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Cógito
versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.12 Salvador 2011
O lugar do psicanalista e o sintoma como fonte de mal-estar
The psychoanalyst’s position and the symptom as source of discomfort
Júlio Eduardo de Castro*
Universidade Federal de São João del Rei
RESUMO
Este artigo aborda a ética da psicanálise que é transmitida, antes de tudo, a partir da experiência intensiva, também chamada de a análise do analista. Para tal, recorre à obra de Freud e ao ensino de Lacan, principalmente no que diz respeito ao estatuto do sintoma na teoria psicanalítica e aos nomeados ‘operadores éticos do analista’. Do ensino de Lacan, extraímos estes operadores clínicos da ética psicanalítica: o desejo do analista; o discurso do analista; o ato do analista; o saber do analista. Esses operadores cumprem aqui a função de serem coordenadas teórico-conceituais a nos guiar na abordagem do mal-estar proveniente do sintoma que, inexoravelmente, leva um sujeito a buscar a psicanálise como modo de tratamento. Da tomada/abordagem do sintoma no campo da ética da psicanálise, retiram-se consequências quanto ao agir do analista na operacionalização dessa mesma ética.
Palavras-chave: psicanálise em intensão; sintoma; ética da psicanálise.
ABSTRACT
This article approaches the ethics of the psychoanalysis that is transmitted by intensive experience, also called the psychoanalyst’s analysis. In order to do that, it falls back upon Freud’s work and Lacan’s guideline mainly in what it comes to the rule of the symptoms in the psychoanalytic theory and also the so called ‘psychoanalyst’s ethical operators’. From Lacan’s teachings, we extract these clinical operators of the psychoanalytic ethics: the psychoanalyst’s desire; the psychoanalyst’s discourse; the psychoanalyst’s acting; the psychoanalyst’s knowledge. These operators fulfill the role of being the theoretical-conceptual guideline to guide us at the approach of the discomfort from the symptom that inexorably makes one to look for the psychoanalysis as a treatment. Concerning the symptom at the psychoanalysis ethics, we get consequences towards the acting of the psychoanalyst when operating this same ethics.
Key words: intensive psychoanalysis; symptom; psychoanalysis ethic.
Qual será o lugar do psicanalista? Será possível defini-lo ou ao menos delimitá-lo topologicamente? Se esse lugar existe, será possível apreendê-lo por meio do saber acadêmico, ou seja, do saber teórico-conceitual? Ou será que sua transmissão se faz de um modo diferenciado e, antes de tudo, na experiência intensiva do sujeito com a psicanálise? Como abordar este lugar que é a-conceitual e radicalmente fora do sentido?
Essas são questões elementares para a abordagem do aqui chamado ‘lugar do psicanalista’.
Do ensino de Lacan, extraímos que o psicanalista é tão indefinível quanto a mulher. Nem um nem outro dispõem de significantes que nos convençam sobre o que sejam o psicanalista e a mulher — a não ser que nos contentássemos com os semblantes oferecidos no mercado da cultura, o que não é o nosso caso. A impossibilidade de definição desses dois termos, o psicanalista e a mulher, aponta então para um denominador comum: há neles a presentificação de algo que escapole ao gozo do sentido, à função/significação fálica. Ocupar um espaço fora do sentido, cada um ao seu modo, é, portanto, o que aproxima o psicanalista da feminilidade.
Entretanto, a impossibilidade de definição do que seja o psicanalista não impediu Lacan de abordá-lo por meio de três escritas específicas: a aforística, a algébrica e a topológica. Praticamente todas as referências de Lacan ao objeto a são tentativas de delimitação do que seria o lugar do psicanalista. ‘Fazer semblante de objeto a’ é talvez a formulação aforística lacaniana mais conhecida a esse respeito. Sobre esse objeto, Lacan diz ser ele insólito1 , oco, hiância, lugar da falta, do vazio necessário à criação, manutenção e funcionamento de toda e qualquer estrutura subjetiva. Outra formulação digna de destaque, esta sim nitidamente topológica, localiza o objeto a na interseção dos três registros RSI2 , no tradicional nó borromeano a três. Mas a referência digna de nota que apontamos aqui3 , delimita o lugar do psicanalista entre o UM e o ZERO, entre um sexo e o Outro sexo. Também o objeto a é situado nessa posição de metaxi, sendo aproximado dos chamados números irracionais. Nesse Seminário, a alusão à teoria dos conjuntos é aberta, principalmente quando Lacan focaliza o que seria o conjunto vazio: UM conjunto com ZERO elementos. Lacan argumenta que o UM pressupõe o ZERO ou mesmo nele se sustenta, já que o vazio de elementos é o que se repete em todo e qualquer conjunto possível. Talvez essa possa ser uma delimitação topológica consistente para o que temos chamado até aqui de ‘o lugar do psicanalista’: o conjunto vazio — que tem a vantagem de trazer a dimensão matemática dos significantes ZERO e UM (0→1).
