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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.11  Salvador out. 2010

 

O poder do grupo na formação psicanalítica

 

The group's power in psychoanalytic training programs

 

 

Virgínia Lúcia Britto *

Círculo Psicanalítico da Bahia.

 


RESUMO

A partir da sua experiência como coordenadora de uma turma para formação psicanalítica, a autora faz considerações a respeito da importância do trabalho com os fenômenos de grupo e da constituição de um grupo para a construção desse percurso.

Palavras-chave: formação psicanalítica; poder; grupo.


ABSTRACT

The author writes about her experience with psychoanalytic training and makes some considerations about the importance of group phenomena in this process.


Key words: psychoanalitic formation; power; group.


 

 

Mudam as estações e nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente [...].1


Março de 2006, chegam à instituição candidatos para o curso de teoria psicanalítica. Nasce uma nova turma!

Como será esta casa? Pensa quem chega. Como toda chegada, um encontro com o novo, como sempre, traz o antigo, aquilo que se foi e ficou no umbigo. E o cordão, como está? Atado? Solto? Ferido? Cicatrizado? Sujeitos marcados pela pré-história fazem um mosaico com essas histórias que se cruzam entre as pessoas ali agregadas em torno do texto freudiano. Por que e para que estão ali? Não sabemos e talvez nem elas próprias. Desafio este para nós, a partir de uma reunião de indivíduos constituirmos um grupo.

Na chegada, surge alguma estranheza dos membros da instituição: Quem são essas pessoas? Como irmãos mais velhos, como se sentem com a chegada dos caçulas? Ameaça? Perda do colo? Dividir a mãe e o pai? Dividir o território? Perda ou ganho? Acréscimo ou ameaça de usurpação? Possibilidade de recriação ou repetição ante uma ameaça de castração?

Velas içadas, iniciamos uma viagem. Em março de 2006, éramos quinze marujos: alguns saíram, outros ingressaram, os desejos vão sendo delineados, chegando ao porto final em junho de 2010: Ana, Cassandra, Cinara, Dalvinéia, Gabriel, Jáureo, Maira, a turma O, 15º grupo de formação psicanalítica do Círculo Psicanalítico da Bahia.

Barco lançado ao mar, começamos esta viagem rumo à história da psicanálise, atravessamos o inconsciente em Freud com os atos falhos, sonhos, chistes; caminhamos rumo ao social, visitamos a psicologia dos grupos, o mal-estar na civilização e perguntamos: onde nos leva o futuro de uma ilusão? Desenterramos Gradiva, nos engasgamos com Totem e Tabu, e aí? Para onde vamos com tanto desamparo? Viajamos até Michelangelo, Moisés. Paramos nas lembranças encobridoras e no Édipo, sempre reinando. Vida e morte no mais além do princípio do prazer e, em seguida, visitamos os pós-freudianos, um desafio! Para, afinal, chegarmos aos casos clínicos de Freud, o estudo da técnica psicanalítica, e à questão: O que é ser psicanalista? Como serei na clínica? Será que posso? Será que consigo? Atravessamos a casuística e vimos que perfeição não existe, mas existe o desejo de sermos psicanalistas, existe o desejo de que nossos analisandos façam análise, existe a seriedade de um trabalho pautado na ética do bem-dizer, no afeto que faz liga e traz algum sentido para esse existir como humanos, seres marcados pela impotência ante as contingências da vida.

Em águas ainda por mim desconhecidas, naveguei com a turma, com um frio na barriga, mas acreditando no poder desse desejo de contribuir com a formação psicanalítica e de percorrer com o novo grupo um estudo sempre renovado do texto da psicanálise.

Nesse momento, com a chegada de pessoas novas à instituição, fenômenos de grupo acontecem, a homeostase psíquica grupal é rompida. Como uma casa que se desarruma ao chegar objetos novos, necessita-se de uma nova organização.

