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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.9 n.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E MÚSICA

 

Psicanálise e música

 

 

Marcela Antelo*

 

 


RESUMO

A autora inicia seu trabalho lembrando que a música no Brasil tem valor diagnóstico e o samba é um recurso terapêutico. Faz alusões a Freud e sua proverbial dificuldade com a música e vai buscar em Lacan o conceito de voz como objeto, estendendo esta questão à fala para a psicanálise. Estuda a questão da música no lugar da voz e do canto em abordagem de Miller.

Palavras-chave: Música; Psicanálise; Voz; Canto.


 

 

"Quem não gosta de samba, bom sujeito não é,
é ruim da cabeça ou doente do pé".

E Dorival Caymi

"Donde hay música no puede haber cosa mala"
"La Música compone los ánimos descompuestos y
alivia los trabajos que nacen del espíritu"
Dorotea e Sancho Panza respectivamente em El Quijote
Mejor que la música es hablar de música."

Gabriel García Márquez

Não deixa de ser um desafio falar da dobradiça música/psicanálise num país como o Brasil onde a inclinação pela música possui valor diagnóstico. O desafio é uma das formas do canto popular. Canta o poeta baiano Caymi, sujeito-suposto-saber-gozar da cidade, numa das suas canções mais populares, que quem não gostar de samba é ruim da cabeça. Todo o mundo sabe que o samba é recurso terapêutico: se samba pra não chorar, se samba com palavras mágicas para cativar amadas, recurso erótico, se samba pra tudo se acabar na quarta feira, recurso metafísico.

Na sua "Interpretação dos sonhos" Freud concede à música a função de ativador de lembranças. Um "toque" à memória. Um par de compassos das Bodas de Fígaro e já estamos viajando, avançada psíquica que abre o acesso ao total da fantasia. Abre e fecha a percepção das lembranças. Fantasmas musicais. Melodias estimulantes de traumas e saudades, cantos de sereias. Por outro lado, Freud soube extrair da forma sonata um conceito chave da sua teoria, a elaboração, a Durcharbeitung, o working through como o chamam os ingleses. A música como grande aliada.

Sua resistência á música é bem conhecida por todos os freudianos. Freud o declara sem pudor, o que não pode reduzir a conceitos não o comove. Essa é a minha maneira, admite Freud, identificado ao sintoma, esse é "my way". Lembremos simplesmente que na Viena de 1914, quando Freud se confessa no escrito sobre o Moisés de Michelangelo, só se escuta valsa. Trata-se de um desconto pessoal que dou a Freud.

 

INTERLÚDIOS SOBRE A VOZ

O conceito que serve como chave para a Psicanálise atrever-se a entrar na roda é o quarto objeto pulsional introduzido por Lacan à serie freudiana: o objeto voz. A voz apareceu na análise desde os seus antecedentes, a voz do hipnotizador que funcionava mais além das palavras, sedução sonora que Freud abandonou. Trocou o hipnotizador por um analista que encarnasse a figura do acusmata. A noção grega de acusmática se refere à audição de uma fonte invisível, escutar sem ver a causa, ignorar a fonte da emissão da voz. Nas seitas pitagóricas, o mestre falava por trás de uma cortina para não se fazer ver antecipando nossa posição analítica, literalmente falando, nosso sofá por trás do paciente, fora do seu angulo de visão. A voz acusmática evidencia o que acontece na entrada na ordem simbólica, essa brecha que se abre entre a voz e o corpo ao qual já não pertence. Uma voz sem corpo, sem a imagem daquele que fala, voz em off.

O telefone com o qual todo o mundo proximamente se acompanha nesses dias atuais é um exemplo maravilhoso de Outro acusmático. Che vuoi? perguntamos a cada passo.

O campo onde a voz se impôs como objeto fundamental da clínica analítica é o campo das psicoses, onde a voz do Outro se escuta no real da alucinação auditiva. Escutar vozes é tão antigo quanto a flauta de Hermes.

Freud atribui voz ao superego, não como internalização da lei, mas como algo que se acrescenta, um excesso material, que deixa o sujeito na posição de ser eternamente culpado: quanto mais se obedece mais culpado se é, mais alto a voz se eleva . Esse "a mais" do Supereu por sobre a lei é precisamente a voz, o Supereu tem voz, é vociferante, quanto a lei fica presa à letra. Por outro lado, não devemos confundir a voz com a vocalização. A vocalização implica um trabalho com a sonoridade, a afinação, o ritmo, a criatividade musical, o swing. A voz e a música. A voz musical, a voz que diz, a voz que canta, revela uma função instrumental, uma utilidade. A "Outra" voz não serve para nada, é gozo.

