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Cadernos de Psicopedagogia
versão impressa ISSN 1676-1049
Cad. psicopedag. v.6 n.11 São Paulo 2007
ARTIGOS
A construção social da Síndrome de Down
The Syndrome of Down´ social construction
Andréa Soares Wuo *
RESUMO
O aparecimento da Síndrome de Down na mídia, sobretudo na televisão e cinema, tem suscitado diversas discussões acerca do assunto. Além disso, a emergência da inclusão escolar dessas pessoas vem gerando, desde a década de 1990, uma demanda dos educadores por informação a respeito não apenas da síndrome em questão, mas também de outras deficiências. O presente artigo pretende dedicar-se aos limites sociais que foram construídos a partir do século XIX, quando a deficiência passa a ser posta em questão pela medicina moderna. A deficiência mental, por ser o aspecto mais característico desta síndrome, também será discutida no artigo tanto em relação aos fatores sociais e históricos de sua constituição, como alguns de seus aspectos psicológicos, com base na psicologia sócio-histórica. O texto organiza-se em duas partes: a primeira dedica-se a apresentar um breve histórico do discurso médico-científico da deficiência iniciado na Europa em fins de século XVIII. A segunda discorre sobre a Síndrome de Down e a deficiência mental, abordando aspectos orgânicos e sociais de constituição.
Palavras-chave: Síndrome de Down, Deficiência mental, Construção social.
ABSTRACT
The emergence of Down Syndrome in the media, especially in television and film, has raised several discussions on the subject. Moreover, the emergence of inclusion school is generating these people, since the 1990, a demand of educators for information about the syndrome not only concerned but also other deficiencies. This article intends to devote itself to social boundaries that were built from the nineteenth century, when the disability becomes called into question by modern medicine. The disability, to be the most characteristic of this syndrome, will also be discussed in the article to assess social and historical factors of its
constitution, as some of its psychological aspects, based on psychology socio-historical. The text organizes itself into two parts: the first is dedicated to presenting a brief history of the medical-scientific discourse of disability started in Europe at the end of the eighteenth century. The second talks about Down Syndrome and mental retardation, organic and addressing social aspects of incorporation.
Keywords: Down's Syndrome, Mental deficiency, Construction company.
As bases históricas da Síndrome de Down e da Deficiência Mental
O surgimento da medicina moderna dá-se a partir das últimas décadas do século XVIII, na Europa, quando o pensamento científico começa a se desvencilhar do pensamento religioso (Foucault, 1997).
Como meio de se adaptar ao novo contexto, as causas e explicações das doenças (e das deficiências) serão agora dadas segundo fatos empíricos, distanciando-se, dessa forma, das concepções religiosas e subjetivas de eras anteriores.
Isaías Pessotti (1984), define esse momento como aquele em que "o médico é o novo árbitro do destino do deficiente. Ele julga, ele salva, ele condena" (p.68).
Os deficientes mentais, ora vistos como "anjos" enviados por Deus e dignos de caridade, ora como "bruxos", "presa de entidades malignas", condenados pela Inquisição (Pessotti, 1984, p.9), são, com o nascimento da medicina moderna, concebidos sob um novo aspecto, segundo as normas do empirismo.
Por essa época, uma das primeiras definições e causas da deficiência mental poderá ser encontrada na terceira edição da Enciclopédia (1779) de Diderot e D'Alembert, no verbete Crétin, em que se atribui à localização geográfica e questões climáticas as causas do “cretinismo” :
“ (...) dá-se esse nome a uma espécie de homens que nascem no Valais em grandíssima quantidade, e sobretudo em Sion, sua capital. Eles são surdos, mudos, imbecis, quase insensíveis aos golpes e têm bócios pendentes, até a cintura, muito boas pessoas, aliás; elas são incapazes de idéias e não têm senão um tipo de atração muito violenta por suas necessidades. Abandonam-se aos prazeres sensuais de toda espécie e sua imbecilidade lhes impede de ver nisso qualquer crime. É difícil explicar a causa e o efeito da cretinice. A sujeira, a educação, o calor excessivo dos vales,as águas, os próprios bócios, são comuns a todas as crianças dessas populações. Contudo nem todos eles nascem cretinos ... “ (Diderot e D'Alembert apud Pessotti, 1984, p.69).