O que desejam aqueles que chegam? Como em todo nascimento, o que quer um filho senão ser aceito e amado pela família? O que pode demandar um grupo de estudo senão ser recebido com as suas diferenças, ser acolhido ao invés de temido? Esses temores são evocados a partir dos componentes esquizo-paranoides que o novo suscita, tanto no individual como no sujeito do grupo.

Nesse momento, a figura do coordenador de turma assume um papel fundamental ao lidar com esses componentes que emergem tanto do grupo em formação como dos membros da instituição. Podemos constatar, através da nossa vivência, que um coordenador não é apenas um executor de tarefas, um distribuidor de textos ou alguém que consegue colegas para desenvolver os seminários com a turma. O coordenador é o representante da instituição para aqueles que ingressam, é com ele que o grupo estabelecerá um vínculo transferencial, é ele que vai acatar ou rejeitar aqueles que chegam ou, então, ser tomado como agente de uma rejeição institucional, apesar de não concordar com posturas adotadas pelo grupo da instituição, porém, muitas vezes, sem nada poder fazer. É ele quem vai absorver as diferenças ou rechaçá-las, trabalhar os conflitos e lidar com os impasses do grupo. É o coordenador que vai servir de para-choques para os impactos que surgem dos membros da instituição em relação ao estranho que emerge com a entrada de elementos novos no grupo.

Sob as mais diferentes roupagens, surgem os sintomas dos membros da instituição com relação à turma em formação, assim como ao trabalho do coordenador. Do outro lado, as solicitações do grupo de estudo podem ser traduzidas numa demanda de aceitação e reconhecimento. Neste jogo de forças, a conflitualidade grupal, no sentido expresso por René Kaës (1997), tende a seguir dois caminhos: se a nova turma é aceita, surgem o sentimento de pertença ao grupo e o desejo de participação nas atividades da instituição, com ganhos inusitados para todos. Fica evidente a construção de um caminho com a elaboração do material reprimido que emerge não apenas dos sujeitos do grupo de estudo, assim como do grupo que já pertence à instituição. Assim, um novo arranjo pessoal e grupal torna-se possível, e, nessa recriação, a vida renasce e o espírito se renova; surge a possibilidade de, recriando-se, permanecer vivo, ou seja, constituindo-se no dizer psicanalítico. Se, ao contrário, sobrevém a recusa, o grupo de estudo se esfacela, e a morte se presentifica no isolamento e, posteriormente, na saída deles da instituição por se sentirem sem espaço nesta — a pulsão de morte torna-se soberana.

Desde o curso de psicanálise, na condição de aluna, percebi a peculiaridade desta tarefa e a impossibilidade de caminharmos com a transmissão sem estarmos atentos para os mecanismos de formação e funcionamento grupal. Afinal, um grupo não é a soma de indivíduos, ele se constitui a partir de uma construção psíquica comum, com fenômenos psíquicos específicos (KAËS,1997). É importante que nos posicionemos com relação aos problemas da realidade psíquica nos grupos e nas instituições, em vez de olhar os fenômenos grupais como expectadores de uma película cinematográfica a observar e registrar os fatos. Penso ser fundamental, para o desenvolvimento da formação psicanalítica, da instituição e do saber psicanalítico, uma particular atenção para os fenômenos grupais. Pergunto: Como trabalhar com formação psicanalítica sem atentar para a importância de transformarmos juntos aquela reunião de pessoas em um grupo? Grupo este em que sejam possíveis as diferenças de cada um, em que essas diferenças possam ser acolhidas e possamos, assim, tornar viável a emergência do recalcado, sem reafirmar a repressão embutida na busca do igual. Como trabalhar com formação psicanalítica sem privilegiar a escuta e a palavra?

