a experiência internalizada de anormalidade na deficiência – os padrões da falta, da incapacidade e da inadequação que muitas vezes são considerados corporificados no processo de se tornar uma pessoa com deficiência. (Comitê ABA, 2020, p. 7)
Nessa perspectiva, evidencia-se a historicidade da norma e da concepção de deficiência, ou seja, as tecnologias de poder produzem homogeneização e estabelecimento da norma, inscrita nas práticas sociais. Amaral (1998) aponta que a definição de “desvio” ou “anormalidade” se baseia em critérios como o estatístico (média, moda etc.), estrutural/funcional (integridade da forma, funcionalidade etc.) e o “tipo ideal”. A problematização deste terceiro critério, o “tipo ideal”, é considerada fundamental por Amaral (1998, p. 14): “é o reconhecimento da existência e perpetuação desse terceiro parâmetro . . . que deve estar presente, com ênfase, em nossas discussões sobre diferença significativa, divergência, desvio, anormalidade e deficiência”.
No que se refere a tal parâmetro, Amaral (1998, p. 14) indica que, em nosso contexto, esse “tipo ideal” corresponde a “jovem, do gênero masculino, branco, cristão, heterossexual, física e mentalmente perfeito, belo e produtivo”. Fica evidente a aproximação entre as contribuições de Amaral (1998) e as formulações das teorias queer e crip no sentido de “aposta na construção de uma vertente epistemológica na qual estejam incluídas reivindicações e construção linhas de fuga do modelo cisheteronormativo, branco e sem deficiência” (Amato, Carvalho, & Gesser, 2022, p. 12).
Podemos traçar um paralelo entre essa pontuação e as discussões epistemológicas no campo dos “saberes situados”4, no que se refere à consideração de que o “conhecimento é sempre socialmente situado” (Harding, 2004, p. 7, tradução nossa), mesmo quando aparece de maneira supostamente “neutra” ou “universal”. É importante destacar o caráter colonizado dos saberes situados. A Modernidade e a ascensão do pensamento científico – dentre elas, as Ciências Humanas – apenas foi possível a partir de sua contraparte: a colonialidade. Ao se contrapor à alteridade, o homem colonizador europeu afirma-se como parâmetro universal, em relação ao qual todas as diferenças deverão ser medidas (Alves & Delmondez, 2015).
Nessa perspectiva, evidencia-se que mesmo aquilo que é apresentado como supostamente universal também é produzido a partir de um lugar. O que aparece como “não marcado” é, na realidade, articulado a partir de determinados lugares, como afirma Donna Haraway (2009, p. 27): “Apenas aqueles que ocupam as posições de dominadores são auto-idênticos, não marcados, incorpóreos, não mediados, transcendentes, renascidos”. Esse agente idealizado, que supostamente estaria situado em nenhum lugar ou perspectiva em particular, revela, na verdade, um olhar que “significa as posições não marcadas de Homem e Branco” (Haraway, 2009, p. 18). Retomando as contribuições de Amaral (1998) e trazendo a discussão para nosso contexto, diríamos: homem, branco, heterossexual, cisgênero, de classe socioeconomica favorecida, sem deficiência.
No âmbito dos Estudos da Deficiência, aparece a problematização da produção da deficiência a partir da operação da norma. Davis (1995) situa a “cultura capacitista” (ableist culture) por meio da crença de que a norma humana é ouvir e falar, comunicando-se através da fala e da audição . No bojo do modelo social, a deficiência seria algo que se produz na relação com uma sociedade excludente, o que fica evidente no exemplo mobilizado por Ortega (2009, p. 68): “andar de cadeira de rodas é um problema apenas por vivermos em um mundo cheio de escadas”.
CAPACITISMO NO CAMPO PSI
Gesser, Nuernberg e Toneli (2012) destacam contribuições no campo psi, sobretudo na psicologia social crítica e na psicologia política, que problematizam a produção de conhecimentos excludentes, em uma perspectiva de desnaturalização e despatologização da diferença. No entanto, consideram que pouco tem sido produzido neste campo no sentido de efetivamente incorporar a deficiência como categoria de análise.
A discussão apresentada anteriormente sobre a operação da norma na produção da diferença é fundamental para identificar e problematizar práticas capacitistas. Mello (2019) faz referência aos lugares que ocupa como acadêmica-ativista para contextualizar a expressão do “capacitismo” no Brasil: tendo aparecido no âmbito de movimentos sociais – na 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em 2011 – foi utilizada pela primeira vez no Brasil, como categoria analítica, em 20135. Em 2019, a autora ainda considera o capacitismo como “uma nova categoria de discriminação no Brasil, no sentido de que muitas das suas nuances, inclusive teóricas, ainda não são compreendidas pela maioria da população brasileira” (Mello, 2019, p. 126).