Em 1791, J. E. Foderé, publica seu Traité du goitre et du crétinisme, resultado de propostas feitas pelo autor junto a uma equipe, para a erradicação da endemia do bócio , de forma a impedir a "endemia" do cretinismo. A hereditariedade da deficiência mental já era considerada na época: "A propagação do cretinismo implica sempre em pais afetados de bócio" (Foderé apud Pessotti, 1984, p.69).
Em 1857 Morel publica o Tratado das degenerescências físicas, intelectuais e morais da espécie humana, aproximando-se da teoria de Foderé, porém distanciando-se da questão do bócio como único fator provocador dos diversos tipos de deficiência mental: o cretinismo, a idiotia, a imbecilidade. As causas que lhes eram atribuídas íam desde sua forte ligação com o bócio1 à preguiça, considerada primeira etapa de degenerescência.
Como meio de ordenar tais explicações, um adepto de sua teoria, Robin, constrói, em 1882, um quadro das causas de degenerescências divididas em: patológicas (sífilis, câncer, tuberculose...), tóxicas (álcool, ópio, alimentos...), geográficas e climáticas (frio, calor, altitude, malária, bócio...) e sociológicas (divisão de trabalho, cruzamentos étnicos, profissões, esterilidade étnica, aglomerados urbanos...). (Pessotti, 1984, p.136).
Dessa forma, chega-se a conclusão de que o cretinismo, a idiotia ou o retardo eram degenerescências - conceito entendido por Morel como "degradação da natureza, perda da perfeição, um processo dinâmico, causal ou determinado" (Morel apud Pessotti,1984, p.135), transmitidas hereditariamente e que se ampliavam em grau a cada geração:
“Semeada a idéia da degenerescência das raças, identificada com o cretinismo-idiotia "tomados em bloco" , fica plantada também a idéia de que o deficiente mental - fosse ele idiota, imbecil ou retardado - era portador do princípio degradador, uma triste e perigosa função, um repulsivo papel social. “(Pessotti,1984, p.141)
A deficiência mental é, portanto, entendida como uma "degradação progressiva" da raça, dada em diversos níveis de degenerescência.
Em 1866, Langdom Down publica Observations on Ethnic Classifications of Idiots, a fim de classificar "etnicamente" os tipos de deficiência mental existentes. Foi durante esse trabalho que se caracterizou o "mongolismo" como determinado grupo étnico de "deficiência", devido à sua semelhança com o povo mongol. A teoria do Dr. Down, em consonância com o pensamento evolucionista da época, e influenciada pela idéia de que fenômenos patológicos estariam ligados a regressões às raças mais primitivas da história, fortalece a tese da degenerescência:
“Trata-se de um representante da grande raça mongólica. Quando se colocam lado a lado é difícil crer que não se trata de filhos dos mesmos pais... Os olhos estão situados obliquamente e as comissuras internas dos mesmos distam entre si mais que o normal. A fenda palpebral é muito estreita...os lábios são grandes, grossos e com pregas transversais...” (Down, apud Pessotti, 1984, p.143)
A "doença" caracterizada por Langdom Down, foi nomeada, em sua homenagem, "Síndrome de Down".
No século XIX, o conceito de raça em seu sentido biológico, utilizado para classificar as diversas espécies, tomou um sentido social como forma de explicar, justificar e legitimar, com base na medicina, a desigualdade entre os homens.Conceitos, modelos e idéias são re-elaborados, tomando novos sentidos - "velhos nomes com novos significados" (Shwarcz, 1993, p. 242). A autora comenta:
“A noção de "perfectibilidade", por exemplo, do modelo do século XVIII só conservou o nome, tendo sido destituída de seu conteúdo original. Não se falava mais da concepção humanista de Rousseau, que entendia tal conceito como característica intrínseca a todo e qualquer homem, que carregava consigo a possibilidade de superar-se sempre. Na leitura do século XIX, e em especial no Brasil, a perfectibilidade seria um atributo de poucos, um sinal da superioridade de alguns grupos em detrimento de outros ...”