Na conclusão do curso de formação, em 8 de junho de 2010, dediquei esta carta ao grupo:

Querida turma O:

O que, além do afeto, nos uniu? O que fez com que permanecêssemos lado a lado neste território cheio de fendas e minas da psicanálise? Digo minas em duplo sentido: de campo minado, sujeito a explosões, e fonte de riqueza, possibilitando construções. Caminhamos nesse território atravessado pela dualidade das pulsões, onde a vida e a criação podem prevalecer e o prazer triunfar.

Agradeço a vocês pela oportunidade de me debruçar sobre os textos de Freud e, nessa nova releitura, temperada pelas tantas questões preciosas que me fizeram, poder levantar tantas perguntas e caminhar por tantas fendas ainda não percorridas. Obrigada pela possibilidade desse convívio em grupo, grupo este que conseguimos constituir acolhendo as diferenças a partir de tantas discórdias, conquistando a possibilidade de saber além das nossas fronteiras e de conviver além do nosso “umbigo”, vendo o outro como alguém que sente, pensa e valora de forma diferente de nós mesmos. O nosso legado não foi feito através de palavras, nem as minhas são simplesmente palavras bonitas impressas em um papel, como é tão comum no humano, muitas vezes mais sofista que socrático. Nosso legado foi construído a partir do não saber, de suor, sangue, lágrimas e sorrisos; foi construído através dessa possibilidade de dizer a verdade, sempre não toda, mas dita, com uma disposição afetiva de chegar até o sentimento do outro atravessando as nossas dificuldades e limitações, usando as palavras, não de forma cínica para dizer: é isso mesmo, ou seja, consumatum est, mas para fazermos questão e, antes de qualquer coisa, permitir um olhar e a pergunta: — Onde eu errei? É sempre muito fácil apontar o erro do outro, difícil mesmo é olhar o próprio! Foi olhando os nossos erros que nos constituímos um grupo, foi enfrentando-os que conseguimos caminhar e transformar essas dificuldades em uma criação: A Turma O, hoje nossos colegas. O Círculo Psicanalítico da Bahia, nave mãe, reconhece e regozija-se com este legado que são vocês, psicanalistas que honram a nossa casa, casa esta que se constitui e somente poderá permanecer constituindo-se através do trabalho, da produção e, antes de mais nada, da transferência institucional, que só pode existir e vincular onde o afeto e a vida prevalecem.

Para finalizar, trago um trecho do livro O Diário de Bruno:

Sei que quando damos, deixamos de ter e aí há uma perda ou um luto. Por isso o ato de dar inclui ganhos insuspeitos para o altruísta. Ou, volto a invocar Barthes quando diz que o sujeito sabe que o que ele está dando ele não tem. É isso, ser menos humanista. Dei a eles o que não tinha e por isso não sou generoso. Imaginar-me com esta virtude é me escravizar a um heroísmo que me custará caro. E em minha crise de amor não me encontrarei nem pela virtude nem sendo generoso, pois isto não me leva ao que sinto ser o meu caminho (CORRÊA, 2008).

Virgínia Lúcia Britto
8 de junho de 2010.

 

 

Referências

BRITTO, Virgínia Lúcia. Recortes de uma história. In: Revista Cogito. Salvador: Círculo Psicanalítico da Bahia, p.129-131, 2005.         [ Links ]

______. Um lugar sem pai ou um eixo para a subversão institucional: história da institucionalização da Psicanálise na Bahia com o Círculo Psicanalítico da Bahia (1971 – 2004) – Um Estudo de Caso. Salvador, 2005. 117 p. Dissertação (Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências), Instituto de Física, Universidade Federal da Bahia.         [ Links ]

CORRÊA, Carlos Pinto. O diário de Bruno. Salvador: Macunaíma, 2008.         [ Links ]

______. Três tempos históricos: Lacan, pré e pós. In: Topos. Revista de Psicanálise, Salvador: ano 12, n. 12, p.85-93, 2009.         [ Links ]

 

 

*Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
1Música de Renato Russo: "Por Enquanto". www.musica.com

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