Lacan põe esta diferença em evidência quando afirma que é na afonia que o objeto voz aparece na sua forma mais pura. A voz como semblant. Lacan define o "semblant" como uma suposição de existência. Vale assinalar que Lacan não perdia show de música contemporânea.

Segundo Michel Chion, grande especialista francês na dimensão sonora do cinema, a voz permaneceu longamente um objeto inaccessível. "Uma vez que eliminou-se tudo o que não pertence a ela propriamente falando: o corpo que a porta, as palavras que ela veicula, as notas sobre as quais ela canta, os índices que ela revela sobre a pessoa que está falando, o timbre que a colora, o que é que resta?"1. Chion afirma que "a possibilidade de uma elaboração teórica da voz como objeto só foi aberta com Lacan, quando ele a colocou, com a mirada, o pênis, o excremento e o nada, no conjunto dos "objetos a", desses objetos suscetíveis de ser fetichizados e empregados para "coisificar a diferença". Não reduzir a voz a veículo da linguagem e da expressão, eis a lição de Jacques Lacan. Chion se refere a uma coincidência entre as pesquisas por ele empreendidas e o livro de um discípulo de Lacan, Denis Vasse, o Umbigo e a Voz aparecido em 1974 e afortunadamente editado em português. a voz como cordão umbilical que nos une e separa do Outro primordial, a mãe. A primeira experiência que temos do Outro materno é a sonoridade da sua voz., o ritmo do seu coração, as batidas das suas pulsações, só depois virá o cantarolar instrumental, o ninar, que apazigua nosso desamparo.

O laço social, os discursos, se organizam para distribuir o gozo de um corpo afetado de inconsciente através do semblant, de uma suposição de existência. Lacan diz: "Temos encontrado no inconsciente, ao invés de objetos benéficos, benfeitores, favoráveis, certo tipo de objetos que, no fim das contas, não podem servir para nada. São os objetos "a", o seio, as fezes, o olhar, a voz"2.

A voz cai do órgão da palavra, cai do Outro. Conforme diz Lacan durante o ano em que aborda a angústia: "a objetividade é correlativa a um pathos de corte3 ". Toda função de causa se suporta em um pedaço carnal, arrancado de si mesmo pelo formalismo do significante. Uma rede de significantes aplicada, enchapada, sobre o mundo funciona como um aparelho de gozo para aquele que fala. A perda que isto acarreta funda a expectativa da sua recuperação. Com esse gozo o sujeito se produz como corte. O som que provem do vazio, que acusa a brecha como dizíamos, remete ao objeto perdido. Enquanto permanece articulado o objeto está aí, no campo do Outro, quando se articula, se separa e desse modo faz perceber esse vazio do qual se recorta. Nasce aí o $ barrado, sujeito que lamenta pela perda do objeto.

Sem a queda da voz do campo do Outro não há aparição possível do sujeito. Parece-me que aí, nessa encruzilhada se situa o dizer do analista como dizer áfono. Enunciação.

 

A MÚSICA NO LUGAR DA VOZ

A voz cantada e a voz falada devem ser distinguidas. Por um lado, a voz é índice de um gozo, fascinante ou balsâmico, voz para arrancar o sangue, como diz o cantor inglês Nick Cave, uma das vozes que mais me perturba nestes tempos. Por outro lado, a voz na sua dimensão de apelo, de Demanda com D maiúscula. Nesta última se inscreve a voz do Supereu, o vociferante que ordena obedecer. A palavra obediência procede do latim (ob-audire), obedecer depende de escutar. A voz do Amo, a voz de Deus, inaudível para o comum dos mortais, a voz da paz da tarde que poucos escutam como dizia Lacan no seu seminário sobre As psicoses.

Cantar a voz é para Miller um semblant que serve para silenciá-la, para silenciar a voz áfona, musicalizamos. Os instrumentos musicais são metonímias da voz, posso dizer, ainda que como Billie Hollyday fez notar, um cantor não é um sax. Para apelar ao Outro, damos a voz diz Christian Vereecken, colega da Bélgica. Invocare provém do latim e significa apelar/chamar. A pulsão se conjuga gramaticalmente: apelar, ser apelado e se fazer apelar.

