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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.14  Salvador nov. 2013

 

Um olhar psicanalítico sobre o universo feminino no filme 'Colcha de retalhos'

 

A psychoanalytic look at the female universe in the movie 'How to make an american quilt'

 

 

Angela Maria Menezes de Almeida *

Círculo Brasileiro de Psicanálise - seção Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Este estudo parte da análise do filme americano, Colcha de Retalhos, do Diretor Jocelyn Moorhouse, como veículo instigador de um processo de reflexão sobre o universo feminino. A partir de um enfoque psicanalítico, algumas cenas do filme são destacadas na tentativa de se buscar um entrelaçamento de conceitos abordados por esta teoria e o processo de constituição da subjetividade de cada mulher, em especial. Traz, também, à reflexão, as dimensões éticas e estéticas, a partir da configuração de um modo de trabalho denominado patchwork, que se mostra como espaço facilitador do processo de subjetivação.

Palavras-chave: psicanálise; cinema; constituição da feminilidade; alienação e separação; masoquismo; sublimação; estética criadora.


ABSTRACT

This study begins with the analysis of the movie ‘How to make an American quilt’, directed by Jocelyn Moorhouse, which instigated a reflexive process about the female universe. Adopting a psychoanalytic view, some scenes of the film were highlighted in an attempt to seek an interweaving of concepts proposed by this theory and, in particular, a close look at the constitution of every single woman’s subjectivity. It also brings to reflection an exploration of ethical and aesthetic dimensions, as the result of a methodology known as patchwork, which facilitates the process of subjectification.

Keywords: Psychoanalysis, cinema; constitution of femininity; alienation and separation; masochism; sublimation; creative aesthetic.


 

 

O filme Colcha de Retalhos, baseado no livro “How to make an American Quilt”, do escritor Whitney Otto, foi lançado nos EUA em 1995, tendo como Diretor Jocelyn Moorhouse. Trata-se de um drama romântico sobre o universo feminino. Conta a história de uma jovem universitária que decide passar o verão na companhia da avó e da tia, pois encontra-se confusa em relação a seus sentimentos pelo noivo, e precisa terminar sua dissertação de mestrado, que gira em torno da história de mulheres, de diferentes culturas, que, ao realizarem trabalhos manuais, participam de um ritual. Um grupo de amigas prepara uma colcha de retalhos como presente de casamento para Finn. Enquanto a colcha é elaborada, Finn, a protagonista, ouve o relato de paixões e envolvimentos, nem sempre moralmente aprováveis, mas repletos de sentimentos que estas mulheres viveram. Esta colcha de retalhos, tecida com a técnica de patchwork, vai se configurar como uma estética criadora de oportunidades e de transformações, fazendo emergir novos modos de existência.

Iniciamos esta reflexão buscando, na obra psicanalítica, situar a questão do feminino, uma vez que ao nos perguntarmos como se constituíram e se fixaram os discursos sobre o caráter feminino e o ideal de feminilidade, na era moderna, temos clareza de que sua produção se deu a partir da posição masculina, dentro de um contexto histórico.

O final do século XIX e início do século XX, momento em que nasce a psicanálise, nos instiga a um olhar mais atento sobre a condição da mulher na sociedade ocidental. Então, vamos tentar entender o que estava acontecendo com as mulheres no momento da passagem da tradição para a modernidade, quando foi criada a psicanálise.

A cultura europeia, daqueles idos, produzia um discurso que visava promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições, denominado feminilidade. Assim, era definida a natureza das mulheres. As virtudes próprias da feminilidade pautavam-se no recato, na docilidade, na receptividade passiva em relação aos desejos e necessidades dos homens. Por outro lado, num evidente paradoxo, uma ideia bastante corrente, naquele momento, apontava que a natureza feminina precisaria ser domada pela sociedade e pela educação para que as mulheres pudessem cumprir o destino ao qual estariam, naturalmente, designadas – serem esposas e mães.

