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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.9 n.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E MÚSICA

 

Sobre a criação da obra de arte musical e sua escuta: o que se dá a ouvir?*

 

On the creation of musical art works: what one can hear?

 

 

Renata Mattos de Azevedo**

 

 


RESUMO

Tendo como pressuposto a concepção da música como uma linguagem a partir da qual o compositor trabalha com o ritmo e a altura sonora, organizando os elementos musicais através da tensão entre eles, distribuindo-os temporalmente, e endereçando esta criação primeiramente a um intérprete, e com este a um ouvinte, o presente trabalho visa investigar as posições singulares dos sujeitos envolvidos com a música, assim como seus efeitos sobre eles.

Palavras-chave: Música; Psicanálise; Criação.


ABSTRACT

Understanding the music as a language used by the composer to work with the rhythm and the pitch, organizing the musical elements through the tension between them, arranging them in a temporal structure, and addressing this creation first to a musical interpreter, and with him/her to a listener, this article intends to research on the specific positions of the subjects involved with the music, as well as how it affects them.

Keywords: Music; Psychoanalysis; Creation.


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Seguindo as trilhas freudiana e lacaniana de promover uma articulação entre o campo da psicanálise e o artístico, propomos neste espaço elaborar um estudo sobre a arte musical, a partir dos atos de criação e escuta, buscando nela materiais que possam contribuir para pensar o conceito de sujeito. Uma vez que nenhum destes dois autores se detiveram em estudar a musica, destacaremos em suas teorias pontos que entendemos ser frutíferos para o diálogo com esta área.

Para tanto, buscaremos em Freud os conceitos de inconsciente e pulsão, e em Lacan a sua retomada do estudo do circuito pulsional freudiano, assim como da noção de das Ding, e os conceitos de objeto a, em especial o objeto voz. Neste mesmo sentido, trabalharemos com autores da tradição lacaniana que tenham refletido sobre o objeto voz, como Jacques Alain-Miller, Jean-Michel Vivès e Alain Diddier-Weill, que também se debruçou especificamente sobre a temática musical.

Ao destacar tais conceitos e autores, o fazemos na medida em que defendemos que a música pode nos auxiliar a compreender tanto a constituição do sujeito e a incidência aí do objeto voz, através da musicalidade da fala materna, como também a relação entre sujeito e Outro. A música, entendemos, poderia ser lida como um fazer com o objeto voz e como uma resposta do sujeito ao Outro, através da qual algo da posição subjetiva do músico poderia ser transmitida àqueles que a escutam.

Além disso, propomos enriquecer estas reflexões com a contribuição de autores oriundos do campo musical, em especial compositores que escreveram sobre música e criação, dos quais destacamos Pierre Boulez, Igor Stravinsky e François Nicolas, este último em seu estudo sobre a escuta musical.

 

A ARTE MUSICAL OUVIDA PELA PSICANÁLISE: TEMPO, PULSÃO E OBJETO VOZ

A música, enquanto arte cuja linguagem é estabelecida por um determinado conjunto de regras próprias a este campo, não pode existir e tomar corpo na ausência de dois elementos: o ritmo e a altura sonora. Ela trabalha, assim, com a diferença e tensão dos sons musicais, e também marcando e produzindo diferenças no tempo e no espaço musical, contudo, na maior parte das vezes, como na música tonal, com certa regularidade. Ocorre, com isso, a formação de uma imagem sonoro-musical1 determinada pelo movimento de um determinado conjunto pré-estabelecido de materiais musicais em relação entre si, dentro de um espaço-tempo igualmente musical que se oferece aos sujeitos pela obra.

Escutando este movimento de criação da música através da psicanálise, em especial no que concerne a teoria sobre as pulsões, é possível propor que o compositor busca se fazer ouvir; além disso, ao contornar pulsionalmente o objeto voz, o vazio deste objeto, nos dá notícias sobre ele. Podemos assim dizer que o compositor visa um além dos sentidos. O que se ouve, então, quando se ouve música? O que o compositor coloca em cena ao criar melodias e harmonias?