Gritamos primariamente e a resposta que o Outro dá a este grito o transforma em apelo. O silêncio como resposta primária do Outro o instala para sempre no âmago do apelo. Demandar, apelar, invocar, cantar, modalidades de fazer o Outro que não existe, existir. "A voz como objeto em Lacan não é a voz humana, não é uma voz sonora, áfona o que não quer dizer que não tenha nada a ver com o mundo sonoro".

Do lado do som temos a orelha e o aparelho fonatório, do outro lado temos a voz, eis a brecha, a esquicie, a mesma que separa o olho do olhar como objeto. Lacan diz que a voz ressoa no silêncio do Outro e não no espaço. O silêncio é à música o que o espaço é à pintura.

Vejamos uma outra interessante referência de Lacan à voz, na única sessão do seminário interrupto "Os nomes do pai": "Veremos vir do outro, única testemunha desse lugar do Outro que não é simplesmente o lugar da miragem....a saber: a voz".

A voz se constitui na última consistência do Outro, mas quem fala no lugar do Outro é o sujeito, causado por esta voz, já que o Outro não existe mais. Lacan recomendava não dizê-lo demasiadamente, pois assim o faríamos existir. A questão seria escrevê-lo S de A barrado.

A diferença dos outros objetos a que são fragmentos destacados do sujeito que subsistem no campo do Outro, que caem do corpo, a voz, pelo contrário é um objeto caído do Outro e que se manifesta no campo do sujeito. Sabemos quando ouvimos alguma gravação com nossa voz que ainda que se trate da nossa própria voz, vinda de fora, é Outra, parece Outra, faz semblant do Outro. Lembremos o espelho acústico presente no mito de Narciso onde Eco só ecoa a sua voz e não pode falar por si mesmo. A voz que a ele retorna não é a própria e sim um eco sem sentido.

É o Outro que nos canta, a paz da tarde nos canta, o Outro que nos dedica uma serenata. Podemos imaginar maior fruição? Reinado do princípio do prazer domesticando o desejo do Outro. A música realiza o desejo de sermos escutados mais além das palavras.

Não se trata simplesmente de fazer calar o silêncio, senão de fazer calar o "a", diz Miller4 . A música é a voz que brinca de fazer semblant de que é audível; para consegui-lo, ensina Miller, deve pedir emprestado um elemento ao discurso efetivamente pronunciado, o som. A música no seu namoro com o silêncio, o põe em evidência, e o preenche, é ambígua e assim o eleva à dignidade da Coisa sublime.

O recurso terapêutico posto em evidência pelo samba se junta com a conhecida afirmação de que a música é remédio para melancólicos, a paz dos violentos. Se o melancólico se identifica ao "a" no campo do Outro, dar-lhe alguma coisa que venha do Outro pode devolvê-lo ao seu lugar de sujeito.

A música não é a voz, porém vem no seu lugar. Ela nos dá a ilusão de que somos ouvidos pelo Outro. Se cantar é interpelar ao Outro, a música como resposta pode se erigir em espelho sonoro de um povo. Até pode ser o diferencial de um povo, seu S1. O samba como S1 do brasileiro. Sabemos que podemos muito bem reduzir um argentino a um tango.

A voz, neste limite, se não fosse proibida ou silenciada pela música e seu apelo significante, daria acesso ao Outro Gozo.

 

REFERÊNCIAS

CHION, Michel. La voix au cinema. In: Cahiers du cinema. Paris: Editions de l' Etoile, 1982. p.14        [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 10. A angústia [1962-1963]. Aula de 8 de maio de 1963. 21. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.         [ Links ]

MILLER, Jacques-Alain. Jacques Lacan y la voz. In: La voz. Colección Orientación Lacaniana. Buenos Aires: E.O L., 1997.         [ Links ]

VASSE, Denis. O umbigo e a voz. São Paulo: Loyola,1977.         [ Links ]

 

 

* Psicanalista. Salvador, Bahia.
1Chion, Michel, La voix au cinema, Cahiers du cinema, Editions de l' Etoile, Paris: 1982. (p.14)
2Lacan, Jacques. O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
3Lacan, Jacques. O seminário, livro 10. A angústia (1962-1963) Aula de 8 de maio de 1963. 21. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.
4Miller, Jacques-Alain. "Jacques Lacan y la voz" em La voz. Colección Orientación Lacaniana, E.O L., Buenos Aires.

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