Fiona Campbell (2001, p. 44, tradução nossa), em texto clássico, define capacitismo como “uma rede de crenças, processos e práticas que produzem um tipo particular de eu e de corpo (o padrão corporal) que é projetado como o perfeito, típico da espécie e portanto essencial e plenamente humano. Deficiência, então, é vista como um estado diminuído de ser humano”. Em consonância com essa definição, o Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia sublinha que o capacitismo seria uma:
concepção presente no imaginário social que tende a considerar as pessoas com deficiência como menos aptas ou capazes, simplesmente por apresentarem uma diferença corporal, sensorial, intelectual ou psicossocial. O capacitismo é a atitude de considerar as pessoas com deficiência como não iguais e “incapazes” de gerir suas próprias vidas, vendo-as como sem autonomia, dependentes, desamparadas, assexuadas, condenadas a uma vida eterna e economicamente dependente, chegando até mesmo a vê-las como não aceitáveis em suas imagens sociais ou como menos humanas. (Comitê ABA, 2020, p. 6)
Campbell (2008) articula o capacitismo à opressão vivenciada por pessoas com deficiência, assim como o racismo está relacionada à opressão vivenciada pelos negros e o sexismo pelas mulheres. Se, por um lado, deve-se reconhecer as limitações inerentes a essas comparações, uma vez que cada opressão guarda singularidades, podemos, por outro, identificar as relações de poder articuladas à concepção de padrão corporal/funcional perfeito, que compõem a corponormatividade (Scuro, 2018). O capacitismo, como uma forma de discriminação, materializa-se por meio de dispositivos biopolíticos de interdição e controle, sustentando-se em noções sobre o que pessoas com deficiência são ou não capazes de fazer e de ser (Mello, 2016).
Ao abordar a própria experiência como profissional psi, Lígia Assumpção Amaral (2004, p. 121) faz referência à concepção de “aparência normal e saudável” do terapeuta como algo que “aderira-se à [sua] pele”: “Muito me custou livrar-me de minhas fantasias sobre esse pressuposto, deixar de vê-lo como um obstáculo ao meu trabalho”. Relatando ter buscado referências sobre o tema, Amaral (2004, p. 121) afirma: “buscava freneticamente nos livros pistas sobre o assunto. E, de fato, encontrei várias passagens mencionando a ‘boa e perfeita’ aparência do terapeuta como fator essencial”.
Poderíamos, então, interrogar sobre o capacitismo (re)produzido no campo psi? Ao fazer tal questionamento, partimos da consideração de que, se, por um lado, é importante situar a experiência de Amaral (2004) em seu contexto histórico, por outro, será que isso significaria que hoje não mais nos deparamos com atuações pautadas na busca pela adequação a uma norma? Norma essa que nega a diferença de corpos e subjetividades, como no caso das pessoas com deficiência.
É importante, igualmente, situar o relato de Lígia a partir da consideração da predominância do modelo biomédico na abordagem da deficiência, o que também acontece no campo psi. Como destacam Gesser, Nuernberg e Toneli (2012, p. 562), “nesse modelo, a pessoa com deficiência ainda aparece muito mais como objeto de avaliações e intervenções do que como sujeito em sua singularidade e potência de ação”. Interrogar o funcionamento hegemônico do campo psi passa por problematizar a concepção de deficiência no bojo de saberes dominantes, como apontado por Mello (2019, p. 131):
a produção social da deficiência também é ‘naturalizada’ pelos saberes dominantes, cujos significados atribuídos à deficiência estão organizados em um sistema de aparente oposição binária de presença e ausência (capacidade versus deficiência) que, na verdade, se revelam interdependentes. Nesse sentido, a noção de deficiência se materializa e se retroalimenta através de práticas sociais e discursos que a colocam como o oposto da capacidade.
Tal abordagem também produz desdobramentos no campo das políticas públicas, ao considerar como parâmetro um ideal de capacidade e normalidade. Essa compreensão pautada no modelo biomédico não toma a deficiência como uma categoria social assim como outras (gênero, sexualidade, relações étnico-raciais, classe socioeconômica etc.), o que produz despolitização por invisibilizar a dimensão de opressão na experiência da deficiência. Como lembram Gesser, Nuernberg e Toneli (2012, p. 562), “ao invés de buscarem a modificação do contexto social propiciando acessibilidade para a participação social das pessoas com deficiência, centram suas ações predominantemente na reabilitação do corpo para que ele se adapte ao contexto social opressivo”.