Como nos mostra com muita precisão Miller (2000: 68), a música é "arte do tempo", manobrando-o, e, assim, pontuando-o para os sujeitos. O que não deixa de ter efeitos e conseqüências. Isto uma vez que, como demarca Freud (1915/2006: 37), o inconsciente possui como uma de suas características principais a atemporalidade, e que a pulsão é uma força constante (Freud, 1915/2004: 146). Como, então, pensar o que a música produz para e nos sujeitos?

Aprendemos com Freud que a temporalidade vem do registro do consciente, vem do eu. O inconsciente, por outro lado, está sob o regime do atemporal, das simultaneidades de marcações. Porém, há no sujeito do inconsciente, conforme evidencia Lacan (1964/1998: 46), uma dimensão temporal, pulsativa, de abertura e posterior fechamento, por onde ele surge para, em seguida, desaparecer. Lacan (Ibid.: 30) diz que nessa vacilação, nesta descontinuidade, há uma estranha temporalidade, de encontrar, em um momento, algo que traz surpresa e que, em um segundo momento, volta a ser perdido. Assim, surge, de forma pontual e evanescente, alguma coisa de um não-realizado (Ibid.: 34-35).

Este movimentos de abertura e de fechamento, de uma sincronia significante (Lacan, 1960/1998: 849) e de um corte (Ibid.: 854), dizem das operações de alienação e de separação entre o sujeito e o Outro, de onde o sujeito surge como barrado e cujo resto desta operação é o objeto a.

É este objeto que Miller (2000: 66) relacionará ao sujeito barrado, contrapondo a pontualidade e evanescência da articulação significante deste à não pontualidade do objeto a. Será sob estas coordenadas que Miller apresentará a idéia de que a música, por ser "arte do tempo", trabalha com o tempo de forma ritmada e regulada, substituindo o "tempo imprevisto" (Ibid.: 68) do objeto voz.

A partir dos pontos acima delimitados, nos propomos algumas perguntas: O que pode a música fazer quanto ao tempo? Ritmar o arítmico e a constância da pulsão? Regular, pelo movimento do circuito pulsional, a busca de apreensão do objeto voz? Como pensar o tempo na música, já que o ritmo, que marca e corta o tempo, lhe é de base? Para que (Outro) tempo a música pode levar? Ela, ao mesmo tempo, cria um espaço e um tempo próprios, e opera um corte no tempo cronológico.

Se a pulsão é constante, incessante, se "ela não tem nem dia nem noite" (Lacan, 1964/1998: 157), a música, pelo contrário, marca tempos, inscreve e escreve no silêncio, no vazio, notas de durações pré-determinadas e em relação entre si, possibilitando alguma organização e previsibilidade, em maior ou menor grau, dependendo do estilo musical ao qual o compositor se filia. A própria criação da obra musical depende dessa marcação rítmica; o trabalho de criação é um trabalho com o tempo, cortando a constância do silêncio, manejando a "tensão-distensão" (Boulez, 1972: 25) do material que lhe é próprio, em especial a altura e a duração das notas (Ibid: 35), e produzindo um novo objeto, não o que se esperava encontrar, ou seja, das Ding, mas um possível, a obra musical, objeto elevado "à dignidade da Coisa" (Lacan, 1959-1960/1997: 141).

No trabalho de criação musical, é preciso, como destaca Boulez (1972: 84), que se escolha um padrão, sendo que este último não é dado, é uma construção. Nesta escolha, o sujeito que cria transmite algo pela obra de forma cifrada, fala de sua posição subjetiva e do vazio enigmático de sua constituição. Como ressalta Lacan (1959-1960/1997: 153), este vazio estará no centro do objeto criado pela "modelagem do significante" a partir deste furo real. É porque este furo existe que se cria e se continuará criando, laborando através dos significantes, no caso do compositor, de forma musical.

Entretanto, se o compositor e o intérprete podem transmitir algo de sua posição frente ao vazio pela música, na escuta, o trabalho está do lado do ouvinte. A música irá ressoar no vazio deste sujeito que ouve, produzindo efeitos nele. Ao término da música, esta deixará vestígios no ouvinte e, com eles ou a partir deles, este sujeito poderá, se assim se sentir impelido, fazer algo, tecer alguma coisa por ter sido tocado neste ponto para além dos sentidos, ainda que esta produção comporte sentidos, pela via da fantasia, por exemplo.