Ancorada na idéia de raça - e suas degenerescências ou graus de evolução, a deficiência no Brasil, embora anos mais tarde, no início do século XX, também é alvo da eugenia. Shwarcz (1993), ao tratar da apropriação desse conceito no Brasil, e suas relações com as políticas sanitaristas2 da época , apresenta a definição publicada no Brazil Médico em 1918:
“Nova ciência a eugenia consiste no conhecer as causas explicativas da decadência ou levantamento das raças, visando a perfectibilidade da espécie humana, não só no que respeita o phisico como o intelectual. Os métodos tem por objetivo o cruzamento dos sãos, procurando educar o instinto sexual. Impedir a reprodução dos defeituosos que transmitem taras aos seus descendentes... Nesses termos a eugenia não é outra cousa sinão o esforço para obter uma raça pura e forte...” (Shwarcz, 1993, p 231)
As primeiras décadas do século XX foram marcadas, no âmbito da Educação para pessoas com deficiência mental no Brasil, pela influência da Medicina e dos ideários da higiene3 e eugenia que a acompanhavam; e por conseqüência também da Psicologia, na criação e aplicação de testes de inteligência, buscando a identificação e seleção dos anormais.
Segundo Carvalho (2003), esse período (principalmente de 1900 a 1920) foi marcado pela preocupação em se constituir uma “pedagogia científica”, no intuito de estabelecer uma “ciência” da criança. Em 1914 foi instituído o Laboratório de Pedagogia Experimental ligado à Escola Normal de São Paulo, a fim de classificar as crianças como forma de aquisição desse conhecimento científico. Foi, então, com a entrada da Psicologia, da Medicina, da Antropologia e da Biologiana Educação que tal tarefa se torna possível.
De acordo com Carvalho (2003, p.297), nesse contexto, conhecer o aluno significava
“(...) operar com tipologias que ordenavam a variedade dos fatos observados e medidos de modo a subsumi-los a classificações tidas como derivadas da natureza das coisas. Era enquadrar o indivíduo no tipo e ler nos corpos sinais que uma ciência determinista constituía como índices de normalidade, anormalidade ou degeneração. Era classificar o tipo segundo divisões inscritas na natureza, que repartiam e hierarquizavam a humanidade. E era – ao que indica a recorrência das teorias raciais que, desde finais do século, vinham-se constituindo na linguagem principal dos intelectuais brasileiros, no seu afã de pensar as possibilidades de progresso para o país e legitimar as hierarquias sociais.”
Buscava-se, com isso, reconhecer, classificar os alunos normais dos anormais ou degenerados a fim de se dar o tratamento adequado de acordo com a psicognóstica e a pedotécnica: a primeira, segundo Oscar Thompson, responsável pelo estudo do “da criança nas várias fases da vida segundo o tipo normal e anormal”; e a segunda, pelo estabelecimentoe das “normas traçadas ao método e à didática para o ensino se pôr em harmonia com a natureza psicológica da criança”(Thompson, 1914 apud Carvalho, 2003, pp.295-296).
Surge também na mesma época a representação da nova Pedagogia pela figura da árvore, de autoria do psicólogo italiano Ugo Pizzoli, em que ela se apresenta enraizada nos mais diversos campos científicos (sociologia, legislação escolar, história da educação, anatomia, fisiologia, antropologia, psicologia, higiene individual, higiene coletiva, ortofrenia, arte didática e outras), com dois subtroncos: um forte, com folhas e frutos, simbolizando a pedagogia normal, e outro, raquítico com frutos murchos, simbolizando a pedagogia emendatória. Faziam parte desses frutos: os criminosos, os amorais, tarados, idiotas, cretinos, imbecis, surdos-mudos, cegos de nascença e deficientes físicos. (Carvalho, 2003, p.297).
Era, portanto, pela distinção feita pela pedagogia científica entre normalidade, anormalidade ou degenerescência que se definia o destino do alunado: se fosse caso de anomalia simples, a natureza do aluno poderia ser compatível “com a natureza e fim da escola” podendo “freqüentar a escola dos normais” para serem “corrigidos e modificados por métodos especiais”. Mas, no caso dos degenerados, estes deveriam ser “excluídos absolutamente das escolas dos normais, seja qual for a forma de seu caráter degenerativo” (Thompson, 1916 apud Carvalho, 2003, p.299). Institui-se, dessa forma, as classe homogêneas, como meio de maximizar os resultados do ensino e explicitar o ideário republicano de distinção – com base em critérios como os de raça/hereditariedade – entre aqueles capazes e os incapazes de serem educados. (Carvalho, 1989)
De acordo com Werneck (1993), foi em meados do século XX, com o avanço nas pesquisas genéticas, que o cientista francês Jerôme Lejeune reformulou a concepção da "deficiência", mostrando que esta em nada tinha a ver com qualquer degeneração racial. Tratava-se de um acidente genético no qual determinado par cromossômico, o cromossomo 21, contava com um gene a mais, dando-se então uma nova denominação à Síndrome de Down, a "trissomia do 21".
