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Cógito
versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.12 Salvador 2011
O trauma, a fantasia e o Édipo
The trauma, the original fantasy and the Oedipus
Gabriel Câmara*
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
O autor faz uma revisão histórica do conceito de trauma na teoria freudiana, apontando para uma mudança de significação do termo ao longo do tempo. Opõe a teoria da fantasia à do trauma para destacar a primazia da primeira e salientar a função estruturante da fantasia originária, como derivada do complexo de Édipo de cada sujeito. Finalmente, questiona qual o papel reservado para o trauma na teoria psicanalítica atual e os motivos que levam os neuróticos a relatarem fantasias mascaradas de traumatismos.
Palavras-chave: Causalidade; fantasia originária; temporalidade; trauma.
ABSTRACT
The author makes a historical review of the concept of trauma in the Freudian theory, pointing to a change in the term’s meaning over time. Opposes the fantasy theory to the trauma’s theory to emphasize the primacy of the first one and highlight the structuring role of the original fantasy, as derived from the Oedipus complex of each subject. Finally, he asks what role is reserved for the concept of trauma in current psychoanalytic theory and reasons why the neurotic reports fantasies camouflaged with traumatic contents.
Key words: Causality; original fantasy; temporality; trauma.
A oposição entre trauma e fantasia está presente desde os primórdios da psicanálise. Colette Soler afirma que essa questão não é, para nós, uma questão de moda, mas uma questão que vem desde a origem e é sempre atual.
A teoria da fantasia substituiu a do trauma ao longo da evolução da teoria psicanalítica. Foi necessário para Freud destituir a teoria da sedução, desistir de sua neurótica, que já não se sustentava na prática. De onde vem a neurose? Progressivamente, a ideia de traumatismo foi sendo colocada num segundo plano, num nível inferior de importância causal, e salientou-se a fantasia como o elemento causador de sintomas psicogênicos.
Essa mudança se impôs a Freud, pois, ao procurar o esclarecimento dos seus pacientes sobre a cena traumática, o que ele encontrou foi uma fantasia, ou um relato no qual se torna difícil a distinção entre o que ocorreu na realidade e o que é uma construção imaginária. O que Freud viu, na maioria das vezes, foi a fantasia mascarada de traumatismo. Na “Conferência XXIII” (1917) ao abordar a confusão que pode surgir na clínica sobre qual o grau de realidade do que é relatado pelo analisando, ele diz: “[...] após alguma reflexão facilmente poderemos entender o que é que existe nessa situação que tanto nos confunde. É o reduzido valor concedido à realidade, é a desatenção à diferença entre realidade e fantasia”1. Então, ele contrapõe a realidade psíquica à realidade material e conclui que as fantasias possuem realidade psíquica e que, na prática analítica, a realidade psíquica é a realidade decisiva.
O termo fantasia designa a imaginação, o mundo imaginário, os seus conteúdos, a atividade criadora que o anima. A psicanálise se utiliza desse termo de diversas maneiras. Freud não distingue com precisão as fantasias inconscientes das fantasias conscientes, mas afirma que sua origem é inconsciente, e que isso é decisivo para o seu destino. O que quer dizer que se a fantasia não entra em conflito com o eu, é porque ela não tem intensidade suficiente para ameaçá-lo. Porém, se a quantidade de libido que é investida na fantasia aumenta, como em determinadas circunstâncias de vida na qual o indivíduo necessite renunciar muito ao prazer que pode fruir na realidade, inevitavelmente será arrastada para o inconsciente e recalcada. E são justamente essas fantasias que não se podem tornar conscientes que desencadeiam os sintomas neuróticos.
É por esse viés que Freud aborda o tema fantasia na “Conferência XXIII”. Iniciando pelo sintoma, ele chega à fantasia que está em sua base. A fantasia determina o sintoma. A retração da libido para a fantasia é o meio caminho para a formação dos sintomas. Mas fantasiar é princípio do prazer, é uma construção para conseguir prazer. Freud chega a afirmar que não podemos passar sem essa construção auxiliar que é a fantasia, pois os homens não podem subsistir com a escassa satisfação que podem obter da realidade. A fantasia é o elemento psíquico que escapa do teste de realidade. Se o sintoma está articulado com a fantasia é porque ambos representam a realização de um desejo. E se esse desejo não pode ser realizado, por influência das instâncias repressoras, então o sintoma é uma satisfação substituta de uma fantasia de desejo, uma formação de compromisso entre duas tendências psíquicas opostas.