Em um mesmo instante, a obra musical põe ao sujeito uma série de complexos fatores, mesclando sincronia e diacronia, harmonia e melodia, tensão e resolução dos materiais musicais, pelo ritmo e pelas diferenças de alturas, pela regularidade e pela surpresa, pela repetição de temas e frases, podendo se impor como um enigma para quem ouve.

Paradoxalmente, ela regula o tempo, substituindo o imprevisto pelo ritmado; a constância da pulsão é regulada, sai do arítmico para o rítmico. O imprevisível da incidência do objeto voz pode ser, ao buscá-lo (jogando com o tempo e com texturas musicais que o silenciam), submetido a uma ordem, a uma lei.

Contudo, no humano, o ritmo, decerto, não é exclusivo à música; é algo que se apresenta precocemente ao infans, como nos evidencia Catão (2005: 121). A autora (Idem) aponta que o "trajeto desenhado pela pulsão ao circundar o objeto — trajeto que só é possível pela mediação de um outro (Outro)", é o que possibilitará o surgimento de uma ritmicidade. Retomando a concepção freudiana do circuito pulsional em três tempos, e o circuito da pulsão invocante, que, nas palavras de Vives (2005: 1), "se declinará [...] entre um 'ser chamado', um 'se fazer chamar'[...] e um 'chamar", podemos pensar em como o ritmo possibilita a elaboração do movimento de separação no campo do Outro pela pulsação alternada de presença-ausência (Ibid.: 128).

Didier-Weill (1999: 155) nos diz que a fala maternal é revestida de uma "musicalidade invocante" que transmite as dimensões de harmonia - sincronia e melodia - diacronia. Ela convida à simultaneidade, à continuidade e ao corte, à separação. Também na música as dimensões da sincronia e da diacronia estão presentes, de uma só vez, podendo-se associar a primeira à harmonia e a segunda à melodia.

Ao sujeito em vias de sua constituição, a fala e voz da mãe dão um testemunho de que há um sujeito ali, ela própria, que pôde ouvir a voz do Outro, aceitar seu convite à subjetivação e torná-la inaudita, pela separação e pelo recalque originário. Com a música, por outro lado, o sujeito ouvinte tem acesso a um outro testemunho, desta vez do compositor, de que foi possível fazer algo com o objeto voz, organizando-se e criando em torno deste vazio.

Defendemos, portanto, que a música é capaz de testemunhar o inconsciente, colocando em cena um real, a ausência do objeto a que ela tenta, em vão, apreender em seu circuito, apenas circundando seu vazio e apontando para a Coisa, e também de colocar em jogo a dimensão simbólica, discursiva, e imaginária, por ser criação de um sujeito singular. Ela é assim, uma produção do inconsciente; porém, diferentemente de um sonho ou um sintoma, ela não se coloca de forma a exigir decifração2: ela, pelo contrário, causa aqueles que a ouvem.

Poderíamos, assim, pensar que a obra musical, enquanto criação estética é também ética; ela aponta para o real sem servir de engodo ao sujeito, tal como Lacan (1997: 265) nos diz do belo no Seminário A ética da psicanálise. Neste, Lacan (Ibid: 289) afirma que a criação do belo comporta um valor cifrado na obra de arte, ressaltando, deste modo, a relação entre o desejo e o belo. "Essa relação é ambígua. Por um lado, parece ser possível que o horizonte do desejo seja eliminado do registro do belo. E, no entanto, por um outro lado, ele não deixa de ser manifesto" (Ibid: 290).

Neste ponto, recorremos ao filósofo Daniel Charles, que descreve a música como desenvolvendo um "tremor surdo" e pertencendo ao nível da cifra. Nas palavras do filósofo (Charles apud Lambotte, 1996: 697): "O abalo vem de mais longe. E deixa vestígios: são esses vestígios que, como escrita, se prestam à decifração". Vestígios que, diríamos, remete ao vazio real para o qual a obra aponta ao mesmo tempo em que o vela.