Considerando que a forma como é concebido uma doença irá influenciar diretamente nos modos como a sociedade lida com ela (Laplantine, 1991), o tratamento dado pela sociedade – em suas relações cotidianas - a esses portadores, carrega os elementos já superados pelas novas teorias científicas, mas ainda remanescentes no senso comum.
Observam-se mudanças nos tratamentos médicos e educacionais, baseados nas novas descobertas da ciência acerca da síndrome, mas encontram-se, ao mesmo tempo, questões em aberto, principalmente no que se refere às relações entre o "deficiente" e a sociedade: a culpa dos pais, a crença na sua incapacidade, o estigma; sugerindo, dessa forma, elementos de ordem psicológica e social na concepção da "deficiência".
Nota-se que, com a reformulação da concepção da Síndrome de Down como acidente genético, somada aos avanços nos tratamentos médicos, psicológicos e pedagógicos, cria-se, uma nova representação da "deficiência": de uma função perigosa à sociedade (ligada à degenerescência da raça) passa-se à qualidade de vítimas de um “erro” (genético).
Vê-se, portanto, que, sob diferentes denominações (cretinos, idiotas, imbecis, mongolóides, retardados e, mais atualmente, “pessoas portadoras de necessidades especiais”) e suas concepções subseqüentes, a deficiência mental e a Síndrome de Down não superaram, ainda, a noção de “anormalidade” presente desde o século XIX. Isso pode ser observado quando se discute, por exemplo, a inclusão escolar dessa população nas escolas regulares. Nestes casos, a presença de um aluno com deficiência mental em uma sala de aula regular tende a causar em muitos membros da equipe escolar (professores, diretores, coordenadores, e outros auxiliares) inquietações quando à viabilidade de seu ensino e permanência “entre normais”. Tais inquietações residem em “representações sociais” cristalizadas, construídas ao longo da História e que agora precisam ser descontruídas de forma a adequar-se à nova realidade, a qual busca uma “educação para todos”, respeitando, porém, as necessidades individuais de cada aluno. (Wuo, 2005).
Considerações sobre a Síndrome de Down (SD) e a deficiência mental (DM)
Segundo Brunoni (2003), a SD é uma cromossopatia, ou seja, uma síndrome4 "cujo quadro clínico global deve ser explicado por um desequilíbrio na constituição cromossômica", no caso, a presença de um cromossomo extra no par 21, caracterizando a trissomia do 21.
Há três tipos de trissomia do 21(SD):
• a trissomia simples, resultado da não-disjunção cromossômica do par 21 que ocorre no momento de divisão celular5 , representando 95% dos casos;
• o mosaicismo (2% dos casos), que compromete apenas parte das células, ou seja, algumas células possuem 46 cromossomos e outras, 47;
• a translocação, também pouco expressiva, ocorrendo em cerca de 2% dos casos, em que o cromossomo extra do par 21 fica "grudado" em outro cromossomo e, embora o indivíduo tenha 46 cromossomos, ele é portador da Síndrome de Down.
Este é o único caso em que a SD pode ser hereditária. (Shwartzman, 2003, p.16)
Esses três tipos de trissomia do 21 não implicam diferenças no grau de desenvolvimento das pessoas com SD, com exceção do mosaicismo que, por não afetar todas as células, tem um menor comprometimento no desenvolvimento global do indivíduo - mas, como já mencionado, trata-se de um caso pouco expressivo. Nota-se, dessa forma que as diferenças que se observam entre as pessoas com SD dependem mais de suas determinações sociais, do que das genéticas.
O diagnóstico da SD pode ser feito a partir do nascimento do bebê, ou mesmo antes, por meio do exame de ultrassonografia, pela observação de alterações fenotípicas e outras características típicas6. Este diagnóstico, no entanto, só levanta suspeitas, uma vez que tais características não são específicas da SD e cada uma delas pode estar presente isoladamente em pessoas comuns, conforme aponta Shwartzman (2003). O diagnóstico definitivo só é alcançado por meio do cariograma - estudo do cariótipo (identidade genética de um indivíduo).