Os discursos veiculados, nesse período, entendidos de acordo com o sentido atribuído por Michel Foucault (1988) – produção de saberes que compõem o pensamento, ou seja, que compõem a episteme de uma época – construíram, pois, uma dupla imagem da mulher, conforme pontua Nunes:

De um lado, fortaleceram a ideia do ser frágil, dependente, assexuado e passivo, do outro, desenharam-na como portadora de um excesso sexual ameaçador que punha em risco o modelo familiar burguês. No centro desse debate, surgiu a preocupação com a sexualidade feminina, pensada como ameaça à espécie e à ordem social, um tipo de força bruta, autônoma e próxima da animalidade, que podia explodir a qualquer hora, desvirtuando a passividade do caráter feminino. Era preciso, portanto, disciplinar a sexualidade feminina, a fim de minimizar os riscos de desregramento e maximizar sua potencialidade geradora, reprodutiva (in: BIRMAN, 2002, p.39).

Ao aceitar, com passividade, ocupar a posição de mantenedoras da ordem e da harmonia do lar, as mulheres se inscreveram sob duas formas de alienação: primeiramente, afastando-se do espaço social, mantiveram-se distantes das disputas de poder que definiriam seus próprios destinos. Quanto a isto, Maria Rita Kehl afirma que “sem acesso ao poder político, as mulheres não teriam meios de garantir os outros direitos fundamentais para se tornar sujeitos de suas próprias histórias”(2008,p.66). Num segundo plano, subjetivo, houve a renúncia de se apropriarem de uma das formas universais do falo: a fala. Ao emudecerem, deixaram de participar do que Freud veio a chamar de “as grandes tarefas da cultura”, permanecendo, assim, socialmente invisíveis.

A este conjunto de circunstâncias sociais, que teve como base o modo de vida e o ideário burguês, a mulher foi subjugada a uma posição de “feminilidade”, forjada pelo discurso masculino. Esta mesma “feminilidade”, entrando em crise, ainda no século XIX, produziu a histeria como modo dominante de expressão de um sofrimento psíquico. Diante da coerção a seu corpo, sua sexualidade e sua vida, de modo geral, as mulheres encontraram, nos sintomas histéricos, uma forma de dramatizar sua insatisfação e seu protesto.

Foi com essas mulheres, marcadas por uma sintomatologia de conversão, que Freud se deparou em seu consultório, e que o levou a lançar a pedra fundamental do método e do pensamento psicanalíticos, em seus Estudos sobre a Histeria (1893-1895). O confronto com o desejo dessas mulheres indicava uma sexualidade que punha em questão o pressuposto de uma essência feminina passiva.

Considerando a vertente científica, Freud, foi um dos primeiros a perceber, ou melhor, a escutar, a crise ainda inominada que suas pacientes vinham atravessando. A recusa das histéricas em aceitar esta “feminilidade” como modelo de subjetivação e de sexuação o levou a passar grande parte de sua existência imerso em pesquisas que lhe possibilitassem desvendar o mistério da constituição da feminilidade.

Freud constrói suas hipóteses sobre a sexualidade feminina ao longo de toda a sua obra, podendo-se destacar, deste percurso, dois momentos fundamentais: o primeiro, que vai de 1905 a 1920, aborda suas concepções iniciais sobre o desenvolvimento da sexualidade infantil, onde a sexualidade feminina é pensada a partir do modelo masculino – o monismo sexual; o segundo, a partir de 1924/1925, em que ele tenta atribuir à sexualidade das mulheres uma especificidade própria – o devir feminino.

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, texto de 1905, Freud propõe as bases essenciais de sua concepção de feminilidade, ou seja, a existência até a puberdade, de um monismo sexual nos dois sexos. Essa hipótese de um só e mesmo aparelho genital é a primeira das teorias sexuais freudianas e tem em sua concepção a importância da particularidade e do determinismo, para a feminilidade, de que o único órgão sexual reconhecido pela criança nos dois sexos é o órgão masculino, ou seja, o pênis no menino e seu correspondente, na menina, o clitóris.

Destaca-se, ainda, nesse percurso de sua produção teórica sobre a sexualidade, até os anos 20, a temática da existência de um complexo, durante o desenvolvimento infantil, que ele denominou de Édipo, tendo como modelo o mito grego. Freud destaca a importância desse complexo como fenômeno central do período sexual da primeira infância.