Assim, a consideração de certos corpos como necessitados de reparação/reabilitação por serem inferiores e faltantes – quando comparados aos parâmetros dominantes da corponormatividade – denuncia uma concepção capacitista. Relembremos aqui que, na década de 1990, Amaral (1998) já pontuava com precisão que essa (corpo)normatividade é jovem, masculina, branca, heterossexual, “perfeita” do ponto de vista físico e intelectual, articulada a partir de ideais de beleza e “produtividade”.
Tais pontuações interrogam, portanto, o capacitismo do campo psi. Para que possamos nos dar conta dessa dimensão, é fundamental confrontarmos sua encarnação na experiência e nas práticas. Isso só é possível ao percebermos – não apenas em nível intelectual, mas na própria dimensão corpórea – como nosso corpo está embebido em uma lógica capacitista e assim vivencia o cotidiano. Trata-se de tomar consciência dos parâmetros naturalizados, de modo a provocar deslocamentos nas normas que cercam os corpos, permitindo perceber outras formas de ser e agir no mundo. É o encontro não normatizador com as diferenças que promove outras formas de interação, comunicação e percepção (Comitê ABA, 2020).
Ao abordar as subjetivações minoritárias, o psicanalista Thamy Ayouch (2018) interroga determinados discursos que, no âmbito da psicanálise, adotam uma postura pedagógica em relação àqueles que escapam à forma de subjetivação majoritária. Não é raro nos depararmos com psicanalistas que questionam “captações imaginárias” que caracterizariam identidades minoritárias, sem apontar que “essa mesma captura também caracteriza a identidade majoritária implícita a partir da qual eles falam (masculina, heterocentrada, cis-centrada, ocidental, branca), também construída mas que não recebe mesma crítica” (Ayouch, 2018, p. 124, tradução nossa).
A existência de uma identidade – majoritária – implícita na enunciação pretensamente neutra possibilita retomar a discussão sobre saberes situados e interrogar discursos que se propõem universais no campo psi. Apesar das discussões contemporâneas acerca da interseccionalidade, o campo psi, de modo geral, ainda se pauta sobremaneira sobre universais. Os apontamentos sobre singularidades, quando comparecem, parecem querer ainda remeter estas a um conhecimento geral e aplicável de modo indiscriminado. A norma assume matizes teóricos que buscam mascarar concepções discriminatórias profundamente enraizadas na cultura.
Para mencionarmos um exemplo concreto, podemos recorrer, no âmbito da psicanálise, às explicações sobre o autismo, predominantes entre os anos 1940 e 1960, a partir de falhas nas relações objetais precoce, como lembra Ortega (2009). Sobretudo no que se refere aos principais teóricos, Leo Kanner e Bruno Bettelheim, tais explicações eram fundamentadas em termos negativos, em uma perspectiva que recaía na culpabilização dos pais, sobretudo das mães.
A famosa “mãe geladeira” de Kanner, ou as metáforas de “fortalezas vazias”, “tomadas desligadas”, “conchas”, “carapaças”, “ovos de pássaros” e “buracos negros” usadas pela tradição psicanalítica para se referir as crianças autistas, remetem para uma visão negativa que enfatiza as idéias de déficit, impossibilidade e deficiência. (Ortega, 2009, p. 70)
Embora tenha havido transformações, Ortega (2009) destaca que, no momento da produção de seu texto, ainda vigoravam explicações de cunho psicanalítico sobre o autismo com esse teor, sobretudo no campo lacaniano. Ainda hoje, tais explicações se espraiam para o senso comum, encontrando aí terreno fecundo, uma vez que são justamente por esse informadas. É o caso da coluna do escritor Luiz Felipe Pondé, que, em agosto de 2022, resgata tal teorização em texto intitulado O diagnóstico de autismo se transformou numa tendência de estilo hype6. Nessa, o autor discorre acerca da “teoria de D.W. Winnicott (1896-1971), segundo a qual podemos entender o autismo como consequência do incomodo materno radical com a criança indesejada, fazendo do ambiente afetivamente hostil um espaço do qual a criança deve se isolar de modo radical” (s/p). Ao mencionar o rechaço que uma psicanalista sofreu em evento sobre saúde mental ao defender essa tese, argumenta: “Qual o pecado dessa teoria? O pecado está no fato de ela apontar para o ambiente destrutivo – inclusive sendo a mãe parte essencial dessa destrutividade – como causa essencial do autismo” (s/p).