A SD vem associada a diversos problemas de saúde, sendo a deficiência mental e a hipotonia muscular as mais comuns. Outros problemas se relacionam ao aparelho cardiovascular (cardiopatias congênitas operáveis); ao aparelho gastrointestinal (estreitamento duodenal; distúrbios intestinais, como constipação, atribuídos à hipotonia muscular e que podem ser controlados pela alimentação); ao aparelho respiratório (sinusite, bronquite, asma crônica); à ortopedia (extremidades encurtadas, com mãos e pés "chatos"; frouxidão de ligamentos que origina problemas nos pés, joelhos e quadris; instabilidade nas articulações cervicais e comprometimento da articulação coxofemoral); ao sistema nervoso central (Doença de Alzheimer; calcificação de gânglia7 basal e epilepsia); e hipotireoidismo.
De acordo com Shwartzman (2003) e Werneck (1995) a anatomia do cérebro da pessoa com SD é diferente e está relacionada a uma redução de seu volume de três a cinco por cento, atribuída à diminuição do tamanho dos lobos (regiões do cérebro). Constata-se também um número menor de neurônios em comparação com a população em geral. Tais diferenças estão diretamente ligadas ao comprometimento intelectual das pessoas com SD.
Deve-se ressaltar que tais problemas são predisposições, indicando que não são todas as pessoas com SD que irão adquiri-los. Além disso, todos eles são passíveis de tratamento e controle, sobretudo se for precocemente diagnosticados, e sujeitos a trabalhos de estimulação precoce, os quais colaboram, por meio de um trabalho interdisciplinar (médicos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos e educadores), para o desenvolvimento global dessas pessoas. (Shwartzman, 2003; Werneck, 1995).
Segundo Brown, Taylor e Matthews (1996), o avanço das ciências da saúde tem contribuído para o aumento da expectativa de sobrevida das pessoas com SD, que, antes era, em média, treze anos, hoje vêm alcançando idades cada vez mais avançadas sobretudo nos países desenvolvidos (Canadá, Inglaterra, EUA, Suíca, Bélgica e outros).
O seu desenvolvimento motor ocorre de forma mais lenta do que o das outras crianças, levando mais tempo para engatinhar, sentar-se e andar. Segundo Shwartzman (2003), isto pode estar relacionado à hipotonia muscular típica da SD.
A hipotonia muscular também pode interferir no processo de aquisição de linguagem, sobretudo nos primeiros meses de vida quando a criança começa a estabelecer os vínculos comunicativos com a mãe. O sorriso e o contato de olho começam mais tarde, o que leva a mãe a pensar que seu filho não responde aos estímulos. Berger (1995), citado por Voivodic (2004), observou, no entanto, que as crianças percebem as características da vocalização da mãe desde bebês e se adaptam a elas. A verbalização também tem início tardio em relação às outras crianças, fato que pode levar as mães a serem mais diretivas na comunicação, evitando perguntas e com isso, não contribuindo para o desenvolvimento da fala do filho com SD.
A maioria das pessoas com SD faz uso funcional da linguagem e compreende as regras de conversação, sendo as habilidades comunicativas variáveis entre os indivíduos, uma vez que a fala é um processo que se constrói socialmente. A aquisição de linguagem em pessoas com SD, a despeito das condições estruturais de seus portadores, está intimamente ligada ao estigma que se interpõe na relação mãe-filho com SD, fato que dificulta seu desenvolvimento pleno. (Shwartzman, 2003).
Com relação aos aspectos comportamentais, teimosia, ritualização, impulsividade, problemas para dormir e fobias têm sido observados em pessoas com SD (Buckley e Sacks, 1987 apud Casarin, 2003), desconstruindo portanto, o estereótipo da figura dócil e sociável das pessoas com SD. Embora a SD defina alguns aspectos físicos de seus "portadores", suas características psicológicas serão construídas no meio em que vivem. Foi possível observar em Wuo (2005) que as pessoas com SD são consideradas pela maior parte dos professores entrevistados como “amorosos, afetuosos, anjos ou santos”, mas, como afirma Casarin (2003, p.281), "... apesar de haver uma tendência à uniformização, a pessoa com SD tem sua própria personalidade e se diferencia de outras pessoas."