Em 1924, com o artigo A dissolução do complexo de Édipo, Freud dá ênfase, pela primeira vez, ao caminho diferente tomado pelo desenvolvimento da sexualidade em meninos e meninas. Para o menino, o declínio do complexo de Édipo, ou seja, a destruição da organização fálica infantil, dar-se-á sob a ação da ameaça de castração, em que ele vive um conflito entre seus libidinosos desejos dirigidos à mãe e o interesse narcísico dirigido a seu próprio pênis, prevalecendo este último. Na menina, o complexo de castração, despertado pela visão do pênis nos meninos, a levará a um sentimento de inferioridade e a querer compensar sua falta pela inveja do pênis. Neste caso, o complexo de castração a faz voltar-se para o pai para tentar substituir a falta do pênis: o desejo de ter um filho do pai, como substituto do pênis é, portanto, o promotor do Édipo feminino. Na medida em que esse desejo jamais se realiza, o complexo de Édipo na menina é gradativamente abandonado.

A temática das consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos é melhor delineada, por Freud, no ano seguinte, (1925), no trabalho intitulado Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. Este texto contém uma completa reavaliação de suas opiniões sobre o desenvolvimento psicológico das mulheres.

A vida sexual das mulheres, até aquela época, encontrava-se mergulhada numa impenetrável obscuridade, o que levou Freud a muitas vezes presumir que a psicologia das mulheres podia ser tomada simplesmente como análoga à dos homens. No entanto, ele próprio sempre deixou assinalado o caráter inacabado ou mesmo de suposição de suas explorações a respeito deste tema. A manutenção de um ponto enigmático sobre o querer feminino, em seus escritos, nos dá a ideia do quanto esta questão ficou obscura em seu trabalho. Sobre isto, assim, ele escreve:

A grande questão que permanece sem resposta e à qual eu mesmo não pude jamais responder, apesar dos meus trinta anos de estudo da alma feminina, é a seguinte: o que quer a mulher? (1925, vol. XIX, p.274).

Próximo ao término de sua obra, em texto de 1932, ele deixa no ar um desafio, no que tange a esta temática, ao escrever:

Isto é tudo o que tinha a dizer-lhes a respeito da feminilidade. Certamente está incompleto e fragmentário. Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes (1932, vol. XXII, p.134).

O texto freudiano coloca-se, pois, como uma obra aberta que se encerra em uma tensão entre o impasse do feminino, referido à lógica fálica, e o passe da feminilidade, formulado por ele, em 1937, indicando um erotismo não mais falocêntrico, mas que deixa à mostra um eixo de subjetivação, erotização e sublimação e inaugura novas possibilidades de inscrição do sujeito, homem e mulher, na cultura, como singularidade e diferença.

 

Um olhar psicanalítico sobre algumas cenas do filme

O filme retrata, com muita sensibilidade, um dos aspectos do universo feminino, a saber, o que concerne aos seus relacionamentos, enquanto filha, esposa e mulher.

Ao se considerar que a constituição do ser humano está calcada em duas operações: alienação e separação, de acordo com a teoria lacaniana, tem-se a dimensão da importância do tempo inaugural da criança em sua relação com o outro, em especial, com a mãe. A alienação significa que a criança, ao nascer, encontra-se em uma condição alienada, totalmente dependente do mundo de significação e de desejo do outro. A esse tempo, segue-se o da separação que possibilita a esta criança sair da posição de total submissão ao mundo do outro materno, ou seja, separar-se para engendrar-se. Segundo Lacan, este movimento de separação do Outro materno deve ser repetido, muitas vezes, para que a criança adquira consistência de seu ser como sujeito.

Tem-se, pois, que, para a psicanálise, entrar no mundo submetido ao olhar do Outro é uma condição estrutural para a constituição do ser humano. E, que, da articulação alienação-separação e de futuros desenvolvimentos dependerá o contorno do perfil de constituição deste ser.

Na visão psicanalítica, para que o desejo possa emergir, é necessário haver um espaço deixado pela demanda; esta não pode ser totalmente satisfeita. A distância entre demanda e desejo corresponde a um dos aspectos fundamentais da estrutura subjetiva do ser humano. Sobre isto, Malvine Zalcberg (2003), nos fala que

O fato da mulher ter que continuar insistindo na demanda de amor à mãe para dar alguma consistência ao seu ser, turva a distância a ser mantida entre demanda e desejo, dificultando o surgimento deste em sua vida, separado do desejo do Outro (p.71).

Lacan (2008), é outro autor que enfatiza a importância da falta para a preservação do espaço da demanda, e, portanto, para o desenvolvimento psíquico da criança. Sem falta, não se pode ter acesso ao desejo próprio.

