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versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.14 Salvador nov. 2013
O entardecer das paixões
The evening of the passions
Maria Clarice Baleeiro1
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
A paixão, na sua desmesura, traz a marca do narcisismo primário com a busca incessante do sujeito para retornar ao estado de fusão mãe-filho – satisfação plena, onde o outro tem aquilo que lhe completa e preenche o seu vazio.
Palavras-chave: psicanálise; cinema; paixão; cura; pulsão; narcisismo; envelhecimento.
ABSTRACT
The passion in his excesses, bears the mark of primary narcissism with the relentless pursuit of the subject to return to the state of mother-child fusion - full satisfaction, where the other has what completes and fulfills your emptiness.
Keywords: Psychoanalysis, cinema; passion; drive; narcissism; aging; healing.
O melhor amor é aquele que desperta a alma...
E nos faz querer mais.
Aquele que coloca um fogo no coração e traz paz na alma.
E foi isso que você me deu. E o que eu esperava dar a você para sempre.
Até um dia.
Amo você.
(De Noah para Allie , do filme O diário de uma paixão)*
As pulsões, mesmo sem que saibamos de onde se originam, impulsionam a vida de cada um de nós, dando substrato às nossas paixões. Como pulsões de vida, buscam a sobrevivência e estão ligadas a um condutor erótico que nos leva ao contato com o outro e com a realidade, tendo como consequência a formação de tensões. As pulsões de vida são denominadas de Eros, tendo como oponente Thanatos – as pulsões de morte.
Essas pulsões de morte atuam quando o prazer, oriundo de Eros, chega ao ponto de significar perigo para o sujeito. Como resultado, Thanatos age proporcionando a retirada das tensões pela diminuição da energia gasta pelo sujeito na obtenção do prazer. A pulsão de morte tem algo criativo na tentativa de evitar o aumento das tensões produzidas pela vida. Ela controla o excesso e faz o sujeito retornar ao ponto de equilíbrio. É dessa maneira que, durante a vida, as pulsões se articulam, buscando manter o sujeito em posição de estabilidade.
Pulsões de vida, pulsões de morte. Vida e morte, o eterno jogo de todo ser humano na busca incessante de entender a sua existência, sempre marcada pelo pouco saber sobre a vida e uma única certeza – a morte, sem significante, sem marca no inconsciente, sem representação, puro real.
Das pulsões às paixões. Paixões que, mesmo estranhas a nós, dominam a nossa vida mental. Excessivas, ardentes, intensas, fortes, violentas, duradouras, fugazes, aparecem como uma tendência no sentido de que, diante delas, reagimos. As paixões marcam a nossa dependência do Outro e estão ligadas tanto ao sofrimento quanto ao prazer. A paixão que nos leva à vida também nos leva à morte. Para Kehl )1987, p.480): “A morte pode ser a outra face do princípio de prazer, quando ele não consegue se associar ao princípio de realidade”.
Nos dicionários, vamos achar o termo paixão como: “martírio de Jesus Cristo...; grande sofrimento; sentimento, gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a razão...; furor incontrolável; exaltação, cólera, ânimo favorável ou contrário a alguma coisa e que supera os limites da razão; ... ” (HOUAISS, 2009, p.14.013); ou, ainda; “sentimento excessivo; afeto violento; amor ardente; entusiasmo; grande mágoa; cólera; objeto de afeição intensa; vício dominador; parcialidade; alucinação; sofrimento prolongado;...” (FERREIRA, 1971). A paixão sempre traz um excesso, como uma desmesura. Esse ser em demasia, muito desmedido, que oscila entre vida e morte, ter e não ter, ser ou não ser, colocando o sujeito como um equilibrista que balança entre reagir ou ser tomado por ela (a paixão), correndo até o risco de sucumbir. A paixão está, na maioria das vezes, ligada à perda de controle e ao sofrimento, sendo, inclusive, a tentativa de buscar formas de preencher o vazio; como o saber fica encoberto, ela engana a falta, potencializando o narcisismo e a onipotência. Muitas vezes, no seu excesso de energia, as paixões buscam saídas na repressão, no desvio de objeto, na transformação ao contrário ou na sublimação.