Porque, então, as histéricas relatam uma fantasia mascarada de trauma? Freud se pergunta isso, e nesse momento ele acaba sugerindo que a culpa é da pulsão. Além disso, ele chega ao ponto que toca no real da fantasia, aí ele se esbarra com um “nada mais sei sobre isso”, e atribui essa face traumática da fantasia à herança filogenética.
Quanto ao trauma, ele pode ser considerado como algo que vem de fora, como um choque violento que exclui o sujeito. O trauma exclui o sujeito porque não é articulado ao desejo, é alguma coisa que vem de fora e que tem intensidade suficiente para superar a capacidade do sujeito de dominar e elaborar psiquicamente o ocorrido. Por isso mesmo, por ser algo da natureza de um evento e de não poder ser significado, é que o trauma é da ordem do real. O trauma é o elemento impossível de afastar segundo as normas do princípio do prazer.
A temporalidade do trauma é de ruptura, de um instante, porém, de um instante que promove uma mudança permanente no sujeito. O trauma se espalha e manifesta seus efeitos em diversos processos psíquicos.
A temporalidade da fantasia é constante, é o chão do sujeito. Freud explora a relação do tempo com a fantasia, dizendo que a fantasia entrelaça o passado, o presente e o futuro, pois o indivíduo vive uma situação no presente, que desperta um de seus desejos infantis mais intensos. Com isso, a ideia investida por esse desejo do passado (infantil) é reativada, e então o indivíduo cria uma situação no futuro que representa a realização do desejo. Ou seja, a fantasia abole o tempo, o que traz o funcionamento do próprio inconsciente, regido pelo processo primário.
A histérica vive o tempo de sua fantasia, a fantasia domina seu cotidiano. Isso se torna patológico a partir do ponto em que o indivíduo afasta-se demasiadamente da realidade, só obtendo satisfação com o fantasiar. Uma enorme quantidade de afeto é investida na fantasia, restando pouca libido para distribuir aos objetos externos.
A histérica sabe que o desejo é para desejar, além do mais, ela quer um Outro que saiba e que produza o saber sobre o agalma do desejo. Ela quer se sentir desejada. Ela é causa de desejo, mas não quer que o Outro goze. No final, no momento da satisfação da demanda pulsional, ela diz “não” ao gozo e sustenta seu desejo como desejo insatisfeito. Acontece que essa descarga pulsional represada retorna para a fantasia, insuflando-a, e novas fantasias são construídas, oferecendo novos objetos imaginários para manter o desejo realizado apenas fantasisticamente.
No fantasiar, há um domínio total do sujeito, ele pode manter a relação com seus objetos imaginários da forma que melhor lhe apraz. É uma tentativa de retornar ao estado de completude. Não obedecendo ao princípio de realidade, a fantasia descarta a necessidade de ajustar o desejo do sujeito com o desejo do outro. A atividade do fantasiar não segue as regras do princípio de realidade.
A fantasia é uma matriz simbólico-imaginária que permite ao sujeito fazer face ao real do gozo, servindo para tamponar a falta, como uma sutura do sujeito na qual a lacuna do sujeito é tamponada. Na neurose, a fantasia de completude é, em essência, uma fantasia de completude amorosa.
A FANTASIA ORIGINÁRIA E O ÉDIPO
Freud trabalha com o conceito de fantasia originária nos escritos de 1915. Laplanche2 descreve as fantasias originárias como “[...] estruturas fantasísticas típicas (vida intra-uterina, cena originária, castração, sedução) que a psicanálise descobre como organizando a vida fantasística sejam quais forem as experiências pessoais dos sujeitos”. Essas fantasias são constantes, aparecem repetitivamente na prática clínica, e Freud atribui sua universalidade pelo fato de constituírem um patrimônio transmitido filogeneticamente. São fantasias que, de acordo com ele, trazem recordações da verdade dos antepassados.