A criança se constitui a partir do desejo de um Outro sem falhas. Para ter a mãe completa e satisfeita, é que a criança procura, mesmo que ilusoriamente, identificar-se com o objeto de seu desejo e desejar apenas o desejo desta. Embora seja fundamental para a criança acreditar que ela realiza a imagem fálica para a mãe, ela deverá depois rejeitar essa crença, em um processo em que terá que contar com a função simbólica do pai: função que instaura uma separação da criança com a mãe. Essa função simbolizadora do pai é que traz um limite para o poder da mãe sobre a criança.

Se uma menina tem dificuldade em abandonar sua posição fálica em relação à mãe e a correspondente fantasia da completude materna, é porque essa renúncia suscita uma questão sobre sua própria existência: Quem sou se não sou o objeto de desejo de minha mãe?

Este fato de constituir-se em relação ao objeto do desejo de um Outro, fará o ser humano, para sempre, ter dúvidas quanto ao lugar de onde deseja: o desejo é seu ou do Outro?

Uma das cenas do filme, apresenta um diálogo de Finn, a protagonista, com a mãe, que reaparece, após um período de afastamento, mostrando-se com novas ideias e dizendo que iria se casar, de novo, com o seu pai:

Finn – Você me disse a vida toda que papai era um calhorda, que casamento é besteira...

Mãe – Então, eu mudei de ideia. Ele era um calhorda e eu também, mas nos perdoamos.

Finn – A vovó já sabe? E o que ela acha?

Mãe – Para ela, está tudo bem.

Finn – Você gosta do Sam, mãe?

Mãe – Gosto.

Finn – Então, por que nunca me disse?

Mãe – Porque o que eu penso não deveria importar.

Finn – Eu estou perdida...

Mãe – Você sabe o que quer, só está com medo.

Neste diálogo, Finn mostra-se confusa. Conceitos/valores que ela apreendera através dos ensinamentos de sua mãe, como por exemplo: “papai é um calhorda”; “casamento é besteira”, a marcaram intensamente e a levaram, de forma radical, a generalizá-los para todos os homens ou para qualquer tipo de casamento. As palavras da mãe, da infância de Finn, ainda estavam impressas nela e constituíam-se como verdades inflexíveis em seu processo de existir. Finn, ainda via o mundo através do olhar da mãe, aquele olhar de sua infância. Necessitava de sua aprovação como um guia para a sua vida. Não conseguia estabelecer o seu desejo. Em sua vida, inscrevia-se o desejo de sua mãe.

A psicanálise aponta que, nas narrativas neuróticas, o sujeito antes é falado – pelo Outro – do que, propriamente, fala. Esta marca, impressa em Finn, aparecia em vários aspectos de sua vida, traduzindo-se como insegurança e indecisão.

O perfil de Finn, na trama do filme, deixa transparecer vestígios de uma experiência de desamparo inicial. Passou, durante sua infância, longas férias na casa da avó, quando a mãe viajava com namorados. Sentia-se abandonada. Ruminava um sentimento de culpa pelo casamento de sua mãe não ter dado certo. Já adulta, dizia: “No final, parei de pensar que a culpa era minha”. No entanto, o medo de um novo abandono a impedia de amar ou de se deixar amar por Sam. Finn parece não ter vivenciado, completamente, a operação de separação de sua mãe. Ela continuou, de certo modo, alienada na figura dessa mãe, principalmente, naquilo que dizia respeito à sua auto-imagem feminina e à imagem que tinha dos homens. Desta maneira, foi construindo uma forma própria para se proteger de perdas, perdendo-se a si mesma, enquanto ser sexual feminino. Sendo o falo da mãe, Finn abriu mão de seu falo. Continuava vivendo, em sua fase adulta, destituída de uma posição alteritária em relação à sua mãe. Ou seja, Finn, ao longo de sua existência, não havia, ainda, conseguido deslocar-se de uma posição originária de objeto de desejo da mãe para uma posição de sujeito desejante.

A psicanálise, na modernidade, continua apontando, com certa ênfase, como o valor para o porvir de um ser humano está na experiência da díade mãe-criança. Philippe Julien (1997), afirma que

Mais do que nunca, é admitido que o olhar, o peito, a voz, os braços são insubstituíveis e, que esta potência materna de garantia ou de loucura, de segurança ou de angústia, de felicidade ou de infelicidade, é a verdadeira potência de vida ou de morte, desde que a humanidade existe (p. 32).