Uma vez que, literalmente, ‘lugar’ remete a uma parte do espaço, sabemos o quanto o espaço psicanalítico é complexo — porque subjetivado, por um lado (da parte do psicanalisante), e, por outro, des-subjetivado (da parte do psicanalista). E é entre esses dois extremos — o sujeito em análise e o des-ser do psicanalista – que a psicanálise em intensão se faz.
Já sabemos desde Freud que, além da transferência, o sintoma é uma das condições necessárias a toda e qualquer entrada em análise. Por esse aspecto, o sintoma é, na verdade, um outro nome para o mal-estar, sempre singularizado, presente na vida de um sujeito. Todavia, aprendemos, com Freud e com Lacan, que não basta somente a existência desse mal-estar sintomático para que uma análise seja feita ou ao menos iniciada. Além de sua presença, é necessário que o sofrimento gerado pelo sintoma traga em seu bojo um toque de questão/enigma endereçada ao sujeito, ou seja, é imprescindível que haja, nesse sofrimento, um a mais que desperte o sujeito suposto saber. Transferência e sintoma são, portanto, termos articulados por Freud como condições indispensáveis à experiência intensiva com a psicanálise. Se, sem o sintoma, não há como chegar à psicanálise, como o desejo do psicanalista lida com o mal-estar e com o sofrimento daí decorrentes? Já que o sintoma atravessa todo o processo intensivo, podemos pensar no mal-estar dele decorrente em diversos tempos do processo psicanalítico: no início, no meio e no fim de uma psicanálise? E em cada um desses tempos, esse mal-estar teria uma função diferente?
Sobre o mal-estar, no sentido lato, nunca é demais lembrar que Freud o tem como inevitável e, mais ainda, como o preço pago pelo homem civilizado por ter acesso aos recursos simbólicos e normativos veiculados pela cultura/família. Por esta faceta, o mal-estar é um fenômeno inerente ao campo da ética. Qualquer ganho cultural implicaria, portanto, segundo Freud, perda na satisfação pulsional: mais-gozar da cultura e menos-gozar da libido. A neurose é tida por Freud como um dos efeitos da civilização – e o nome clínico formulado por ele para nos dizer desse efeito na clínica, é ‘sintoma’. Portanto, na teoria freudiana, sintoma e sujeito são termos que, mais do que articulados entre si, em alguns aspectos se sobrepõem, mantêm certa interseção. O próprio Freud chega a afirmar que, quanto mais subjetivado for o sintoma, ou seja, quanto mais ele se afastar dos estereótipos/padrões/tipos nosológicos e nosográficos, mais chances de solução do enigma que carrega. De modo que o toque particular (atípico) dado ao sintoma traz a chance de abertura do inconsciente.
O sintoma é, certamente, a formação do inconsciente que mais é acompanhada de um mal-estar assumido pelo sujeito ou, como nos disse Freud, do ‘sofrimento gerado pela doença neurótica’. Por esse aspecto, o sintoma é a manifestação do sujeito do inconsciente a partir da estrutura neurótica. Com certeza, essa maior proximidade do mal-estar é que faz dele, o sintoma, uma condição fundamental a toda e qualquer entrada possível na psicanálise em intensão. Portanto, o sintoma, ao lado da transferência, são as únicas formações do inconsciente indispensáveis ao ingresso intensivo na psicanálise.