Evoluir na questão do que Freud considerou como herança filogenética não é o objetivo deste artigo, mas se trata aqui da questão da origem, da etiologia da neurose, que Freud nunca desistiu de procurar. Apesar de Laplanche afirmar que não se compreende bem o que Freud entende pela noção fantasia originária, ele sugere que essa fantasia está vinculada ao complexo de Édipo.
A fantasia originária é uma fantasia edípica. Em “Uma criança é espancada” (1919), Freud afirma que a fantasia de espancamento é construída quando a criança está envolvida nas agitações de seu complexo parental. Não podemos perder de vista que, nesse artigo, Freud trata principalmente da etiologia das perversões sexuais, por isso mesmo que o artigo traz como subtítulo “Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais”. Porém, como acontece na maioria dos escritos de Freud, independente do assunto abordado, há sempre informações que extrapolam o objetivo principal e que podem servir como verdades de um alcance mais amplo. Parece ser o caso do artigo referenciado, cujo tema é “perversões sexuais”, mas, ao se ler o texto, infere-se que trata, também, dos casos de neurose.
A fantasia originária é inconsciente e deriva do complexo de Édipo. Com a dissolução desse complexo, a fantasia permanece como resíduo e irá determinar a posição do sujeito nas suas relações. A fantasia implica a posição do sujeito em relação ao seu gozo.
Essa fantasia primitiva pode ter sido fonte de grande prazer para o sujeito, porém o relato do adulto é de uma vivência de angústia, traumatizante. Na última parte do “Projeto para uma psicologia científica” (1895), Freud relata o caso da jovem histérica com fobia de lojas e acreditou ter encontrado a cena traumática originária quando esta lhe relatou que, quando contava apenas oito anos de idade, foi tocada através de seu vestido por um homem bem mais velho. Trago aqui esse caso para perguntar se essa cena realmente funcionou como traumática ou se Freud deixou escapar alguma outra informação que lhe trouxesse a verdade do trauma, já que, naquele período, ele ainda não havia descoberto o valor da fantasia no relato das pacientes.
Não que o relato da jovem fosse o de uma fantasia, provavelmente o que ela relatou foi uma lembrança que estava recalcada no inconsciente. Os analisandos, ao longo da análise, conseguem, junto com o analista, diferenciar o que do seu discurso é fantasia do que de fato aconteceu no passado e ficou como uma lembrança inconsciente.
A cena da jovem histérica pode, de fato, ter sido uma cena traumática, mas o que quero dizer é que, muitas vezes, o trauma não está ali onde o psicanalista pensa encontrá-lo, mas em outro lugar. É que a natureza do trauma não é necessariamente a de um evento, como uma cena que se desdobra em seus diferentes momentos. O trauma também traz alguma coisa da subjetividade, pois ele é individual. Portanto, não seria de estranhar se o trauma pudesse funcionar como um complexo, um amontoado de impressões que, em determinado momento, e só a posteriori, vem a se propagar na vida subjetiva do sujeito como uma onda.
ONDE ESTÁ O TRAUMA?
Esse caso não nos serve muito de exemplo, pois foi relatado por Freud muito precocemente, antes mesmo do primeiro texto verdadeiramente psicanalítico. Naquela época, ele ainda estava muito focado no trauma como o evento indispensável para o futuro adoecimento psíquico do sujeito. Aí se trata do passado longínquo, das teorias pré-psicanalíticas.
Se fizermos uma revisão histórica do termo trauma ao longo da evolução da teoria freudiana, perceberemos que ele utilizava muito esse termo até o período imediatamente anterior à virada do século XIX para o XX. Paulatinamente, o termo se torna cada vez menos frequente, e, em seus textos mais amadurecidos, Freud pouco o utiliza. Dois desses textos merecem ser destacados: “Além do princípio de prazer” (1920) e “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926).