As mulheres retratadas nesta história, ora deixam entrever seu desejo de tornarem-se outras, ora apresentam-se capturadas na trama simbólica de completa dependência em relação ao outro. A marcante presença da figura materna é ressaltada no filme, como um componente de forte expressão de cada mulher, na forma de se constituir como sujeito no mundo das relações.

Fortemente associado à experiência de desamparo e à dependência da criança em relação a um outro que satisfaça suas necessidades está o masoquismo erógeno, segundo o pensamento psicanalítico. Nesse sentido, o masoquismo erógeno apontaria, de um lado, para a angústia diante da ausência de atribuição de significações e, de outro, para a dimensão de erotização inscrita nesse processo. Freud sustenta que a posição assumida pelo sujeito masoquista é caracteristicamente feminina, significando ser castrado, e que o conteúdo manifesto da fantasia masoquista é ser amordaçado, amarrado, espancado, aviltado, enfim, humilhado.

Ressalta-se, ainda, que a ideia de uma tendência masoquista, inerente ao sexo feminino, conforme a concepção freudiana, encontrou, ao longo do século XIX, um contexto social promissor ao seu engendramento, como marca de submissão da mulher ao outro masculino. Naquele momento histórico, a posição subalterna do ser feminino em relação ao masculino estava inscrita nas práticas sociais que não davam às mulheres o lugar de cidadãs e de sujeitos autônomos, conforme aponta Nunes (2000), em um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Portanto, o masoquismo feminino torna-se possível e pensável tanto no que diz respeito às condições concretas a que as mulheres estavam submetidas, como também em relação ao universo simbólico apontado pela psicanálise.

Em, marcada por uma postura de submissão aos pais, diante da traição do marido, faz com que todos tenham pena dela. Desenvolve o chamado masoquismo moral, deixando-se tomar por inferior, por ter perdido o falo que os homens ainda conservam. Recolhe-se à sua posição submissa ao afirmar: “A fêmea fica no ninho, enquanto o macho sai para exibir suas penas”.

Nunes (2000), comenta que as mulheres do século XIX, encerradas em seu espaço doméstico, não tinham permissão para passar pela experiência da paixão sexual e encontrar suas próprias palavras e imagens para exprimir seus sentimentos. Ela se refere à posição masoquista como uma alternativa que poderia dar conta de algumas questões que se colocavam para as mulheres naquele contexto. Assim, fala:

De um lado, tornando-se puro objeto de desejo e de gozo masculino, e inscrevendo, aí, seu desejo, a mulher se defenderia do desamparo quase insuportável a que estava exposta, numa ordem cultural que lhe abria poucas possibilidades de autonomia, real e psíquica, ao mesmo tempo em que lhe fechava as portas para uma experiência erótica mais satisfatória. De outro, ao assumir essa posição, reassegurava ao seu parceiro sua potência, encobrindo também a condição de desamparo que o ameaçava (p.221).

Essa mulher era, pois, de fundamental importância para a vida erótica masculina da época. O modelo de mulher que se sacrifica e abre mão de sua condição de sujeito em nome do homem, tornando-se vital para ele, apresentava-se como uma possibilidade de identificação fálica para a mulher, sintonizada tanto com o desejo masculino quanto com o destino que a cultura lhe reservava.

Este parece ser o caso de Sofia que, com um casamento precoce, abandona seu sonho de seguir carreira como nadadora e se torna uma pessoa amarga, mal humorada e infeliz. Frustrada em suas aspirações nada fazia por si; o essencial de sua alienação social já fora decidido, seu ingresso necessário no casamento condenava-a a ligar ao homem sua economia de gozo.

É essa mulher que vai poder encontrar como modelo identificatório, como possibilidade de se proteger da angústia, e mesmo como uma via de satisfação sexual, uma ancoragem numa posição masoquista que lhe é apontada como possibilidade simbólica de se constituir como sujeito.

Outro lado do masoquismo, caracterizado por menor incidência de angústia de castração, produz uma espécie de destemor diante das vicissitudes da entrega amorosa. Nas mulheres, nem sempre o falo é condição essencial de uma certeza narcísica sobre o eu. É possível perdê-lo, também, frequentemente, e gozar desde uma outra posição – a posição “feminina” e sem se verem, com isto, ameaçadas de deixar de ser o que são. Essas mulheres são portadoras de uma certa desmedida, de um saber que informa que, diante de certos prazeres, a dor pode valer a pena – o que não equivale a dizer que a dor seja condição do prazer, mas a sustentar seu prazer, apesar dos riscos da dor.