Quanto aos aspectos cognitivos, a deficiência mental é uma das características mais constantes da SD e irá variar em cada indivíduo. Segundo Voivodic (2004), as pessoas com SD apresentam déficit de atenção, causado por alterações neurológicas, déficit de memória, relacionado à memória auditiva imediata, o que pode afetar a produção e o processamento da linguagem, e déficit na memória de longo prazo, o que pode "interferir na elaboração de conceitos, na generalização e no planejamento das situações" (p. 45).
Tem-se assim que, embora muitos acreditem que o processo de aprendizagem das pessoas com SD e com deficiência mental se dá apenas de forma mais lenta que a dos outros, há, na verdade, diferenças estruturais que tornam esse processo qualitativamente diferente do das outras pessoas. As especificidades das pessoas com SD devem ser, então, consideradas e conhecidas pelos profissionais que com elas lidam, de forma a otimizar o processo de ensino e aprendizagem, a fim de propiciar o seu desenvolvimento, entendido aqui como a apropriação, pelo indivíduo da cultura humana, que deve caminhar em direção à independência e à autodeterminação (Bartalotti, 2004, p. 46).
Segundo Vygotsky (1984) o desenvolvimento psíquico parte de duas linhas: uma natural e uma cultural. A primeira refere-se aos processos psicológicos elementares,"regulados por mecanismos biológicos envolvendo formas elementares de memorização, atividade senso-perceptiva, motivação instintiva, etc." (Bartalotti, 2004, p.47). A linha cultural liga-se aos processos sociais, dando origem aos processos psicológicos superiores, ou seja, à estrutura complexa do pensamento. Segundo Vygotsky (1984), é por esta nova estrutura, que se constrói a partir da internalização "das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas", que o homem se diferencia do animal, dando-se com isso um "salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana" (p.65).
Nota-se que, da linha natural à social, dá-se uma transformação qualitativa e não quantitativa, ou seja, os processos psicológicos superiores não nascem da evolução dos processos psicológicos elementares, embora se sobreponham a estes, conforme explica Bartalotti (2004, p. 48):
“É importante ter clareza de que estas duas linhas de desenvolvimento funcionam de maneira independente, mas a linha cultural sobrepõe-se à natural, pois trata dos processos de apropriação e domínio dos recursos da cultura. O componente biológico fornece o substrato, as condições básicas necessárias mas não suficientes, para os processos de desenvolvimento regulados pela participação na vida social e para a apropriação mútua que se produz entre sujeito e cultura. Para Vygotsky (1991: 52), "...a história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento dessas duas linhas".
Observa-se com isso que, para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores de pessoas com deficiência, devem-se levar em conta as peculiaridades de suas funções elementares. Caso contrário, há o perigo de centrar-se naquilo que falta ao indivíduo, e "não no que ele possui ou é" submetendo as crianças a uma "Pedagogia Ortopédica", um processo "de exercitar, intensamente, as funções debilitadas, na busca de superar suas debilidades" (Bartalotti , 2004, p. 53).
A tendência em assumir a deficiência como a "falta de" algo, com base em um quantum de inteligência8 , parte do pressuposto de que a deficiência é uma "coisa" e não um processo que pode se construir nas e pelas interações sociais. Nesta perspectiva, a pessoa com deficiência é sempre colocada como inferior às demais, um ser incapaz de alcançar um desenvolvimento plenamente humano.
Segundo Melero (1999), esta concepção, que totaliza o indivíduo na deficiência, não dando chances ao seu desenvolvimento, tem bases nas noções inatas e estáticas de inteligência que partem da premissa de que ela é mensurável:
“Como es sabido algunos autores que trabajan en el campo de la educación de las personas con síndrome de Down, suelen afirmar que éstas tienen déficit intelectual. Esto es sabido a que la inteligencua ha sido considerada tradicionalmente como esa capacidade inata, relativamente fija, constante toda la vida, que viene determinada genéticamente y caracterizada por habilidades globales y específicas...La inteligencia no se define, se construye. “ (p. 49)
A publicação do ICIDH ( International Classification of impairments, disabilities and handicaps: a manual of classification relating to the consequences of disease ) em 1989 colabora para uma abordagem mais processual da deficiência. Nela se propõe a classificação da deficiência a partir de suas conseqüências orgânicas, individuais e sociais, sendo nomeadas e definidas da seguinte forma:
Deficiência: perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, temporária ou permanente. Representa a exteriorização de um estado patológico, refletindo um distúrbio orgânico, uma perturbação no órgão
Incapacidade: restrição, resultante de uma deficiência, da habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal para o ser humano. Conseqüência ou resposta a uma deficiência. Representa a objetivação da deficiência e reflete os distúrbios da própria pessoa nas atividades e comportamentos essenciais à vida diária.