Paixão, paixões. Do que mesmo estamos falando? O que é isso que nos encanta e nos amedronta? A paixão emana do corpo e da alma (psique), trazendo, aos dois, sofrimento e prazer. Algumas vezes, causa uma urgência que atormenta o sujeito, noutras o liberta para a realização de coisas nunca antes pensadas. Ela acontece via o narcisismo, sem o qual desaparece. Geralmente é iniciada pela busca de nós mesmos, quando nos espelhamos no outro, estando amarrada na falta e na ideia de que este outro tem algo do qual precisamos. A paixão traz a esperança de completude, demanda que alguém preencha minha falta e está impregnada de desejo e representação: “Você é assim, um sonho pra mim e quando eu não te vejo, eu penso em você desde o amanhecer, até quando me deito” (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte).**
Mas o que é a paixão? Será que podemos entendê-la no singular? Ela é o equivalente das pulsões e se apresenta em muitas formas, carregadas de afeto e emoção. A paixão é plural e, para compreender, me inspiro em Freud quando diz: “[...] se desejarem saber mais a respeito [...] consultem os poetas” (FREUD, [1933]1996, p.134): “Você é isso, uma beleza imensa, toda recompensa de um amor sem fim. Você é isso, estrela matutina, luz que descortina um mundo encantador. Você é isso, parto de ternura, lágrima que é pura, paz do meu amor!” (Luiz Vieira).**
Voltemos ao Narcisismo, base importante para que toda paixão aconteça. Por algum tempo, achamos ser possível a satisfação absoluta quando um objeto – mãe – nos satisfaz plenamente e nos permite acreditar que somos o ser mais perfeito e amado do mundo; depois, isso é perdido para sempre, e tenta voltar sob a forma de fantasias inconscientes. O desejo sempre busca o retorno da fusão total com o ser amado – a mãe. Mas a realidade impetuosa barra, não pode. Por isso, vivemos em tentativas de conseguir, mais uma vez, repetir esse prazer total e absoluto. Como diz Freud ([1933]1996, p.122): “[...] parece que a avidez da criança pelo primeiro alimento é completamente insaciável, que a criança nunca supera o sofrimento de perder o seio materno”.
Ao nascer, desprotegido e precisando de cuidados, o bebê, por necessidade biológica, sente fome, e um ser que assume a função materna o alimenta e satisfaz. Unida à saciedade da fome, há uma experiência de satisfação que faz marca nesse bebê e que ele, por toda a vida, vai procurar reencontrar. No primeiro momento, tensão biológica, depois, a “experiência de satisfação” que fica ligada a uma representação, evocada constantemente. Essa experiência é o desejo, segundo Freud, movimento, processo, tendência.
É essa fusão mãe-filho que chamamos de narcisismo primário, precisando, num determinado tempo, cair, dando ao desejo outros movimentos e possibilidades. O desejo busca, sempre, aquilo que possa satisfazê-lo totalmente, mas, como não há esse objeto capaz de cumprir essa função, ele se frustra e segue procurando alternativas – o desejo insiste e nós, nesse permanente estado de tensão, ficamos à procura eterna de modalidades diversas de satisfação.
O narcisismo primário cai com a castração. É ela quem nos separa da mãe, num corte, fazendo com que, assim, aconteça uma perda significativa, se instale a falta e possamos perceber o quanto incompletos somos. A castração, com seu corte, possibilita a vida, impedindo que a relação dual mãe/filho se torne mortífera. A castração é um limite imposto à onipotência do desejo, que assim pode ser encaminhado para outras direções, permitindo outros movimentos. Kehl (1987, p.478) nos diz ser “[...] preciso relativizar a castração que pode ocorrer de maneiras diferentes na história de vida de cada um”.
Paixão, paixões. De qual falarei? Paixão amorosa, e quem sabe consiga adentrar o poder do qual se investem os apaixonados sentindo não só que o outro é capaz de lhe dar aquilo do qual necessita, como ele próprio de oferecer ao amado tudo que ele acha ser possível para preencher suas faltas e fazê-lo feliz.
Ao me apaixonar, espero encontrar num outro algo que me complete e que ele traga o que falta em mim. Mas sabemos que vamos perder; o outro não só é incapaz de nos completar como nos escapa – logo, a falta persiste. “Na paixão amorosa espero encontrar este ser que me completa, cujos desejos são os meus desejos – este ser que é igual a mim e que chegou para me salvar da condição solitária que é a própria condição humana: cada um de nós é um ser único diante do mundo” (KEHL, 1987, p. 478-479).
Para seguir nesse caminho, vou-me apoiar num filme americano de 2004 – O Diário de uma Paixão, no original The Notebook, uma adaptação da novela de Nicholas Sparks, com direção de Nick Cassavetes e música de Aaron Zigman. O elenco é composto por Ryan Gosling, Rachel MacAdams, James Garner, Gena Rowlands, entre outros.