Esta parece ser a posição assumida por Mariana, com um perfil ativo em sua busca por realização amorosa, que lhe permite a possibilidade de ser objeto, sem ser o objeto golpeado. Ao assumir sua posição “feminina”, Mariana, ocupa um lugar na parceria sexual em que o desejo está do lado do outro.

Outra vertente destacada pela psicanálise, no que tange à questão da feminilidade, diz respeito à sublimação, um mecanismo de defesa do ego identificado por Freud como “processo para explicar atividades humanas, sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual” (LAPLANCHE, 2001, p. 495).

Gladi, tia avó de Finn, ao descobrir a traição do marido com a irmã, quebra tudo o que vê pela frente e constrói, com os cacos, um enorme painel em uma parede de sua casa. Cria um painel, assustador, que retrata seu ódio e sua mágoa. Em sua obra grotesca, a tradução de uma tentativa de dar voz ao emergente, ao que ainda não está incorporado ao seu discurso. De acordo com ela “a auto-expressão cura um coração ferido”.

Freud, também, descreveu como principais veículos de sublimação, a atividade artística e a investigação intelectual. Segundo ele, “a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo alvo não sexual e em que visa objetos socialmente valorizados” (ibid., p.495). A sublimação é, pois, um dos destinos da pulsão.

Neste sentido, a colcha de retalhos constituía-se numa obra de arte coletiva, confeccionada por um grupo de mulheres que depositavam, nesse novo alvo, suas pulsões sexuais, dando-lhes um novo sentido, ao mesmo tempo em que isto lhes permitia um deslocamento de grande quantitativo de suas pulsões sexuais. Este ato, identificado pela psicanálise como capacidade de sublimação, permite a troca da meta sexual originária por outra que, embora não sendo sexual, no sentido stricto, apresenta-se psiquicamente como se assim o fosse.

Para a psicanálise, a pulsão move o psiquismo humano, a fim de dar conta de sua imprevisibilidade. Possibilita ao indivíduo uma ruptura com a ordem determinada, conferindo-lhe um caráter de errância. Assim sendo, dá ao sujeito as possibilidades da busca, do erro, da criação. De acordo com Dutra (in:BIRMAN, 2002, p.89),

O conceito de sublimação permanece impreciso ao longo da obra freudiana, oscilando entre um significado estruturante que se refere à transformação da pulsão sexual em pulsão dessexualizada e uma face ligada à criação, que permanece oculta por conter um sentido desestruturante que desvela a feminilidade.

Pode-se perceber que as mulheres, apresentadas na história do filme, vão deixando transparecer nuances do processo de constituição de sua feminilidade, nas tramas de relações envolvidas, durante seu percurso de existência.

 

Colcha de Retalhos – uma estética criadora de transformações

O filme apresenta-se a nós como uma grande alegoria que nos permite deslizar, em sua tessitura onírica, abrindo-nos espaço à imaginação.

Observa-se, nos tempos atuais, na psicanálise, grande preocupação com as dimensões éticas e estéticas de seu campo de trabalho. Hoje, a busca do conhecimento não consiste mais em encontrar respostas ou desvendar enigmas, mas, sim, abrir novos problemas, dando espaço ao mistério e à ambiguidade, em lugar das certezas e da precisão. A instabilidade de um sistema é a regra e não a exceção e o caos não é mais uma catástrofe, e, sim, parte de todo um processo de mudanças. Dentro desses valores, pode-se entender a produção de encontros como produção de desvios e de intensidades, favorecedores de novos modos de subjetivação, onde as diferenças ganham destaque e a criatividade é potencializada.

O ser humano nasce de um encontro. Torna-se humano porque reconhece que depende e se produz nos encontros. Torna-se criativo, quando permite o encontro fluido entre seu mundo interno e o externo.

Uma rica simbologia nos é apresentada, nesta história, através da feitura de uma colcha com a técnica patchwork. O modo de trabalhar com o patchwork configura-se como espaço favorecedor da invenção de si e do mundo; espaço facilitador de um modo de subjetivar onde a atenção, a repetição e a criação fazem a diferença e propiciam o devir. Esse movimento nos remete à técnica psicanalítica: recordar, repetir e elaborar. O patchwork caracteriza-se por ser uma técnica nunca encerrada, sempre aberta à inserção de novos retalhos de tecidos. Na costura dos panos, vai-se dando o tecer de si próprios. Constitui-se, na verdade, como um modo de apreender a vida e de apreender-se.