Percorrendo a obra de Freud, observamos que o sintoma neurótico é constituído a partir de duas dimensões: a dimensão do enigma e a dimensão da vazão/satisfação libidinal. Esta díade, enigma-libido, foi retomada por Lacan sob a égide dos três registros: SIR4 e, posteriormente, RSI5 . A partir daí, o sintoma passa a ser composto: por um núcleo real (irredutível); pelas determinações simbólicas do Outro (sobredeterminadas /Überdeterminierung); e pelas formas imaginárias (o seu envelope formal, os seus véus). Com a leitura de que há Outro gozo, além do gozo fálico, inerente ao sintoma — enquanto manifestação real da sexualidade humana —, Lacan recupera a radicalidade do conceito freudiano de ‘libido’, apesar de essa recuperação questionar seriamente a equivalência que Freud estabeleceu da atividade da libido à masculinidade.
Em seu ensino, Lacan ressalta que, nas análises, se o sintoma-enigma, ao lado do sujeito suposto saber, abre a perspectiva do inconsciente, o real do sintoma anuncia seu fechamento e o desengano do sujeito suposto saber. Vemos que Lacan coloca o sintoma do início ao fim da psicanálise em intensão. Portanto, ‘se haver com o sintoma’ envolve passar por essas duas modulações: a de abertura e a de fechamento do inconsciente. Há um tempo de abertura, marcado pelo engano do sujeito-suposto-saber – e um tempo de fechamento, marcado pela sua destituição ou desengano. Enganar-se e desenganar-se quanto às suposições tecidas ao redor do sujeito e do saber trazem, então, a marca de dois tempos lógicos na abordagem do sintoma pela psicanálise.
Ao render homenagem a Marx — tido por Lacan como o inventor do sintoma enquanto contendo um valor de verdade —, Lacan retoma sua fórmula do sujeito suposto saber como fundamento e pivô dos fenômenos de transferência. Reafirma, então, que o saber é pressuposto à função do analista pelo que o sintoma indica do valor de verdade. Portanto, o sintoma, “[...] na psicanálise, diz respeito a algo que é a tradução em palavras de seu valor de verdade” 6. E a escrita desse valor de verdade do sintoma é a cifra, a letra como modo lógico de escrever a impossibilidade da relação sexual subjacente a ele, ao sintoma. “O sintoma não se cura, da mesma forma na dialética marxista e na psicanálise. Na psicanálise, diz respeito a algo que é a tradução em palavras de seu valor de verdade”7 .
A dicotomia ‘semblante’ e ‘verdade’ é superada por Lacan por meio da criação da expressão composta ‘semblante de verdade’, expressão feita para se referir à transferência e seu eixo: o sujeito suposto saber. ‘Fazer semblante de objeto a’ é, antes de tudo, suportar esse engano necessário a toda e qualquer entrada em análise — é, precisamente, se deixar usar como semblante de verdade (a) que põe em movimento (→) o sujeito ($). Temos aí o matema, ou estrutura mínima, do desejo do psicanalista e sua relação com o saber suposto ao sujeito. Lacan se pergunta ainda “[...] se verdade ou semblante não é tudo um”8 . Afirma ainda sobre o sintoma: “[...] é o amor da verdade, se posso dizer, por si mesma, que o condiciona”9.
Nesse Seminário, Lacan dedica várias linhas à palavra ‘campo’ enquanto designação do Real:
Este campo assim considerado, dando a chave da incompreensão enquanto tal, é precisamente o que nos permite excluir dele qualquer psicologia. Os campos dos quais se trata são constituídos de Real, tão real quanto o torpedo e o dedo de um inocente que acaba de tocá-lo. Não é porque abordamos o matema pelas vias do Simbólico que não se trata do Real. A verdade em questão na psicanálise é aquilo que, por intermédio da linguagem, quero dizer, pela função da palavra, aborda, mas numa abordagem que não é de maneira nenhuma de conhecimento, mas, direi, de algo como indução, no sentido que esse termo tem na constituição de um campo, indução de alguma coisa que é inteiramente real, ainda que disso não possamos falar senão como significante. Quero dizer que não têm outra existência a não ser de significante.10
Lacan ainda reafirma: “Não sabemos nada de real sobre estes homens e estas mulheres como tais [..] homens e mulheres – isso é real”11 .
Sobre esse campo real, Lacan diz ainda que ele “[...] é a dimensão inteira do gozo, isto é, a relação desse ser falante com seu corpo – pois não há outra definição possível de gozo – ninguém parece ter-se dado conta de que é nesse nível que está a questão"12.