O Diário de uma Paixão conta a história de Noah e Allie e é construído na alternância de dois tempos: passado e presente. No passado, a história de amor vivida pelos dois – os encontros e desencontros, as idas e vindas, a objetividade de Noah e as dúvidas de Allie. No presente, a vida do casal num lar para idosos, quando é lido por Noah o diário escrito por Allie, onde deixara gravado: “A História de nossa vida – Leia isso para mim que voltarei para você”.*
O filme fala do amor entre os dois, iniciado num verão e traçando todo o resto de suas vidas. O encontro entre eles se dá na pequena cidade onde ele mora e aonde ela vai passar as férias com a família. Na cena inicial, uma paisagem, onde vemos um rio, uma casa, pássaros e o pôr do sol – há um entardecer. Os pássaros voam, vão e voltam, migram, como as lembranças que Noah, ao ler para sua amada o diário da vida deles, espera fazer retornar em Allie.
O que marca o casal é a diferença entre os dois: Ele – pobre, interiorano, com pouca cultura, mas ousado, positivo, cheio de objetivos, sonhos e ideias, e ciente das impossibilidades que a vida apresenta – “Não se pode ter tudo”*. Ela – rica, mimada, alegre e risonha, cheia de dúvidas e insegura, sempre ocupada por todos os afazeres ditos “corretos para uma menina de boa família”, mas distante do seu desejo, com muitos questionamentos sobre o que é e do que é capaz, tendo sua vida ligada ao saber e ao desejo dos pais. Sempre afirma que, na maior parte do tempo, sua cabeça fervilha e que só sossega com um pincel na mão, quando pinta. Tão diferentes, estão marcados pela atração comum e pela percepção que o outro tem – “Algo que me faz desejar você” *; “Posso ser o que você quiser” *; “Você sabe como me convencer” *. A escolha desse outro, objeto de amor, acontece, via a pulsão sexual, que determina todo o desenrolar da relação.
Num encontro, a paixão marca seu lugar. Após o cinema, saem a passear e param num sinal de trânsito, que está vermelho. Sinal de parada, perigo, atenção! Eles deitam na faixa de pedestres e desafiam; a paixão assinala sua característica mais forte: não respeita sinais, ousa, corre riscos. Sinal verde. Ele se joga no que sente, ela, como sempre duvida, ao que ele interfere: “Você precisa aprender a confiar”*.
A partir desse momento, a paixão invade a vida dos dois, ocupa todos os espaços e faz com que cada um deseje estar, o tempo todo, com o outro – Dançar sem música, como só os apaixonados são capazes, sentir um ao outro, se entregar, sonhar!
O romance traz a alegria e o lúdico: brincam com o nada, riem de tudo, mas brigam – há um conflito, são diferentes! Posteriormente, com o convite dos pais dela para um almoço, essa diferença será usada na tentativa de provocar uma ruptura. Com a intromissão dos pais, o romance fica firmado como “romance de verão” e, portanto, com um final predefinido. “Romances de verão terminam por diversas razões. Mas, geralmente, têm uma coisa em comum, são como estrelas cadentes. Um fantástico momento de brilho nos céus, um fugaz relance de eternidade e, no instante seguinte, desaparecem”*.
Por isso, inevitavelmente, vem o rompimento. Esse impasse cria um limite, muitas vezes necessário para que a paixão possa buscar outras formas de acontecer, como o amor, por exemplo. “Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure” (MORAES, 2001, p.101).
Com o rompimento, Allie retorna para sua cidade de origem e Noah passa a escrever, diariamente, como prometera um dia. Não há resposta. As cartas, em número de 365, marcam um tempo. Depois, esquecer e ir em frente, o que ele não consegue. A imagem de sua amada está refletida em todas as coisas.
Rompe a guerra, e Noah vai para os campos de batalha. Allie estuda numa faculdade e torna-se enfermeira voluntária. Em cada soldado ferido, vê a cara do Noah, até que encontra um rapaz de quem trata e que a procura. Ele fala para Allie como Noah lhe falou um dia: ousado, positivo, insistente. A partir daí, passam a viver um romance – ele era tudo que os pais queriam para Allie.