Em “Além do princípio de prazer”, ele descreve o trauma como arrombamento extenso e não limitado, como um afluxo excessivo de excitação que impede o aparelho psíquico de realizar a tarefa de ligar essas excitações de forma a permitir ulteriormente a sua descarga. Ele trata do trauma como força física e utiliza termos como “violência mecânica do trauma”. Nesse texto, o termo trauma está vinculado, em primeiro plano, às neuroses de guerra, à forma clínica das neuroses traumáticas.
Posteriormente, em “Inibições, sintomas e ansiedade”, ele relaciona o trauma com a angústia, que seria um sinal de alerta contra o perigo das excitações pulsionais, que representariam uma situação traumática para o eu, que se vê sem recursos para lidar com esses elementos inconscientes perturbadores. Mas o fato é que, na segunda tópica, Freud usa o termo trauma sem uma definição precisa, não mais o utiliza para se referir ao trauma originário da infância, como elemento pivô do adoecimento neurótico.
Atualmente, não gostamos de nos referir ao termo trauma, sendo um termo que está fora da literatura psicanalítica contemporânea. Inclusive, no Dicionário de psicanálise, de Roudinesco (1998), o termo trauma só é mencionado, porém não se define seu conceito. Nesse dicionário, se quisermos saber algo sobre esse termo, temos de procurar em “Teoria da sedução”. É bem verdade que o nascimento da psicanálise se deu após Freud abandonar essa teoria.
Colette Soler (2004) afirma que a questão de se implicar ou não o trauma como causa de neurose não é meramente científica. Antes, ela é ética, pois implicar o trauma como causa de adoecimento psíquico é redimir o sujeito de sua culpa. Se a culpa é do trauma, então, só resta ao sujeito o lugar de vítima ou de objeto que sofre o trauma. É necessário que o sujeito reconheça sua implicação subjetiva na causa de seus próprios sintomas, pois, sem esta implicação, não se entra em análise. Dá para entender a razão que levou a psicanálise a se afastar do trauma.
POR QUE OS NEURÓTICOS RELATAM A FANTASIA MASCARADA DE TRAUMA?
Passado o trauma, encaminho essa pergunta. O percurso de análise é um percurso de destituição subjetiva. Ao longo do caminho, o analisando reencontra seu complexo de Édipo e pode, então, ressignificar suas vivências daquele período. Suas fantasias serão paulatinamente decantadas, até se chegar à fantasia originária.
Construir ou reconstruir a fantasia na análise possibilita ao sujeito voltar a sentir prazer com essa fantasia. Os analisandos relatam suas fantasias mascaradas de trauma, provavelmente para encobrir o prazer das descobertas sexuais do período correspondente ao do complexo de Édipo. Freud relata que a fantasia de sedução, por exemplo, geralmente é utilizada por uma criança para encobrir o período autoerótico de sua atividade sexual. Relatando sua fantasia como trauma, o analisando se posiciona no lugar de objeto, de vítima, e, portanto, sem se culpar por seus desejos, que ele considera proscritos.
O sentimento de culpa, que procede da dissolução do complexo de Édipo, tem papel preponderante aí, impedindo que o sujeito tenha prazer com sua fantasia edípica. O recalque tratou de transformar a sensação de prazer em desprazer, pois trata do retorno dessa fantasia como trata qualquer outro tipo de retorno do recalcado, ou seja, sinalizando um perigo com o surgimento do afeto de angústia.
Freud afirma que a segunda fase da fantasia de “Uma criança é espancada” é a mais importante, ela é inconsciente, jamais conseguiu tornar-se consciente e é uma construção da análise. Assim é a fantasia fundamental de Lacan, que é construída no fim de análise, na interação entre analista-analisando. A fantasia prende o sujeito, pois seu desejo está fixo nela.
Chegar à fantasia fundamental é chegar a um ponto limite da análise; limite onde se encontra a construção, a estrutura erigida pelo sujeito, quando de frente para o real da castração.
No fim da análise, espera-se que o sujeito mude sua relação com a fantasia, assumindo, assim, uma nova posição desejante.
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* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Psiquiatra.
1 FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise. [1917]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.XVII: Conferência XXIII, p.361.
2 LAPLANCHE; PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.174.