A partir daí, Lacan passa pela sexualidade infantil freudiana, com a retomada dos seus fundamentos perverso-polimorfos, para desembocar “[...] no semblante daquilo que se chama um homem ou uma mulher”13 .
A teoria dos discursos é, nessa lição relembrada por Lacan, com destaque para o discurso do psicanalista. Ao partir do matema deste discurso (a → $), principalmente pela posição que o objeto a aí ocupa, qual seja, a posição de semblante, Lacan nos diz:
O objeto a é certamente um objeto, mas apenas no sentido de substituir definitivamente toda noção de objeto enquanto suportado por um sujeito. Esta não é a relação dita do conhecimento. É muito curioso, quando a estudamos em detalhe, ver que termináramos fazendo com que um dos termos dessa relação do conhecimento, o sujeito em questão, não fosse mais que a sombra de uma sombra, um reflexo perfeitamente evanescente. O objeto a só é um objeto no sentido de que está aí para afirmar que nada da ordem do saber existe sem produzi-lo. É completamente diferente de conhecê-lo. O discurso psicanalítico só pode ser articulado ao mostrar que este objeto a, para que haja chance de analista, é necessário que uma determinada operação, chamada experiência psicanalítica, tenha trazido o objeto a ao lugar do semblante.14
A “relação totalmente anômala e estranha com seu gozo”15 e “É verdadeiramente necessário ser um homem para acreditar que copular faz gozar?”16 são os pontos de chegada desta lição. Aí Lacan traz de volta algumas de suas definições do Real (em sua relação com a castração) e de alíngua (enquanto fruto da operação de disjunção do gozo sexual). Assim, Lacan finaliza a lição em que pretendeu indicar o estatuto do psicanalista no âmbito do semblante, principalmente no que tange à relação do semblante com a verdade e com o gozo sexual.
Se o sintoma é um índice clínico do mal-estar na cultura, o que o desejo do psicanalista faz dele é tomá-lo como motivo e chamada para o trabalho psicanalítico, tomá-lo como ‘força motriz’ elementar para a psicanálise em intensão. E o saber do psicanalista deveria levá-lo a sério do início ao fim do processo psicanalítico. Afinal, o sintoma é tanto criação de um sujeito, quanto modo de gozo que insiste e retorna sempre ao mesmo lugar. Do início ao fim de uma psicanálise, o sintoma passa, neste sentido, do seu reconhecimento pelo psicanalisante, até seu esvaziamento significante. Enquanto o sujeito em análise é destituído de algumas de suas identificações, ocorre, por decorrência, a exoneração da face cifrada do sintoma. Todavia, resta sempre o seu núcleo libidinal irredutível a toda e qualquer interpretação, núcleo este que se encontra em interseção com aquele que o carrega, o sujeito, ou o que restou dele. E o psicanalisante haverá de se haver com esse núcleo.
Referências
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LACAN, J. ... ou pior: Relatório do Seminário de 1971-1972. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. [ Links ]
* Professor/pesquisador da Universidade Federal de São João del Rei; Mestrado em Educação pela PUC-Rio (2000), Doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2006); Pós-Doutorado em Psicologia pela PUC-Minas (2012).
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1 LACAN, J. O Seminário 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
2 LACAN, J. O Seminário 22: RSI [1974-1975]. Versão anônima em francês e português, sem data.
3 LACAN, J. O Seminário 19: [2ª parte] o saber do psicanalista [1971-1972]. Recife: Publicação não comercial exclusiva para membros do CENTRO DE ESTUDOS FREUDIANOS DO RECIFE, 1997.
4 LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise [1953]. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
5 LACAN, J. O Seminário 22: RSI [1974-1975], op. cit.
6 LACAN, J. O Seminário 19: [2ª parte] o saber do psicanalista [1971-1972], op. cit., p.30.
7 Id., ibid., p. 31.
8 Id., ibid., p.32.
9 Id., ibid., p. 33.
10 Id., ibid., p. 34-35.
11 Id., ibid., p. 35.
12 Id., ibid., p. 36.
13 LACAN, J. O Seminário 19: [2ª parte] o saber do psicanalista [1971-1972], op. cit., p.36.
14 Id., loc. cit.
15 Id., ibid., p.39.
16 Id., ibid., p.40.