O filme continua enfocando o passado. A guerra acaba, e Noah regressa para casa e retoma sua vida, passando por um período triste, enlutado; sua libido retorna para si mesmo até que escolhe outro objeto de amor e investe – a reconstrução da casa que compra, em ruínas, e que espera transformar numa morada com todos os detalhes sonhados, um dia, pelo casal. Para isso, conta com seu velho pai, afetivo e presente, com o qual aprendeu a ler poesia, resultando na cura de uma gagueira. Certamente foi com esse pai que Noah percebeu o poder e as possibilidades do amor. Seus sonhos têm força, asa e imaginação. Noah sonha e realiza, concretizando seus objetivos.
Esse é um traço muito forte em Noah, “um homem comum” * como diz. Continuamente, investe em objetos de amor, dando direção a seu desejo. Inclusive, já velho, continua fomentando sua libido no sentimento que tem por Allie, agora, objetivando sua cura. Como sabemos, na velhice, a libido tende a diminuir, apesar de o desejo ser atemporal e não envelhecer, as possibilidades corporais e psíquicas são modificadas, há um descompasso corpo/psiquismo e a tendência é que a libido retorne para si porque perde sua plasticidade. No entanto, é a história de cada um e suas características que marcarão essa fase de idade; como cada pessoa irá vivê-la e como irá lidar com o seu desejo.
O filme segue. Na busca do registro para efetivar a reforma que se constitui, naquele momento, no investimento de Noah, ele reencontra Allie, e é doloroso vê-la com outro. Não se acanha, insiste, ousa, ao que Allie questiona: “O que você quer Noah?” *, Ele quer tudo aquilo que, um dia, sonhou que ela teria para ele. Retorno aos poetas para entender: “Ah você tem todas as coisas, que um dia eu sonhei pra mim; a cabeça cheia de problemas, não me importo, eu gosto mesmo assim [...]” (Roberto e Erasmo Carlos)**
E Allie vai ao encontro de Noah que, surpreso, não fala. Será que já não teria dito todas as coisas?!!!. Diante do silêncio dele, ela retorna ao carro e perde a direção, derrubando uma cerca. Essa cena marca uma quebra para Allie, como se, pela primeira vez, ousasse desafiar e assumir seu desejo. A paixão emerge, ressurge com toda força da qual sempre se imbuiu e a mergulha no conflito, enchendo Allie de dúvidas, como sempre, e retornando Noah à certeza de que ela é o seu grande amor. Por isso, pede que volte, sem, no entanto, ter mais uma briga e marcar suas diferenças.
Allie retorna no outro dia, e Noah a leva ao rio para ver os pássaros, eles que vão e voltam, migram. Isso dá à história o movimento de ida e vinda, o que vai pode retornar, o que Noah acredita, no presente, ser capaz de fazer acontecer com as lembranças de Allie, doente e esquecida.
No passeio do rio, voltam a conversar, brincam e retomam a alegria de estar juntos, essa coisa boba de sorrir de tudo, de ser feliz. O desejo explode e se amam – “Foi isso que perdi durante esse tempo?”* – pergunta Allie. “Quero mais”* – aparece aí o insaciável da paixão, e passam a viver alheios a tudo e a todos, irresponsáveis, soltos, desejantes e desejados. E Allie faz o seu reencontro com a pintura, velho sonho, desejo sempre postergado.
A história retorna ao presente. No abrigo, Noah lê para Allie que, num momento de lucidez, reconhece como dos dois, a história lida por ele. Aqui vamos abrir um parêntese: Allie tem demência senil, irreversível e degenerativa. Ver sua amada distante, ausente, é insuportável para Noah, por isso investe todo o seu tempo em ler para ela, contar a história deles como forma de trazê-la de volta. Noah acredita que a paixão deles, e só ela, será capaz de trazer Allie para a realidade. Sua fé nessa “cura” e na força do amor é tão grande que, diante das palavras do médico que o alerta para não ter esperança, retruca: “A ciência vai até onde entra a mão de Deus”*.
Noah sempre foi positivo, entusiasta, pragmático. Ciente e convicto do seu imenso amor por Allie, tem a fé dos apaixonados. Seu coração, porém, não suporta perder a amada para a doença que a arrebata. Sofre dois enfartes. Allie, por sua vez, sempre foi cheia de conflitos e dúvidas – “A minha cabeça fervilha” *. A velhice de ambos é marcada pelos traços que fundaram as suas vidas. Para Messy (1999, p.71): “Envelhecemos como vivemos”, portanto, o “envelhecimento de cada um de nós se efetua no decorrer da vida, segundo a organização psíquica e a capacidade de enfrentar diversos traumas que tocam o ser em sua dimensão corporal, intelectual e social”.