Observa-se, nesses posicionamentos, a patologização da mulher mãe que não corresponde ao afeto que lhe deveria ser natural: o amor incondicional, fruto espontâneo de um suposto instinto materno, conforme denuncia Vera Iaconelli (2023). Retomamos aqui a crítica ao modelo social feita pelos Estudos Feministas da Deficiência, que destaca a necessidade de debatermos o fenomeno da deficiência levando em consideração o lugar subjugado da mulher em nossa sociedade (Diniz, 2003; Gomes, Lopes, Gesser, & Toneli, 2019; Magnabosco & Souza, 2019). Desse modo, é essencial adotarmos postura crítica diante de nossas próprias teorizações e sempre nos interrogarmos sobre o lugar de onde parte nossa enunciação, considerando que discursos teóricos no campo psi podem (re)produzir relações de opressão.
A discussão sobre crianças autistas nos remete a ainda outro fenomeno para o qual profissionais psi são constantemente convocados a se manifestar, e o fazem com frequência a partir de um lugar capacitista. Trata-se de rótulos atribuídos a crianças com dificuldades de aprendizagem. Mello (2016) cita Patricia Rosa(ano citada)7 ao problematizar a homogeneização que se produz ao se falar em aprendizagem de crianças “normais” e “anormais” – como se fossem idênticas as habilidades de todos os “normais”, enquanto os ditos “anormais” supostamente teriam um outro grupo de habilidades. Fazendo referência a essas contribuições, Mello (2016, p. 3272) pontua que a autora “sugere rejeitarmos qualquer categorização que parta de conceitos universais, porque eles impõem padrões e valorações arbitrárias”. O pensamento de Lígia Assumpção Amaral nos chamava a atenção, já no final do século passado, para a necessidade de desbancar o tipo ideal tanto da figura do psicólogo quanto daquele com quem este se defronta.
A problematização de universais coloca em cena a importância de que possamos, no campo psi, ampliar a discussão da deficiência como categoria social de análise, a partir da problematização de sua articulação no interior do campo da patologia e do compromisso com o enfrentamento do capacitismo:
considerar a deficiência como uma categoria, assim como as de gênero, raça/etnia, geração e classe social. Acredita-se que tal opção possibilitará que ela contribua com a mudança do modelo biomédico, predominante no Brasil na contemporaneidade, e que tem como características fundantes um caráter a-histórico e biologizante, para uma compreensão baseada no modelo social da deficiência, pautada na experiência de deficiência que é constituída na interação da limitação física com o contexto social opressivo. (Gesser, Nuernberg, & Toneli, 2012, p. 562)
Assim como Mello (2019) propõe com relação ao queer e ao campo da etnografia, propomos aleijar o campo psi, no sentido de provocar fissuras e descolonizar suas práticas e teorizações. Nossa provocação parte da concordância com Amato, Carvalho e Gesser (2022, p. 13) ao sustentarem a necessidade de “aleijar e transviar a psicologia, de modo que essa possa romper com o discurso biomédico que tanto tem contribuído para a patologização, medicalização”. Aqui é importante lembrar que o modelo social sustenta a produção da deficiência na relação com uma sociedade excludente. Essa formulação evidencia-se nas contribuições de Lígia Amaral (1992, 1998), que enfatizam não a “superação” individual – articulada à posição de herói –, mas uma tarefa da sociedade como um todo.
O lugar de aplicação de saberes psi toma a pessoa com deficiência como objeto de avaliações e intervenções, conforme destacam Gesser, Nuernberg e Toneli (2012), em uma perspectiva que reproduz tecnologias de poder que produzem homogeneização e a (re)colocação da norma, como algo não problematizado. O foco recai na “reabilitação do corpo para que ele se adapte ao contexto social opressivo” e não na “modificação do contexto social propiciando acessibilidade” (Gesser, Nuernberg, & Toneli, 2012, p. 562).
Problematizar essa articulação do campo psi a partir da reprodução do modelo médico implica situar a opressão vivenciada por pessoas com deficiência em sua interdependência com demais sistemas de opressão, como sexismo, racismo, heterossexismo e classismo. Nossa proposta de aleijar o campo psi se contrapõe à essencialização da deficiência, compreendendo-a como marcador social de diferença, cuja produção se dá no bojo de uma cultura capacitista e levando em conta o capacitismo no próprio campo psi. Aleijar o campo psi é o contrário de psicologizar.