Destacamos, contudo, que essa "decifração" somente poderá ganhar lugar caso o sujeito ouvinte seja levado a falar de tal abalo causado pela música para alguém que possa acolher esta fala, a saber, o analista. Se a música apresenta um saber cifrado do compositor e se, no pólo do ouvinte, ela poderá causá-lo a ouvir algo dele mesmo, é preciso um outro encaminhamento para que, a partir daí, possa se dar um trabalho de decifração. A obra de arte musical, tanto para quem a cria, interpreta ou ouve, não é análoga ao processo de uma análise, embora, notamos, possa haver mudanças no sujeito a partir dela.

 

REFLEXÕES SOBRE A CRIAÇÃO MUSICAL PELO VIÉS DA COMPOSIÇÃO E DA INTERPRETAÇÃO

Há, evidentemente, pontos em comum em toda criação de obras de arte e pontos em que os meios próprios de cada produção artística serão determinantes. Ao estudarmos a sublimação, percebemos que há um vazio central e estrutural na criação artística, algo que marca a própria condição humana. Contudo, para o artista, não basta se defrontar com este vazio; o artista faz algo com ele, com recursos que especificam uma ou outra arte. Assim sendo, a criação, nos diz Alencar (2004:7-8), passa por momentos distintos, de uma experiência com o vazio significante, um suporte material para contornar este vazio e a criação da obra, tendo função significante e de causa para os sujeitos.

A composição de uma música faz com que marcas e traços que foram previamente inscritos no compositor possam ser reordenadas e trabalhadas, ganhando relações com outros traços, assim como corpo melódico e harmônico, tonalidades e timbres, passando a ter função significante.

Destacamos que Stravisnky (1996: 55), ao falar da criação e do prazer nela encontrado, localiza um dever do compositor quanto à música, que entendemos se tratar de uma posição ética. Diz ele (Idem): "Temos um dever em relação à música, que é inventá-la". Extrair do vazio a música, transmitindo àquele que ouve esta experiência, é, em nossa concepção, um ato ético.

Nesse sentido, a criação musical deve ser relacionada à dimensão do Outro. Há na constituição do sujeito um enigma do desejo do Outro que é lhe transmitido como uma pergunta, e que insiste ao longo de sua vida. "Che vuoi", "Que queres?", "O que o Outro quer de mim?". E, sem nunca obter "a" resposta a este mistério, sem nunca obter aquilo que completaria o sujeito e lhe traria um gozo pleno, com esta falta radical e estrutural, o sujeito se mantém em movimento, obtendo pequenas e efêmeras satisfações, criando respostas, apesar e com o vazio. A música poderia, então, ser pensada como uma resposta possível a este enigma, resposta diante desse impossível real, que o demarca, contudo, sem engodar o sujeito, trazendo alguns vestígios dele.

Enquanto ato ético, deste modo, a criação transmite um saber do lado do compositor que ele sabe sem saber, e que passa por um endereçamento ao Outro, na medida em que um sujeito fala, ou melhor, musica, sua posição singular, e sua resposta, a obra, se dirige ao ouvinte, ficando no campo da linguagem. A obra musical se torna, ao ser criada, um objeto passível de causar outros sujeitos.

O intérprete possui também uma relação com este enigma que a obra musical toca, o que, aliás, podemos pensar, que é o que determina que ele tenha se tornado músico e não pintor, por exemplo. Sua posição passa por um posicionamento específico diante deste objeto voz que a música visa, em vão, capturar. E quando o músico está diante de uma obra musical, ela é tomada por ele como causa de desejo, fazendo com que seu trabalho se dê na direção de que, ao tocá-la, estudá-la e dar-lhe corpo, fazendo-a soar, suas próprias marcas sejam postas em jogo e seu circuito pulsional seja movimentado. Há também no intérprete um ato que implica criação e endereçamento.

Assim como o compositor, o intérprete se direciona ao ouvinte, e quer se fazer ouvir; a peça que toca e/ou canta será, igualmente, endereçada ao Outro, como uma resposta que lhe foi possível elaborar e oferecer. E será com o seu "acervo" próprio que ele cunhará a interpretação singular que dará de determinada obra musical, obtendo, daí, algum prazer possível.