No filme Colcha de Retalhos, um grupo de mulheres se reúne para confeccionar uma colcha de patchwork, com o tema “Onde vive o amor”. Cada uma das mulheres encarrega-se da confecção de uma parte da colcha, onde busca expressar a ressonância desse tema em suas vidas. Surge, então, um trabalho de arte, no sentido dado por Foucault, da arte como modo de existência, de invenção de possibilidades de vida, possibilidades essas que não cessam de se recriar.

Observa-se, na experiência narrada, a formação de um tecido, em que a multiplicidade das singularidades daquelas mulheres, ao se unirem, dão intensidade e potência de vida àquele grupo, formando um manto de subjetivações. Ao costurarem os retalhos, também costuram os retalhos de suas vidas. Ao unirem seus retalhos, potencializam a capacidade de ligação com suas entranhas abandonadas ou descartadas, tal qual retalhos.

Podemos pensar esse espaço grupal como constituidor de uma atitude de continência e acolhimento. Espaço impulsionador ao devaneio e à imaginação; ao respeito e valorização das diferenças e, portanto, propício à instauração de um movimento de vida renovada, onde a coragem de desejar se faz presente, instigando uma abertura e disponibilidade ao novo, através da transposição do que somos, vivemos, amamos e perdemos.

Esse modo de trabalhar, recolhendo lembranças, conectando com o presente, buscando capturar o momento e retratando-o através da tessitura, nos remete a Bergson (2005,p.7) , ao nos dizer:“O que fazemos depende daquilo que somos; mas também, em certa medida, somos o que fazemos e nos criamos continuamente”.

 

A título de conclusão

Abordar a questão da constituição da feminilidade requer a abertura do olhar para espaços outros, inatingíveis quando se considera apenas a vertente da razão.

Assim, esta película, rica em simbologias, em metáforas e em alegorias, nos permite adentrar num universo feminino frente ao amor, eivado de anseios, renúncias, sofrimentos e prazeres.

Numa cena inicial, observa-se o desenrolar de um carretel de linha que, assim como nossa vida, vai se desenrolando aos poucos, em sequência, num constante movimento propiciador das transformações e do surgimento do novo.

Destaca-se a singularidade do processo de constituição da subjetividade de cada mulher, em seu devir feminino, ao mesmo tempo em que se pode observar a pluralidade de fatores envolvendo cada percurso de construção dessa feminilidade.

Há um momento, no filme, em que a avó cobre a neta com a colcha, já pronta. Ali, é como se a jovem estivesse sendo coberta por todas as histórias de amor e feminilidade que representam aquelas mulheres. Podemos pensar, também, que, de uma forma ou de outra, somos cobertos, desde o nosso nascimento, pelas colchas tecidas com as experiências, mitos, tradições, permissões e proibições que, ao longo de várias gerações, vão marcando nossos caminhos.

Em uma das partes finais do filme, uma forte ventania toma conta da cidade, fazendo voar as folhas da dissertação de mestrado da protagonista. Esta metáfora nos remete à ebulição de nossos pensamentos e sentimentos que, em sua fluidez, não se deixam aprisionar, podendo mudar de acordo com o movimento que imprimirmos à nossa vida.

Assim sendo, pensar no tema da feminilidade é pensar em um processo de constituição, é projetar um estado de devir, é adentrar num universo enigmático, em que o singular se faça presente em cada mulher, possibilitando-lhe criar a sua feminilidade possível.

 

Referências

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Recebido em 09/11/2013
Aceito em 09/11/2013

 

 

*Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise do Rio de Janeiro. Docente do Curso de Formação de Psicanalistas do Círculo Brasileiro de Psicanálise do Rio de Janeiro. Mestre em Educação pela UNIVERSO-RJ. Especialista em Metodologia do Ensino Superior e em Pedagogia Empresarial pela UNIGRANRIO-RJ. Pedagoga. Endereço para correspondência: Av. Nossa Senhora de Copacabana,861/413-Copacabana-Rio de Janeiro-RJ-22060001. E-mail: amma49@ig.com.br