Desvantagem: prejuízo para o indivíduo, resultante de uma deficiência ou incapacidade, que limita ou impede o desempenho de papéis de acordo com idade, sexo, fatores sociais e culturais. Caracteriza-se por uma discordância entre a capacidade individual de realização e as expectativas do indivíduo ou do seu grupo social. Representa o aspecto social da deficiência, construído pelas barreiras atitudinais com base no preconceito. (Amiralian et al., 2000, p.98).
A partir dos estudos de vários autores (Wood, De Kleijn et al, Stephens & Hetu, Badley e Viso), Amiralian et al. (2000) apresentam um esquema mostrando que as três definições da ICIDH não seguem necessariamente uma progressão linear (a deficiência que leva à incapacidade e conseqüentemente à desvantagem), pois há possibilidade de interrupção desta em qualquer estágio. Sendo assim, dizem os autores:
“(...) uma pessoa pode ter deficiência sem incapacidade ou desvantagem, uma incapacidade sem desvantagem ou deficiência ou uma desvantagem sem incapacidade ou deficiência. Pode ocorrer uma deficiência associada com incapacidade e desvantagem, comprometendo todos os níveis de manifestação, ou apenas com incapacidade, quando a desvantagem social foi compensada.” (Amiralian et al, 2000, p. 100).
As discussões a respeito das definições propostas pela ICIDH têm tido larga repercussão no âmbito internacional, como é o caso de Atkinson (1996), que discutiu as mudanças na terminologia, apontando que as trocas de palavras poderiam auxiliar nas mudanças de perspectivas e sugerir linhas de direção para que tais modificações pudessem ocorrer (Amiralian et al., 2000). O autor sugere, por exemplo, o uso de preposições na nomeação, como meio de impedir a caracterização da pessoa por sua deficiência. Assim, ao dizermos pessoa com deficiência mental em vez de "deficiente mental", retiramos do indivíduo sua condição "deficiente", dando-lhe, de certa forma, mais "chances de vida". Rieser (1995), um dos representantes da crítica ao modelo médico da doença, chama a atenção para o quanto ele se encontra atrelado aos estereótipos e à figura do médico no que tange ao estabelecimento dos processos de reabilitação, sugerindo que se adote o modelo social como central. Ao considerar esse modelo, Rieser propõe que se fique atento às barreiras sociais que não estão, necessariamente, relacionadas à deficiência, mas a preconceitos, estereótipos e discriminações.
São essas barreiras atitudinais que provocam as "desvantagens" apresentadas pelo ICIDH e que precisam ser enfrentadas a partir de uma "ampla discussão da sociedade, permitindo uma reflexão sobre a forma de agir com relação à diferença” (Amiralian et al., 2000: 101).
A definição de "deficiência mental" amplamente adotada por setores da educação e saúde nos dias de hoje, é a proposta pela Associação Americana de Deficiência Mental (AAMD). De acordo com esta definição, a pessoa com deficiência mental possui um déficit de inteligência prática (habilidades de se manter e sustentar em atividades comuns da vida diária), social (habilidade para compreender as expectativas e comportamentos sociais, bem como adequação de seus comportamentos em situações sociais), e conceitual (capacidades da inteligência, envolvendo suas dimensões abstratas). Ao funcionamento intelectual, soma-se a compreensão da deficiência mental, a noção de habilidades adaptativas em dez áreas específicas, quais sejam: comunicação, cuidados pessoais, habilidades sociais, desempenho na família e na comunidade, independência, saúde, segurança, desempenho escolar, trabalho e lazer. Nota-se que esta definição vai além do modelo médico e centrado somente na pessoa com deficiência, mas busca uma visão funcional decorrente da interação entre elas "e os tipos, as formas e a intensidade de apoio para a melhoria da capacidade funcional dessas pessoas" (MEC, 1995, p.19).