 

A ESCUTA MUSICAL

O tema da escuta musical foi tratado por Didier-Weill (1997: 69) partindo de um questionamento sobre o melômano, perguntando se este ouve como sujeito ou como Outro, e, a partir deste ponto, elabora uma teoria sobre a escuta musical em quatro tempos lógicos.

Pela criação, um sujeito se dirige ao Outro, dando-lhe uma resposta ao seu enigma. Tal resposta, contudo, é escutada por um outro sujeito, que se encontra neste lugar de Outro do compositor, primeiro tempo lógico. Ao escutá-la, o ouvinte percebe que a música o toca e oferece uma resposta para sua questão enquanto sujeito, sendo, assim, convocado a se posicionar deste modo. É o segundo tempo da escuta. No terceiro, há a identificação entre os dois sujeitos deste processo, o músico e o ouvinte. No quarto e último tempo, ocorre uma surpresa, por parte daquele que ouve, com a "explosão" de uma "nota azul" (Ibid.: 80), que dirá do fato do ouvinte ser chamado a fazer algo com o que ouviu, a dar também uma resposta ao enigma que lhe concerne.

A nota azul, metáfora de Delacroix para falar dos efeitos da música de Chopin, como tomada por Didier-Weill (1999.: 33), diz de um ponto em que o sujeito, "dividido pela tensão produzida entre a harmonia e a melodia", pode escutar além do que está presente na música e alcançar "uma certa nota — ainda não presente — no nível da qual a tensão entre a sincronia harmônica e a diacronia melódica poderia ser resolvida". É uma nota, portanto, virtual e efêmera, porém que comporta um ponto real.

Por trazer esta dimensão de real, podemos chamá-la de azul para ser viável teorizar sobre ela. Todavia, por ser talvez o que pode haver mais de real em uma música, ela não terá cor alguma, fazendo, em contrapartida, com que o sujeito lhe dê alguma coloração. Azul, em Chopin. Quem saberá de que outras cores para cada um de nós? Como nos diz Didier-Weill (1997: 58), esta nota é, no inconsciente, sempre a mesma. O que ela nos faz falar e produzir em seguida, certamente não, ainda que se repita. O que podemos dizer dela é que, mesmo que a esperemos, ela nos surpreende.

Passamos, agora, à proposta de outro teórico sobre a escuta musical, o compositor francês François Nicolas. De acordo com Nicolas (2002: 6), a música é um jogo sonoro que se endereça a ser ouvido por um outro. Ela tem origem em um sujeito e em seu corpo, passando por ele, mas é na medida em que se apresenta como um vestígio que passa a ser um som musical. Neste, está em jogo a dimensão do prazer daquele que cria e de quem ouve a música. Prazer obtido pela dimensão significante da música e que, mais além, atinge o corpo, propiciando aos sujeitos um puro gozo "do som musical por ele mesmo" (Ibid.: 3).

Contudo, para que o som musical possa se tornar um endereçamento, nos diz Nicolas (Ibid.: 9), é preciso que o músico se retire para dar existência a uma marca no vetor sonoro-musical que se orienta a um alvo. O autor nos dirá que esse alvo é impreciso. Se o relacionarmos ao circuito pulsional, este movimento de endereçamento da música pode ser pensado como a própria trajetória da pulsão invocante, o movimento de se fazer ouvir, visando a satisfação deste circuito e incluindo nele o Outro para que possa fazer seu retorno à fonte.

Nicolas (Ibid.: 13) ressalta, confirmando a idéia de que a música é apreendida apenas como vestígio, que para que o ouvinte/público possa escutar a obra musical, o músico que a interpreta deve se apagar, deixando ouvir o endereçamento do compositor, através da obra, a um Outro. Entendemos que este "apagamento" pode ser entendido se a ele acrescentarmos a idéia de que, embora o sujeito que cria utilize de seus referenciais e materiais psíquicos para criar, ou seja, a obra musical é criação de um sujeito em especial, ela transmite algo que é da própria condição do humano.

Ainda assim, compositor e intérprete estarão ali presentes na medida em que deixarão na música suas marcas e nela imprimirão seus estilos. Na visão de Nicolas (Ibid.: 16), este apagamento está sempre presente na música, e será por ele que uma escuta musical será possível. Diz o autor (Ibid.: 15): "a escuta musical se distingue da audição e da percepção no que ela supõe o lugar de um vazio".