Noah insiste e, contando com a ajuda da enfermaria da Clínica, prepara um jantar para os dois com música e dança, elementos presentes na história do casal. Parece, como diz, “Um dia especial para haver um milagre” * – “Esta é a minha amada, ela que está lá. Não vou abandoná-la. A mãe de vocês é o meu amor, este é o meu lar” *. Palavras que Noah diz para os filhos, numa visita onde tentam dissuadi-lo da ideia de ficar com Allie no abrigo.
No jantar, Allie tem alguns minutos em que mantém contato com a realidade. Conversam: “Quanto tempo nós temos?” *; “Todo tempo que quisermos” *; “O que houve comigo?”*; “Esteve ausente” *; “Como o tempo passa depressa!” *; “Voando” *. Essa é a sensação que o tempo toma quando se envelhece. Dançam, até que ela esquece, reage, grita, esbraveja e é dopada e levada pelos enfermeiros.
Noah se assusta e se perde nas recordações! Fotografias, lembranças, o diário. Cada um de nós é alguma coisa quando tem lembranças e recordações. Como o sujeito se constitui de imagens e representações, a perda da capacidade nesse nível o destrói. Allie perde suas lembranças. Noah se agarra a elas na esperança de que alguma coisa retorne – sua amada, seu amor: “Amei alguém de coração e alma e isso sempre foi o bastante para mim” *.
Mas as lembranças não bastam para Noah, e ele mergulha na dor de ver que não a salva. O coração grita – outro infarto, o que o afasta da sua amada por um tempo. Com sua melhora, insiste em vê-la ao que a enfermeira reage dizendo ser contra o regulamento. Mas, para a paixão, não há nada que a regule!...
Novamente se encontram. O ir e o vir marcam a história dos dois, esse movimento do desejo tão presente na relação do casal. Allie retoma a lucidez, mais uma vez, por mais alguns minutos e pergunta: “Quando não me lembrar mais de nada, o que será de mim? O que você fará?” *; “Eu estarei sempre aqui” *; “Você acha que nosso amor pode fazer milagres?” *; “Sim, eu acho. É o que traz você de volta para mim toda vez” *; “Acha que nosso amor pode nos levar embora juntos?” *; “Acho que o nosso amor pode fazer o que nós quisermos.” * Deitam-se juntos, entrelaçados como sempre viveram. Voam os pássaros que terminam o acasalamento, após um amor de verão. Eles se vão, mas sempre voltam. O sol se põe. É o entardecer de uma paixão que marca a vida dos dois e que, mesmo que não traga a cura esperada, o faz acompanhá-la, para sempre, definindo o seu final – juntos.
Nada está perdido
ou pode ser perdido
o corpo indolente, velho, friorento,
as cinzas deixadas pelas chamas passadas
arderão de novo.
(Walt Whitman)*
Referências
BLEICHMAR, Hugo. Depressão, um estudo psicanalítico. Tradução de Maria Cecília Tschiedel. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. [ Links ]
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo: estudo sobre a enunciação e a gramática do inconsciente. Tradução de Emília de Oliveira Diehl e Paulo Flávio Ledur. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. [ Links ]
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FREUD, Sigmund. Novas Conferências Introdutórias [1933]: Conferência XXXIII. Feminilidade. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXII, p.113-134.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda et al. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Gamma, 1971. [ Links ]
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MANONI, Moud. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. [ Links ]
MORAES, Vinicius. Soneto da Fidelidade.. In: MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 101. [ Links ]
MESSY, Jack. A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice. Tradução de José de Souza e Mello Werneck. São Paulo: ALEPH, 1999. [ Links ]
NASIO, Juan David. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da Psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. [ Links ]
O DIÁRIO de uma paixão (The Notebook). Direção: Nick Cassavetes. Intérpretes: Ryan Gosling, Rachel McAdams, James GarnerGena Rowlands e outros. Roteiro: Jeremy Leven. Adaptação da novela de Nicholas Spark: Jan Sardi. Música: Aaron Zigman. Estados Unidos: New Line Cinema – A Time Warner Company, 2004. 1 DVD (123 min.), color. Produzido por Gran Via Production. [ Links ]
Recebido em 14/11/2013
Aceito em 21/11/2013.
1 Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Trabalho apresentado na XXI Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia em 25/26 de setembro de 2009, A Paixão.
* Expressões retiradas do filme O Diário de uma Paixão.
** Letras das músicas retiradas do site: http//vagalume.com.br.