De acordo com Mantoan (1998), esta classificação é um meio de importantes transformações no plano de serviços, pois
“(...) propõe que se abandonem os graus de comprometimento intelectual, pela graduação de medidas de apoio necessárias às pessoas com déficit cognitivo e destaca o processo interativo entre as limitações funcionais próprias dos indivíduos e as possibilidades adaptativas que lhes são disponíveis em seus ambientes de vida.”
A partir desta definição, Amaral (1998) propõe que se pense a deficiência como um fenômeno global que se manifesta em dois subfenômenos: a deficiência primária (deficiência e incapacidade) e a deficiência secundária (desvantagem). A primeira refere-se aos fatores intrínsecos da deficiência, enquanto a segunda, aos fatores extrínsecos, diretamente relacionados às barreiras atitudinais. A autora afirma (1999, p. 25):
“ Tenho, na companhia de vários de autores, argumentado que a deficiência primária pode impedir ritmos e formas usuais de desenvolvimento, mas não a sua ocorrência - o que de fato vem a suceder, muitas vezes, em decorrência das variáveis envolvidas na problemática da "desvantagem" (deficiência secundária). “
De acordo com Meleiro (1999), o desenvolvimento de uma pessoa com SD, a exemplo de qualquer outra pessoa, deve ser considerado em seus aspectos cognitivos, afetivos, lingüísticos e motores, uma vez que cada um desses aspectos, em conjunto com a família, a escola e o entorno social, se inter-relacionam e se constituem mutuamente. O modo como a pessoa com SD é concebida pelos outros pode implicar, portanto, ganhos ou prejuízos para o seu desenvolvimento social, afetivo, cognitivo e lingüístico, pois estes são socialmente construídos. A pessoa com SD é, como nos aponta o autor, "mucho más que su carga genética, es un organismo que funciona como un todo y la genética es sólo una posibilidad" (p.33), ou seja, são as determinações sociais, e não somente as biológicas ou genéticas que irão lhes permitir o desenvolvimento e, conseqüentemente, sua constituição enquanto sujeito.
Referências
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Endereço para correspondência
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Campus Monte Alegre
Rua Monte Alegre, 984 Perdizes - São Paulo - SP
CEP: 05014-901
e-mail: andreawuo@uol.com.br
Recebido: 16/02/2006
Aceito: 25/04/2006
* Mestre em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
1 Patologia definida, segundo"Grande Enciclopédia Larousse Cultural", como uma "... hipertrofia do corpo da glândula tireóide (...) O bócio simples é endêmico nas regiões montanhosas, como na porção central do Brasil, onde pode ser provocada por uma deficiência de iodo no solo e na água, pelo que se adiciona iodo ao sal."(1995:814). Conhecido também por "papeira"
2 No Rio de Janeiro, a apropriação das noções de raça e eugenia serviram para o surgimento de práticas sociais com o intuito de "limpar" a cidade de suas impurezas. Caracterizaram-se pelas "limpezas" de "doenças" e epidemias, que deram origem à Revolta da Vacina, e por aquelas de cunho étnico-racial voltadas a todos os que traziam consigo a condição de degenerescência e representavam perigo aos ideais de uma "nação forte": negros, imigrantes, deficientes, doentes e "loucos"
3 Com o intuito de “limpar “ a cidade dos “anormais”, e preservar a “normalidade”, criou-se, em 1922, a Liga Brasileira de Higiene Mental
4 Uma síndrome é um "conjunto de sinais e sintomas, e que pode ser produzido por mais de uma causa ou várias causas." (fonte: CEPEC)
5 As células se dividem, mas os pares cromossômicos não se separam, um dos cromossomos morre, restando apenas três e dando-se a trissomia. (Shwartzman, 2003)
6 Reflexo Moro hipoativo, hipotonia, face com perfil achatado, fissuras palpebrais com inclinação para cima, orelhas pequenas, arrendodadas e dipláticas, excesso de pele na nuca, prega palmar única, hiperextensão das grandes articulações, hipoplasia da falange média do quinto dedo. (Shwartzman, 2003)
7 A calcificação de gânglia basal causa convulsões
8 Ainda hoje, de acordo com documento do MEC/ SEESP (1995), indivíduos que possuem QI abaixo de 70 são considerados deficientes mentais