A nosso ver, esse aleijamento, ao deformar, cria novas formas, amplia as possibilidades de um campo antes restrito pela colonização de corpos e saberes, que se traduz nos ideais e nas normas aqui discutidos. Em um movimento que se contrapõe à psicologização, situamos na introdução deste trabalho que não se trata de “levar saberes” deste campo para o estudo das deficiências, mas sim de interrogar como o campo das diferenças humanas, em particular a perspectiva das deficiências, possibilita pensar o campo psi.
Ao delinear o campo da Psicologia Política, Camino (2001) aborda alguns riscos, entre eles o de psicologizar a política. No que se refere à psicologização, Camino (2001, p. 4) fala de uma aplicação de conhecimentos psicológicos aos fenomenos políticos, tomados como “objetivos e livres de valores”, em uma perspectiva em que “conceitos e variáveis psicológicas consideradas como universais e totalmente descontextualizadas das circunstâncias históricas e políticas”. Na contraposição à reprodução de universais no campo psi, propomos aqui o uso do termo aleijamento, no sentido reforçado pela teoria crip, propositalmente pejorativo, buscando explicitar um posicionamento político contra-hegemonico, como defende Mello (2016).
Lembrando que, em 2016, a hashtag #ÉCapacitismoQuando ganhou as redes sociais, o que seria capacitismo no campo psi? Da perspectiva apresentada neste artigo, é capacitismo quando naturalizamos e hierarquizamos capacidades corporais humanas, o que fica evidente na suposição de uma imagem corporal “ideal” para profissionais psi. É capacitismo quando, como profissionais psi, aderimos de maneira apriorística a um modelo de “cura” ou “reabilitação”, desconsiderando a dimensão de marcador social de diferença nas deficiências. É capacitismo quando nós, profissionais psi sem deficiência, falamos em nome de pessoas com deficiência, sem considerar nossas posições. É capacitismo quando invisibilizamos produções de pessoas com deficiência – lembrando aqui do lema “nada sobre nós sem nós”. É capacitismo quando incorporamos gênero, sexualidade e relações étnico-raciais às nossas teorizações, mas relegamos o estudo das deficiências como algo apartado dos marcadores sociais de diferença.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a intenção de dar fechamento a uma proposta que ainda se inicia, é importante destacar a tarefa sempre inconclusa de descolonizar a psicologia. Ressaltamos que se trata de uma tarefa sempre inconclusa uma vez que, pelo fato de a ideia de subjetividade estar na própria condição de existência do campo psi, ela se atrela inelutavelmente aos pressupostos das ciências humanas, profundamente calcados na Modernidade. Com a Modernidade e a ascensão do pensamento científico, surgem e se espraiam os universais, os ideais, os regramentos e as normas de funcionamento do mundo, das coisas e do humano. Todos esses tendo como centro o tipo ideal denunciado por Lígia Assumpção Amaral e tantas outras autoras e autores.
Nas últimas décadas, com a força que vem ganhando, no âmbito acadêmico, as discussões em torno da interseccionalidade, decolonialidade e do feminismo negro, torna-se ponto de pauta e crítica aquilo que antes era tomado como fruto da produção científica neutra. Entretanto, justamente por ainda vigorar, em grande medida, o modelo médico de compreensão da deficiência, esta tem sido muitas vezes ignorada em tais discussões críticas, pois residiria no campo da biologia e, portanto, fora do âmbito dos atravessamentos da cultura.
Essa vinculação da deficiência a algo que seria de ordem biológica só revela o quanto estamos impregnados de uma (corpo)normatividade que hierarquiza os corpos no bojo daquilo que é tomado como norma – ou como “tipo ideal”, como pontuava tão nitidamente Lígia Amaral. A problematização de perspectivas essencialistas da deficiência possibilita situá-la como produzida nas relações sociais, a partir da operação da norma. Ou seja, a deficiência só se produz na relação com uma sociedade excludente.
O enfrentamento do capacitismo no campo psi depende da problematização de universais em nossas práticas e teorizações. Interrogar a articulação da concepção de deficiência inscrita no campo da patologia possibilita deslocamentos do modelo médico e ampliação da discussão da deficiência como categoria social de análise.
Importantes autoras/es têm sido responsáveis por consolidar o modelo social da deficiência – e por transgredir suas bordas – e, nesse texto, buscamos dar destaque para Lígia Assumpção Amaral, mulher com deficiência, que produziu conhecimento psi de modo crítico. Ainda que não usasse esses termos, vemos nela um anúncio da necessidade de aleijar o campo psi e combater, nestas, as teorizações e as práticas capacitistas.