Nesse sentido, defendemos que tanto compor, quanto tocar e ouvir uma obra musical pode modificar os sujeitos envolvidos nestes atos, sem, contudo, se tratar aí de efeitos que possam ser comparados aos de uma análise. A música, assim, dá a ouvir aos sujeitos vestígios do impossível.

 

NOTAS FINAIS

Abordamos algumas características específicas do campo musical para refletir sobre o que esta arte pode nos ajudar a avançar na concepção psicanalítica sobre os sujeitos. Aliamos a idéia do trabalho com o ritmo e o tempo criado pela música a partir do manejo das notas e demais recursos musicais ao conceito do circuito pulsional e de como este põe em jogo a dimensão desejante própria ao sujeito do inconsciente.

Com isso, foi possível propor que a música, no pólo da criação, seja pela composição ou pela interpretação, se apresenta como uma resposta à exigência de trabalho psíquico que a pulsão impõe. Ainda, uma vez que tal circuito só se fecha ao contornar o vazio do objeto, passando pelo campo do Outro, e retornando ao sujeito, se pensarmos que na música o objeto que aí se relaciona é a voz e que o fechamento da trajetória pulsional tem como efeito a criação da obra musical, compreenderemos que este movimento se trata de um fazer com o objeto voz a partir das coordenadas particulares de um sujeito. Coordenadas de prazer (Lacan, 1959-1960/1997: 69) deixadas pelo objeto para sempre perdido quando da constituição do sujeito, das Ding, às quais se somam as marcas e inscrições sonoras e musicais presentes neste ato de fundação do inconsciente.

Demarcamos a importância da musicalidade da voz e da fala da mãe neste primeiro momento de marcação e constituição do sujeito. Nesta relação com a mãe, próximo assegurador, o campo do Outro, da linguagem, se apresentará, transmitindo-se a Lei e possibilitando o corte necessário ao advento do sujeito enquanto tal.

A partir daí, sustentamos a hipótese de que determinados sujeitos teriam sido marcados de tal forma pelo objeto voz que se encaminhariam a fazer um trabalho a posteriori de criação com ele pelo rearranjo de suas marcas sonoro-musicais e cunhando novos objetos no mundo, que teriam função de causa de desejo para outros sujeitos.

Na escuta musical, portanto, haveria a escuta de um testemunho de que é possível criar diante do vazio estrutural de nossa constituição, e de que frente à voz do Outro pode-se , para além do sintoma ou da inibição, por exemplo, elaborar uma saída que passe pela criação. Deste modo, o ouvinte seria convocado a se (re)colocar em sua posição de sujeito desejante e a poder igualmente efetuar uma resposta singular à questão que lhe concerne.

 

REFERÊNCIAS

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*Este trabalho é fruto de minha dissertação de mestrado (UENF, 2007), intitulada Vestígios do impossível — refletindo sobre música a partir da psicanálise, sendo uma síntese do capítulo final Sobre música a partir da psicanálise.
** Psicóloga (UFF, 2003), com Especialização em Psicanálise e Laço Social (UFF, 2004) e Mestrado em Cognição e Linguagem (UENF, 2007), doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (UERJ), estuda a articulação entre psicanálise e música, enfatizando o sujeito e sua constituição.
1Agradeço a Anchyses Jobim Lopes o questionamento sobre a imagem sonora na música, ponto aqui ainda pouco elaborado, porém que merece maior aprofundamento.
2Com Attié (1997: 169), podemos pensar em como o sintoma demanda decifração, exigindo interpretação e trabalho de análise, e em como a arte parte de outro ponto. Nela, o artista pode cifrar algo de seu inconsciente sem que isso implique em demanda de análise. Da mesma forma, o fruidor, ao se deparar com algum estranhamento ou fascínio diante da obra, ou seja, ao ser por ela causado, também não implicará que isto se converta em pedido de decifração, por mais que isso possa vir a acontecer, e que encontrará, neste caso, acolhimento no trabalho analítico.

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